O NÃO RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA E A BANALIDADE DO MAL COMO EXPRESÕES DO BULLYING Pâmela Suélli da Motta Esteves Professora Adjunta do Departamento de Educação da Uerj-Ffp [email protected] RESUMO Bullying é um tipo de comportamento violento caracterizado por atitudes agressivas de todas as formas, praticadas intencional e repetidamente, que ocorrem sem motivação evidente. Acredito que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil está diretamente relacionado à dificuldade dos estudantes em reconhecer suas próprias diferenças culturais e identitárias que são construídas e reconstruídas no ambiente escolar. A meu juízo mesmo compreendendo o bullying como um tipo específico de violência escolar relacionado a dificuldade que os estudantes apresentam em reconhecer as diferenças, ainda assim a questão da motivação para a ocorrência do bullying continua sem explicações racionáveis, pois não aceitar que o outro seja diferente me parece insuficiente como justificativa para práticas de agressão, desrespeitos e humilhações. Por isso, acredito que o não reconhecimento da diferença vem acompanhado de uma maldade banal que Arendt (2011) descreve como um comportamento irreflexivo, sem motivação significante e aparentemente comum. Ouso pensar que o bullying pode ser motivado por um mal deste tipo, um mal sem sentido, sem profundidade, sem razões ou justificativas, realizado por estudantes superficiais incapazes de pensar nos seus próprios atos e praticados contra estudantes vistos como diferentes e inferiores. Nessa perspectiva, essa proposta compreende o bullying dentro do contexto da intolerância em relação à diferença, mas também como um comportamento maliciosamente banal, que entre crianças e adolescentes provavelmente nasce da incapacidade de pensar e refletir sobre o significado e as consequências de suas ações. PALAVRAS-CHAVE: Bullying, diferença, banalidade do mal e reconhecimento 1- INTRODUÇÃO Bullying é um termo de origem inglesa utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica que ocorre entre estudantes no espaço escolar. Para fins deste estudo, o bullying é definido como atitudes agressivas de todas as formas, praticadas intencional e repetidamente, que ocorrem sem motivação evidente, são adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e são executadas dentro de uma relação desigual de poder. Acreditamos que o alto índice dos casos de bullying encontrados no Brasil e nos demais países ocidentais está diretamente relacionado à dificuldade dos estudantes em reconhecer suas próprias diferenças culturais e identitárias que são construídas e reconstruídas no ambiente escolar. A dificuldade em reconhecer as diferenças é estrutural, não se circunscreve apenas ao espaço escolar, e refere-se a uma mudança de paradigma: fomos ensinados pelo projeto moderno do iluminismo que somos iguais e devemos ser tratados igualitariamente. Mas, esse projeto tornou-se insuficiente diante das reivindicações de uma sociedade multicultural que luta para tornar a diferença um direito a ser reivindicado e positivamente reconhecido. É verdade que temos uma humanidade em comum, afinal todos compartilhamos a dignidade humana, mas nossas diferenças ganharam legitimidade e precisam ser reconhecidas. Diante desta nova configuração, contraditoriamente, o bullying parece ter ganhado força. A escola é uma das instituições onde o reflexo dessa mudança de paradigma é expressiva. Como isso se configura na escola? Como os estudantes vivem em meio a uma pluralidade de culturas, etnias e identidades? Qual o papel da escola diante das diferenças que a desafiam cotidianamente? Esse texto busca refletir sobre esses questionamentos iniciais. Para tanto, buscarei investigar o que está por trás dos atos de bullying, ou seja, o que leva crianças e adolescentes recorrerem a práticas agressivas, violentas e desrespeitosas em suas relações escolares. Parto do pressuposto que o comportamento do bullying está relacionado a dificuldade que os estudantes encontram em conviver com as diferenças que nos constituem enquanto seres humanos1. O Bullying como uma violência escolar singular O bullying, enquanto um tipo específico de violência escolar começou a ser estudado na década de 1970 na Suécia. A partir de 1990, na Noruega, o professor Dan Olweus, pesquisador da Universidade de Bergen, começou a investigar o assunto a partir de vários casos de suicídios ocorridos com adolescentes, todos praticados por aqueles que sofriam agressões na escola. Olweus (1994) elaborou os primeiros critérios para detectar quando os casos são realmente bullying e diferenciou de interpretações errôneas como gozações isoladas, incidentes, brincadeiras agressivas próprias do processo de amadurecimento de crianças e adolescentes. Os seis critérios estabelecidos por Olweus (1994, p.236) são os seguintes: 1) Ações repetitivas contra a mesma vítima; 2) Período prolongado de tempo. 