UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
ENTRE PROTEÇÃO E CONTROLE: OS JUDEUS
NO OCIDENTE MEDIEVAL NAS DECRETAIS
DO PAPA GREGÓRIO IX
LEANDRO DA MOTTA OLIVEIRA
Monografia de Graduação
Brasília (DF), dezembro de 2014.
1
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
ENTRE PROTEÇÃO E CONTROLE: OS JUDEUS
NO OCIDENTE MEDIEVAL NAS DECRETAIS
DO PAPA GREGÓRIO IX
Monografia apresentada ao Departamento de
História do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade de Brasília para obtenção do
grau de licenciatura em História, sob a
orientação da Profa Dra Claudia Costa
Brochado.
LEANDRO DA MOTTA OLIVEIRA
2
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar o tratamento conferido aos judeus no
documento pontifício do papa Gregório IX (1227 - 1241), conhecido como Decretais do
Papa Gregório IX. Embora a perseguição aos judeus na Idade Média tenha sido objeto
de muitos estudos pelos historiadores, ainda assim, é um assunto que não se esgota, por
sua amplitude e complexidade. Neste sentido, as Decretais do Papa Gregório IX, devido
às suas características compiladoras de usos e costumes da época, constituem um corpus
canônico-jurídico que permite, por meio de sua análise, compreender aspectos
essenciais da sociedade medieval europeia, como a tolerância. Mais precisamente, será
analisado o Quinto Livro, que trata dos judeus.
Palavras-chave: Idade Média; judeus; intolerância; Decretais; papa Gregório
IX; Cristandade.
3
ABSTRACT
This project has the objective of analyzing the treatment given to the Jewish by
Pope Gregory IX’s (1227 - 1241) pontifical document known as the Pope Gregory IX’s
Decrees. Although the Jewish persecution in the Middle Ages has been subject to
several studies by historians, this subject never ceases due to its magnitude and
complexity. In this sense, Pope Gregory IX’s Decrees, due to its compiling
characteristics of the ways and customs of that period, constitute a legal canon corpus
that allows, through its analysis, understand essential aspects of the European medieval
society, for instance the tolerance. More precisely, will be analyzed more thoroughly the
Fifth Book related to the Jewish people.
Key words: Middle Ages; Jewish; intolerance; Decrees; Pope Gregory IX;
Christianity.
4
Agradecimentos
A primeira gratidão neste trabalho vai para a Profa Dra Claudia Costa Brochado. Sua
paciência para com os atrasos e entendimento em dividir questões profissionais com
acadêmicas se aliaram ao exaustivo trabalho de leitura, revisão e orientação, evitando
muitos erros e permitindo um entendimento mais profundo sobre a beleza da Idade
Média. Seu labor também deixou marcado o exemplo para a produção intelectual séria,
criteriosa e com profundidade. Um agradecimento especial também a Profa Dra Maria
Filomena Pinto da Costa Coelho, que gentilmente trouxe grande auxílio no
entendimento das decretais.
Gostaria de deixar o maior agradecimento à minha família pela compreensão, estímulo e
por dividir pacientemente a convivência com as atividades acadêmicas e por me fazer
ter ótimas lembranças dos momentos vividos em minha maturidade na UNB.
Especialmente, a minha esposa Sumarli pelo amor e encorajamento sempre presentes,
sem o qual não teria concluído o curso. Às minhas filhas Thaís por dividir comigo idas e
vindas à UNB, à Sarah pelo carinho e ternura dos auxílios “técnicos” em algumas
disciplinas e ao Thiago pelo interesse e paixão pela História.
5
SUMÁRIO
Resumo
3
Abstract
4
Agradecimentos
5
Introdução
7
Capítulo 1 - A influência agostiniana no tratamento aos judeus
15
1.1 – Entre tolerância e intolerância
19
Capítulo 2 - Análise das Decretais do Papa Gregório IX
22
Conclusão
31
Bibliografia
36
Fontes
39
Declaração de autenticidade
40
6
Introdução
Há um estigma em desfavor da Idade Média. Este estigma começa a ser
construído no Humanismo, recebe forte reforço no Iluminismo, consolidando-se na
historiografia que se organizou no século. XIX. Há uma construção historiográfica que
rotula a Idade Medieval como um período de atraso científico, econômico e social,
tendo a Igreja um papel fundamental nesses retrocessos. Ela seria também a grande
responsável pela intolerância, marca do período, que afetará especialmente alguns
grupos, como as mulheres e os judeus. Este trabalho escolheu como tema de análise os
judeus, buscando observá-los na perspectiva da intolerância/tolerância em seu
convívio com as comunidades cristãs no ocidente medieval.
Para isso utilizamos como fonte primária as Decretais do Papa Gregório IX
(1227 - 1241), fonte jurídico-canônica do século XIII. Tentamos perceber nas menções
papais deste documento como os judeus eram tratados, avaliando a ideia predominante
da intolerância com relação a esse grupo na Idade Média. Percorrendo a fonte,
procuramos responder algumas perguntas: como foi o relacionamento dos judeus na
sociedade medieval junto às comunidades cristãs? Este relacionamento encontrou na
tolerância ou na intolerância a sua forma predominante? Há momentos em que uma ou
outra predominam?
Para o entendimento da questão, buscamos a historiografia relativa ao tema,
quer seja, Sérgio Feldman, autor brasileiro especialista no estudo dos judeus na Idade
Média, sobretudo com pesquisas relacionadas à atitude papal em relação à
comunidade. Os estudos de outro medievalista pátrio, Leandro Rust, foram analisados,
principalmente sua importante pesquisa sobre o papado dos séculos XI e XII. José
Mattoso com seu trabalho sobre os judeus na Península Ibérica. Jacques Le Goff e seu
discípulo, Jérôme Baschet, consagrados por análises relativas à vida material e à
espiritualidade na Idade Média, também foram revisitados, de igual modo, outras obras
clássicas constantes da bibliografia.
O estudo da compilação das normas produzidas no lapso temporal que medeia os
séculos IV e XII se constitui num importante caminho para o entendimento da relação
entre igreja e sociedade na Idade Média. Por esta inserção podemos alcançar e/ou
questionar a ideia da intolerância quanto ao status das comunidades judaicas na
Cristandade europeia até o século XIII.
7
Num breve histórico da presença judaica no Ocidente, podemos começar pela
ausência de hostilidade popular disseminada contra os judeus no Império Romano.
Inclusive, privilégios religiosos foram concedidos às comunidades judaicas a partir do
século I. Tal situação foi substituída pela deterioração das relações, que levaram a uma
série de revoltas no século II, conhecidas como Guerras Romano-Judaicas.
(RICHARDS, 1993: 95).
Podemos ainda observar que com o Édito de Caracala, em 212, os súditos do
Império, dentre eles os judeus, adquiriram a cidadania romana, tornando um pouco mais
favorável a sua situação. Apesar de Constantino ser lembrado como aquele que apoiou o
cristianismo, retirando-o da ilegalidade, é bom lembrar que com o Édito de Milão, de
313, ele também protege outras comunidades religiosas, como as judaicas:
Eu, Constantino Augusto, e eu também, Licíno Augusto, reunidos
felizmente em Milão para tratar de todos os problemas que se relacionam
com a segurança e o bem público, cremos ser o nosso dever tratar junto com
outros assuntos, que merecem a nossa atenção para o bem da maioria, tratar
também daqueles assuntos nos quais se funda o respeito à divindade, a fim
de conceder tanto aos cristãos quanto a todos os demais a faculdade de
seguirem livremente a religião que cada um desejar, de maneira que
toda a classe de divindade que habita a morada celeste seja propícia a
nós e a todos os que estão sob a nossa autoridade. (Apud PEDREROSANCHEZ, 2000: 27, grifo nosso).
O estabelecimento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em
380 com o Édito de Tessalônica, marcará o início de sua hegemonia, que se consolidará
nos séculos seguintes:
Os imperadores Graciano, Valentiano e Teodósio Augustos: édito ao povo
da Cidade de Constantinopla. É a nossa vontade que todos os povos regidos
pela administração de nossa Clemência pratiquem a religião que o divino
apóstolo Pedro transmitiu aos romanos, na medida em que a religião por ele
introduzida tem prosperado até os nossos dias. (Apud PEDREROSANCHEZ, 2000: 29).
Paralelamente, vemos surgir as discussões teológicas formuladas em concílios
ecumênicos, que nortearão de tempos em tempos a ortodoxia do cristianismo nos
séculos futuros. Contudo, com a lenta instalação dos povos germânicos em território
romano, a partir do século V, com aporte de suas religiões e culturas, o incipiente
sectarismo cristão, que parecia se mostrar, arrefeceu momentaneamente.
8
Na Península Ibérica, em meados do século VI, após a adoção do catolicismo
pelos reis visigodos, têm início as hostilidades contra os judeus, com a opção pela
conversão ou expulsão. Estas proscrições fizeram com que as comunidades judaicas se
espalhassem pelo Mediterrâneo, com a consequente modificação de suas ocupações
profissionais, que começam a se deslocar para atividades comerciais itinerantes.
Uma das obras de referência para entender este momento e que traz
informações sobre a vida das comunidades judaicas espalhadas pela Europa é a obra de
Benjamim de Tudela, do século XII. Em seu Livro de Viagens 1, Tudela confirma uma
tendência das comunidades judaicas à prosperidade, que os levaria a uma formação
superior, como médicos, diplomatas, contadores e administradores. Esta formação os
tornará fundamentais na administração dos reinos cristãos, como será visto mais à
frente.
A relação dos judeus com as atividades comerciais teve relação direta com sua
prosperidade, tornando-os especialmente requisitados pelos senhorios laicos. Richards
aponta uma valorização da convivência com os judeus pela Cristandade:
Os reis carolíngios, em particular, incentivaram a imigração e a
multiplicação de comunidades judaicas. Os judeus emergiram [...] como
uma minoria distinta e reconhecível, vivendo sob suas próprias leis, cada
vez mais prósperos e razoavelmente seguros. (RICHARDS, 1993: 97)
Da mesma forma, Le Goff, analisando a evolução do dinheiro na Idade Média,
destacou em suas pesquisas o importante papel dos judeus. Com o florescimento das
atividades urbanas e a valorização monetária, já que o dinheiro é mais necessário na
cidade do que no campo, porque é na cidade onde ocorrem as compras e onde são
necessárias as maiores somas para as trocas, eles se tornaram especialistas no
empréstimo:
Porque eles [os judeus] se tornaram os especialistas não do câmbio (são
cambistas bastante modestos), mas do empréstimo. Empréstimo a juros e
empréstimos para consumo. Eles são quase que os únicos que podem dispor
de somas sobre as quais cobram um juro, e pelas quais tomam garantias que
beneficiam fortemente o credor – louças, vestuário, tecidos, coisas da vida
cotidiana. (LE GOFF, 1997: 36)
A convivência dos judeus no medievo europeu não ficou restrita somente aos
cristãos, já que com a chegada à Europa, no século VIII, dos povos do islã, houve
1
ADLER, Marcus Nathan. The Itinarary of Benjamin of Tudela: critical text, translation and
comentary. London: Oxford University Press, 1907.
