O que é a Verdade Carlos Aurélio Mota de Souza SUMÁRIO: 1. A Verdade como Correspondência ou Relação. 2. A Verdade como Revelação ou Manifestação. 3. A Verdade como Conformidade. 4. A Verdade como Coerência. 5. A Verdade como Utilidade. 6. Verdade e conjetura. 7. A Verdade no Direito. 8. Conclusões. Vimos o problema da certeza e seus vários tipos. Em aprofun-damento a esse tema, devemos abordar a questão da verdade, ainda como problema do conhecimento, ou seja, como o homem conhece as coisas e chega à verdade. Um primeiro ponto diz respeito à validez ou eficácia dos procedimentos cognoscitivos ou processos de conhecimento. É a quali-dade pela qual um procedimento cognitivo resulta eficaz ou tem êxito; pode ser um processo mental, lingüístico ou simbólico; ele prescinde da distinção entre a definição da verdade e critério da verdade. Segundo ponto: mostrar que na Filosofia existem cinco con-ceitos de verdade: o primeiro, como correspondência ou relação; o segundo, como revelação ou manifestação; o terceiro, como conformidade a uma regra; o quarto como coerência; e o quinto como utilidade. Os mais conhecidos e difundidos na Filosofia são os dois primeiros: conceitos de verdade como correspondência ou relação e como manifestação ou revelação; eles não se excluem, pois um é racional e o outro é metafísico-teológico; encontram-se freqüentemente num mesmo filósofo; mas são distintos e um não se reduz ao outro; são separados, mas se encontram juntos muitas vezes. 1 1. A Verdade como Correspondência ou Relação O primeiro conceito de verdade é o de correspondência ou relação: é o mais antigo e mais difundido, desde os pré-socráticos. Platão 2, em seu diálogo sobre o discurso, afirmava: "verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são, falso o que diz como não são". 1. Nicola ABBAGNANO. Diccionario de Filosofia (1992). Verbete Verdad, p.1180ss, a quem seguiremos nas citações. 2. Crátilo, 385 b. O que é a Verdade Aristóteles, 3 por sua vez, ensinava que: "Negar o que é e afirmar o que não é, é o falso; enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é o verdadeiro". Este filósofo, para nós, dos mais importantes, enunciou dois teoremas fundamentais sobre este conceito de verdade: o primeiro, que a verdade está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa 4. A verdade, portanto, está dentro de nós, no pensamento ou naquilo que falamos. O segundo: a medida da verdade é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso 5; por exemplo, uma coisa não é branca porque se afirma como verdade que é tal, mas se afirma como verdade que é tal porque é branca. Depois destes pensadores, os estóicos e os epicúreos seguem admitindo que verdade é a correspondência do conhecimento com a coisa. Então, a verdade como correspondência ou relação se dá entre o conhecimento e a coisa. Não sabemos que objeto é este, até o momento em que a inteligência nos explica o que é isto, como o objeto tal. Então, a verdade é a relação ou a correspondência entre a coisa e o nosso pensa-mento. Este raciocínio vai prevalecer na Filosofia, até hoje. Em relação a estes conceitos, Santo Agostinho 6 definia o que era "verdadeiro", não a verdade, "o que é assim, tal como aparece", ou é "o que revela o que é ou que se manifesta a si mesmo". Ele identifica o Verbo ou Logos como uma primeira, imediata e perfeita manifestação do Ser. Já Santo Tomás 7 define a verdade - esta é a expressão mais freqüente na Filosofia - como: "conformidade entre o entendimento e as coisas", observando, portanto, o teorema de Aristóteles: são as coisas e não o entendimento que constituem a medida da verdade. O filósofo brasileiro Carlos Lopes de Matos, em precioso trabalho sobre a teoria do conhecimento em Santo Tomás, assim analisa o ensino do Doctor Angelicus: Uma característica da verdade é a certeza, que consiste na adesão do intelecto a seu objeto - o verdadeiro. Não se trata do sentimento da certeza, mas da certeza objetiva, fundada na evidência, e que só é perfeita quando se atinge o juízo. Eis porque ela não existe no erro. A verdade estritamente dita é, portanto, a do intelecto que julga. Consiste num ser de razão, mas tem fundamento na realidade. Esta última é a causa da verdade; não se diz, porém, que ela mesma é verdadeira senão num sentido derivado, como a saúde se diz num sentido secundário do remédio, que é sua causa. Trata-se neste caso da verdade das coisas em relação a nosso conhecimento: dizemos verdadeira uma coisa quando tem tais aparências externas que ela nos faz conhecer o que é em si, e falsa, se nos induz ao erro quanto a sua natureza. 