3) Desequilíbrio de poder entre o agressor e a vítima; 4) Dificuldade da vítima em se defender; 5) Ausência de motivos que justifiquem os ataques. 6) Os atos de violência ocorrem entre pares; As pesquisas de Olweus (1994) repercutiram e a problemática do bullying logo se transformou em uma agenda de pesquisa para intelectuais das ciências humanas e das ciências da saúde. No entanto, os primeiros estudos sobre bullying escolar realizados no Brasil, além de restritos à esfera municipal, apenas refletiam os trabalhos europeus existentes até o momento. 1 Esse texto faz é um esforço teórico baseado em minha pesquisa de doutorado. A pesquisa correspondeu a uma metodologia qualitativa de análise de 18 entrevistas direcionadas a estudantes e professores de uma escola de grande porte da rede estadual do Rio de Janeiro. As entrevistas buscaram investigar o bullying enquanto uma violencia escolar singular resultante da dificuldade em aceitar as diferenças e da banalização da maldade. A princípio irei trabalhar com o conceito de bullying elaborado por Olweus (1994), pois não encontrei na revisão de literatura nenhum estudo com uma conceituação que abarque a diversidade de casos de bullying já pesquisados. Creio que o pioneiro estudo de Olweus (1994, p.64) permanece ainda a principal e mais completa referencia para a investigação do bullying. O bullying compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudante contra outro(s), causando dor e angústia, sendo executadas dentro de uma relação desigual de poder. Acredito que um dos motivos para a prática do bullying é a dificuldade que os estudantes encontram em reconhecer as diferenças, por isso é importante compreender qual o papel que o reconhecimento social possui no processo de construção de identidades individuais e culturais. Em última instância, para o propósito desse texto o importante é investigar o que está por trás desse tipo de violência escolar. Os caminhos Charles Taylor: em busca do reconhecimento social das diferenças O reconhecimento é vital para a identidade, pois permite o fortalecimento das escolhas e decisões que caracterizam as relações intersubjetivas. Negar o reconhecimento da identidade ou atribuir um reconhecimento negativo porque esta apresenta-se como diferente do padrão dominante significa contribuir para a destruição desta identidade. Um exemplo histórico da noção de inferioridade produzida pelo não-reconhecimento consiste no caso dos negros: por gerações a sociedade projetou uma imagem depreciativa sobre negros, mulheres e homossexuais que, diante da força da imagem depreciativa tiveram grandes dificuldades de resistência. Nesse sentido, a auto-depreciação desses grupos vem sendo um dos mais fortes instrumentos de sua opressão. Nessa perspectiva de análise, o reconhecimento errôneo não significa meramente faltar com respeito, podendo ainda infligir uma ferida, criando em suas vítimas um ódio por si mesmas, e o sentimento de inadaptabilidade a esse mundo. O devido reconhecimento não deve ser entendido como benefício às pessoas, trata-se de uma necessidade humana vital. Recorrendo a história, Taylor (1997) buscou compreender o processo de desenvolvimento da identidade moderna a fim de identificar em que momento ocorreu a mudança de paradigma que tornou a diferença um direito humano que exige reconhecimento social. Em sua análise hermenêutica sobre os elementos de constituição da identidade moderna realizada em As fontes do self, Taylor (1997) argumenta que várias de nossas “intuições morais” (que estão ligadas à noção de avaliações fortes) estão enraizadas em nossa maneira de definirmos nossa própria identidade, como, por exemplo, o “respeito à vida, à integridade, ao bem-estar e também à prosperidade dos outros” que estão unidos quase sempre a uma perspectiva que leva em conta uma dada ontologia do ser humano. Isto explicaria porque um objeto é digno ou não de nossa aceitação moral, como objetos adequados de nosso respeito e estima. Taylor (1997, p. 