9
intensa convivência das comunidades islâmicas com os judeus. A expansão
muçulmana que põe em contato essas comunidades na Europa inicia-se pela Península
Ibérica com a conquista feita por Tarik, governador da província árabe do Magreb, e
seu comandante Musa. De acordo com Saraiva (1999: 35 e 36), a atitude dos povos
visigodos da Península favoreceu o rápido domínio muçulmano, pois a situação das
populações, perante o forte domínio islâmico, dependia do posicionamento que
assumiam diante da nova religião: se a aceitavam, faziam parte da comunidade; se
continuavam fiéis à sua espiritualidade, podiam manter suas propriedades, mas eram
obrigadas a pagar tributos; se resistiam com armas, eram aniquiladas. Deste modo,
uma vez que não houve sacrifícios quanto aos seus rituais religiosos, os judeus
renderam-se aos novos conquistadores e mantiveram uma convivência marcada pela
estabilidade, conforme Cogni nos auxilia:
[...] A relação entre cristãos e muçulmanos na Península Ibérica é pacífica,
sem conflitos constantes, e os desentendimentos não tinham em sua grande
maioria, motivações religiosas. (COGNI, 2008: 4)
Assim como os cristãos moçárabes, a resistência armada não foi a reação geral
dos judeus na Península Ibérica com relação aos islâmicos. Por toda a Europa
ocidental, até o século X, as perseguições aos judeus nas áreas controladas pelos
seguidores de Maomé foram escassas, pois também havia interesse estratégico, com
vistas à manutenção de vastos territórios recém conquistados, que reclamavam aliados
locais, na manutenção da ocupação e no fornecimento de receitas regulares em
impostos.
Na busca de articulação administrativa, a partir de 750 o Califado Omíada
fundou na Ibéria, chamada de Al-Andaluz, o emirado de Córdoba, transformando-o
numa das três capitais do Império Muçulmano. Esta dinâmica da política interna do
islã foi fruto também do conflito das grandes dinastias religiosas, exacerbado pelas
disputas doutrinárias. Isto fará com que o tratamento conferido aos judeus comece a
variar em alguns lugares com a mudança na complacência inicial, que se tornará
menos predominante, mas, como dissemos, sem se constituir em uma relação
predominantemente conflituosa.
Ao mesmo tempo, ocorrem importantes mudanças na convivência dos judeus
com as comunidades cristãs, em outras localidades europeias. A partir do século XI,
juntamente com o processo de urbanização já citado, há outro processo também muito
importante e definidor das relações sociais no Ocidente: a cristianização efetiva da
10
sociedade. Em busca de pureza moral e doutrinária, a teologia cristã se instala de
forma mais intensa no cotidiano das populações, mediante o fortalecimento do poder
eclesiástico através de um arcabouço doutrinário, que vai se especializando e
ganhando a adesão e obediência dos senhores feudais.
A cidade tinha favorecido, em suas estruturas de relações e de trocas, os
contatos entre as duas comunidades [cristã e judaica]. Assim, a urbanização
acelera a reação de uma Igreja preocupada em constituir uma cristandade
"pura" que exclui cada vez mais marginais, estrangeiros, infiéis e heréticos.
(LE GOFF, 1992: 179)
Podemos observar que os judeus estavam relativamente acomodados e
convivendo com harmonia nas diversas localidades europeias durante boa parte da
Idade Média, conforme aponta Delumeau:
Nas modestas condições econômicas da alta Idade Média, eles assumiram até
o século XII boa parte do comércio internacional (...) Protegidos por títulos
outorgados, os israelitas eram homens livres, falando a mesma língua que a
população local, suando os mesmos trajes, autorizados a se deslocar a cavalo
com armas e a prestar juramento na justiça. Estavam, portanto, integrados à
sociedade local. (DELUMEAU, 2009: 416).
Todavia, este equilíbrio começou a ser alterado de forma gradual. As Cruzadas,
por exemplo, tendem a piorar a situação dos judeus. A primeira, em Clermont Ferrand,
no ano de 1095, foi desencadeada por um sentimento antijudaico. A partir do século
XIV, com os surtos de peste e de fome, vemos uma intensificação do sentimento de
medo, que se generaliza e parte em busca dos culpados, fazendo dos judeus suas
maiores vítimas.
Segundo Jérôme Baschet, na Idade Média, a igreja extrapolava seu papel
espiritual para se tornar a instituição dominante da época: a igreja era a própria
sociedade. A espiritualidade cristã vivida no medievo era mais do que crença,
convolava-se em uma fidelidade prática, manifesta por atos, palavras e gestos pelos
cristãos no cotidiano (BASCHET, 2006: 167 e 168). Adotando e transmitindo desde a
Antiguidade a organização hierárquica e centralizada do Império Romano, a igreja
conseguiu impor seu poder ante as estruturas frágeis e fragmentadas da Idade Média,
promovendo acumulação material, em um excepcional processo de adquirir terras e
bens, e de poder espiritual.
Nesse sentido, o cristianismo buscou reordenar o conjunto das relações sociais,
inserindo-se nas atividades cotidianas das populações:
11
A concepção fundamental da cosmovisão cristã senhorial reside no caráter
atribuído à divindade e na natureza de suas relações com o conjunto da obra
da Criação. Concebido como um Dominus, Senhor e Reitor do Universo, a
vida humana decorre de uma dupla e complementar manifestação do poder
divino. Fundada em um vínculo original, pessoal e direto, reafirmado no
pacto celebrado no batismo, não há um nível, um sentido, geral ou
específico das relações sociais que não suponha uma ativa ascendência e
intervenção divina, vértice senhorial supremo ao qual se faz convergir toda
a comunidade. (BASTOS, 2013: 239)
Os concílios eclesiásticos, com suas definições e reforços do cristianismo,
permitiam a doutrinação dos fiéis pela dogmática católica que se queria disseminar.
Um dos instrumentos eclesiásticos é o jurídico, mediante decisões escritas. A partir do
ano mil, e tendo o papa Gregório VII (1015 - 1028) como figura central, há um
movimento reformista com lentas mudanças relacionadas à instituição eclesiástica,
mediante a ascensão de normas jurídicas escritas. No entanto, como observa Leandro
Rust, em sua crítica à historiografia que define esse período como da “Revolução
Papal”, a política eclesiástica deste momento deve ser explicada não como reforma ou
revolução, mas, sim, como uma “alteridade histórica que parece ainda não ter
alcançado uma identidade conceitual” (RUST, 2013: 81).
A lei canônica foi o fundamento do clero para tentar equilibrar as divergências
sociais. Sobretudo, porque tais normas expedidas não eram muitas vezes obedecidas e,
menos ainda, fielmente praticadas, pelos seus destinatários. Bispos e abades resistiam,
surpreendidos por exigências e sanções, que sufocavam sua autonomia e dificultavam
seu relacionamento com os senhores e populações locais. As resistências foram
combatidas por uma série de repetições em normas, demonstrando, aparentemente, a
pouca eficácia das determinações iniciais.
Se o conceito de “Revolução Papal” é questionado, a partir da segunda metade
do século XI, percebemos uma mudança importante, onde a lógica escrita teria iniciado
um processo de substituição das formas legais orais e consuetudinárias (RUST, 2013:
117). Iniciada em meados do século XI, pelo papa Leão IX (1049 - 1054), e cuja fase
polêmica termina com a concílio de Worms em 1122, Gregório VII passará para a
história como o papa responsável pela chamada reforma que leva seu nome.
A principal finalidade dessa reforma, denominada por Le Goff de “teocrática”, é
justificar, em teoria, e impor, nos próprios territórios de combate, o poder dos clérigos.
12
Conforme demonstra este autor, não há uma menção persecutória específica aos judeus.
(LE GOFF, 2013: 135, b).
Esta reforma terá eco no século XIII com o papa Gregório IX. Ele teve seu
pontificado marcado pelo crescimento da atividade escrita e, sob a influência desta
crescente atividade legislativa, no ano de 1234 compilou o documento que ficou
conhecido como as Decretais de Gregório IX. Ao serem agrupadas em formato de
coleção, as normas legais passavam a ganhar autoridade, com força de lei, para toda a
cristandade. Em sua pesquisa sobre as Decretais, Claudia Brochado observou a
importância do surgimento deste documento:
As Decretais pontifícias eram um dos instrumentos mais importantes de
determinação da disciplina canônica [...]. A sua forma se distingue da dos
demais textos que abordam esta questão por serem os temas apresentados
através de causas específicas submetidas ao juízo papal. Pela autoridade que
gozava o pontífice e pelo caráter jurídico de suas soluções, estas se
transformavam em jurisprudência. Ao serem agrupadas em coleções Decretais e
difundidas, passavam a ter força de lei em toda a Cristandade. (BROCHADO,
1995:56)
Uma advertência, todavia, é ressaltada por Leandro Rust. Não é de se pensar que
as lógicas jurídicas escritas e orais estivessem em campos jurídicos opostos e como
rivais, pelo contrário. A lei canônica escrita não foi o único fundamento para a
reivindicação papal sobre os assuntos de toda a Igreja. Antes de se entregar à escrita, a
justiça prolatada pelo pontífice entrega-se à voz, havendo uma “oralidade textual”
(RUST, 2013: 132), onde a cultura escrita fortaleceu os usos da voz politicamente
qualificada. A oralidade, presente nas decisões papais da segunda metade do século XI,
extrai uma força renovada da chance de ser guardada em texto. A diversificação dos
registros escritos ampliava os campos de atuação da voz (RUST, 2013: 145).
