Entrevista com Alexandre Bellagamba, artista plástico, membro do CAPS de Cabo Frio e da
Associação de Parentes e Amigos dos Pacientes do Complexo Juliano Moreira (Apacojum) e
militante da Reforma Psiquiátrica.
1) Como é sua experiência como militante no Movimento de Luta Antimanicomial?
A minha vida psiquiátrica começou em 1985, quando houve a minha primeira internação, mas
não existia ainda esse movimento, pelo menos eu não tinha conhecimento disso ainda. Mas,
em 1987, quando fui internado em Jurujuba, tive a oportunidade de conhecer a Associação
Cabeça Firme, cuja presidente na época me chamou para participar e me associar. Foi a partir
daí que passei a conhecer as questões do Movimento e da Reforma Psiquiátrica. Com o tempo,
participando de encontros e eventos, comecei a aprender sobre as questões da Reforma.
Quando o projeto de lei 10216 estava tramitando no congresso, foi aí que comecei a ter
experiência nisso e entrei no Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial, que foi uma escola para
mim, onde aprendi a militância em si, onde aprendi sobre as políticas públicas de saúde
mental. De tanto eu ficar internado em hospícios e manicômios, achava que meu futuro era
ficar internado em manicômios, e via o Movimento e a Reforma como uma salvação. Então,
me apeguei a isso, eu via aquilo como uma forma de sair e tentar mudar essas coisas.
2) Você poderia nos contar um pouco sobre a sua história?
Minha primeira crise aconteceu no quartel quando aconteceu uma série de problemas
familiares e sociais. Eles me levaram para o HCE e de lá eu fiquei internado por três ou quatro
meses, tomando uma infinidade de medicamentos, além de injeções eu era amarrado, eu fui
muito torturado no quartel, fui preso, fui para a solitária por uma semana, isso foi um trauma
muito grande para mim. Eu comecei a ficar dopado, ficava fora da realidade, e na minha
primeira internação foi algo muito traumático para mim e foi a partir dela que eu comecei a
não ser eu mesmo porque, apesar de todas as cosias que eu passei, eu estava muito medicado,
ninguém sabia o que eu tinha, e, mesmo assim, me davam uma infinidade de medicamentos,
então eu ficava dopado, robotizado, não tinha muita consciência das coisas. A doença era uma
completa desconhecida para mim, mas hoje em dia não. Hoje eu tenho plena consciência do
que eu tenho, dos sintomas que me fazem ter essa doença, e isso faz com que eu,
precocemente, detecte quando eu não esteja bem, para conversar com meu médico para
mudar minha medicação e, com isso, cortar o mau pela raiz. Ou seja, o surto vem, mas ele não
vem com tanta intensidade por conta disso. Como eu tenho esse esclarecimento, isso facilita
eu detectar quando ele vem.
3) Que tipo de entendimento você faz quando alguém lhe trata por “usuário de saúde
mental” dentro do contexto da Reforma Psiquiátrica e do Movimento pela Luta
Antimanicomial?
Quando alguém me chama de usuário eu digo: Sou usuário de Saúde Mental porque eu uso os
serviços de saúde mental para me tratar, para me cuidar, porque eu preciso disso, e a loucura
é uma doença crônica, é incurável, mas eu, como Alexandre, como ser social, eu acho que
tenho socialmente cura, acho que já sou socialmente curado porque, a partir do momento em
que você consegue conviver com as pessoas, que você tem um esclarecimento maior sobre
isso e passa a não ver a doença mental como um preconceito para você mesmo, a partir do
momento que você assume que você é um doente mental, e assume essa consciência, você
passa a não ter problemas algum com seus amigos. A consciência sobre a doença e o
esclarecimento, a informação que você tem sobre a doença e seus sintomas e sobre tudo o
que rola na sociedade em termos de preconceito e discriminação com relação à saúde mental,
enfim, é imprescindível para você ter uma convivência melhor com as pessoas.
4) Você já esteve sob regime de internação psiquiátrica? Você pode falar um pouco sobre
essa experiência?
Nos hospitais psiquiátricos não tínhamos uma voz. Quando reclamávamos de uma dor, por
exemplo, nos mandavam calar a boca. Não tínhamos uma identidade dentro do hospital,
éramos reconhecidos pelo número de medicação que tomávamos, não pelo nome; éramos
simplesmente subestimados, as pessoas nos tratavam como verdadeiros lixos, então, eu já
levei eletro-choque por punição... Eles não viam a nossa voz como uma voz ativa. Acho que a
Reforma e o Movimento dão muito valor a essa voz, a esse grito dos usuários.
5) Dados do Ministério da Saúde revelam que aproximadamente 5 milhões de brasileiros
necessitam de cuidados contínuos em saúde mental. Isso exige do governo uma rede de
assistência densa, diversificada e eficiente para essa população. Na sua opinião, a rede de
assistência atual dá conta dessa tarefa? Ou ainda faltam políticas públicas para a área?
Na verdade, a Reforma Psiquiátrica, aprovada na forma de substitutivos da Lei Paulo Delgado,
tem tudo para dar certo. O problema é que o governo está tendo problemas, que eu não sei
quais são, se são problemas dele próprio ou se é falta de vontade política dele... Por exemplo,
aqui na região de São Pedro da Aldeia, sentimos muito a falta de um CAPS-AD, CAPSi, eu acho
que os serviços substitutivos ainda não estão distribuídos como deveriam estar. Acho que tem
muita carência nesse sentido, ainda falta muita coisa para constituir... Mas eu acho que esse
tipo de serviço substitutivo é o caminho para uma vida melhor dos usuários. O que falta é
exatamente implementar mais serviços, mais políticas públicas de saúde mental.