35,36) explica, segundo sua teoria das avaliações fortes, que parte de nossos desejos e aspirações estão associados a uma determinada “configuração moral” que funciona como paradigma de avaliação de nossos desejos e das ações deles decorrentes. Estas “configurações” permitem discriminar uma hierarquia de bens e até formular uma idéia de “hiperbens”, aqueles que temos maior apreço e que não abrimos mão em nossas decisões. Estes hiperbens não dependem do indivíduo em si mesmo, mas já estão postos pelas formas avaliativas na cultura de determinada comunidade: As avaliações fortes são imprescindíveis para a constituição de nossa narrativa pessoal, ou seja, são responsáveis pela maneira como nos autocompreendemos e compreendemos os outros. Mas como recebemos as configurações morais pelas quais orientamos nossas vidas e que utilizamos como elementos essenciais para definir nossa identidade? Só podemos nos auto-compreender e compreender os outros pela dimensão inerentemente expressivista, do agir humano. E para Taylor, o homem é um ser que se expressa pela linguagem. É através dela que os indivíduos se relacionam uns com os outros em sociedade. Mas, a própria linguagem só se adquire pelo intercâmbio do homem com outros em sociedade. Com base na argumentação da característica essencial da linguagem dos seres humanos, que lhes constitui como seres de diálogo, Taylor (2000) argumenta que a noção contemporânea da individualidade, que esconde por trás de si um ideal moral de autenticidade (isto é, o sujeito tendo que ser fiel a si mesmo na busca de sua autorealização e auto-definição), só poderá ser plenamente realizada se houver um vínculo com o estabelecimento e realização da categoria do reconhecimento no plano social e político. Isto porque, segundo Taylor (2000), o indivíduo só chega a definir sua identidade por meio do diálogo com outros membros da sua sociedade, com aquilo que essas outras pessoas de sua comunidade esperam dele e, às vezes, até em luta contra as expectativas do outros sobre ele. É importante indagar os processos históricos que permitiram a construção da noção contemporânea de individualidade, pois, é o ideal moral de autenticidade que está por trás da noção de individualidade que propiciou a ideia de reconhecimento da diferença. Ao estudar o processo de formação da identidade moderna, Taylor (2000) argumenta que após a queda da sociedade tradicional e hierárquica, denominada pelos historiadores de Antigo Regime, o movimento iluminista e a Revolução Francesa construíram uma nova compreensão da identidade individual que Taylor conceituou como um novo ideal de “autenticidade”. Trata-se de uma identidade particular a mim, que sempre esteve presente em minhas ações, mas que foi impedida de se concretizar devido a estrutura rígida e estamental que caracterizou as sociedades do Antigo Regime. Quando essa estrutura começou a enfraquecer, novos valores foram construídos e no lugar da exclusão implantou-se a igualdade, e assim o ideal de dignidade humana nasceu. Essa nova sociedade trouxe para identidade um sentimento de individualidade que cada ser humano pode descobrir em si mesmo, que diz respeito a uma maneira particular de ser. Contudo, para Taylor (2000) a descoberta de minha identidade não significa uma produção de mim mesmo em um isolamento íntimo. Implica que há uma negociação dialógica, entre eu e o outro, que acarreta que o ideal da identidade surgido na modernidade leva, em primeiro plano, à importância do reconhecimento, ou seja, a minha própria identidade é dependente de minhas relações dialógicas com os outros (Taylor, 2000, p. 248). Na visão de Taylor (2000), a importância do reconhecimento é agora universalmente reconhecida e vem à tona em debates atuais sobre o multiculturalismo, a luta das feministas e dos movimentos anti-racistas e, também, na luta de países do Terceiro Mundo na busca de desenvolvimento e reconhecimento de suas identidades e autonomia enquanto nações soberanas. Dada a ligação intrínseca já ressaltada entre identidade (que como vimos, envolve um ideal moral de autenticidade) e reconhecimento, passemos à análise da idéia de uma política do reconhecimento na visão do filósofo canadense. Para Taylor (2000), o discurso do reconhecimento tornou-se hoje lugar comum em dois níveis. Primeiro, na esfera íntima que diz respeito à formação de nossa identidade (Self), que como vimos mais acima, implica numa constituição dialógica com outros membros de minha comunidade. Em