O texto das Decretais de Gregório IX é dividido em cinco livros (Iudex,
Iudicium, Clerus, Connubia e Crimem) que, por seu turno, estão subdivididos em
títulos, com quantidade distinta de capítulos. Cada capítulo contém uma ou mais
Decretais correspondentes à uma causa determinada, apresentada à análise e veredicto
papal. Os judeus são tratados no Livro V, Título VI em dezoito decretais. Por motivo de
corte metodológico foram estudadas as dez decretais exclusivas aos judeus. São as
seguintes: I, II, III, V, VII, VIII, IX, XIII, XVIII e XIX.
13
Trabalharemos a fonte a partir de cinco grandes temas que foram destacados a
partir da análise: a servidão (decretais I, II, V, XIII e XIX), as sinagogas (decretais III e
VII), o batismo (decretais IX), a convivência (decretais VIII e XIII) e os ofícios
públicos (decretal XVIII). Por motivo de método de trabalho, optamos por copiar as
decretais nas notas de rodapé.
Conforme poderá ser visto, esta é uma pesquisa inicial. A riqueza do documento
analisado permite um refinamento da pesquisa, abrindo-se uma possibilidade de
entendimento e construção da história de maneira inédita.
14
Capítulo 1 – A influência agostiniana no tratamento aos judeus
O presente capítulo busca compreender o pensamento do teólogo Agostinho de
Hipona sobre o lugar do judeu na sociedade. Em nossa pesquisa, constatamos que este
pensamento, presente no sermão que veremos mais abaixo, serviu como referência
para tratamento pelas autoridades eclesiásticas até o século XI. A partir daí, vemos
uma substituição lenta e gradual pelos poderes eclesiásticos, tendente a fechar os
espaços sociais dos judeus.
Este processo, segundo Sérgio Feldman, tem início no entendimento conferido
aos judeus, no século V, pelo sermão de Agostinho, Tractatus adversus Judaeos. O
bispo hiponense define o dever de tratamento tolerante dos cristãos para com os
judeus. Feldman observa, no entanto, que esse dever cristão, pedido por Agostinho,
estará condicionado aos interesses econômicos cristãos, ou seja, a tolerância depende
da relação política e econômica que o poder laico e eclesiástico teriam para com os
judeus:
Dessa maneira, definem-se, a partir de Agostinho, níveis de tolerância, que
variam e se alternam sob reis, papas e imperadores, e têm como ponto de
partida a concepção agostiniana dos judeus e do judaísmo, agregando
interesses políticos e econômicos para aumentar ou diminuir a postura de
tolerância. (FELDMAN, 2013: 23).
Por conseguinte, se o judaísmo, juntamente com outras religiões, adquiriu a
condição de lícita no Império Romano e a transigência teológica da patrística lhe
outorgava certos direitos como comunidade autônoma, por outro lado, esses direitos
serão aos poucos cercados com barreiras e limitações, principalmente ao entrar em
cena questões materiais, envolvendo disputas entre cristãos e judeus.
O tratamento jurídico-teológico conferido pelos poderes eclesiásticos alterna
controle de direitos dosado por tolerância religiosa. Feldman elenca alguns pontos
chaves das posições do papa Gregório Magno, já nos séculos VI e VII, demonstram a
influência de Agostinho, que repercutiriam até o século XI:
O papa Gregório Magno (590-604) determinou em suas epístolas os termos
desta tolerância: manter os seus direitos legítimos, não destruindo suas
sinagogas nem convertendo-os à força. Por outro lado, não podiam
converter não-judeus, nem casar com não-judeus, ocupar cargos públicos,
possuir escravos cristãos, legar heranças, nem construir novas sinagogas. A
15
postura dos papas manteve-se semelhante à de Gregório na Alta Idade
Média. O papa Calixto II (c. 1120) publicou a legislação sobre os judeus
conhecida como Sicut Judaeis Non na qual reafirmava os direitos e as
restrições/obrigações dos judeus, frisando a proibição de convertê-los à
força ou de destruí-los fisicamente. (FELDMAN, 1999: 5).
Portanto, percebemos a influência do bispo de Hipona quanto à necessidade de
se observar os direitos dos judeus, refletida na condução eclesiástica dos séculos VI a
XII, porém, com uma tendência de lento processo de supressão desses direitos.
Alguns papas se destacam nesse processo, sendo Inocêncio III (1198 - 1216)
um deles. Conforme observa Feldman, nesse papado percebemos uma mudança no
tratamento proporcionado aos judeus, distanciando-se do entendimento de Agostinho
de Hipona, que até então predominava:
As tendências que vemos se formar no século XII e aparecer na legislação
papal se consolidam no pontificado de Inocêncio III e geram uma mudança
de atitude da liderança clerical e uma postura sumamente agressiva nas
lides dos mendicantes, que surgem durante o pontificado do Papa. O século
XIII e o pontificado de Inocêncio III marcam uma nova era nas relações
judaico-cristãs. (FELDMAN, 2014: 29).
Observamos, portanto, o início de uma tendência, até então ausente, pela busca
de fortalecimento da figura papal no pontificado de Inocêncio III, que irá se
acentuando aos poucos. Tanto é assim que, como observa Le Goff, o legado mais
visível de seu pontificado foi o IV Concílio de Latrão (1215), cujos decretos
reformadores irão iniciar um novo processo na vida eclesiástica do Ocidente durante o
século XIII, com reflexos em papas posteriores. Feldman, em continuidade de sua
análise do pontificado de Inocêncio III, conclui que começa um deslocamento do
entendimento dos judeus com este papa. Até então, se prevalecia a postura de
Agostinho de Hipona, que defendia relativa tolerância em relação aos judeus, com
Inocêncio há uma tendência de modificação deste entendimento.
No concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III em 1215, determinou-se
que os judeus portassem a marca infamante, para serem reconhecidos e
separados dos cristãos. Inocêncio III decretou o uso de roupas que
diferenciassem os judeus e os mouros. […] A associação dos judeus com a
heresia e com o Demônio passa a ser uma constante. Em termos de cultura
popular, a criação de mitos antijudaicos se propaga. O mais famoso e de
maior duração é o mito do crime ritual. Seria o assassinato de um cristão para
16
obter sangue, que seria utilizado na produção de pães ázimos para a Páscoa
Judaica (Pessach). (FELDMAN, 1999: 87)
Dentre outras conclusões do Concílio de Latrão IV, uma das que melhor
exemplificam a influência da mudança de posição quanto aos judeus é a que criticava
sua maneira de abater os animais e preparar o vinho, supostamente deixando a parte
impura aos cristãos. Ou seja, a crítica eclesiástica, ao comparar símbolos e rituais
cristãos aos costumes judaicos, acaba por depreciar o que é distinto e contender pelo
exclusivismo de suas práticas. Esta propensão começa a hostilizar a presença judaica no
âmbito das comunidades.
Outro aspecto apontado por Feldman quanto ao papa Inocêncio III é a inserção
dos judeus convertidos ao cristianismo na sociedade medieval. Se a política da
proibição das conversões forçadas parece permanecer, vale frisar que a recomendação e
proibição de conversões forçadas não geravam punição aos transgressores, tampouco
podia retroagir (FELDMAN, 2012: 34).
Assim, no pontificado de Inocêncio III, com as conclusões proferidas no IV
Concílio de Latrão, tem início uma tendência de unificar as práticas religiosas,
mediante às conversões de judeus e tentativa de alteração de seus costumes.
Representantes das ordens mendicantes, os franciscanos e dominicanos aceitarão o
desafio e se investirão da missão de converter infiéis judeus, muçulmanos e também
combater as heresias.
O legado de Inocêncio III chegou até seu sobrinho, o papa Gregório IX. O papa
que dá nome à fonte trabalhada estudou Direito em Paris e Bolonha e tem duas marcas
em seu pontificado. A primeira foi o estabelecimento do Tribunal da Inquisição no ano
de 1231 e, a segunda, a compilação das normas canônicas em 1234, o documento aqui
analisado.
O papa Gregório IX é visto negativamente por grande parte da historiografia.
Ele é tido como o responsável pela perseguição que se abateu sobre a Europa, após a
criação dos tribunais da Inquisição (Lewis, 2010: 66). Baschet associa esse fato à
maneira de se conduzir a investigação durante o processo inquisitorial:
Por fim, Gregório IX organiza os tribunais da Inquisição, cujo nome deriva
do procedimento inquisitório que põem em prática. Como já se viu, a
queixa de uma vítima não é mais necessária, nesse momento, para abrir um
processo, e o juiz pode decidir por si próprio lançar uma diligência, baseado
em rumor ou uma suspeita. E uma vez que não há mais queixosos para
17
justificar a diligência, a obtenção de uma confissão do acusado torna-se
indispensável, se necessário pela tortura, tida por meio legítimo para fazer
aparecer a verdade. (Baschet, 2006: 225).
Porém, com a prudência cabível que o historiador deve ter ao olhar cada época
histórica dentro de suas especificidades, conclui este autor que uma vez que na Idade
Média a Igreja é a própria forma de organização social e a instituição que a domina,
atacá-la seria solapar os fundamentos de sua posição, o que se constitui em uma
questão que não é social nem religiosa, porque ela é indissociavelmente social e
religiosa (BASCHET, 2006: 227). Ou seja, o entendimento mais coerente da Idade
Média é que a temática religiosa perpassava por todo o conteúdo social e questioná-la
significava questionar todos os fundamentos sociais que a ancoravam. Por isso, a
perseguição, mais do que intolerância religiosa, fazia parte de uma política de
manutenção da ordem social.
Todavia, a historiografia que faz da Idade Média um período homogêneo de
supremacia do poder papal e de intolerância, merece ser confrontada. Mesmo havendo
espaço para o fortalecimento do poder papal, espaço aproveitado por alguns papas,
como Inocêncio III, este era dividido com os demais poderes. Baschet associa esta
ausência de um poder forte e centralizado, representado na figura papal, com o fato da
Igreja não estabelecer uma perseguição mais rigorosa e efetiva aos infiéis, indicando
que a Idade Média não teria testemunhado a perseguição religiosa em sua pior forma.