8 3. Metafísica, IV, 7, 1011 b 26ss. 4. Idem, VI, 4, 1027 b 25. 5. Idem, IX, 10, 1051 b 5. 6. Solilóquios, II, 5; Da Verdadeira Religião, 36. 7. Suma Teológica, I, q. 16, a.2; Contra os gentios, I, 59; Sobre a Verdade, q. 1, a. 1. 8. Um Capítulo da História do Tomismo. A Teoria do Conhecimento de Tomás de Aquino e sua Fonte Imediata (1959), pp.51-52. 2 O que é a Verdade Existe, pois, uma verdade das coisas, que é aquela pela qual se assemelham à sua causa primeira. A "coisa" a que se deve conformar o entendimento é a res intellecta, ou seja, a coisa tal como é apreendida, no seu exterior, pelo entendimento. Então, o nosso entendimento, nossa inteligência deve se conformar a este objeto como ele é no seu exterior ou externamente à nossa compreensão; é a evidência que mais uma vez aparece como fonte de verdade. “A evidência é critério de verdade, ou seja, algo distintivo da verdade, (verdade do conhecimento). A evidência envolve um mostrar-se do próprio ente, o qual significa que a verdade tem sua medida no ser das coisas. A evidência constitui o necessário fundamento lógico da certeza”.9 Do Século XIV em diante, este conceito de adequação ou conformidade perde seu alcance metafísico e teológico e passa a ter um significado estritamente lógico ou semântico, a relação entre a coisa e o intelecto. Após esse século, a Filosofia começa a mudar, a partir dos nominalistas, Ockham e Duns Scott, franciscanos ingleses; Ockham 10 identifica verdade com proposição ou afirmação verdadeira; com isso, nega valor metafísico à palavra verdade. Entretanto, houve um grupo de filósofos platônicos, da Escola de Cambridge, que manteve, nessa época, este caráter metafísico da noção de correspondência; definiram a verdade como conformidade da coisa consigo mesma ou com a própria essência, contida no entendimento. Hobbes prossegue na linha nominalista, entendendo a verdade como simples atributo das proposições ou afirmações, assim como Locke.11 Leibniz12 rejeita mais ainda a noção metafísica da verdade, ao dizer: Verdade é a correspondência das proposições que estão no espírito do homem, aquilo que pensamos ou afirmamos em relação às coisas de que se trata. Wolff 13 já divide a verdade em dois conceitos: o primeiro é uma definição nominal da verdade e o segundo, uma definição real da verdade. Definição nominal: é a concordância do nosso juízo com o objeto, ou seja, com a coisa representada no intelecto. Definição real ou noção lógica: é a determinabilidade do predicado mediante a noção do sujeito. Baumgarten 14 voltou à noção de verdade metafísica de forma muito original e bem platônica. Sua definição é bela: verdade é a ordem do múltiplo na unidade. O problema do um e do múltiplo, a ordem do múltiplo na unidade, noção ontológica tanto estudada por 9. Mário Ferreira dos SANTOS. Teoria do Conhecimento (1954), p. 260. 10. Suma Lógica, I, 43; Quodlibetais, I, q. 24. 11. Ensaios, II, 32, 3-19. 12. Novos ensaios, IV, 5, 11. 13. Lógica, §§ 505 e 513. 14. Metafísica, § 89. 3 O que é a Verdade Platão, 15 e que vai nos interessar diretamente no estudo da Lei e da Jurisprudência, pois aquela é una (genérica) e esta múltipla (casos particulares). 