segundo lugar o reconhecimento aparece na esfera pública na luta por direitos iguais entre os povos, na luta dos grupos minoritários contra a discriminação e na militância das feministas. Taylor (2000) discute que a noção moderna de reconhecimento põe em relevo a estrutura dialógica dos processos de constituição da identidade humana. Esta estrutura tem sido negligenciada pela filosofia contemporânea, dado seu caráter fundamentalmente monológico. Esta filosofia, que está centrada na noção de dignidade (diante do desgaste da ideia de honra que pertencia às sociedades tradicionais) tem desenvolvido uma política do universalismo da igualdade entre todas as pessoas. A dignidade enquanto valor moral legítimo produziu no imaginário social a política do universalismo, cujo significado é o respeito igual a todos os cidadãos e a equalização dos direitos. O desfecho desse rol de transformações em que o princípio de cidadania adquiriu aceitação universal implantou uma nova agenda de discussões sobre os direitos humanos. Em contrapartida, o processo de formação da identidade moderna também conduziu a uma política da diferença. O ideal de autenticidade que Taylor (2000) traduziu como o ser fiel a mim mesmo atinge um sentido pragmático quando postula que todos devem ter reconhecida a sua identidade peculiar. A política da diferença está fundada na necessidade de reconhecermos as particularidades de um indivíduo ou grupo e os valores e as escolhas que os distinguem dos outros. Trata-se de garantir que todas as identidades possam se desenvolver sem serem assimiladas ou incorporadas a uma identidade dominante. A política da diferença, diante da discriminação histórica de grupos minoritários ou marginalizados, prega que não é possível um ideal de igualdade universal dado as discrepâncias sociais e econômicas nas quais nos encontramos, o que implica que os grupos desfavorecidos historicamente lutam com desvantagens frente aos grupos dominantes. Entre aqueles que defendem a política da diferença estão os que apregoam políticas de discriminação reversa oferecendo às pessoas de grupos marginalizados oportunidades mais favoráveis ao ingresso em Universidades ou em vagas para emprego tal como preconizado nas políticas de cota. Na opinião de Taylor (2000), as duas políticas acima mencionadas se forem defendidas de forma unilateral, não resolvem os problemas que permeiam nossa sociedade contemporânea. Tal unilateralidade das duas posturas políticas não consegue articular os elementos constitutivos de valor que subjaz cada uma delas. É diante desse impasse que Taylor (2000) propõe uma política do reconhecimento, com o objetivo de atender as demandas que dizem respeito ao ideal de igualdade das democracias modernas e ao reconhecimento das idiossincrasias e especificidades das várias tradições culturais e das múltiplas formas de identidades constituídas historicamente. A política do reconhecimento evitaria o perigo de cairmos num universalismo da dignidade fundado apenas no direito, que pode mascarar diferenças e explorações que subjazem nossas sociedades. A política do reconhecimento se traduz no compromisso de lutar por uma igualdade interessada nas diferenças que nos constituem como seres humanos. Portanto, podemos afirmar sem receios que o ideal de autenticidade justifica o reconhecimento da diferença. Em outras palavras, os atributos que o indivíduo descobre em si mesmo e que o diferencia dos outros ao seu redor são sentidos por esse indivíduo como dignos de serem reconhecidos e validados em suas relações intersubjetivas. A negação desse tipo de reconhecimento constitui um pecado capital a autenticidade e, a auto-realização dessa identidade e por vezes, pode acarretar muito sofrimento a sua existência. Quando o bullying se torna um comportamento recorrente na escola, a identidade singular daqueles que são alvos das agressões recebe um reconhecimento negativo, a auto-realização desses estudantes é abalada inviabilizando que a autenticidade se desenvolva. O bullying não é inadmissível somente pela violência com que é praticado, mas principalmente porque esse tipo de comportamento destrói a possibilidade do individuo descobrir e ter valorizada sua própria identidade. Em última instância o bullying pode contribuir para o fracasso das relações intersubjetivas e para aqueles que são os autores das agressões o risco é ainda mais complexo, pois estes podem construir uma identidade fundamentada no desrespeito, na ofensa