Nela, a inquisição, inclusive, permitia a reintegração à comunidade do pecador, após a
satisfação de uma penitência, como punição pelo desvio doutrinário. Para o referido
autor, o recrudescimento da Inquisição ocorre em finais da Idade Média com
consequências mais severas na Idade Moderna:
É preciso ressaltar, ainda, que então a Inquisição não é mais que um
tribunal assumido por um bispo ou confiado a frades mendicantes, dotado
de meios limitados e que funciona, nas ações anti-heréticas levadas a cabo
até o início do século XIV, com relativa moderação. Trata-se, sobretudo, de
obter uma confissão e uma retratação, que permite ao acusado ser
reintegrado à comunidade eclesial após a satisfação de uma penitência; é
somente em caso de obstinação ou de recidiva que ele é entregue ao braço
secular para ser castigado. Está-se ainda longa da Inquisição dos Reis
Católicos, transformada em um órgão da monarquia, e daquela da época
moderna, engajada em um processo de exterminação maciça de feiticeiros e
feiticeiras. A Idade Média apenas lançou as bases de um princípio
18
repressivo do qual o Renascimento e os Tempos Modernos se encarregarão
de tirar todas as consequências. (Baschet, 2006: 226).
Consequentemente, conforme pode ser visto, o tratamento dispensado aos
judeus teve grande forte influência do texto agostiniano. Em determinado momento,
esta influência foi deixada de lado principalmente com as questões trazidas pela
reforma do papa Gregório VII, iniciada no IV Concílio de Latrão. Vejamos agora, de
forma mais aprofundada, a trajetória percorrida entre tolerância e intolerância.
1.1 Entre tolerância e intolerância
A convivência entre judeus e cristãos ao longo de toda a Idade Média foi
sempre muito próxima, já que a presença dos judeus era frequente nas comunidades do
Ocidente, com forte proximidade com as autoridades eclesiásticas e laicas.
Se não havia tensões significativas entre judeus e cristãos, o atrito existia e
dentre suas consequências, está o impedimento do envolvimento dos judeus em muitas
práticas produtivas e do afastamento de muitas tarefas. Todavia, apesar de não poder
ocupar muitas profissões, os judeus tinham importante reputação em outras, como
medicina, farmácia, matemática e astronomia. Além disso, era costume ocuparem
postos públicos relevantes, como procuradores, mordomos, almoxarifes e rendeiros.
Dentre as profissões que pareciam afastar seus praticantes de Deus, ressaltamos
a de comerciante. O prestígio social dos mercadores era bastante frágil, pois mesmo os
que se tornavam ricos pelo comércio, tinham sua honestidade eivada de dúvidas. Diz
Gurevic que esta foi a posição da igreja, pelo menos até ter em consideração – mais do
que antes – que as condições da vida real se tinham alterado:
Qual é, exatamente, a justificação do lucro? Adquire as mercadorias a um
determinado preço e revende-as a um preço mais elevado. É aí que se
ocultam as possibilidades de fraude e de lucro injusto; os teólogos evocam
de bom grado as palavras: “o ofício de mercador não é grato a Deus”, até
porque, segundo os padres da Igreja, é difícil que, nas relações de compra e
venda, não se insinue o pecado. Nas listas dos ofícios classificados com
“desonestos”, “impuros” – listas que eram elaboradas por teólogos -,
figurava quase sempre o comércio. Ao rejeitarem o mundo terreno, ao
minimizá-lo em comparação com o mundo celestial, o clero não podia
deixar de condenar o comércio, ocupação que tinha por objetivo o lucro.
(GUREVIC, 1989: 167).
19
Sem querer estabelecer uma relação de causa e efeito, certamente o fechamento
de muitas atividades produtivas para os judeus, a partir dos impedimentos que lhes iam
sendo impostos, favoreceu sua relação com as atividades financeiras, como os
empréstimos feitos a juros, pejorativamente chamados de usura. Então, até o século
XII essas atividades estavam essencialmente em suas mãos. Esses empréstimos,
porém, muitas vezes não correspondiam a somas muito importantes e constituíam uma
parte do quadro da economia alheia ao dinheiro, ou seja, emprestavam-se grãos,
roupas, objetos diversos e recebia-se em pagamento uma quantidade maior (LE GOFF,
2007: 43). Continua Le Goff:
Aos judeus não restava senão a reprodução do dinheiro, ao qual,
precisamente, o cristianismo recusava toda a fecundidade. Não sendo
cristãos, os judeus não tinham escrúpulos nesse sentido, pois não violavam
as prescrições bíblicas ao fazer empréstimos a indivíduos ou instituições
fora de sal comunidade. Os cristãos, por sua vez, praticamente não
pensavam em aplicar-lhes uma condenação essencialmente reservada à
família, à fraternidade cristã, aos clérigos, em primeiro lugar, depois aos
leigos. [...] Verdadeiramente, tudo mudou no século XII, em primeiro lugar
porque o desenvolvimento econômico trouxe um enorme aumento de
circulação monetária e a ampliação do crédito. (LE GOFF, 2007: 44)
Como sobre os judeus não pesava as proibições da espiritualidade cristã quanto
à usura, eles se tornaram também financistas de grandes empreitadas econômicas de
autoridades locais. Todavia este quadro logo será alterado. Com a mudança teológica
promovida pela Igreja Católica quanto aos juros, após os concílios dos séculos XII e
XIII, esta passará a reconhecer os ricos como dignos de sua riqueza, pela pureza de
suas origens e pelas virtudes de sua utilização. A pobreza apregoada pelos mendicantes
e a riqueza gerada por comerciantes começam a coabitar na Europa medieval:
Tanto na pregação, nos manuais de inquisidores e nas Summae Theologica,
os teólogos, os frades das ordens mendicantes contribuíram muito para
a justificação ético-religiosa do comércio e dos mercadores. (GUREVIC,
1989: 174)
Para Le Goff, o estudo específico do dinheiro divide a Idade Média em dois
grandes períodos. Inicialmente, uma primeira Idade Média, do século IV ao fim do
século XII, quando a moeda perde importância para depois, lentamente, voltar a ser
valorizada. Em seguida, do início do século XII até o fim do século XV impõe-se a
dupla ricos e pobres, pois o desenvolvimento urbano, o fortalecimento do poder real,
20
as pregações da igreja, sobretudo nas ordens mendicantes, permitem ao dinheiro
assumir um novo impulso, com o desenvolvimento da pobreza voluntária (LE GOFF,
2014: 10-13).
Paralelo a esse deslocamento do entendimento do dinheiro e da possibilidade
de financiamento na Idade Média, percebemos uma tendência a associar e
responsabilizar os judeus pelos problemas sociais e principalmente pelas catástrofes da
baixa Idade Média, como as guerras, fomes e epidemias:
Usurários ferozes, sanguessugas dos pobres, envenenadores das águas
bebidas pelos cristãos: assim os imaginam frequentemente os burgueses e o
povo miúdo urbano (...) eles são a própria imagem do outro, do estrangeiro
incompreensível e obstinado em uma religião, dos comportamentos, de um
estilo de vida diferente daqueles da comunidade que os recebe. Essa
estranheza suspeita e tenaz aponta-os como bode expiatórios em tempos de
crise. (DELUMEAU, 2009: 415)
Concluímos neste capítulo que no âmbito das complexas relações havidas na
Idade Média, apesar de aspectos aparentemente inconciliáveis inerentes ao
cristianismo e judaísmo sob o ponto de vista da espiritualidade vivida pelos grupos, o
que predomina a convivência em grande parte da Idade Média é a tolerância manifesta
nas relações sociais. Podemos ver que no decorrer do período os atritos, em geral,
eram devidos à concorrência normal da sobrevivência diária. A questão religiosa se
converte efetivamente em problema em finais do período.
21
Capítulo 2 – Os judeus nas Decretais
Este capítulo analisará os temas relativos aos judeus contidos nas decretais. Na
análise, traremos nosso entendimento do que era pretendido pelas decisões
eclesiásticas, observando as mudanças que ao longo dos séculos possam ter ocorrido
na maneira de abordar as questões relativas à comunidade judaica. Por se tratar de uma
compilação de leis antigas, muitas vezes é possível perceber essa evolução, que pode
indicar mudanças na inserção social dos judeus nas comunidades do ocidente
medieval.
As Decretais de Gregório IX buscaram organizar as decisões eclesiásticas
proferidas até a data de sua elaboração pelos vários concílios e em várias localidades,
para orientar a Cristandade em assuntos diversos. A análise desta fonte pode ajudar a
dimensionar a relação entre cristãos e judeus, abrangendo as relações cotidianas nas
comunidades do medievo.
Como instrumento conceitual, o discurso nas decretais não tinha somente o
objetivo de definir, estabelecer, punir ou proteger uma situação nova, mas tentavam
conferir um tratamento uniforme para as decisões eclesiásticas. Com isso, elas definiam
e fortaleciam a ordem eclesiástica, reforçando o papel espiritual relativo à sua
compilação.
Talvez a compilação das decretais tenha sido o projeto mais ambicioso do papa
Gregório IX. Aponta para isso, o fato de compilar as normas canônicas da igreja,
proferidas em diversas localidades, em busca de solução regular nas diversas questões
práticas que se apresentavam nas paróquias do Ocidente. Dentre elas, as relacionadas
aos judeus. As deliberações relativas aos judeus e mouros têm início no Título VI, do
Livro V, denominado DE LOS IUDIOS E DE LOS MOROS E DE SUS SIERVOS. 2
As referências aos judeus estão em temas recorrentes da Idade Média, dentre
eles o da servidão, excomunhão, batismo, participação em ofícios públicos, etc. Por
conseguinte, para esta análise, os temas foram agrupados da seguinte forma: quanto à
servidão de cristão para com judeus e de judeus para com cristãos (decretais I, II, V,
XIII e XIX); quanto à possibilidade da reforma de sinagogas judias e da proibição da
2 Neste trabalho será utilizada a versão castelhana: Decretales de Gregorio IX. Versión Medieval
Española. J. MANS PUIGARNEU, ed. Barcelona, 1939 (vol I), 1942 (Vols. II e III); segundo Mans
Puigarnau a data aproximada desta versão seria entre finais do séculos XIII e início do século XIV.
22
construção de novas sinagogas (decretais III e VII); quanto ao efeito do batismo cristão
feito em judeus conversos ao cristianismo (decretal IX); quanto à convivência cotidiana
entre judeus e cristãos nas localidades (decretal VIII); quanto à proibição de assunção
de ofícios públicos por judeus nas diversas localidades (decretal XVIII) 3.
Iniciamos com o Capítulo I4, referente ao Concílio de Macizona 5, que tem como
decreto o entendimento pelo poder eclesiástico de que nenhum servo cristão deva servir
a judeu. Ainda que previsse a ressalva de liberdade ao cristão para servir a um judeu,
observamos que a possibilidade de se tornar livre seria possível, porém, mediante
pagamento.