16 Kant, 17 por sua vez, insiste na definição nominal da verdade: o acordo do conhecimento com seu objeto. O filósofo de Koenigsberg afirma ter encontrado um critério formal da verdade, a conformidade do conhecimento a regras próprias; se o conhecimento obedecer a regras próprias ele conhecerá a verdade formalmente. Nas Filosofias mais recentes, a partir do século XIX, este conceito da verdade como correspondência, às vezes está suposto ou escondido, mas muitas vezes vem explicitamente definido, especial-mente entre os realistas. Parece ser uma posição correta: definir a verdade como uma ponte entre o pensamento e o objeto pensado, como “correlação”. Por exemplo: uma parede, supõe-se que seja branca; a verdade será esta, porque o nosso entendimento sobre o branco já existe. A verdade processual E na Justiça, como é que o Juiz decide, diante de uma prova, se alguém é culpado ou não? foi autor ou não de um dano? Sua função é buscar esta verdade. Sabemos que há uma distinção entre a verdade no processo civil e no processo penal; no penal, bem como nas ações de ordem pública, essa verdade deve ser real ou o mais próximo da realidade, não valendo as ficções, ou presunções absolutas; ao passo que no civil, ao menos em relação aos direitos disponíveis, a verdade é a que as partes trazem para o processo, está nas provas que apresentam; é aquela provada nos autos. Pode não ser a verdade real, mas nem por isso deixará de haver justiça. Por isso, o problema da verdade é importante para o Juiz e este conceito da verdade como corres-pondência ou relação entre o pensamento e o objeto, também é válido para o juízo decisório. No campo da lógica contemporânea, Alfred Tarski 18 afirma que um enunciado ou afirmação é verdadeiro no caso de designar um estado de coisas existentes; um enunciado é verdadeiro se é satisfeito por todos os objetos, e falso em caso contrário. Ele introduz uma noção semântica de verdade; por exemplo, o enunciado "a neve é branca" indica apenas que, ao afirmarmos ou rejeitarmos este enunciado deve-mos estar prontos para afirmar ou rejeitar o enunciado correlativo: “a neve é branca" é verdadeiro. Quer dizer, uma verdade tem de afirmar outra verdade, para que a primeira seja verdadeira. Seria o que se chama de contraprova, como técnica de argumentação. Não basta que se afirme "este objeto é um livro"; este enunciado deve ser provado como verdadeiro; daí os "porquês": a boa técnica prova com três argumentos: por que este objeto é um livro? Primeiro, porque foi adquirido por indicações 15. Mário Ferreira dos SANTOS. O Um e o Múltiplo em Platão. “Parmênides” em Platão (1958). 16. V. Cap. XII, Jurisprudência: fonte última da segurança jurídica. 17. Crítica da Razão Pura. Lógica, Introd., III. 18. Cf. ABBAGNANO, op. cit., p. 1182. 4 O que é a Verdade bibliográficas; segundo, porque serve para leituras e consultas; terceiro, porque conhecemos o autor e podemos citá-lo em trabalhos doutrinários. Estas propriedades só podem ser atribuídas a um objeto que se conhece por livro. Também no campo do Direito, o advogado sabe muito bem que deve raciocinar, argumentar, provar suas razões da verdade, e o mesmo se aplica ao Juiz, que deve justificar suas decisões com fundados argumentos. É assaz conhecida a original teoria dos jetos de Pontes de Miranda, que assim a explica, em referência sucinta: “A verdade é inexistente como ser, não há verdades descobríveis; há fatos, relações sobre as quais se enunciam proposições verdadeiras, ou falsas: a verdade é apenas... a qualidade das proposições verdadeiras. ... Portanto, a ciência não pode ficar na coincidência entre pensamento e objeto (identidade ou analogia entre eles). Por processo seu, seguro, reduz tudo a jetos (fatos e pensamentos são jetos, a univocidade da correspondência entre um símbolo e uma experiência já se passa dentro da ciência, que não começa ex nihilo): o cálculo e a experimentação; os valores da experiência correspondentes aos do cálculo.” 19 2. A Verdade como Revelação ou Manifestação Passemos ao segundo conceito de verdade: como revelação ou manifestação. Ela se apresenta sob duas formas, empírica e metafísica. A verdade empírica é a que se manifesta imediatamente ao homem, a que se revela de pronto; é uma sensação, intuição ou fenômeno. A fenomenologia, em grande parte, se fundamenta neste conceito. A verdade metafísica se revela por modos de conhecimento excepcionais. Vejase o problema de conhecimentos privilegiados, através dos quais se faz evidente a essência das coisas: o "ser" das coisas ou mesmo o seu princípio, o princípio supremo ou geral. A característica fundamental é a importância da evidência: aquilo que é evidente, que se manifesta como uma evidência. Temos aqui algumas afirmações sobre os cirenaicos, epicúreos, estóicos, mas vamos chegar logo á modernidade. Ockham 20 coloca o problema do conhecimento intuitivo, uma noção de manifestação imediata das coisas ao homem, em seus caracteres e em suas relações. Para Plotino, 21 o mais importante dos neoplatônicos, a Verdade não está de acordo com outra coisa, mas de acordo consigo mesma; “nada enuncia fora de si, mas enuncia o que ela mesma é". 