O NÃO RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA E A BANALIDADE
DO MAL COMO EXPRESÕES DO BULLYING
Pâmela Suélli da Motta Esteves
Professora Adjunta do Departamento de Educação da Uerj-Ffp
[email protected]
RESUMO
Bullying é um tipo de comportamento violento caracterizado por atitudes agressivas de todas as
formas, praticadas intencional e repetidamente, que ocorrem sem motivação evidente. Acredito
que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil está diretamente relacionado à
dificuldade dos estudantes em reconhecer suas próprias diferenças culturais e identitárias que
são construídas e reconstruídas no ambiente escolar. A meu juízo mesmo compreendendo o
bullying como um tipo específico de violência escolar relacionado a dificuldade que os
estudantes apresentam em reconhecer as diferenças, ainda assim a questão da motivação para a
ocorrência do bullying continua sem explicações racionáveis, pois não aceitar que o outro seja
diferente me parece insuficiente como justificativa para práticas de agressão, desrespeitos e
humilhações. Por isso, acredito que o não reconhecimento da diferença vem acompanhado de
uma maldade banal que Arendt (2011) descreve como um comportamento irreflexivo, sem
motivação significante e aparentemente comum. Ouso pensar que o bullying pode ser motivado
por um mal deste tipo, um mal sem sentido, sem profundidade, sem razões ou justificativas,
realizado por estudantes superficiais incapazes de pensar nos seus próprios atos e praticados
contra estudantes vistos como diferentes e inferiores. Nessa perspectiva, essa proposta
compreende o bullying dentro do contexto da intolerância em relação à diferença, mas também
como um comportamento maliciosamente banal, que entre crianças e adolescentes
provavelmente nasce da incapacidade de pensar e refletir sobre o significado e as consequências
de suas ações.
PALAVRAS-CHAVE: Bullying, diferença, banalidade do mal e reconhecimento
1- INTRODUÇÃO
Bullying é um termo de origem inglesa utilizado para descrever atos de violência
física ou psicológica que ocorre entre estudantes no espaço escolar. Para fins deste
estudo, o bullying é definido como atitudes agressivas de todas as formas, praticadas
intencional e repetidamente, que ocorrem sem motivação evidente, são adotadas por um
ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e são executadas dentro de
uma relação desigual de poder.
Acreditamos que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil e nos
demais países ocidentais está diretamente relacionado à dificuldade dos estudantes em
reconhecer suas próprias diferenças culturais e identitárias que são construídas e
reconstruídas no ambiente escolar. A dificuldade em reconhecer as diferenças é
estrutural, não se circunscreve apenas ao espaço escolar, e refere-se a uma mudança de
paradigma: fomos ensinados pelo projeto moderno do iluminismo que somos iguais e
devemos ser tratados igualitariamente. Mas, esse projeto tornou-se insuficiente diante
das reivindicações de uma sociedade multicultural que luta para tornar a diferença um
direito a ser reivindicado e positivamente reconhecido. É verdade que temos uma
humanidade em comum, afinal todos compartilhamos a dignidade humana, mas nossas
diferenças ganharam legitimidade e precisam ser reconhecidas. Diante desta nova
configuração, contraditoriamente, o bullying parece ter ganhado força.
A escola é uma das instituições onde o reflexo dessa mudança de paradigma é
expressiva. Como isso se configura na escola? Como os estudantes vivem em meio a uma
pluralidade de culturas, etnias e identidades? Qual o papel da escola diante das diferenças
que a desafiam cotidianamente?
Esse texto busca refletir sobre esses questionamentos iniciais. Para tanto, buscarei
investigar o que está por trás dos atos de bullying, ou seja, o que leva crianças e
adolescentes recorrerem a práticas agressivas, violentas e desrespeitosas em suas relações
escolares. Parto do pressuposto que o comportamento do bullying está relacionado a
dificuldade que os estudantes encontram em conviver com as diferenças que nos
constituem enquanto seres humanos1.
O Bullying como uma violência escolar singular
O bullying, enquanto um tipo específico de violência escolar começou a ser
estudado na década de 1970 na Suécia. A partir de 1990, na Noruega, o professor Dan
Olweus, pesquisador da Universidade de Bergen, começou a investigar o assunto a
partir de vários casos de suicídios ocorridos com adolescentes, todos praticados por
aqueles que sofriam agressões na escola.