Se a decretal impede o judeu de possuir servo cristão, ela também não liberta
este último simplesmente. A previsão de uma indenização pela liberdade demonstra a
busca de respeito pelo bem do judeu e do estabelecimento de equilíbrio social na
convivência deste com os cristãos nas diversas localidades. Se essa decretal tinha como
escopo que o aspecto da liberdade espiritual do cristão fosse refletido na liberdade
física, ela também protegia a propriedade material dos judeus, prevendo indenização
como contrapartida da liberdade de um cristão.
A previsão eclesiástica realça a tentativa de conferir igualdade jurídica aos
judeus, preservando sua situação material. Indenizá-lo pela perda de um servo é uma
demonstração de justiça e tratamento equivalente. A possibilidade de indenização na
decretal indica momentos de tentativa de convivência com isenção entre judeu e cristão,
reconhecida pelo poder eclesiástico, e consequentemente com maior facilidade na
incorporação do judeu à sociedade ao buscar coexistência pacífica, demonstrada pelo
zelo para com seus bens.
3
Nas notas de rodapé transcrevemos o texto literal das decretais, conforme dito na introdução.
4 Decretal VI, Cap. I (PUIGARNEU). Presenti. Estableze aqui el concilio que ningum sieruo chritiano
que [non] sirua a judio. Mas si iudio com[p]ra algun Christiano sieruo por rrazon de mercaderia, cada
um Christiano pude dar XII sueldos e sea franque; e si quisiere ser Christiano e non lo dexan, sea esso
mismo fecho. Ca layda cosa es que aquel que Jesus Cristo rredimio, que el iudio lo tenga em su
sseruitad.
5
A estrutura das Decretais está determinada em Livros, Títulos e Capítulos. Os Livros trazem os
elementos gerais; os Títulos, as subdivisões temáticas específicas que são tratadas; e, por seu turno, os
Capítulos o texto delimitativo do tema tratado. Nos Capítulos há uma referência ao local e/ou paróquia ao
qual se remete a orientação papal, que não foram objeto desta pesquisa.
23
Da mesma forma, no capítulo II 6 o conteúdo da relação servil abarca a
determinação eclesiástica para que nenhum judeu tenha em seu território servo cristão.
Nesta decretal já se mostra um maior fechamento do espaço judaico com a tentativa de
retirar a possibilidade dos judeus terem servo cristão, que no fundo retira a possibilidade
de ser senhor nas relações feudais. Há a indicação de que todo servo cristão deveria ser
libertado e permanecer em seu local de origem sem retirar dos judeus seus privilégios
comuns. Ou seja, se aos cristãos não lhes cabia a posição de servo, contudo, em
contrapartida deveriam respeitar os direitos dos judeus, não lhes retirando o senhorio
sobre a localidade. Ou seja, apesar da alteração das relações sociais, ficou preservada a
relação do judeu com a terra. Este somente perderia o senhorio e os respectivos direitos
resguardados, caso transferisse os servos a outros locais de serviço, fazendo pressupor
uma autonomia dos judeus em lidar com as restrições que lhes eram impostas,
encontrando alternativas que contornavam as proibições.
Nesta decretal está delimitado também o tratamento a um instituto muito comum
da sociedade da época: a servidão. Relacionada, principalmente, aos trabalhadores das
grandes propriedades comandadas pelos senhores feudais, que possuíam uma
vinculação à terra pelo trabalho, recebendo o necessário para sua sobrevivência e
segurança, a servidão era um dos mais importantes vínculos que unia as relações
sociais, e que se justificava através da espiritualidade cristã.
Como a organização social da Idade Média era vivida como um desígnio divino
que deveria ser aceito pelos cristãos, ir contra sua ordem seria afrontar uma harmonia
sagrada. Assim, a maioria da população feudal, composta por camponeses, tinha a
responsabilidade pelo trabalho nas terras e pela produção agrícola, trabalhando em
regime de servidão e se submetendo às exigências de um senhor feudal.
Portanto, o decreto papal tem o condão de permitir que os judeus fossem
respeitados em suas possessões, no contexto do regime de servidão, o mais importante
da época. Como na Idade Média a terra era fundamental para a sobrevivência e a
servidão era a relação social mais comum que poderia existir, observamos que submeter
6 Decretal VI, Cap. II (PUIGARNEU). [M]ulturum. Dize aqui que ningum iudio non deue tener em su
sennorio Christiano sieruo; mas si algunos na, seja franques. E las personas deuen remanescer e[n] los
lugares, e dar las rrentas acostumbradas a los iudios E deuen fazer todo quanto manda el derecho que
fagan labradores nascidos em el logar, e non los fagan outra carga ninguna. Et si algun iudio quisiere
passar estos a otro lugar, o que fago otro seruicio, perde es[e] derecho e este senorio, e deue cobrar
assi.
24
esse regime às relações com os judeus conferia-lhes um tratamento comum aos demais
senhorios.
Mais uma decretal tratará da mesma questão, porém relativa à servidão
doméstica. A decretal do Capítulo V7 pode ser entendida como orientadora no sentido
de evitar que os cristãos tivessem judeus e mouros como servos em suas casas, quer
para criar os seus filhos ou para qualquer outra atividade. Os cristãos que com eles
quisessem morar, deveriam ser excomungados.
A exigência de que os cristãos não tivessem servos domésticos judeus
demonstrou a tentativa de afastamento cotidiano destes grupos, com o intuito,
certamente, de evitar que as novas gerações fossem influenciadas com os hábitos
religiosos judaicos. Observamos que o cuidado eclesiástico estende-se aos costumes
domésticos, buscando prevenir influências judaicas julgadas indevidas.
Quanto à pena de excomunhão, devemos lembrar que na Idade Média era uma
sentença dura e difícil de suportar. Dificultava sua inserção social, pairando um forte
estigma em quem a recebia. Há aqui, a nítida responsabilização do cristão quanto à
possível má influência dos judeus e os riscos dela para a Cristandade, com a
necessidade de vigilância constante sobre o grupo.
A Decretal XIII 8 traz o anúncio da falta de gratidão dos judeus aos cristãos que
os recebiam e acolhiam em suas casas. Em uma linguagem popular, ela compara os atos
7 Decretal VI, Cap. V (PUIGARNEU). Iudei. Dize aqui que non deuen tener los iudios nin los morros,
nin ayan siervos christianos em sus casas, nin por rrazon de criar ninnos, nin por otra rrazon, nin
seruicio ninguno. E aquellos que com ellos quisieren morar, sean descomulgados por sentencia. Si
algunos iudios se tornaren christianos, non pierdan sus bienes por ninguna manera, ca de mayor
condicion deue[n] ser de que son christianos. E si em outra manera fuere fecho, manda el papa so pena
de descomulgation, a los príncipes e a las podestades de los lugares, que les fagan dar entera mient la
parte de su heredat e de sus bienes.
8 Decretal VI, Cap. XIII (PUIGARNEU). Etsi. Si (l)los christianos por piedat reciben e sostienen a los
iudios entresi, los quales su culpa fizo sieruos por siempre, ellos non deuen ser de mal conoscer a los
christianos, e non los deuen fazer tuerto por la gratia que les fizieron e los fazen, nin los deuen
despreciar por que los rreciben em su familiaridat por su piedat, e non nos deuen dar tal gualardon,
qua(a)l dize el prouerbio de los legos [qu]e es atal: como el mur em el çurron, e el fuego em el feno, e la
sirpiente em el rregazo, mal [galardon] suele[n] dar a sus uespedes.
Adcepimus. Dize aqui que el papa que entendio que los iudios fazien criar sus fijos a las christianas, e
quando rrecibein el cuerpo e la sangre de [Nuestro Sennor] Jesus Christo em el dia de Pascua de la
Resurection, por três dias, ante que les den a mamar, fazen que echen la leche em la câmara priuada. E
otras cosas fazen contra la fe mucho laydas e non oydas, por la qual cosa los christianos deuen temer
que la yra de Dios non uenga sobre ellos, si les dexan fazer cosas que se tornen em confusion de nuestra
fe.
[Inhi]bemus. Deuida [aqui el papa] que non ayan daquia delante mamas nin amas nin siruientas
christianas, por [que] los [ffijos] de la yengua non siruan a los fijos de la sierua, mas assi como sieruos
desechados del Sennor em cuya muerte se iuraron em uno, connoscan p[or] la[o]bra que son sieruos de
los christianos, los quales la muerte de [Jesus}cristo fizo franques, e a ellos sieruos. E si non dexaren las
25
de “ingratidão” dos judeus ao “fogo que se alastra no feno” e ao “perigo de uma
serpente dentro de casa”. Da mesma forma, os judeus poderão “corromper” os bons
costumes e doutrinas cristãs, sobretudo de crianças e jovens. Assim, há uma
determinação de não se acolher judeus em casa, justificada no temor e na desconfiança.
Em sua segunda parte, a decretal aponta outro conflito relacionado às amas de
leite no processo de separação das comunidades. Neste caso, a decretal é dirigida às
amas cristãs que cuidavam de filhos de judeus. Essas deveriam, na Páscoa, jogar fora o
seu leite em sinal de reverência. Entendemos que na decretal havia a tentativa de
purificação ritual à mãe cristã que cuidava de uma criança judia, todavia, sem se utilizar
do critério do afastamento contínuo no cotidiano, ou seja, pela dinâmica das relações
sociais, entendemos a necessidade de convivência entre mulheres cristãs e judias no diaa-dia, nos mais diversos auxílios mútuos. A determinação de jogar fora o leite nos três
dias de Páscoa buscava ser prática de purificação para o povo cristão nesta importante
celebração. Observamos também que esta determinação poderia ser vista como
relativamente simples e com poucas conseqüências práticas para o contexto da época,
pois não relata um peso da convivência diária com espaços de interesses exclusivos,
apenas um cuidado espiritual em uma celebração anual.
Observamos outro desdobramento desta decretal quando ela apresenta ainda a
ressalva de que essa prática seria uma inversão da ordem, já que as cristãs não poderiam
ser amas de leite, prestando serviços às judias, na medida em que estas é que deveriam
ser as servas, pela culpa em não aceitar a fé cristã. Aqui há a preocupação em manter a
ordem cristã, posta pela morte de Cristo, onde os judeus se tornaram servos e os cristãos
senhores.