19. O problema fundamental do conhecimento (1972), pp. 196-198. 20. ABBAGNANO, op. cit., p.1182. 21. Idem, p. 1183. 5 O que é a Verdade É o princípio da não-contradição: tal livro é ou não é livro; o livro está de acordo com ele mesmo, pois não pode ser outra coisa; então, a verdade nada enuncia fora de si, porém enuncia o que é ela mesma. Depois, Santo Agostinho, 22 também neoplatônico, afirmou que deve existir uma natureza tão próxima da Unidade suprema, de modo a reproduzi-la em tudo e ser "um" com ela; esta natureza é a Verdade ou o Verbo. A verdade, aproximando-se da Verdade, acaba sendo uma só, e a última Verdade seria Deus. Na Escolástica, segundo Santo Anselmo 23e Santo Tomás, 24 a verdade é, em primeiro lugar, o próprio entendimento ou Verbo de Deus. Chegamos a Descartes, 25 racionalista, mas não menos metafísico: ele concebe a verdade a partir do critério da evidência, afirmando a existência de verdades eternas. O cogito de Descartes é uma evidência originária, a que revela ao sujeito pensante sua própria existência. Há uma frase sua, quase um teorema para os cientistas: deve ser considerado como verdadeiro tudo o que se manifesta de modo evidente. O que ele chama de verdades eternas? São verdades garantidas e reveladas diretamente por Deus que, por isso são eternas. 26 É o que a Filosofia clássica chama de leis eternas ou leis naturais, que não podem ser revogadas, como a lei da gravidade. Hegel 27 afirma que a idéia (pois Hegel é idealista, quase platônico) é a verdade, porque a verdade é a resposta da objetividade ao conceito. Diz Hegel: todo real, enquanto verdadeiro, é a idéia e tem sua verdade só por meio da idéia e nas formas dela. Em síntese, ele afirma a objetividade do conceito ou racionalidade do real. Husserl, 28 conhecido fenomenólogo, afirma que a verdade e a evidência pertencem não só aos objetos teóricos mas também a todos os objetos da consideração fenomenológica, sejam valores, sentimentos, intuições etc. Portanto, quando temos uma intuição, um sentimento, como evidência, isto é uma verdade. Como é que os namorados sabem que se gostam? Existe alguma medida dessa verdade? Eles se amam e este gostar é um sentimento, uma verdade intuitiva, contida nesse relacionamento. Heidegger 29 diz que a verdade é uma alethéia, revelação ou descobrimento da verdade; pela etimologia desta palavra grega há uma estreita relação entre o modo de ser da verdade e o modo de ser do homem. 22. Da verdadeira religião, 36. 23. De Veritate, 14. 24. De Veritate, q. 1, a. 4. 25. Meditações, IV, 16. 5. 26. Objeções e Respostas, 541. 27. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 213. 28. Idéias sobre Fenomenologia Pura, I, § 136. 29. O ser e o tempo, § 44. 6 O que é a Verdade Trata ele o homem como o "ser-aí"; o homem não é o "ser-para-si", não é "serem-si", como pretendia Sartre, mas o homem é um “ser-para" ou “ser para o outro", como nos ensina a Filosofia cristã. O homem é para a mulher, o professor é para os alunos, os pais são para os filhos; é, portanto, um ser de finalidades. Heidegger fala do "ser-aí": o homem é um ser enquanto está aqui, enquanto a verdade pode se revelar, e se revela somente ao homem; há uma estreita relação entre o modo de ser da verdade e o modo de ser do homem, como "ser-aí". Afirma que o lugar da verdade não é o juízo do homem, o julgamento. A verdade não é revelação de caráter predicativo, mas consiste no ser descoberto do ser das coisas ou destas próprias coisas e no ser descobridor do homem. Todo o descobrimento do ser, enquanto descobrimento parcial, é também o seu descobrimento. Porquanto descobrir-se é conhecer-se. Aquí voltamos a Sócrates: "conhece-te a ti mesmo," gnoti seautón. Santo Agostinho, uma das expressões mais fecundas do existencialismo personalista, repete: Noli foras ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas, significando que a Verdade reside dentro do homem. 