O DISCURSO SOBRE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NOS JORNAIS DE BELO HORIZONTE (1896- 1926) Ana Clara Oliveira Santos Garner, Mª. Irlen Antônio Gonçalves, Dr. James William Goodwin Júnior, Dr. RESUMO A proclamação da República, no final do século XIX, acarretou mudanças políticas e sociais para a população brasileira. Os republicanos tinham a preocupação de fazer o país avançar rumo ao progresso. A Educação Profissional era vista como um caminho para isso. Belo Horizonte, a primeira capital planejada da República, deveria refletir o ideal republicano de sociedade. Assim, as Escolas Profissionais foram criadas praticamente junto com a cidade, em 1907. O objetivo deste trabalho foi compreender o sentido de Educação Profissional nos jornais do início da cidade de Belo Horizonte. Entende-se que a imprensa não somente retrata a realidade, mas projeta a realidade que deseja que seja vista, atuando como espaço para produção de sentido e significado. Este trabalho se constituiu na leitura dos exemplares dos principais jornais que circularam em Belo Horizonte entre 1896 e 1926. Foram selecionados 40 exemplares para proceder à análise do discurso dos mesmos. Esta análise permitiu observar de que modo o discurso dos jornais debatia o tema da Educação Profissional e constatou o papel do discurso sobre Educação Profissional na construção do ideal republicano. PALAVRAS-CHAVE: educação profissional; imprensa de Belo Horizonte; República. 1 INTRODUÇÃO A Proclamação da República brasileira marcou mudanças expressivas na sociedade. Não somente pela mudança de regime político e de governantes, mas por todas as transformações sociais, culturais e econômicas que o então novo grupo no poder almejou alcançar. Algumas das mais significativas foram as tentativas de consolidar o aceleramento econômico, alavancado pela modernização da agricultura e pela criação de indústrias, a dignificação do trabalho livre em um país acostumado a associar trabalho manual à escravidão, a criação de um sistema educativo capaz de alfabetizar a maioria da população assim como de educar para o trabalho, a busca por práticas sociais baseadas no racionalismo científico, a implantação do sanitarismo urbano e rural e a resolução de problemas sociais como menores abandonados, mendigos e vagabundos. Irlen Gonçalves (2007) nos ajuda a entender que as propostas educativas dos republicanos estavam conectadas com a construção de uma nação civilizada. Os projetos de educação dos republicanos mineiros visaram instruir o povo para uma nova ordem social e fornecer a formação técnica necessária para impulsionar o progresso que o novo regime político almejava. Belo Horizonte foi a primeira capital brasileira planejada após a Proclamação da República e sua criação se deu principalmente por causa do novo regime. Portanto, sua construção e implementação refletiam os ideais republicanos. Como explica Veiga, [...] os pressupostos dos projetos de urbanização da cidade se constituem juntamente com os outros, tais como a organização policial e os presídios, a sanitarização e a escolarização das populações: o objetivo é preparar o terreno para as novas realizações. Embora desde o século XVII já existissem preocupações nesse sentido, é no século XIX que se sistematizam os saberes e as ciências voltados para as questões sociais, onde a educação necessariamente é um grande tema. (VEIGA,1994, p. 16). Para apreender melhor como aquela realidade foi vivida e pensada, torna-se interessante recorrer a registros da época. Portanto, esta pesquisa se vale dos registros da imprensa de Belo Horizonte no início da República e da cidade. Carvalho, Araújo e Gonçalves Neto (2002) discutem o uso da imprensa para a História da Educação. Para eles, a imprensa contribui para se historiar as pistas deixadas pelo pensamento educacional de uma época. As especificidades do discurso educacional podem ser captadas ao se fazer a análise de periódicos e jornais. No entanto, a análise dos jornais deve estar inserida dentro do seu contexto histórico e da cultura política de sua época. De acordo com Maurice Mouillaud (1997, p. 29) “o discurso