A utilização de um ditado comum da época é uma tentativa de falar na língua do
povo, pois as imagens do “fogo na palha” e da “serpente dentro de casa” poderiam
tornar a lei canônica fácil de ser apreendida, mostrando que, apesar do poder que
poderia emergir do discurso e do entendimento teológico, é pelo uso da retórica e pelo
entendimento do senso comum que as decretais se buscam fazer entendidas.
Ainda quanto ao tópico da servidão, a decretal contida no capítulo XIX 9 procura
coibir a compra de escravas ou escravos cristãos pelos judeus, não permitindo que
amas o seruintes christianos, deuiden a los christianos so pena de descomulgation firme miente, que non
mierquen com ellos em nada.
9 Decretal VI, Cap. XIX (PUIGARNEU). Nulli. Ningun iudio non compre nin [t]en[g]a en sus seruicios
ningun bateado o que se quisiere batear. O si compro alguno, por rraçon de mercaderia e depues fuere
26
tenham em seus serviços ninguém batizado ou que quisesse se batizar. A eventual
compra de escravo que se tornasse cristão deveria prever a libertação deste. Por isso,
caso algum judeu tivesse sob seu domínio escravo também judeu, ou mouro, e se esse
viesse se converter ao cristianismo, a decretal permitia, do mesmo modo, que este se
libertasse mediante pagamento.
Esta decretal joga luz na proteção ao cristão, aliada, porém, à proteção às
propriedades dos judeus, pois o converso ou batizado teria o direito de se ver livre,
porém, mediante indenização pecuniária, que tem o escopo de manter os direitos
patrimoniais dos judeus. Pensamos que essa seria uma demonstração do cuidado na
manutenção das relações sociais entre cristãos e judeus, pautada em equivalência de
tratamento. Assim, observamos uma condescendência por parte do poder eclesiástico ao
permitir que o cristão fosse libertado, mediante pagamento em soldos, pois a
indenização demonstra que não se poderia utilizar o batismo para liberdade sem ônus.
Nada obstante não enumerarmos inicialmente quanto a este tema, a decretal
VIII 10em sua segunda parte também traz um tratamento conferido à criação de filhos
judeus. Ela pretendia impedir que parteiras e mães criassem filhos de judeus, tendo em
conta uma apontada discordância dos costumes. Ela também proibiu que os judeus
morassem e tivessem vida comunitária muito próxima dos cristãos. Com sua crença
distinta dos cristãos, os judeus poderiam corromper os costumes de forma lenta, gradual
e agradável, pois estariam “adoçando o [seu] coração”. Observamos tratamento
diferenciado nesta decretal, mais rígido com relação aos judeus que as demais decretais
que tratam do mesmo tema, que reputamos ser devido à localidade diferente ou à
evolução do tratamento mais austero com o decorrer da Idade Média.
As decretais III 11 e VII 12 tratam de um símbolo importante para a espiritualidade
judaica, a sinagoga, local da realização das liturgias. Nestes capítulos há a proibição da
Christiano [ffecho] o lo desseare ser, dados los XII sueldos por el, sea tuelto de su seruicio. Mas si non
lo puso a uender fata tres meses, o lo compro que lo serviesse, nin lo ose uender, nin lo outro comprar,
[e] sea franqueado non dando precio por el.
10
10 Decretal VI, Cap. VIII (PUIGARNEU). Ad hoc. Manda aqui el papa que cada uno deuide em su
lugar de su iurisdiccion a los christianos, e descomulguenlos si mester fuere, que non iudguem por
ningun [galardon] su seruicio a los iudios. Et otrossi uieden a las parteras, e a las amas, que non crien
em sus casas a los ninnos de los iudios. Ca las sus costumbres e las nuestras non acuerdan em nada, e
por ligera mient ellos por morança e por familiaridat de cada dia, podrian adezir a los corazones de los
simples a su mala creencia. (grifamos quanto à parte analisada)
11 Decretal VI, Cap. III (PUIGARNEU). Iudei. Dize aqui que los iudios non deuen auer nueuas
synagogas, mas deuen auer las uieias.
27
construção de novas sinagogas, mas com a possibilidade de reforma das que já existiam,
desde que não aumentassem o tamanho, nem se tornassem mais “preciosas”. A
permissão da reforma de sinagogas antigas, ainda que com alguma limitação, demonstra
que a preservação do exercício coletivo da espiritualidade e dos costumes dos judeus
eram respeitados pelos poderes eclesiásticos. Portanto, pela decretal, os judeus como
grupo social tinham seu local público de culto respeitado.
Esta permissão ganha importância na medida em que se entende que os
costumes e as liturgias judaicas diferiam dos cristãos, e que até o séc. XIII conviveram
de forma relativamente harmônica em muitas localidades. Ademais, as sinagogas se
constituíam também em símbolo da formação judaica, pois incorporaram o ensino
centralizado que era feito no Templo de Jerusalém (JOHNSON, 1995:105).
Ainda quanto ao tema da convivência, temos a decretal VIII 13. Esta decretal
observa que alguém que detivesse a jurisdição de algum direito sobre determinada
região, por exemplo direito de cobrança, poderia delegar o benefício de cobrar a outro,
porém não aos judeus ou aos excomungados. Por intermédio desta vedação, podemos
ver que poderia ser comum se buscar os serviços dos judeus para este tipo de atividade,
a ponto de o poder eclesiástico se manifestar contrariamente.
Sobre o mesmo tema da decretal VIII, a segunda parte desta orientação papal
impediu que parteiras e mães criassem filhos de judeus, haja vista uma apontada
discordância dos costumes e, também proibiu que os judeus morassem e tivessem vida
comunitária muito próxima dos cristãos, pois com sua crença distinta dos cristãos os
judeus poderiam corromper os costumes de forma lenta, gradual e agradável, pois
estariam “adoçando o coração”.
12 Decretal VI, Cap. VII. Consului[t]. Dize aqui que non deue ser sofrido que iudios fagan synagogas em
lugar do nunca las ouieram. Mas si las antiguas cayeren o estan por caer, puede ser sofrido que las
rrefagan, mas non las ensalten nin las fagan mayores, nin mas preciosas que ante eran; e por gran cosa
lo deuen tener, por que les es sofrido que ayan las synagogas uieias, e sus costumbres que suelen
guardar.
13 Decretal VI, Cap. VIII (PUIGARNEU). Ad hoc. Manda aqui el papa que cada uno deuide em su lugar
de su iurisdiccion a los christianos, e descomulguenlos si mester fuere, que non iudguem por ningun
[galardon] su seruicio a los iudios. Et otrossi uieden a las parteras, e a las amas, que non crien em sus
casas a los ninnos de los iudios. Ca las sus costumbres e las nuestras non acuerdan em nada, e por ligera
mient ellos por morança e por familiaridat de cada dia, podrian adezir a los corazones de los simples a
su mala creencia.
28
O próximo tema a ser abordado é o batismo. Estamos diante de um tema muito
sensível à época, pois o batismo, como um dos sacramentos fundamentais do
cristianismo, era revestido de importância e controle. A forma como este sacramento é
tratado pelas autoridades eclesiásticas revela muito sobre a convivência com os judeus.
Este decreto papal, no Capítulo IX, 14 determina não forçar nenhum judeu a receber o
batismo cristão e, caso alguns consentissem em realizar este sacramento por sua própria
vontade, deveriam ser recebidos sem distinção junto às comunidades cristãs. Assim,
observamos que o judeu apenas deveria receber o batismo após manifestar sua vontade,
nunca pela força, tendo como fundamento único, sua verdadeira fé em Jesus Cristo. A
não imposição do sacramento, que selava o pertencimento à comunidade cristã, deixa
entrever a possibilidade de o judeu ser parte da sociedade cristã, mesmo não
vivenciando a mesma espiritualidade. O direito a não ser obrigado a se batizar se unia a
uma questão prática: a consciência de que a conversão forçada não alteraria o
sentimento espiritual judaico, podendo mais facilmente corromper o cristianismo com
práticas feitas às escondidas.
O capítulo IX também traz o intuito do papa em refrear a ambição dos cristãos
pelos bens angariados pelos judeus. Observamos que o discernimento papal conhecia
que a possível cobiça dos cristãos aos bens dos judeus tinha na perseguição religiosa
contra eles um excelente álibi. Ao refrear o abuso contra a propriedade material dos
judeus, a justiça eclesiástica também previa a utilização do tribunal para proteção desses
bens, com a permissão de um processo legal. Colocava no banco dos réus o cristão que
agisse desta forma, já que este estaria atentando contra o trabalho e a integridade física
dos judeus. A decretal também estende o respeito aos judeus já mortos, com respeito aos
seus costumes póstumos.
14 Decretal VI, Cap. IX (PUIGARNEU). Sicu[t]. Establece aqui el papa que ninguno non fuerce a los
iudios que rreciban bautismo. Mas si algunos se quisierem conuertir por su voluntad sean rrecibidos sin
maleça de que su voluntad fuere demonstrada. Ca non a la fe de [Jesus] Christo uerdadera mient, aquel
que la rrecibe por fuerça e non por uolundat. Ningun(a) christian[o] non sea osad[o] de matar, o de
ferir, o de toller a outro su auer iudio ninguno, sin iuyzio de [la] podestad de la tierra, o mudar las
buenas costumbres las quales ouieron fata agora, mayor mient qu[a]n[d]o fazen sus fiestas ninguno non
los fierga nin con fuste nin con piedra. Nin les demande por fuerça seruicio contra su voluntad, si non los
quales ellos Suelen fazer em el tempo passado.
Ad hoc. Por que el papa querie rrefrenar [la] cobdicia e maleza de los malos omes, establece que
ninguno non sea osado de quebrantar nin mal facer em termino de los iudios, nin soterrar los muertos
por auer. E si alguno fiziere contra este decreto, sea so peligro de su onrra e de su officio, e sea
descomulgado por sentencia si non emendare como deu elo que fizo mala miente.
29
O capítulo XVIII 15 das decretais, por seu turno, traz o tema da assunção de
ofícios por parte dos judeus. A decretal orienta o rei de Portugal a não disponibilizar
postos públicos aos judeus. Caso o rei vendesse suas rendas a esses, deveria assegurar
os direitos destinados aos clérigos e às igrejas, mediante controle feito por cristão. A
ocupação de negócios públicos na Idade Média era atividade muito importante, pois os
que desempenhassem tais cargos representavam o rei. Quando se proíbe ao judeu a
participação neste ofício, podemos observar um processo de fechamento do espaço que
lhe era permitido, caminhando para uma situação de perda de poder. Ou seja, quando o
acesso ao desempenho de função de confiança começa a ser questionado, com a
tentativa de substituição de uma função tão importante, percebemos não somente a
perda de prerrogativas e privilégios, mas também o enfraquecimento político.