30 3. A Verdade como Conformidade Estudemos o terceiro conceito: Verdade conforme a quê? Conforme a uma regra ou a um conceito. Platão foi o primeiro a enunciá-lo: "tomando como fundamento o conceito que julga o mais sólido, tudo que parece estar de acordo com ele, eu considero verdadeiro, sejam causas ou coisas existentes; o que não me parece estar de acordo com ele, considero não verdadeiro”. 31 O mesmo Agostinho Aurélio, 32 enveredando por essa linha, afirmava existir por sobre a nossa mente uma Lei que se denomina Verdade, e que podemos julgar todas as coisas de conformidade com ela, ainda que escape ao nosso juízo. Ora, isto está de acordo com princípios de Direito natural, pois o legislador pode fazer leis de conformidade com uma Justiça superior, ideal; o mesmo se dá com Juízes ou com intérpretes, aplicadores das leis ou administradores. Não basta abrir códigos e verificar o que a norma diz; além da norma existem valores não escritos. As normas precisam ser valorizadas de acordo com 30. Da verdadeira religião, I, 39, 72. Cfr. Luis VELA, El derecho natural en Giorgio Del Vecchio (1965), p. 231; Ismael QUILES. La interioridad agustiniana (1989), p.14. Para Michele Federico SCIACCA, conhecer é julgar; logo, conhecer significa “crítica”: crítica significa precisamente juízo; antes de Kant, Vico se havia dado conta disto. Mas, quando um juízo é verdadeiro? que é o que garante a validez do juízo? La interioridad objetiva (1955), p.32. 31. Fédon, 100a. 32. Da verdadeira religião, 30-31. 7 O que é a Verdade as circunstâncias e pessoas envolvidas no caso concreto 33. O juiz não julga nem raciocina matematicamente, pois a lógica do julgador deve ser razoável, o juízo prudencial não se dá pela letra da Lei, pela norma em si mesma, mas segundo a natureza das coisas e a natureza do homem. 34 Quanto ao problema da Segurança e do Direito, do conhecimento e da verdade, existem leis que independem da vontade humana, que estão fora e acima de nossa mente e do campo do Direito, podendo-se dizer que são de Direito natural. Voltando ao conceito da conformidade, propriamente, o filósofo mais influente 35 foi Kant; ele utilizou a noção de conformidade como critério da própria verdade. Não é definição da verdade, mas conceito da própria verdade, porque, como nominalista, sua definição é de correspondência. Dizia Kant que o critério pode concernir somente à forma da verdade, isto é, ao pensamento em geral; consiste na conformidade com as leis gerais necessárias do entendimento; o que contradiz estas leis é falso, porque nesse caso o entendimento é contra suas próprias leis, portanto, contra si mesmo. Entretanto, parece-nos que este critério formal para estabelecer a verdade material ou objetiva do conhecimento, a tentativa para transformar esta regra de valorização formal em órgão de conhecimento efetivo, não é mais do que um uso dialético, e portanto, ilusório, da razão. Outro filósofo alemão, Windelband 36, disse que o que mede e determina a verdade do próprio conhecimento não é uma realidade externa, inalcançável e incognoscível, mas a regra intrínseca do próprio conhecimento. Rickert 37 também identificou o objeto do conhecimento com uma norma à qual o conhecimento deve se adequar para ser verdadeiro. Resumindo, é de Kant o pensamento mais influente: para o filósofo, a conformidade à regra do pensamento é o critério da verdade; mas os neokantianos dizem que a conformidade à regra é a única definição da própria verdade. Basta que se adote uma regra ou fórmula de pensamento, para que se descubra a verdade e ela é tão somente aquilo. 33. No Criton, de Platão, Sócrates, já condenado à morte, se recusa a fugir da prisão, pois significaria invalidar a lei; ainda que o Juízo e a sentença se considerem injustas, diz, temos que aceitar suas consequências para que as leis justas sejam obedecidas. Ensina a Criton não se preocupar com a opinião da maioria, pois os mais capazes reconhecerão a verdade dos fatos, mas preocupar-se com o Justo, o Belo e o Bom, pois o importante não é viver, mas viver bem! Cfr. Criton ou O Dever do Cidadão. 