Olweus (1994) elaborou os primeiros critérios para detectar quando os casos são
realmente bullying e diferenciou de interpretações errôneas como gozações isoladas,
incidentes, brincadeiras agressivas próprias do processo de amadurecimento de crianças
e adolescentes. Os seis critérios estabelecidos por Olweus (1994, p.236) são os
seguintes:
1) Ações repetitivas contra a mesma vítima; 2) Período prolongado de tempo. 3)
Desequilíbrio de poder entre o agressor e a vítima; 4) Dificuldade da vítima em se
defender; 5) Ausência de motivos que justifiquem os ataques. 6) Os atos de violência
ocorrem entre pares;
As pesquisas de Olweus (1994) repercutiram e a problemática do bullying logo
se transformou em uma agenda de pesquisa para intelectuais das ciências humanas e das
ciências da saúde. No entanto, os primeiros estudos sobre bullying escolar realizados no
Brasil, além de restritos à esfera municipal, apenas refletiam os trabalhos europeus
existentes até o momento.
1
Esse texto faz é um esforço teórico baseado em minha pesquisa de doutorado. A pesquisa correspondeu
a uma metodologia qualitativa de análise de 18 entrevistas direcionadas a estudantes e professores de uma
escola de grande porte da rede estadual do Rio de Janeiro. As entrevistas buscaram investigar o bullying
enquanto uma violencia escolar singular resultante da dificuldade em aceitar as diferenças e da
banalização da maldade.
A princípio irei trabalhar com o conceito de bullying elaborado por Olweus
(1994), pois não encontrei na revisão de literatura nenhum estudo com uma
conceituação que abarque a diversidade de casos de bullying já pesquisados. Creio que
o pioneiro estudo de Olweus (1994, p.64) permanece ainda a principal e mais completa
referencia para a investigação do bullying.
O bullying compreende todas as atitudes agressivas,
intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação
evidente, adotadas por um ou mais estudante contra
outro(s), causando dor e angústia, sendo executadas
dentro de uma relação desigual de poder.
Acredito que um dos motivos para a prática do bullying é a dificuldade que os
estudantes encontram em reconhecer as diferenças, por isso é importante compreender
qual o papel que o reconhecimento social possui no processo de construção de
identidades individuais e culturais. Em última instância, para o propósito desse texto o
importante é investigar o que está por trás desse tipo de violência escolar.
Os caminhos Charles Taylor: em busca do reconhecimento social das diferenças
O reconhecimento é vital para a identidade, pois permite o fortalecimento das
escolhas e decisões que caracterizam as relações intersubjetivas. Negar o reconhecimento
da identidade ou atribuir um reconhecimento negativo porque esta apresenta-se como
diferente do padrão dominante significa contribuir para a destruição desta identidade. Um
exemplo histórico da noção de inferioridade produzida pelo não-reconhecimento consiste
no caso dos negros: por gerações a sociedade projetou uma imagem depreciativa sobre
negros, mulheres e homossexuais que, diante da força da imagem depreciativa tiveram
grandes dificuldades de resistência. Nesse sentido, a auto-depreciação desses grupos vem
sendo um dos mais fortes instrumentos de sua opressão. Nessa perspectiva de análise, o
reconhecimento errôneo não significa meramente faltar com respeito, podendo ainda infligir
uma ferida, criando em suas vítimas um ódio por si mesmas, e o sentimento de
inadaptabilidade a esse mundo. O devido reconhecimento não deve ser entendido como
benefício às pessoas, trata-se de uma necessidade humana vital.
Recorrendo a história, Taylor (1997) buscou compreender o processo de
desenvolvimento da identidade moderna a fim de identificar em que momento ocorreu a
mudança de paradigma que tornou a diferença um direito humano que exige
reconhecimento social. Em sua análise hermenêutica sobre os elementos de constituição
da identidade moderna realizada em As fontes do self, Taylor (1997) argumenta que
várias de nossas “intuições morais” (que estão ligadas à noção de avaliações fortes)
estão enraizadas em nossa maneira de definirmos nossa própria identidade, como, por
exemplo, o “respeito à vida, à integridade, ao bem-estar e também à prosperidade dos
outros” que estão unidos quase sempre a uma perspectiva que leva em conta uma dada
ontologia do ser humano.