do jornal não está solto no espaço”. Para ele, devemos perguntar-nos quem fala por trás do jornal e em seu nome, pois [...] o jornalista não está diretamente conectado com o “fato”, mas com “falas” (fala da testemunha, do especialista, do representante, do operador...). Entre estas falas e o jornal, o despacho de agência constitui a fonte maior (no mais das vezes incontestável para ele) de uma escritura que é feita de sucessivas reescrituras. É o jogo de tais enunciados que é estudado “nas fontes do jornal”. (MOUILLAD; PORTO, 1997, p. 25). Assim, esta pesquisa trabalhou com os jornais impressos que circularam em Belo Horizonte nos seus primeiros 30 anos: de 1896 a 1926. Esses jornais não foram tratados como retratos fiéis do que estava acontecendo na época. Isso porque a imprensa não só reproduz a realidade, mas a reconstrói de acordo com o ponto de vista de quem escreve. A imprensa em geral produz significações cujo objetivo é o de gerar uma mentalidade. Portanto, cria e recria o espaço público com seu discurso. 2 METODOLOGIA Esta pesquisa fez análise de discurso e conteúdo de 40 exemplares de jornais. Em primeiro lugar, foi feita uma listagem dos jornais que circularam na cidade de Belo Horizonte entre os anos de 1896 e 1926. Fizemos esse levantamento nos acervos da Hemeroteca Histórica da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa e da Coleção Linhares da Biblioteca da UFMG. 194 títulos diferentes apareceram e procedemos a um recorte de acordo com o assunto do jornal, excluindo os que se encontravam em língua estrangeira, os de edição única, os que continham exclusivamente propaganda e os que tratavam de temas únicos como religião, moda, carnaval, humor e esporte. Outro recorte foi feito para identificar somente aqueles de maior longevidade e periodicidade. Em seguida, realizamos uma primeira leitura das duas primeiras páginas de todos os exemplares – já que as terceira e quarta, quase sempre, continham apenas anúncios (publicidade ou programação de cinema, por exemplo). Assim, mapeamos aquelas edições que continham notícias referentes à Educação Profissional. Finalmente, passamos à leitura desses textos e 40 foram escolhidos como fontes para esta pesquisa. Esses exemplares pertencem a cinco jornais: Correio da tarde, Diário de Minas, Domingo, A Epocha e Estado de Minas. Na fase de análise das fontes, estas foram organizadas em categorias temáticas para nos ajudar a compreender os diferentes aspectos que compunham o sentido da Educação Profissional na imprensa belo-horizontina no início da República. Essas categorias podem ser consideradas endógenas, uma vez que surgiram a partir das próprias fontes. Somente após a leitura de todos os periódico selecionados, pudemos chegar aos temas que eram comuns entre elas ou que tinham aspectos relevantes à esta pesquisa. Estes temas originaram as categorias seguintes: Definição, Progresso, Dignificação do trabalho, virtudes morais e físicas, Escolas agrícolas, Instituto João Pinheiro, Escola de Aprendizes Artífices, Escola do Comércio, Modelo estrangeiro, Letras x Braços e Dificuldades. Essa categorização contribuiu para ajudar na compreensão do tema, não tendo a pretensão de ser uma classificação absoluta. Não somente o discurso foi analisado, mas também os aspectos que vão além do texto verbal. Conforme Goodwin, Ler o jornal como um documento, portanto construído, significa perceber que um jornal existe como um artefato produzido, desde a escolha das notícias a serem publicadas, passando pela redação do texto a publicar, o tipo (formato e tamanho da letra) a ser utilizado, se há ou não destaque visual (símbolos, gravuras, ilustrações), até à escolha do lugar onde o texto (ou a imagem) será colocado dentro do jornal. (GOODWIN, 2007, p. 75). Dessa forma, aspectos como tamanho da notícia, localização e fontes usadas foram observados. 