34. Neste sentido predomina modernamente a Wertungsjurisprudenz, jurisprudência estimativa ou de valoração, que busca os princípios ético-jurídicos para aplicação da lei. VALLET DE GOYTISOLO. Metodología de las Leyes (1991), p. 397; Metodología de la Determinación del Derecho (1994), p. 1205. 35. Crítica da Razão Pura, Lógica, Introd. III, VII. 36. Prelúdios. 37. O objeto do conhecimento. 8 O que é a Verdade 4. A Verdade como Coerência Vejamos esta conceituação da verdade como coerência; apareceu no século XIX, na Inglaterra e nos Estados Unidos, no chamado movimento idealista, em que surgem duas obras interessantes 38, a propósito da experiência humana. Que é a experiência humana? O contraditório não pode ser real; portanto, a realidade ou a verdade é coerência perfeita; aqui se trata da coerência com a realidade última que, para os autores desse movimento, é a Consciência Infinita ou Absoluta. Eles admitem graus de verdade; é um tipo de julgamento a partir do grau de coerência que se possua, mesmo aproximativa ou imperfeita. Afirmam estes autores que esta conceituação de verdade tem antecedentes em Spinoza, quando a chama de "terceiro gênero de conhecimento", que seria "o amor intelectual de Deus", o conhecimento da ordem total e necessária das coisas, que significa o próprio Deus. 5. A Verdade como Utilidade O último conceito a analisar é sobre a verdade como utilidade; sabemos que o utilitarismo e o pragmatismo são Filosofias de ação. Nietzsche, que no fundo era utilitarista, buscou o super-homem; para ele, verdadeiro significa o que é apto à conservação da humanidade. Isto penetrou na raiz da ideologia nazista, povo é aquele de raça pura: “Verdadeiro não significa senão o apto para a conservação da humanidade; o que me faz perecer quando creio que não é verdadeiro para mim, é uma relação arbitrária e ilegítima do meu ser com as coisas externas. O que me faz morrer é não acreditar nas coisas que são aptas para a minha vida".39 William James 40 identificou utilidade e verdade somente até o limite das crenças não verificáveis empiricamente, ou não demonstráveis como crenças morais e religiosas. Quer dizer, tudo o que não puder ser empiricamente demonstrável não é verdade; ele identifica, pois, utilidade com verdade. Schiller 41 estendeu este conceito de verdade e utilidade a toda esfera do conhecimento; uma proposição é verdadeira somente por sua efetiva utilidade, ou porque é útil para estender o próprio conhecimento, ou para ampliar o domínio do homem sobre a natureza, ou seja, "o homem conhece para agir". (Marx, igualmente utilitarista, mais tarde viria a dizer: "conhecer para transformar o mundo"); esta utilidade deve-ria estar voltada para a solidariedade e a ordem do mundo, que pressupõe respeito à liberdade e dignidade de toda pessoa humana. 38. B. BOSANQUET. Lógica ou morfologia do conhecimento (1888). F.H.BRADLEY. Aparência e Realidade (1893). 39. F. NIETZSCHE. Vontade de Potência. 40. O desejo de acreditar, 1897. 41. Humanismo, 1903. Cf. Mário Ferreira dos SANTOS. Op. cit., p. 259. 9 O que é a Verdade Dewey 42, também pragmatista, tem uma concepção seme-lhante: todo conhecimento adquirido é um instrumental válido, mas nem sempre verdadeiro; quer dizer, o conhecimento é um instrumento para se chegar à verdade. 6. Verdade e Conjetura Não podemos desconhecer, igualmente, outra forma essencial do conhecimento científico, que é a conjetura, como bem estudou Miguel Reale, em valioso trabalho dedicado a este tema: “Podemos dizer que as conjeturas fazem parte essencial de nosso modo de ser pessoal, e se inserem na problemática da verdade, dado que visam a preencher os vazios a que acima me referi: a linha que passa, pois, entre a verdade e a conjetura não é a de dois opostos que se repelem, mas antes a de dois termos distintos que se complementam”. “...estou convencido de que o pensamento conjetural merece nossa mais dedicada atenção, como forma autônoma de pensamento que, correndo em paralelo ou complementarmente com a investigação positiva, e nunca em conflito com esta, tem seus princípios e normas próprias, não se desenvolvendo como simples resultado do arbítrio”. 