Isto explicaria porque um objeto é digno ou não de nossa aceitação moral, como
objetos adequados de nosso respeito e estima. Taylor (1997, p. 35,36) explica, segundo
sua teoria das avaliações fortes, que parte de nossos desejos e aspirações estão
associados a uma determinada “configuração moral” que funciona como paradigma de
avaliação de nossos desejos e das ações deles decorrentes. Estas “configurações”
permitem discriminar uma hierarquia de bens e até formular uma idéia de “hiperbens”,
aqueles que temos maior apreço e que não abrimos mão em nossas decisões. Estes
hiperbens não dependem do indivíduo em si mesmo, mas já estão postos pelas formas
avaliativas na cultura de determinada comunidade:
As avaliações fortes são imprescindíveis para a constituição de nossa narrativa
pessoal, ou seja, são responsáveis pela maneira como nos autocompreendemos e
compreendemos os outros. Mas como recebemos as configurações morais pelas quais
orientamos nossas vidas e que utilizamos como elementos essenciais para definir nossa
identidade? Só podemos nos auto-compreender e compreender os outros pela dimensão
inerentemente expressivista, do agir humano. E para Taylor, o homem é um ser que se
expressa pela linguagem. É através dela que os indivíduos se relacionam uns com os outros
em sociedade. Mas, a própria linguagem só se adquire pelo intercâmbio do homem com
outros em sociedade.
Com base na argumentação da característica essencial da linguagem dos seres
humanos, que lhes constitui como seres de diálogo, Taylor (2000) argumenta que a
noção contemporânea da individualidade, que esconde por trás de si um ideal moral de
autenticidade (isto é, o sujeito tendo que ser fiel a si mesmo na busca de sua autorealização e auto-definição), só poderá ser plenamente realizada se houver um vínculo
com o estabelecimento e realização da categoria do reconhecimento no plano social e
político. Isto porque, segundo Taylor (2000), o indivíduo só chega a definir sua
identidade por meio do diálogo com outros membros da sua sociedade, com aquilo que
essas outras pessoas de sua comunidade esperam dele e, às vezes, até em luta contra as
expectativas do outros sobre ele.
É importante indagar os processos históricos que permitiram a construção da
noção contemporânea de individualidade, pois, é o ideal moral de autenticidade que está
por trás da noção de individualidade que propiciou a ideia de reconhecimento da
diferença. Ao estudar o processo de formação da identidade moderna, Taylor (2000)
argumenta que após a queda da sociedade tradicional e hierárquica, denominada pelos
historiadores de Antigo Regime, o movimento iluminista e a Revolução Francesa
construíram uma nova compreensão da identidade individual que Taylor conceituou
como um novo ideal de “autenticidade”. Trata-se de uma identidade particular a mim,
que sempre esteve presente em minhas ações, mas que foi impedida de se concretizar
devido a estrutura rígida e estamental que caracterizou as sociedades do Antigo Regime.
Quando essa estrutura começou a enfraquecer, novos valores foram construídos e no
lugar da exclusão implantou-se a igualdade, e assim o ideal de dignidade humana
nasceu. Essa nova sociedade trouxe para identidade um sentimento de individualidade
que cada ser humano pode descobrir em si mesmo, que diz respeito a uma maneira
particular de ser.
Contudo, para Taylor (2000) a descoberta de minha identidade não significa uma
produção de mim mesmo em um isolamento íntimo. Implica que há uma negociação
dialógica, entre eu e o outro, que acarreta que o ideal da identidade surgido na
modernidade leva, em primeiro plano, à importância do reconhecimento, ou seja, a
minha própria identidade é dependente de minhas relações dialógicas com os outros
(Taylor, 2000, p. 248).