3 RESULTADOS Ao selecionar as fontes desta pesquisa, foram vistos cerca de 2000 exemplares. Percebemos que o tema da educação escolar encontrava-se presente na maioria deles. Esta presença se deu, muitas vezes, através de pequenas notas com dados informativos sobre exames de ingresso em escolas, resultados dos mesmos, formaturas de cursos superiores, normal e secundários (inclusive com o nome dos formandos), expedição de diplomas, início de aulas e exposição de trabalhos escolares. Nota-se, assim, a importância dada ao tema pela quantidade de menções a ele, uma vez que a maioria dos exemplares traz alguma nota relacionada à Educação, mesmo que curta, de apenas duas frases. Há também notícias de tamanho maior dedicadas ao assunto. São estas, referentes mais especificamente à Educação Profissional, que foram analisdas neste trabalho. De uma maneira geral, a análise das fontes permitiu observar que, nas primeiras décadas de Belo Horizonte, eram frequentes reflexões sobre a importância do ensino técnico em relação ao ensino puramente letrado. A necessidade de trabalhadores especializados era grande e urgente e a maneira encontrada de satisfazer essa carência era a capacitação por meio da Educação Profissional. A análise do discurso dos jornais nos permitiu também perceber que buscava-se construir uma identidade para a Educação Profissional, um modelo ideal a ser seguido. A organização das fontes em categorias de análise facilitou a entender o papel do discurso sobre Educação Profissional no ideal da República. Os jornais buscaram definir o que deveria ser esse tipo de ensino. Havia uma tendência a valorizar o trabalho rural e a organizar o ensino por gênero. A Educação Profissional era constantemente associada ao progresso almejado pelos republicanos. Também era retratada como capaz de promover a dignificação do trabalho e a moralização da população. As escolas que mais apareciam nos discursos dos jornais eram as escolas agrícolas, o Instituto João Pinheiro e a Escola de Aprendizes Artífices. Somente esta última não era voltada para o trabalho agrícola. Outras escolas urbanas apareceram com menos frequência. Além disso, experiências estrangeiras eram frequentemente apontadas como modelo a ser seguido. A importância do ensino técnico sobre o ensino letrado era insistentemente defendida. As poucas dificuldades apontadas nos discursos dos jornais não eram críticas e sim obstáculos a serem superados em relação à implantação da Educação Profissional. É possível também fazer alguns arremates sobre o levantamento das expressões discursivas que revelam o sentido que os sujeitos da imprensa produziram sobre o trabalhador e sua formação. Em relação às palavras, podemos perceber nas fontes que os textos eram carregados de adjetivos. Era constante o uso de palavras positivas associadas à Educação Profissional, a valores como trabalho, educação e às escolas profissionais. As palavras negativas eram associadas à vagabundagem, aos menores desvalidos e à ociosidade. Era comum ainda a utilização de expressões como deverá, é necessário, é imprescindível e urgente nos textos referentes à Educação Profissional. As três primeiras expressões utilizam verbos que ditam o que deveria ser feito. A última mostra quando deveria ser feito, isso é, em caráter de urgência. Essas expressões revelam o papel de guia da sociedade em que a imprensa se colocava. A maioria absoluta dos títulos era clara, dizendo diretamente ao leitor o que encontraria no texto. As notícias relativas à Educação Profissional se encontravam principalmente sob os títulos: “Ensino técnico”, “Ensino agronômico”, “Patronatos agrícolas”, ”Ensino profissional”, “Instituto João Pinheiro”, “Escolas agrícolas” e “Escolas de aprendizes artífices”. A repetição dos títulos permitia ao leitor identificar imediatamente a continuidade do assunto. Funcionavam como capítulos diferentes de um mesmo tema. Com relação à enunciação percebemos uma variação entre o uso da enunciação elocutiva, aquela em que o enunciador se posiciona como autor da ideia, e a enunciação delocutiva, na qual fala-se como se ninguém estivesse implicado. O revezamento entre as enunciações delocutivas e elocutivas no mesmo texto era comum. Isso poderia sugerir ao leitor um discurso amplo: algumas coisas eram ideias do autor e outras eram verdades incontestáveis. O discurso autorizado foi uma ferramenta constante. Ora o autor (um