43 Outro autor que trata do pensamento conjetural como pensamento metafísico é Bertrand de Jouvenel, pensador social preo-cupado com a “arte de conjeturar” na linha da previsão do futuro ou dos futuríveis, conforme define: é a arte de conjeturar a respeito do futuro, com plausível segurança, a partir de suposições, ficções, analogias, probabilidades e até mesmo causas intercorrentes, baseadas em dados conhecidos 44. No mesmo campo o ilustre pensador Karl Popper pôs em relevo a participação da imaginação no ato de conjeturar; focalizando o problema da conjetura sob o prisma epistemológico, considera ele a conjetura um momento relevante inserido no processo do conhecimento científico, atuando como “antecipações justificadas (ou não), palpites e 42. Lógica, XV. 43. Verdade e Conjetura (1983), p. 19. 44. A Arte da Conjetura (1968). Para este autor, “a construção intelectual de um futuro verossímil se constitui numa obra de arte, na plena acepção da palavra. É isso que chamamos de “conjetura”. p.36. Cf. Miguel REALE, op.cit., p. 22. 10 O que é a Verdade tentativas de soluções, graças às quais a ciência pode progredir, justa-mente porque aprendemos com nossos erros” 45. Segundo Reale, a conjetura ocupa um papel dos mais signifi-cativos em todos os atos praticados pelos homens, tanto comuns como cientistas, seja operando como ponto hipotético e provisório de partida, mais tarde confirmado graças a novos processos de conhecimento, seja valendo como “verdades práticas” que nos auxiliam a superar o estado de dúvida, sempre incerto e inseguro, como é próprio de todos os homens 46. 7. A Verdade no Direito Destes conceitos sobre a verdade, quais os que mais se aproximam ou se aplicam ao Direito, às regras e princípios jurídicos e ao ordenamento em geral? Não há uma resposta definitiva, mas uma pergunta para continua discussão. Os Juízes costumam utilizar expressões como "os fatos estão em conformidade ao Direito", indicando que a verdade jurídica pode estar conforme à lei ou à justiça. Os tabeliães costumam atestar que tal declaração ou documento "está conforme à Lei". Pelo princípio geral da anterioridade, exige-se que o fato, sobretudo o criminoso, esteja absolutamente conforme ao enunciado da Lei (fato típico ou descrição legal do tipo penal), sob pena de exclusão da criminalidade. Qual é a verdade do processo? Fala-se em verdade formal e verdade material; no penal, seria a verdade real ou material; no cível, a formal. Já contestaram os doutrinadores esta separação, por caber o aforismo quod non est in actio, non est in mundo. Quando o Juiz se convence da verdade? qual o papel das evidências em Direito, sobretudo no campo da prova? Kant falava em conformidade à regra como critério formal da verdade e os neokantianos em conformidade à regra. Acreditamos que daqui derivou o positivismo jurídico e a exclamação de Napoleão de que seu Código não poderia ser interpretado, proibindo sua interpretação e mandando excluir do Projeto Portalis até mesmo a eqüidade.47. Este apego ao juridicismo ferrenho Cícero já o condenara, proclamando o summum ius, summa iniuria; se levarmos a Lei ou ius, ao pé da letra, 45. Conjetura e refutações (o progresso do conhecimento científico), p. 260. Cf. Miguel REALE, idem, p. 23. 46. Op. cit., pp.25-26. 47. V. Cap. I, Segurança Jurídica e Certeza do Direito, N. 6. 11 O que é a Verdade cometeremos injustiça; pois o resultado da sentença poderá ser pior do que aquilo que as partes pediam 48. Esta análise nos leva demasiado longe: quando se fala de Segurança no Direito, onde está esta Segurança? Acreditamos que se encontra não apenas na Lei escrita, na regra legislada, mas muito mais em sua aplicação judicial; o estudo sobre a Segurança se fixará, portanto, com maior ênfase, na aplicação do Direito, do que na formulação da norma estrita; entendemos que a Segurança se constrói com mais amplitude social através da Jurisprudência, sobretudo nas Súmulas e Enunciados, do que na regra positiva. De fato, a norma escrita é uma hipótese de Segurança. Este termo lembra, por exemplo, Segurança Pública: a Constituição reza que o cidadão deve ser