Na visão de Taylor (2000), a importância do reconhecimento é agora
universalmente reconhecida e vem à tona em debates atuais sobre o multiculturalismo, a
luta das feministas e dos movimentos anti-racistas e, também, na luta de países do
Terceiro Mundo na busca de desenvolvimento e reconhecimento de suas identidades e
autonomia enquanto nações soberanas. Dada a ligação intrínseca já ressaltada entre
identidade (que como vimos, envolve um ideal moral de autenticidade) e
reconhecimento, passemos à análise da idéia de uma política do reconhecimento na
visão do filósofo canadense.
Para Taylor (2000), o discurso do reconhecimento tornou-se hoje lugar comum
em dois níveis. Primeiro, na esfera íntima que diz respeito à formação de nossa
identidade (Self), que como vimos mais acima, implica numa constituição dialógica com
outros membros de minha comunidade. Em segundo lugar o reconhecimento aparece na
esfera pública na luta por direitos iguais entre os povos, na luta dos grupos minoritários
contra a discriminação e na militância das feministas.
Taylor (2000) discute que a noção moderna de reconhecimento põe em relevo a
estrutura dialógica dos processos de constituição da identidade humana. Esta estrutura
tem
sido
negligenciada
pela
filosofia
contemporânea,
dado
seu
caráter
fundamentalmente monológico. Esta filosofia, que está centrada na noção de dignidade
(diante do desgaste da ideia de honra que pertencia às sociedades tradicionais) tem
desenvolvido uma política do universalismo da igualdade entre todas as pessoas.
A dignidade enquanto valor moral legítimo produziu no imaginário social a
política do universalismo, cujo significado é o respeito igual a todos os cidadãos e a
equalização dos direitos. O desfecho desse rol de transformações em que o princípio de
cidadania adquiriu aceitação universal implantou uma nova agenda de discussões sobre
os direitos humanos.
Em contrapartida, o processo de formação da identidade moderna também
conduziu a uma política da diferença. O ideal de autenticidade que Taylor (2000)
traduziu como o ser fiel a mim mesmo atinge um sentido pragmático quando postula que
todos devem ter reconhecida a sua identidade peculiar. A política da diferença está
fundada na necessidade de reconhecermos as particularidades de um indivíduo ou grupo
e os valores e as escolhas que os distinguem dos outros. Trata-se de garantir que todas
as identidades possam se desenvolver sem serem assimiladas ou incorporadas a uma
identidade dominante.
A política da diferença, diante da discriminação histórica de grupos minoritários
ou marginalizados, prega que não é possível um ideal de igualdade universal dado as
discrepâncias sociais e econômicas nas quais nos encontramos, o que implica que os
grupos desfavorecidos historicamente lutam com desvantagens frente aos grupos
dominantes. Entre aqueles que defendem a política da diferença estão os que apregoam
políticas de discriminação reversa oferecendo às pessoas de grupos marginalizados
oportunidades mais favoráveis ao ingresso em Universidades ou em vagas para emprego
tal como preconizado nas políticas de cota.
Na opinião de Taylor (2000), as duas políticas acima mencionadas se forem
defendidas de forma unilateral, não resolvem os problemas que permeiam nossa
sociedade contemporânea. Tal unilateralidade das duas posturas políticas não consegue
articular os elementos constitutivos de valor que subjaz cada uma delas.
É diante desse impasse que Taylor (2000) propõe uma política do
reconhecimento, com o objetivo de atender as demandas que dizem respeito ao ideal de
igualdade das democracias modernas e ao reconhecimento das idiossincrasias e
especificidades das várias tradições culturais e das múltiplas formas de identidades
constituídas historicamente. A política do reconhecimento evitaria o perigo de cairmos
num universalismo da dignidade fundado apenas no direito, que pode mascarar
diferenças e explorações que subjazem nossas sociedades. A política do reconhecimento
se traduz no compromisso de lutar por uma igualdade interessada nas diferenças que nos
constituem como seres humanos.
Portanto, podemos afirmar sem receios que o ideal de autenticidade justifica o
reconhecimento da diferença. Em outras palavras, os atributos que o indivíduo descobre
em si mesmo e que o diferencia dos outros ao seu redor são sentidos por esse indivíduo
como dignos de serem reconhecidos e validados em suas relações intersubjetivas. A
negação desse tipo de reconhecimento constitui um pecado capital a autenticidade e, a
auto-realização dessa identidade e por vezes, pode acarretar muito sofrimento a sua
existência.
