O desenvolvimento perceptivo da criança cega
Reflexões acerca da percepção e seus
desdobramentos no universo da cegueira.
Reflections about perception and its consequences in the world of blindness.
Evangelista, Bruno Ávila Wolff; Graduando Bolsista Grupo PET Design - SESu; Instituto
Federal de Santa Catarina
[email protected]
Santos, Rodrigo Gonçalves dos; Arquiteto, D.Sc; Instituto Federal de Santa Catarina
[email protected]
Resumo
O presente documento apresenta um apanhado teórico inicial sobre a percepção, dando ênfase
à visão e sua ausência. Para tal realizou-se uma pesquisa bibliográfica para primeiro contato
com os temas e, como desdobramento, percebeu-se a criança cega como objeto de estudo e
análise sob ótica do design de objetos.
Palavras-Chave: cegueira; percepção; sentidos.
Abstract
This document presents an initial theoretical overview of about perception, emphasizing the
vision and its absence. To this end, a literature search was performed for the first contact
with the subjects and, as a consequence, the blind child was perceived as an object ofstudy
and analysis under the optical design of objects.
Keywords: blindness; perception; senses.
Introdução
O desenvolvimento deste apanhado iniciou-se a partir de questionamentos sobre os
sentidos e a percepção de mundo dos cegos, tendo em vista que a maior parte dos estímulos
perceptivos dos videntes é pelo canal da visão (SANTAELLA, 1998). Optou-se pelo
levantamento bibliográfico como primeira abordagem ao tema, visando recolher conteúdo
suficiente para uma futura aproximação direta com o universo da cegueira e da criança cega.
Tal proximidade com a gama de experiências vividas pela criança cega permitirá mais
registros e relações para a área do design, fazendo juz a sua pertinência e relevância.
Perceber o mundo
O ser humano caracteriza-se como tal somente ao se perceber no mundo por meio de
seus sentidos e interpretá-los por meio da sua cognição. Segundo Oliveira, autor da obra
“Do essencial invisível”, “o contato que temos com o mundo inicia-se nos sentidos. Todos
eles. Cada um à sua maneira, são capazes de nos transmitir prazer ou desprazer.”
(OLIVEIRA, 2002). Indo um pouco mais a fundo, percebe-se que na citação o autor trata o
mundo (com o significado de “universo de estímulos”), como uma coisa à parte, externa ao
ser humano. Questiona-se então se realmente este seria o melhor ponto de vista,
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segmentando em uma dicotomia o mundo e o ser humano, interpretando os sentidos e a
percepção como a intersecção entre os dois universos.
Para encaminhamentos deste apanhado teórico é interessante a visão do filósofo
francês Maurice Merleau-Ponty, que propõe uma relação de construção mútua da veracidade
entre o ser humano e o mundo: “[...] não é preciso perguntar-se se nós percebemos
verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós
percebemos” (MERLEAU-PONTY, 1999).
O mundo percebido pela visão
Nossos olhos nos apresentam pequenas porções do mundo visual, e com base nesses
fragmentos construímos nosso mundo (INGS, 2008). A afirmação de Ings nos conduz a
refletir sobre as características gerais da visão, buscando-se justificar o dado relativo aos 75%
da percepção humana ser visual (SANTAELLA, 1998). A mesma autora argumenta que isto
se dá pelo desenvolvimento histórico de poderosas extensões da visão humana, a exemplo de
aparelhos fotográficos, televisão e computadores, estimulando a especialização visual da
espécie humana.
Seria então esta predominância da visão apenas um resultado de estímulos específicos,
priorizados ao acaso para a visão? Há motivos para acreditarmos que não. A visão, além de
ser um sentido ao qual se recorre para se situar no espaço, é por instinto uma segurança; uma
validação dos outros sentidos.