ministro, um político, um educador, um diretor de escola) era a própria autoridade, ora essas autoridades eram citadas. A linguagem autorizada aparece, muitas vezes, quando os jornais se referiam a textos publicados antes por outros colegas, do Rio de Janeiro, de São Paulo ou do interior de Minas Gerais. Isso reforçava a importância do assunto da Educação Profissional: era tão relevante que merecia ter mais alcance, ao ser publicado para outros leitores. Praticamente todos os textos sobre Educação Profissional utilizados como fonte se encontravam em lugar de destaque. Somente dois se encontravam na segunda página e outros dois começavam na primeira e terminavam na segunda. O tamanho da fonte dos títulos era também maior que o das outras notícias, o que era fator de destaque. É interessante perceber que os jornais não se preocupavam apenas em retratar fatos ligados às escolas técnicas ou à Educação Profissional, mas, principalmente, traziam reflexões sobre o assunto: como se encontrava, como deveria ser, quais melhorias poderiam haver e como contribuiria para o progresso do país. A maioria dos textos não partiu de um evento factual, mas debatia a questão. Isso demonstra que havia uma preocupação em criar uma mentalidade em torno do tema. A repetição reforça a importância do assunto. Assim, ainda quando não havia nada novo a noticiar, o tema aparecia mesmo em algumas notícias que não eram exclusivas sobre ele, como a visita dos soberanos da Bélgica. Essa visita foi praticamente usada como desculpa para falar da situação do ensino profissional naquele país, comparar com o Brasil e fazer considerações sobre o exemplo a ser seguido. Pudemos também perceber alguns conceitos que os jornais procuravam universalizar, principalmente usando associação de ideias. Dentre os mais recorrentes, estava a questão do trabalho como algo honroso e dignificante. Também a ideia de que o ensino profissional era algo urgente e necessário. A questão dos patronatos agrícolas foi tida como solução para o problema dos menores desvalidos. O progresso foi destacado como algo desejável e bom. Esse progresso foi conceituado como um avanço e podemos perceber nos jornais que os fatores que definiam o progresso eram sobretudo: a modernização agrícola, a alfabetização da população, a moralização do povo e o sanitarismo. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O mapeamento do conteúdo sobre Educação Profissional nos jornais de Belo Horizonte revelou que esse tema era recorrente e tratado em lugar de destaque nas páginas dos periódicos. As fontes foram escolhidas exclusivamente pelo conteúdo, mas, nessa escolha, acabou ocorrendo um recorte temporal, já que a maioria situava-se após o ano de 1909. Isto coincide com o ano da criação do Instituto João Pinheiro. Este instituto abrigava crianças desamparadas, ao mesmo tempo que fornecia Educação Profissional, em especial a agrícola. Além disso, a Escola de Aprendizes Artífices foi implantada pelo Governo Federal em setembro de 1910 e em 1911 foram promulgados quatro decretos importantes para a política pública sobre Educação Profissional. A análise das fontes no geral permitiu verificar o papel do discurso sobre Educação Profissional na construção do ideal republicano: as escolas profissionais iriam contribuir para a formação de uma mão de obra especializada nacional, solucionar a questão dos menores desvalidos, vista como fonte de problemas, como violência e sujeira, e proporcionar, assim, o progresso do país e da sociedade republicana. Belo Horizonte deveria espelhar os ideais da República. Os jornais que nasceram na nova capital refletiam e, ao mesmo tempo, pautavam os temas caros à sociedade de sua época. Sendo assim, podemos ver que a Educação Profissional, ao ganhar destaque nas páginas desses jornais, era um tema importante para a sociedade republicana. REFERÊNCIAS ARAÚJO, José Carlos Souza & GATTI JUNIOR, Décio (Org.). Novos temas em história da educação brasileira – instituições escolares e educação na imprensa. Campinas: Autores Associados, 2002. BERSTEIN, Serge. A cultura política. 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