Quando o bullying se torna um comportamento recorrente na escola, a
identidade singular daqueles que são alvos das agressões recebe um reconhecimento
negativo, a auto-realização desses estudantes é abalada inviabilizando que a
autenticidade se desenvolva. O bullying não é inadmissível somente pela violência com
que é praticado, mas principalmente porque esse tipo de comportamento destrói a
possibilidade do individuo descobrir e ter valorizada sua própria identidade. Em última
instância o bullying pode contribuir para o fracasso das relações intersubjetivas e para
aqueles que são os autores das agressões o risco é ainda mais complexo, pois estes
podem construir uma identidade fundamentada no desrespeito, na ofensa e em práticas
discriminatórias.
Dessa forma, podemos afirmar que o bullying é um comportamento intolerável
capaz de aniquilar o reconhecimento social das diferenças que nos constituem. A partir
desta constatação a proposta multiculturalista de Charles Taylor (1997), de uma política
do reconhecimento das diferenças nos parece um caminho viável para pensarmos uma
intervenção no bullying. Ao insistir na importância do reconhecimento social para as
nossas relações dialógicas a teoria de Taylor nos ajuda a compreender quais são as
consequências que o bullying acarreta para a identidade e para as relações
intersubjetivas que se configuram no espaço escolar.
Ouso afirmar que o bullying nasce da ausência do reconhecimento da diferença,
porém acredito que a atitude de não aceitar a diferença é racionalmente insuficiente para
justificar práticas de violência tão cruéis como o bullying, por isso a fim de
compreender melhor os fatores que estão por trás desse tipo de comportamento aposto
nas contribuições de Arendt (1999) com o estudo sobre a banalidade do mal.
Os caminhos de Hannah Arendt: o bullying como um mal banal
O tema do mal em Arendt (1999), não tem como pano de fundo a malignidade, a
perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em
evidenciar que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista
da destruição e da morte, sem qualquer tipo de motivação maligna. O mal investigado
por Arendt (1999) não é oriundo de nenhum tipo de sentimento de vingança, ódio,
retaliação ou represália, o pano de fundo da argumentação proposta pela autora é o
processo de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza ocorrido com a
massificação, a industrialização e a tecnificação das decisões e das organizações
humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, em uma perspectiva
ético-política.
Em Origens do Totalitarismo, o tema do mal aparece dentro da reflexão kantiana
sobre o mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na
natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre.
Dessa forma, o mal não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a
partir da interação e da reação das faculdades espirituais humanas às suas
circunstâncias. O mal no pensamento kantiano é radical, pois trata-se de uma espécie de
rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao uso dos seres humanos como
meios, instrumentos, e não fim em si mesmo.
A questão do mal retorna às preocupações de Arendt (1999) quando ela aceita o
convite de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann
ocorrido em Jerusalém, em 1962. Eichmann foi o principal responsável pelo envio dos
judeus aos campos de concentração. Em todos os relatos de Arendt (1999), verificamos
uma profunda perplexidade com a forma de Eichmann falar das suas atividades como
carrasco nazista. Ele usava clichês, palavras de ordens e a moral da obrigação do bom
funcionário para justificar o seu comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia
ser enquadrado como criminoso, pois apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever.
Eichmann era um ser humano normal, um bom pai de família, não possuía nenhum ódio
ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de transgredir ou por qualquer outro
tipo de maldade.
Ao conhecer o caso Eichmann, Arendt descobre um novo tipo de mal, um mal
sem relação com a maldade e por isso, banal. Trata-se do mal como causa do mal, pois
não tem outro fundamento. O praticante do mal banal não pensa sobre a culpa, ele age
semelhante a uma engrenagem maquinaria do mal, não há profundidade em seus
argumentos, suas práticas apontam para ações racionais, mas sem justificativas
socialmente coerentes.
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca
a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a
uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age
como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos
acontecimentos ao seu redor.
O praticante do mal banal renuncia à capacidade
pertencente aos humanos de mudar o curso das ações
rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete
heteronomamente o seu comportamento. Não se
reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e
começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar
aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e
sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros.
Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em
suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das
suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar
(AGUIAR, 2010 p.16).