e em práticas discriminatórias. Dessa forma, podemos afirmar que o bullying é um comportamento intolerável capaz de aniquilar o reconhecimento social das diferenças que nos constituem. A partir desta constatação a proposta multiculturalista de Charles Taylor (1997), de uma política do reconhecimento das diferenças nos parece um caminho viável para pensarmos uma intervenção no bullying. Ao insistir na importância do reconhecimento social para as nossas relações dialógicas a teoria de Taylor nos ajuda a compreender quais são as consequências que o bullying acarreta para a identidade e para as relações intersubjetivas que se configuram no espaço escolar. Ouso afirmar que o bullying nasce da ausência do reconhecimento da diferença, porém acredito que a atitude de não aceitar a diferença é racionalmente insuficiente para justificar práticas de violência tão cruéis como o bullying, por isso a fim de compreender melhor os fatores que estão por trás desse tipo de comportamento aposto nas contribuições de Arendt (1999) com o estudo sobre a banalidade do mal. Os caminhos de Hannah Arendt: o bullying como um mal banal O tema do mal em Arendt (1999), não tem como pano de fundo a malignidade, a perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da morte, sem qualquer tipo de motivação maligna. O mal investigado por Arendt (1999) não é oriundo de nenhum tipo de sentimento de vingança, ódio, retaliação ou represália, o pano de fundo da argumentação proposta pela autora é o processo de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, em uma perspectiva ético-política. Em Origens do Totalitarismo, o tema do mal aparece dentro da reflexão kantiana sobre o mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal no pensamento kantiano é radical, pois trata-se de uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao uso dos seres humanos como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo. A questão do mal retorna às preocupações de Arendt (1999) quando ela aceita o convite de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em Jerusalém, em 1962. Eichmann foi o principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de concentração. Em todos os relatos de Arendt (1999), verificamos uma profunda perplexidade com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês, palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, um bom pai de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade. Ao conhecer o caso Eichmann, Arendt descobre um novo tipo de mal, um mal sem relação com a maldade e por isso, banal. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro fundamento. O praticante do mal banal não pensa sobre a culpa, ele age semelhante a uma engrenagem maquinaria do mal, não há profundidade em seus argumentos, suas práticas apontam para ações racionais, mas sem justificativas socialmente coerentes. O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar (AGUIAR, 2010 p.16). Ao relacionar o mal ao vazio do pensamento, Arendt (1999) aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Por isso, a partir dos estudos de Arendt podemos arriscar afirmar que nas sociedades atuais, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra aqueles que são diferentes: os apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, idosos, homossexuais, orientais.... Todos aqueles que por suas diferenças são tratados com intolerância e discriminação. A meu juízo o bullying acontece pela dificuldade que os estudantes encontram em conviver com as diferenças que desafiam a escola, mas acredito que as agressões são caracterizadas por um tipo de mal banal, um conjunto de ações maldosas decorrente da intolerância com a diferença que permeia as relações sociais dentro do ambiente escolar. Um tipo específico de violência escolar onde o emprego do mal banal corresponde à intolerância e à discriminação diante da diferença, quando está incomoda simplesmente por existir. Os estudantes autores de práticas de bullying enxergam suas vítimas de modo superficial e leviano e consideram que por serem diferentes merecem ser tratadas de modo desrespeitoso. Contudo, mais uma vez é importante destacar que os estudantes autores do bullying não podem ser individualmente responsabilizados por praticarem o mal banal, pois esses estudantes estão imersos em uma sociedade que naturalizou a violência, que tornou a discriminação uma prática social e que encontra dificuldades em ensinar os jovens a valorizar o respeito