garantido na sua integridade física e patrimonial. No entanto, quantos assaltos e mortes! Qual norma garante a inviolabilidade do domicílio? É hipotética esta garantia; não há segurança autônoma na Lei; ela é um projeto, proposta, hipótese, porque não tem, por si mesma, força coercitiva; a coerção vem da sentença, na execução; o Juiz pode requisitar a força judiciária, e esta age, pois sua função é garantir o império da Lei; pode-se prender em flagrante, abrir inquérito, manter prisão provisória etc, mas na prática sabe-se que falta segurança, pois a polícia nem tudo e a todos pode garantir. Em suma, na ordem do Estado democrático de Direito, não se concebe que um agente policial aplique melhor a Lei do que os Juristas. Quer dizer, onde está o homem, está a imperfeição; não está nas instituições, no sistema econômico ou no regime político, mas está no ser imperfeito do homem, é problemática humana; as reformas não se fazem por decretos, muito menos por revoluções, pois a grande revolução é a educação, sobretudo a pessoal, que opera do interior para fora da pessoa; mas este tema já é do campo do Direito e da Moral... Estas observações, no tocante à interpretação e aplicação da lei pelos Juízes e Tribunais, enquadram-se satisfatoriamente como conjetu-ras ou prognósticos do homem comum ou dos juristas em geral, quanto à previsibilidade dos julgamentos, e que constitui a base da segurança jurídica: a razoável estabilidade das decisões, segundo os parâmetros da lei e da Constituição. 8. Conclusões 48. Exemplo ilustrativo encontramos no Mercador de Veneza, de Shakespeare: desejando casar-se, um jovem pede dinheiro a um mercador; este diz que tomará uma libra da carne do devedor, se não lhe pagar; inadimplente, vão ao Juiz, que reconhece o pacto, mas adverte: se derramar sangue, haverá excedido à sentença, com culpa; então, confisca-lhe os bens, apenas. Solução de eqüidade... 12 O que é a Verdade O tema da verdade é tratado pela Teoria do Conhecimento. Procurar, conhecer e determinar o que é verdadeiro constitui, para Juízes e Tribunais, o métier do seu dia-a-dia. “Formar convicção” constitui o fim último do processo judicial, para chegar à sentença. E este conven-cimento se “forma”, de um lado pela prova dos fatos concretos, e de outro, pela adequação à regra jurídica aplicável, sem excluir a incidência das experiências pessoais do julgador e as circunstâncias do momento da decisão. A “verdade do processo” emerge desta conjunção entre as questões de fato e as questões de direito (como exaustivamente as estudou Castanheira Neves 49), e constitui a verdade humanamente aceitável, porque foi buscada através dos vários processos lógicos e dialéticos da razão. Na convicção dos Juízes se assenta, portanto, a determinação do juridicamente verdadeiro, apto a produzir a certeza do direito para as partes, para terceiros (paz social), para os órgãos julgadores e mesmo para a ordem jurídica, como criação jurisprudencial. Quanto ao método que melhor se aplica ao raciocínio judicial, para chegar à verdade, excluida as vias da revelação e a da coerência idealista, parece-nos que o Juiz pode se utilizar cabalmente dos conceitos de correspondência ou conformidade entre seu entendimento e os fatos; também, segundo os neokantianos, pode se dar uma conformidade à regra; ou mesmo utilizar o conhecimento para alcançar o que é verdadeiro, ao modo pragmatista. Enfim, a conformidade do objeto do conhecimento a uma norma lembra bem a adequação dos fatos à lei ou subsunção, conformação típica dos fatos à norma legal. Esta adequação parece atender melhor, num primeiro momento, ao conceito de conformidade entre o pensamento do Juiz e o caso singular em apreciação no processo; mas posteriormente se verá que a decisão judicial não consiste em puro silogismo, antes atem-se a regras de prudência razoável, intuições do valor Justiça e aplicação da interpretação jurídica mais eqüitativa aos interessados. O presente artigo consta do capítulo III do livro “Segurança Jurídica e Jurisprudência”, São Paulo, LTr, 1996. 49. Antonio CASTANHEIRA NEVES. Questão de Facto-Questão de Direito ou O Problema Metodológico da juridicidade (1967). 13