Ao relacionar o mal ao vazio do pensamento, Arendt (1999) aponta para uma
possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Por isso, a partir
dos estudos de Arendt podemos arriscar afirmar que nas sociedades atuais, o mal
realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra aqueles
que são diferentes: os apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros,
idosos, homossexuais, orientais.... Todos aqueles que por suas diferenças são tratados
com intolerância e discriminação.
A meu juízo o bullying acontece pela dificuldade que os estudantes encontram
em conviver com as diferenças que desafiam a escola, mas acredito que as agressões são
caracterizadas por um tipo de mal banal, um conjunto de ações maldosas decorrente da
intolerância com a diferença que permeia as relações sociais dentro do ambiente escolar.
Um tipo específico de violência escolar onde o emprego do mal banal corresponde à
intolerância e à discriminação diante da diferença, quando está incomoda simplesmente
por existir. Os estudantes autores de práticas de bullying enxergam suas vítimas de
modo superficial e leviano e consideram que por serem diferentes merecem ser tratadas
de modo desrespeitoso. Contudo, mais uma vez é importante destacar que os estudantes
autores do bullying não podem ser individualmente responsabilizados por praticarem o
mal banal, pois esses estudantes estão imersos em uma sociedade que naturalizou a
violência, que tornou a discriminação uma prática social e que encontra dificuldades em
ensinar os jovens a valorizar o respeito e a tolerância em suas relações sociais.
Dentro desse cenário o que é mais espantoso é que não conseguimos encontrar
motivos significantes que justifiquem o bullying. Todas as pesquisas analisadas na
revisão de literatura afirmam a falta de motivação como uma característica do bullying,
fica então uma lacuna em relação ao que leva crianças e adolescentes a se
desrespeitarem cotidianamente. Buscando compreender o que está por trás da prática do
bullying, penso que talvez o mal presente nesse tipo de comportamento pode estar
relacionado à ausência de pensamento e de reflexão que por parte daqueles estudantes
que encontram dificuldades em reconhecer a diferença e que lidam com essa dificuldade
recorrendo a atitudes de violência, ofensa e discriminação. Assim como Arendt (1999),
acredito que o solitário ato de pensar realiza-se como um vento forte que desarruma
todas as nossas certezas e nos faz refletir antes de julgar.
Fica, então, a questão de como educar para o pensamento e para a reflexão?
Qual seria o primeiro passo pedagógico em direção a uma educação intercultural,
promovedora do respeito às diferenças, do combate ao bullying e da valorização dos
direitos humanos?
O reconhecimento das diferenças é vital à identidade, como afirmam Taylor
(2000) e Honneth (2001), mas para que esse reconhecimento se efetive é preciso educar
as crianças e os adolescentes para a compreensão da tolerância como um valor ético e
uma atitude social. Uma educação que valoriza o pensamento e a reflexão defende a
tolerância como uma perspectiva de ação moral diante das intolerâncias, injustiças,
discriminações e violências.
Educar para tolerância adultos que atiram uns nos outros
por motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Tarde
demais. A intolerância selvagem deve ser, portanto,
combatida em suas raízes, através de uma educação
constante que tem início na mais tenra infância, antes que
possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma
casca comportamental espessa e dura demais (Eco, 2001
p. 198).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse texto, procurei investigar as interseções entre o multiculturalismo e as
práticas de bullying, afirmei que este último é reflexo da incapacidade que os alunos
apresentam em aceitar as diferenças que se instauraram no ambiente escolar. Como
possibilidades analíticas para o entendimento dessa problemática apresentei a política
do reconhecimento social de Charles Taylor e o conceito de banalidade do mal de
Hannah Arendt. Concluo defendendo que o comportamento bullying é intolerável no
ambiente escolar e que sua emergência está relacionada a dois fatores: 1- a dificuldade
que os estudantes apresentam em conviver com a diferença e 2- o mal banal, sem
sentido e sem justificativas que caracterizam o bullying é resultado da inaptidão dos
estudantes em pensar e refletir suas próprias ações. A partir desses dois fatores aposto
no conceito de tolerância como um valor-atitude e um caminho para a construção de
uma educação intercultural compatível com a atual sociedade multicultural que estamos
construindo.
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