Segurança e espaço
A visão, em meio a todas as suas características, destaca-se pela propriedade espacial,
que permite ao vidente o contato com seu motivo à distância. Segundo Ings, os videntes
percebem as três dimensões reunindo informações provenientes de luzes e sombras, e mantém
contato visual com seu motivo, apesar da distância prover a perda de detalhes.
Como explica Oliveira em sua obra, a visão é, no núcleo do pensamento ocidental, “o
sentido por excelência da percepção do belo”, o sentido que unifica e estrutura as informações
sensórias, nosso recurso para o julgamento estético, uma segurança sensitiva que temos ao
colocarmos em dúvida qualquer outro sentido. Como exemplo desta segurança, podemos criar
um cenário de repouso e silêncio interrompido por uma melodia de um violino. Por mais que
a audição humana perceba o timbre do instrumento como de um violino, nosso instinto é
buscar com os olhos um contato para confirmar através de outro sentido (instintivamente mais
seguro) a informação. (OLIVEIRA, 2002)
Elementos configurativos
Há ainda uma reflexão a ser feita quanto a relação das partes como um todo, sob o
contexto da percepção visual. Como já foi comentado, a visão se responsabiliza por uma vasta
amplitude de informações. Porém, apesar do processo visual ter caráter subjetivo em sua
essência, de um modo geral analisa-se a experiência estética pela combinação de elementos
configurativos, divididos entre macroelementos e microelementos, explicados por Silva,
Oliveira & Santos, no caso de um produto:
elementos configurativos podem ser classificados em macroelementos e
microelementos. Macroelementos são aqueles que são apreendidos conscientemente
no processo de percepção, como forma, material, superfície, cor etc.
Microelementos são aqueles que não aparecem de forma imediata no processo de
percepção, mas que também participam da impressão geral da configuração :
pequenos parafusos, juntas de separação das partes ou rebites). (SILVA et al. 2010)
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Percebe-se que para a visão, dotada de características espaciais mais amplas, o
processo de identificação destes elementos configurativos ocorre primeiramente por
macroelementos, quando um vidente estabelece o contato visual e identifica formas, cores,
etc. Após este contato, começa a identificação dos microelementos, os detalhes, as
características que demandam uma observação mais precisa. Uma comparação que pode ser
feita é quanto ao processo tátil de percepção. Quando estimulados somente por canais táteis
(caso de um cego ao tocar um objeto, por exemplo), percebemos primeiramente os chamados
microelementos (a textura, os furos, etc.), e somente após esta apreensão mais detalhada é que
se pode compreender o objeto por completo.
Esta abordagem abre caminho para novas dúvidas, agora a respeito da ausência da
visão. Poderíamos considerar que um indivíduo cego apoia sua percepção de mundo em
algum sentido exclusivo? Na sua condição, como um cego se situa no espaço? E como
acontece o processo de apreciação estética de um cego?
A cegueira
Como já foi citado, uma das principais distinções entre cegos e videntes é sua relação
com a percepção do espaço. Enquanto os videntes percebem as três dimensões reunindo
informações provenientes de luzes e sombras, os cegos têm de estabelecer um contato com
seu motivo (quando tátil ou gustativo), ou desenvolver amplas capacidades auditivas e
olfativas para perceber seu motivo à distância.
É de suma importância destacar que o principal problema relativo à cegueira não é
necessariamente o perceptivo, mas sim o posicionamento do indivíduo cego na sociedade.
Mais tarde perceberemos que a cegueira compromete a “visualidade”, o que não
necessariamente impede um cego de enxergar e compreender. A exclusão do indivíduo cego
na sociedade resulta em ônus para todas as partes e, segundo o mesmo autor, privar o cego
das experiências (principalmente no ambiente familiar) só acarreta em mais segmentação e
fortalecimento da imagem pejorativa do cego dentro do contexto social. (OLIVEIRA, 2002)
É também dentro do contexto social que o cego se defontra com as dificuldades
espaciais. A visão posiciona o indivíduo no espaço e dá a ele a concepção instantânea de uma
cena visual no tempo, de modo que em sua ausência o processo perceptivo torna sequencial a
experiência sensorial (SACKS, 2006).