6) Qual é a sua visão sobre o modelo assistencial dos CAPS?
É um modelo assistencial preventivo de muita valia porque, no CAPS, os pacientes, quando
começam a ter algum problema, quando começam a ter algum resquício de surto, com o
trabalho dos psicólogos, dos psicoterapeutas, com as terapias ocupacionais, com todo o
mecanismo que existe, acho que eles conseguem reverter essa situação, conseguem aniquilar
o surto e a crise por aí. O CAPS é uma forma de você tratar sem mostrar atos discriminatórios,
sem paternalismo excessivo... Eu acho que os CAPS são uma saída para quem precisa de
tratamento, que precisa de um lugar para chegar e ser acolhido. Isso para mim é uma coisa
primordial dentro da Saúde Mental. Não adianta você chegar e internar o paciente que está
com problemas. O CAPS é isso: como medicina preventiva e como forma de tratamento, eu
acho fantástico.
7) Muitas ações têm sido desenvolvidas no sentido de promover a inclusão social dos
usuários através do acesso à arte, à cultura e a emprego. Como você analisa esse contexto?
A arte, por exemplo, - eu sou artista e uso a arte multifacetada: não sou só pintor ou escultor,
uso a arte de várias maneiras, dependendo da minha inspiração. E a arte é uma forma de você
mostrar para a sociedade que você pode, que você tem condições de ter alguma geração de
renda. Porque o louco, apesar de ele ter seus problemas de saúde mental, tem qualidades, ele
tem criatividade, ele é capaz de produzir, dentro desse sistema capitalista, que só visa à
produção, e eu acho que a arte é uma forma de produção, e o usuário tem essa capacidade:
ele tem uma criatividade imensa, fora do comum, muitos usuários têm uma capacidade de
criatividade além de uma pessoa normal. E isso deve ser respeitado. A arte é um portal para o
interior dessa pessoa que está sofrendo psiquicamente. Você conhece mais essa pessoa
através da arte, você conhece mais a loucura através da arte. E a loucura tem uma diversidade
temática tão grande, tão infinita, que vale a pena você fazer isso. A Arte é uma das formas de
geração de renda que o usuário tem como saída, como forma de escape para poder sobreviver
e ter uma linguagem sobre o que ele sofre psiquicamente e que a sociedade compreenda. A
arte para mim é simplesmente minha ferramenta de comunicação com a sociedade. Na
verdade, a loucura tem suas vantagens e desvantagens. As desvantagens é que você tem crise,
tem de tomar medicação sempre e tudo o mais. A vantagem é exatamente a criatividade que
ela te proporciona.
8) Você considera importante a participação dos usuários, familiares de usuários e da
comunidade no processo de Reforma Psiquiátrica?
Considero. Apesar de não ter podido mais ir aos encontros nacionais, faço a minha militância
aqui na região, também através da internet, que é um vínculo muito forte. Fui escolhido pelo
blog do ator Bruno Gagliasso pelo meu texto, que ganhou uma página no blog dele. E ele
reconhece que eu, como parte da Reforma Psiquiátrica, tenho discutido questões da Reforma
e de saúde mental com médicos, usuários e familiares. Esse reconhecimento veio através não
só do meu texto, mas também da minha participação. A internet é uma ferramenta muito
importante para isso. Minha militância não terminou não, minha militância continua e acredito
eu que vá continuar sempre, só vai terminar quando eu morrer. Eu acho que os familiares não
têm muito interesse não, eu acho que os familiares não estão muito antenados nisso. Eu acho
que eles estão mais interessados em pegar o paciente e levar para o CAPS e deixar lá e passar
o dia inteiro sem problemas em casa. Minha visão é essa do familiar. Já a comunidade já foi
muito mais preconceituosa do que ela é hoje. Acho que o veículo de informação televisivo, de
comunicação, está muito forte sobre isso.
9) Na sua avaliação, o que você considera que falta para ver seus direitos de cidadania
garantidos?
O que falta realmente é mais vontade política de realização de coisas mais efetivas, como
ampliar a rede de serviços substitutivos, mais leis para a saúde mental, mais residências
terapêuticas. Eu acho que a loucura, a saúde mental, ela não é muito bem vista pelos políticos,
eles não dão muito valor. O que precisa é valorizar isso, os políticos precisam valorizar mais a
loucura, e ver que o doente mental pode não só estar como vizinho ou como amigo, mas ele
pode estar dentro da sua família. Ou pode acontecer com eles mesmos. Então, eles não se dão
conta disso, e como não se dão conta disso, eles acham que basta deixar a loucura para lá.
10) Qual a sua expectativa com relação à IV Conferência de Saúde Mental?
Em primeiro lugar, mais prioritariamente, que as Comissões Intersetoriais de Saúde Mental
Municipais e Estaduais estejam implementadas, que sejam aprovadas as propostas porque é
muito importante ter uma comissão fiscalizadora nos municípios e nos estados. Você tendo
uma comissão fiscalizadora, a sua região passa a ter um órgão que fiscalize as políticas as de
saúde mental e isso faz, automaticamente, com que o serviço melhore. Isso é uma questão na
qual estou apostando nessa conferência. Outras questões em que estou apostando é a
ampliação da rede de serviços substitutivos no Brasil inteiro porque o hospital psiquiátrico, já
está comprovado, não é uma boa forma de fazer tratamento. Inclusive eu acho que os serviços
substitutivos são uma forma de prevenção e você, prevenindo a doença, ela não vai chegar e,
automaticamente, o governo não vai gastar tanto com ela quanto se você fizer uma medicina
preventiva.
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Entrevista com Alexandre Bellagamba, artista plástico - CRP-RJ