e a tolerância em suas relações sociais. Dentro desse cenário o que é mais espantoso é que não conseguimos encontrar motivos significantes que justifiquem o bullying. Todas as pesquisas analisadas na revisão de literatura afirmam a falta de motivação como uma característica do bullying, fica então uma lacuna em relação ao que leva crianças e adolescentes a se desrespeitarem cotidianamente. Buscando compreender o que está por trás da prática do bullying, penso que talvez o mal presente nesse tipo de comportamento pode estar relacionado à ausência de pensamento e de reflexão que por parte daqueles estudantes que encontram dificuldades em reconhecer a diferença e que lidam com essa dificuldade recorrendo a atitudes de violência, ofensa e discriminação. Assim como Arendt (1999), acredito que o solitário ato de pensar realiza-se como um vento forte que desarruma todas as nossas certezas e nos faz refletir antes de julgar. Fica, então, a questão de como educar para o pensamento e para a reflexão? Qual seria o primeiro passo pedagógico em direção a uma educação intercultural, promovedora do respeito às diferenças, do combate ao bullying e da valorização dos direitos humanos? O reconhecimento das diferenças é vital à identidade, como afirmam Taylor (2000) e Honneth (2001), mas para que esse reconhecimento se efetive é preciso educar as crianças e os adolescentes para a compreensão da tolerância como um valor ético e uma atitude social. Uma educação que valoriza o pensamento e a reflexão defende a tolerância como uma perspectiva de ação moral diante das intolerâncias, injustiças, discriminações e violências. Educar para tolerância adultos que atiram uns nos outros por motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Tarde demais. A intolerância selvagem deve ser, portanto, combatida em suas raízes, através de uma educação constante que tem início na mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais (Eco, 2001 p. 198). CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse texto, procurei investigar as interseções entre o multiculturalismo e as práticas de bullying, afirmei que este último é reflexo da incapacidade que os alunos apresentam em aceitar as diferenças que se instauraram no ambiente escolar. Como possibilidades analíticas para o entendimento dessa problemática apresentei a política do reconhecimento social de Charles Taylor e o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt. Concluo defendendo que o comportamento bullying é intolerável no ambiente escolar e que sua emergência está relacionada a dois fatores: 1- a dificuldade que os estudantes apresentam em conviver com a diferença e 2- o mal banal, sem sentido e sem justificativas que caracterizam o bullying é resultado da inaptidão dos estudantes em pensar e refletir suas próprias ações. A partir desses dois fatores aposto no conceito de tolerância como um valor-atitude e um caminho para a construção de uma educação intercultural compatível com a atual sociedade multicultural que estamos construindo. REFERENCIAS BIBLIOGRÀFICAS ANDRADE, M. Tolerar é Pouco? Pluralismo, mínimos éticos e prática pedagógica. Petrópolis, RJ: DP ET Alii: De Petrus; Rio de Janeiro: Novamérica, 2009. ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. __________. As origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. __________. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CANDAU, V. M. (Org.) Cultura (s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. __________. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antônio Flávio; CANDAU, Vera Maria (Org.). Multiculturalismo:diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13- 37. CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias, Porto Alegre, 2002 COSTANTINI, Alessandro. Bullying: como combatê-lo? Prevenir e enfrentar a violência entre jovens. São Paulo: Itália Nova, 2004. FANTE, C. A. Z. Fenômeno Bullying: Estratégias de intervenção e prevenção entre escolares (Uma proposta de educar pela paz). São José do Rio Preto, SP, Ativa, 2003 FORQUIM, J.C. Escola e Cultura. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993. HONNETH, A. Luta pelo Reconhecimento - para uma gramática moral dos conflitos sociais. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2001. OLWEUS, D. Aggression in the schools: Bullies and whipping boys. Washington, D.C.: Hemisphere (Wiley), 1978 TAYLOR, C. Argumentos filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000.