Esta relação diferenciada com o espaço traz também uma experiência estética
específica dos cegos, tendo em vista que não existe por parte dos cegos a unificação espacial,
a percepção de um ambiente, por exemplo. Um cego pode tocar, cheirar, sentir um galho, mas
jamais terá a apreensão da árvore como unidade. Assim como no caso de elementos
configurativos, o cego percebe (pelo tato) primeiramente as partes e somente depois o todo.
Se estudos sobre a apreciação do belo regem que a unidade é responsável pelo prazer estético,
como acontece isso com os desprovidos de visão? Não existe experiência estética para os
cegos? Oliveira responde em sua obra, mostrando que “o princípio de unidade em meio à
variedade (que também pode ser entendido como harmonia, simetria, ordem) não é privativo
da visão. O mesmo princípio pode ser percebido pelo cego através do tato” (OLIVEIRA,
2002).
A criança cega
Por si só a condição infantil fascina pela amplitude de experiências relacionadas aos
sentidos. Condição esta que, após esta aproximação inicial com o tema, observarei nas
crianças cegas buscando algumas respostas para as dúvidas já levantadas. Saber como o
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projetar objetos pode interferir no universo desta criança é fundamental para o seu
desenvolvimento, crescimento e inserção no meio social.
É essa criança que se perceberá aos poucos no tempo, que terá contato com objetos,
com seu próprio corpo e, a partir daí construirá aos poucos seu universo de experiências. Em
seu desenvolvimento o estímulo perceptivo é importantíssimo, tendo em vista que qualquer
veto às experiências perceptivas pode prejudicar de maneira injustificável seu
desenvolvimento cognitivo, como nos coloca Oliveira (2002).
O mesmo ponto de vista é defendido pelo Dr. Thomas J. Weihs, que sugere por parte
dos terapeutas uma extração gradual dos conceitos temporais da criança para seus conceitos
espaciais, com o propósito de não inibir a exploração das experiências por conta da
insegurança desta criança no espaço (WEIHS, 1984). A exploração de ambientes deve-se dar
da mesma maneira, iniciando-se pelo quarto ou cômodo de uso frequente da criança cega,
para que mais tarde ela não se perca em ambientes maiores e sem suas costumeiras
referências.
Considerações finais
Após este levantamento de aspectos para a compreensão do universo perceptivo,
busca-se trazer para a atividade de design algumas reflexões quanto às experiências da criança
cega. Para ela, o antes e o depois são muito mais primários do que algo estar acima ou
abaixo, demonstrando a linearidade da experiência perceptiva. Nesta temática a maior
contribuição será por meio de observações e relatos, buscando ampliar este campo na área de
design. Cabe ao designer, na condição de conceber um objeto, considerar as reflexões aqui
estruturadas e avaliar a saliência de suas decisões, transferindo-se ao universo da cegueira
para propor alternativas condizentes de fato com as necessidades deste público.
Referências
INGS, Simon. O Olho: Uma história natural da visão. São Paulo: Larousse, 2008.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
OLIVEIRA, João Vicente Ganzarolli de. Do essencial invisível: Arte e beleza entre os cegos.
São Paulo: Revan, 2002. FAPERJ.
SACKS, Oliver. Um antropólogo em Marte. 2. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006.
SANTAELLA, Lúcia. A percepção: Uma teoria semiótica. 2. ed. São Paulo: Experimento,
1998.
SILVA, Sheila da; OLIVEIRA, Leonardo Ávila de; SANTOS, Rodrigo Gonçalves
Dos. Projeto de produto para cegos: uma contribuição do design. São Paulo: P & D Congresso Brasileiro de Pesquisa em Design, 2010.
WEIHS, Thomas J. Crianças que necessitam de cuidados especiais. São Paulo: Ed.
Antroposófica, 1984.
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