O
afastamento dos centros de decisão apontará para a perda do poder de influência sob as
comunidades.
Conforme pode ser visto, as decretais são escritas de forma simples, com
linguagem coloquial e destinadas à solução de controvérsias práticas e dificuldades
cotidianas vivenciadas nas diversas localidades. Sua tentativa era de conferir um
tratamento coerente e equilibrado, de simples de ser entendido pelas comunidades, em
busca de pacificar as relações sociais.
Ademais, observamos que elas apresentam a reunião de posicionamentos de
diversas autoridades eclesiásticas visando unificar uma posição e servir de guia para
uma tentativa de consolidação de entendimentos quanto aos judeus. Como a autoridade
das decretais não nasce dos cânones nem do papa Gregório IX, antes parte de muita
disputa e discussões anteriores, elas trazem a ambiguidade de serem um ponto de
partida e um ponto de chegada, ou seja, de tentar refletir um consenso possível para a
continuidade da orientação nas diversas localidades, sobretudo as do Ocidente.
No que dizem respeito aos judeus, elas permitem vislumbrar um tratamento
relativamente favorável, que respeitava a situação que eles ocupavam durante boa parte
da Idade Média.
15 Decretal VI, Cap. XVIII (PUIGARNEU). Et yspecialli. Por que amamos especial mente al rey de Portogal,
mandamos que amonestedes [a] aquel rey que non ponga(n) sobre los christianos a los iudios em officios
publicos, assi como los contiene em el concilio general; e si uendiere sus rrentas a los iudios o a los
morros, [ponga y um Christiano del qual non ssean ssospechosos que ffaga agrauiamento a los clérigos e
a las eglesias, por el qual los iudios e los morros] ayan los derechos del rey non faciendo tuerto a los
christianos.
30
Conclusão
Em primeiro lugar, vale à pena questionar na presente análise a real autoria das
decretais. Se ao papa Gregório IX foi conferida a sua autoria formal, coube ao
prestigiado Raymond de Peñafort, compendiar toda a documentação acessível à época, e
se tornar o autor material, tendo em vista eleger o material acomodado na documentação
final, com possível controle dos temas e das orientações contidas nas diversas matérias
inclusas, optando, em caso de conflito nas decisões, por uma determinada orientação.
No tema relativo à servidão, constatamos que a indenização conferida aos judeus
preservava os princípios de justiça da sociedade medieval. Nela, o trabalho na terra
diferenciava os grupos sociais, cabendo aos senhores a posse territorial e seus
rendimentos, com acento na exploração do trabalho servil, e aos servos o trabalho na
terra para este senhorio. Assim, condicionar a liberdade de um servo à indenização
preservava o sistema social, que não era subvertido por questões relacionadas à
espiritualidade dos senhorios judaicos.
A existência de senhores feudais judeus é também um tema pouco tratado pela
historiografia mais tradicional. Esta possibilidade dos judeus possuírem terras, bem que
reúne valor material e imaterial, demonstra a situação privilegiada e de autonomia
destes durante boa parte do medievo. A boa situação dos judeus, apontada por Benjamin
de Tudela, se estendia a sua relação com o poder eclesiástico, conforme constatamos
nas decretais.
Todavia, à medida que tal espaço foi se fechando, a convivência tendia a se
tornar conflituosa e difícil, pois o mero questionamento da legitimidade da posse da
terra aponta para a intolerância quanto a sua “dignidade” de senhor feudal.
Outro documento que indica a vontade de dar proteção aos judeus, conforme
vimos, é a quinta decretal, que prevê a excomunhão dos cristãos que não respeitassem
os bens e as propriedades dos judeus conversos ao cristianismo. Assim, o documento
talvez indique que a conversão dos judeus ao cristianismo pode ter tido o condão de
permitir sua assimilação efetiva à sociedade cristã.
Ao mesmo tempo, ao permitir a manutenção dos bens e propriedades dos judeus
conversos ao cristianismo, a decretal carrega em si a complexidade das relações na
sociedade medieval. Logo, indicamos por esta decretal que, além do povo judeu ter sido
importante e levado em conta nas relações sociais do período, as afinidades sociais
31
também se fizeram presentes no convívio com os judeus que abraçaram a
espiritualidade cristã, estimulando o acolhimento e a convivência integral, sem
discriminação social.
Aproveitamos para ventilar a hipótese de que o tema da convivência tem no
afastamento da festa judaica da Páscoa um cuidado por parte do poder eclesiástico. Este
zelo estava no respeito mútuo entre as diferentes celebrações promovidas pelos judeus e
cristãos.
Quanto ao tema relativo às sinagogas judaicas, observamos que a proteção
eclesiástica ao local do exercício da espiritualidade dos judeus é um elemento
importante no entendimento das relações sociais da Idade Média. Ter os seus antigos
locais de culto preservados, mesmo com a ressalva da impossibilidade de abertura de
novos, aponta pela tolerância em tema sensível, que era a cerimônia religiosa judia.
Frequentemente, as liturgias judaicas eram questionadas pelas comunidades cristãs e a
preservação das sinagogas deixa entrever uma importante flexibilidade por parte dos
poderes eclesiásticos quanto ao respeito à continuidade dos costumes judaicos no seio
das comunidades cristãs.
No que tange à relação dos judeus com as atividades ligadas às finanças, na
análise das decretais tanto confirmamos a proximidade dos mesmos com elas, oriunda
de uma tradição já incorporada, quanto uma tendência ao seu afastamento paulatino
delas. Ora, essa era uma das atividades que possibilitavam uma maior ligação dos
judeus com as autoridades do medievo, sendo os últimos, inclusive, dependentes dos
serviços oferecidos pelos judeus, por serem eles fundamentais ao bom funcionamento
dos reinos, senhorios etc.
Outra hipótese que levantamos para a necessidade de se buscar o equilíbrio na
convivência social entre cristãos e judeus é a importante função econômica que os
últimos tinham na Idade Média. Com sua especialização em atividades financeiras, no
comércio, na medicina, além das práticas artesanais, pois eram também sapateiros,
alfaiates, ourives etc., os judeus eram presença importante para o bom funcionamento
da dinâmica social. Assim fala Mattoso sobre o caso português:
O seu papel na activação da economia monetária e na utilização dos seus
complexos mecanismos e em algumas técnicas artesanais foi, portanto,
notável, e teve a maior importância na economia portuguesa. A precoce
utilização dos seus serviços pelos soberanos, desde Afonso Henriques, e a
sua intervenção nas actividades fiscais, como almoxarifes, ou como
32
arrendatários da cobrança das rendas e dos instrumentos de produção ou
de troca que eram propriedade da Coroa, conferiu-lhes um papel de
primeira ordem na edificação dos mecanismos de financiamento do
Estado e do desenvolvimento da economia moderna. (MATTOSO, 1995:
339).
O povo judeu era também importante para os senhorios locais, pois ao serem
paulatinamente afastados de alguns ofícios, com frequência conquistava a confiança
desses para atividades desgastantes, como a cobrança de impostos. A decretal que
proibirá a assunção de determinados ofícios públicos aos judeus demonstra, no entanto,
uma tendência ao fechamento desses espaços.
Sobre o tema do batismo, consideramos que a forma como é tratado demonstra
complacência para com os judeus, haja vista tocar em um tema muito caro ao
cristianismo. O batismo se constitui em um sacramento religioso de suma importância,
pois é através dele que há a possibilidade de salvação e de entrada na comunidade cristã.
A preocupação papal em insistir que o judeu que recebe o batismo deve ser recebido no
seio da comunidade cristã sem distinção, sugere a intenção da efetiva conversão da
comunidade judaica, dada a ênfase na necessidade de que seja voluntária e sincera, e no
respeito dos cristãos ao converso judeu.
Assim, observamos que a Idade Média foi um período onde as tensões sociais
relacionadas à presença judaica estiveram presentes, nela também houve uma
preocupação das autoridades eclesiásticas com sua integridade física, espiritual e
patrimonial. Uma tendência à intolerância para com a comunidade ocorre de forma lenta
e gradual, além de não atingir de forma homogênea todo o Ocidente, já que suas
motivações são diversas. Acima de tudo, a documentação nos indica que o período não
pode ser reduzido à mera intolerância, pelo contrário, o que o marca é uma convivência
próxima, dependente e em que os judeus possuíam papéis importantes nas comunidades.
Os poderes eclesiásticos revelados nas decretais aos judeus apontavam pela
tolerância e proteção, abrangendo a permissão do exercício de funções públicas,
resguardando até certo momento seus direitos de senhores feudais, podendo, amealhar
bens, contratar servos cristãos. Além disso, constatamos que as decisões eclesiásticas
permitiam a convivência com cristãos nas diversas localidades, sem qualquer
distanciamento, como as judiarias.
O endosso da teologia de Agostinho de Hipona perdurou por muito tempo como
posição do papado. Gregório Magno, cujas epístolas eram mencionadas na Idade Média
33
como direção a ser seguida, ordenou que os direitos legítimos judaicos fossem
protegidos (RICHARDS, 1993: 100). Papas sucessivos reproduziram de forma regular o
entendimento de Agostinho que foi consolidado em 1120 pelo papa Calixto II na Sicut
Judaeis Non 16.
De forma geral, vimos que havia uma intensa coexistência entre judeus e
cristãos, que se relacionavam em todas as situações cotidianas, eram próximos e suas
comunidades formavam laços naturais de convivência. Esta ocorria nos níveis sociais,
econômicos e políticos. Assim, serão inegáveis as pressões econômicas para se entender
a modificação na relação entre judeus e cristãos, sobretudo quando os judeus ganharem
importância econômica.
Constatamos, por conseguinte, que será na Idade Moderna que a intolerância se
apresentará de forma intensa. A perseguição aos judeus será acentuada somente em fins
do século XV, sobretudo na Espanha no reinado de Fernando de Aragão e Isabel, que
em 1492 os expulsarão dos reinos de Aragão e Castela. E mesmo na América, no século
XVI, a convivência entre judeus e cristãos será bastante próxima, como observa
Delumeau:
O país que, nos séculos XVI e XVII, se tornou mais intolerante em relação
aos judeus, a Espanha, foi o que, anteriormente, melhor os acolhera. No final
do século XIII, eles eram ali perto de 300 mil e viviam misturados à
população. (...) Cristãos assistiam às circuncisões e judeus os batismos. Em
Nova Castela, era de uso chamar cantoras judias assalariadas para os enterros
cristãos. “Infiéis” misturados aos “fiéis” participavam de cerimônias nas
igrejas e, inversamente, cristãos espanhóis iam ouvir os sermões dos rabinos.
(DELUMEAU, 2009: 418)
Constatamos também que manifestações de liberdade na vivência da
espiritualidade eram protegidas. Claudia Brochado aponta que este exercício de
16
“Do mesmo modo que não se deve conceder licença aos judeus para presumirem fazer em suas
sinagogas mais do que as leis lhes permitem, também não devem eles sofrer limitações naqueles
[privilégios] que lhes foram concedidos. É por isso (...) que nós atendemos suas petições e oferecemos a
eles o escudo da nossa proteção. Decretamos que nenhum cristão pode usar de violência para força-los a
se batizar enquanto permanecerem indesejosos de fazê-lo e se recusarem, mas que se qualquer dentre eles
buscar refúgio entre os cristãos por sua própria vontade e em razão de sal fé, depois que seu desejo se
tenha tornado completamente claro, poderá ser feito cristão sem ser submetido a nenhuma calúnia (...)
Ademais, sem o julgamento da autoridade da região, nenhum cristão pode aventurar-se a ferir sua gente
ou matar, ou roubar seu dinheiro, ou alterar os bons costumes dos quais, deste modo, até então, eles
desfrutam-no lugar em que vivem. Além disso, quando celebrarem suas festas, ninguém poderá perturbálos de qualquer maneira através de pedaços de pau ou de pedras, nem exigir trabalho forçado de nenhum
dentre eles, exceto aqueles que estão acostumados a realizar desde os tempos antigos”. (RICHARDS,
1993: 100)
34
liberdade foi possível nos monastérios femininos com muita liberdade até meados do
século XII, onde se permitiu recriar uma organização social peculiar:
As mulheres, no contexto dessa nova cultura que vai sendo construída,
parecem encontrar ali um ambiente novo, aberto a outras possibilidades
de ser. Apesar desse espaço se justificar na busca pela melhor maneira de
viver a espiritualidade, para as mulheres, de forma particular, parece terse constituído em possibilidade de um novo exercício de liberdade, se
constituindo em espaço de cultura feminina que se organiza em termos de
tradição.
Em sua maioria oriundas da nobreza, as mulheres ali decidiram viver não
se isolar do mundo, recriavam no interior desses espaços uma organização
social peculiar, pois transferiam parte de sua vida social para dentro dos
monastérios, ao compartilharem com outras mulheres, crianças ou
adultas, uma convivência que já se dava no exterior dos mesmos. Ali
dividiam o espaço, desenvolviam a espiritualidade, trocavam idéias e
experiências, instruíam as mais novas, se deixavam guiar espiritual e
intelectualmente por aquela que detinha a autoridade, a abadessa.
Era também lugar de abrigo de filhos e filhas ilegítimos, além de espaço
de retiro de muitas mulheres na velhice, principalmente aquelas que ao
longo da vida destinavam parte dos seus bens par a comunidade (...).
(BROCHADO, 2014: 3)
Logo, concluímos que as sentenças eclesiásticas nas decretais, que podem
parecer opressivas ou persecutórias numa leitura superficial, quando trabalhadas com
mais atenção, conferiram guarida às diversas comunidades judaicas, evidenciando
preocupação com a situação social concreta dos diversos grupos e, inclusive, no caso
dos judeus, com suas práticas religiosas.
35
Bibliografia
ADLER, Marcus Nathan. The Itinarary of Benjamin of Tudela: critical text,
translation and comentary. London: Oxford University Press, 1907.
ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Lisboa: Ed.
Afrontamento, 1982.
BASCHET, Jéromê. A civilização feudal. Rio de Janeiro: Globo, 2006.
BARROS, José D’Assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média.
Petrópolis/RJ: Vozes, 2012.
BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu... Paganismo,
cristianismo, senhores e camponeses na alta Idade Média Ibérica (séculos IV - VIII).
São Paulo: Edusp, 2013.
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Ed. 70, 1982.
BROCHADO, Cláudia. As Mulheres nos Processos Matrimoniais da Catalunha do
Século XV. 441 f. Apêndice Documental Tese (Doutorado em História) – Universidade
de Barcelona, Barcelona, 1995.
__________ . As pouco silenciosas monjas medievais. In: STEVENS, Cristina et. al.
(org.). Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2014. Prelo.
COGNI, Bárbara Maria. Cristãos e Muçulmanos na Península Ibérica – Século XIII.
Disponível em http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%
20e%20Artigos/Barbara%20Maria%20Cognii.pdf. Acesso em 03/09/2014. Texto
integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e
Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
DUBY, Georges. Economia rural e vida no campo no ocidente medieval, vols. I e II.
Lisboa: Estampa, 1978.
__________ . Idade Média na França. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
DUBY, Georges; PERROT, Michele (org.). História das Mulheres no Ocidente Volume 2 – A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990.
ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa
Ed., 1972.
36
FELDMAN, Sérgio Alberto. Como tratar os judeus na Idade Média. Arquivo
Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 6, n. 11,
out. 2012. Disponível em: <http://www.academia.edu/2437918/Como_tratar_dos_
judeus_ no_ensino de_Idade_Media> Acesso em 11/06/2013.
__________ . Os judeus no imaginário medieval. Curitiba: Tuiuti Ciência e Cultura,
11: 81-92, 1999.
__________ . A atitude papal em relação aos judeus no início do século XII. In:
Webmosaica – Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v. 4, nº 1 (jan-jun)
2012. Disponível em http://ufes.academia.edu/SergioFeldman acesso em 1º/09/2014.
__________ . De cives romani a nefariam sectam: a posição jurídica dos judeus no
Codex Theodosianus. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba,
SBPH, v. 21, p. 7-16, 2001.
FOURQUIM, Guy. Senhorio e feudalidade na Idade Média. Lisboa: Ed. 70, 1984.
GARRETA, Maria Milagros Rivera. La diferencia sexual em la historia. Valencia:
PUV, 2005.
________ . La política sexual. In Las relaciones em la historia de la Europa
medieval. Org. Núria Jornet I Bento et all. Valencia: Tirant lo Blanch, 2006, pp. 139173.
GUERREAU, Alain. O feudalismo. Um horizonte teórico. Lisboa: Ed. 70, 1980.
GUREVIC, Jean. O Mercador. In: o Homem Medieval. LE GOFF, Jacques (org.).
Lisboa: Editorial Presença, 1989.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
JOHNSON, Paul. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
JOSEFO, Flávio. Guerra dos Judeus. Curitiba: Juruá, 2002.
LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Afonso, 1992.
________ . Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP,
1997.
________ . Em busca da Idade Média. São Paulo: Civilização Brasileira, 1998.
________ . Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Record, 2001.
________ . A civilização do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2005.
________ . A bolsa e a vida. Economia e religião na Idade Média. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
37
________ . Para uma outra Idade Média. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013 (a).
________ . Homens e mulheres da Idade Média. São Paulo: Estação Liberdade, 2013
(b).
________ . A Idade Média e o dinheiro: ensaio de Antropologia Histórica. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2014.
LEWIS, Brenda Ralph. A História Secreta dos Papas: vício, assassinato e corrupção
no Vaticano. São Paulo: Editora Europa, 2010.
MATTOSO, José. Identificação de um País – Vol. I. Ensaio sobre as origens de
Portugal 1096-1325. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.
NIETO SORIA, José M. Fundamentos ideológicos del poder real em Castillas (siglos
XIII-XIV). Madri: Ed. Universidad, 1988.
PEDRERO-SANCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e
testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000.
PIRENNE, Henry. As cidades na Idade Média. Mira-Sintra: Europa-América, 1977.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP: Edusc, 2005.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1988.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
RUST, Leandro. A Reforma Papal (1050 01150): trajetórias e críticas de uma
história. Cuiabá: Ed. UFMT, 2013.
SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Sintra: Europa-América,
1999.
SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto. Os papas e os judeus. Petrópolis/RJ:
Vozes, 1973.
SILVA, Marcelo Cândido. A realeza cristã na Alta Idade Média. Os fundamentos da
autoridade pública no período merovíngio (séculos V – VIII). São Paulo. Alameda,
2008.
SOUZA, Israel Coelho de. Tensões e Interações entre judeus e cristãos em Portugal
no final do Século XV. 2007, p. 139. Trabalho de conclusão de curso (Mestrado em
História, da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia) - Universidade Federal de
Goiás, orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos.
VAUCHEZ, André. Espiritualidade na Idade Média ocidental - séculos VIII a XIII.
Lisboa: Estampa, 1987.
38
VEYNE, Paul (org). História da Vida Privada – Do Império ao Ano Mil. São Paulo:
Cia das Letras, 1997.
- Fontes
BÍBLIA: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
Decretales de Gregorio IX. Versión Medieval Española. J. MANS PUIGARNEU, ed.
Barcelona, 1939 (vol I), 1942 (Vols. II e III).
Eusébio de Cesaréia. Historia Eclesiástica. Madrid: BAC, 2012.
Flávio Josefo. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: CPAD, 1990.
39
DECLARAÇÃO DE AUTENTICIDADE
Eu, LEANDRO DA MOTTA OLIVEIRA, declaro para todos os efeitos que o
trabalho de conclusão de curso intitulado ENTRE PROTEÇÃO E CONTROLE: OS
JUDEUS NO OCIDENTE MEDIEVAL NAS DECRETAIS DO PAPA GREGÓRIO IX
foi integralmente por mim redigido, e que assinalei devidamente todas as referências a
textos, ideias e interpretações de outros autores. Declaro ainda que o trabalho é inédito e
que nunca foi apresentado a outro departamento e/ou universidade para fins de obtenção
de grau acadêmico, nem foi publicado integralmente em qualquer idioma ou formato.
Brasília, 08 de dezembro de 2014.
LEANDRO DA MOTTA OLIVEIRA
40
Download

os judeus no ocidente medieval nas decretais do papa