Discurso e cinema: o éthos do protagonista moderno (uma construção às avessas) Sigrid Gavazzi UFF/ Grupo CIAD‐Rio [email protected] Resumo: Este trabalho propõe‐se a analisar como se estrutura o protagonista cinematográfico moderno, tomando‐se por base investigativa o personagem “Madame Satã”, da película de mesmo título. Sustentamos a abordagem teórica em vértices complementares: a abordagem semiolinguística de Charaudeau (1996;2006;2008), a construção do perfil discursivo/ethos (Maingueneau: 2002) do personagem sob crivo (sobretudo em sua tentativa de arregimentar credibilidade social à época, mesmo sem nenhuma legitimidade pré‐estabelecida) e aos ícones característicos da construção de personagens em geral (Kothe:1985). Na análise, constatou‐se, então, que o “herói” da modernidade transita em uma esfera em que predomina a ambiguidade. Detecta‐se, assim, um contrato de comunicação às avessas, em que o contraditório se revela por um éthos multifacetado, rebelde à análise superficial, reveladora de um “herói” que, por sua tragédia pessoal, destituído de ajuda divina ou de mitos consoladores, tem de singularizar sua história por seus próprios meios, métodos ou estratégias ‐ que, embora complexos, nada têm de superficiais ou banais. Palavras‐chave: cinema; análise do discurso; ethos; protagonistas; herói moderno Abstract: This paper proposes to analyse the structure as if modern film, on the basis of the character "Madame investigator Satan ", the film of the same title. We stand behind theoretical approach in additional vertices: semiolinguística of Charaudeau approach (1996; 2006; 2008), the construction of profile ethos (discursivo/Maingueneau: 2002) of the character under sieve (mainly in its attempt to rally social credibility at that time, even without any legitimacy pre‐set) and the icons characteristic of building characters in General (Kothe: 1985).In the analysis, noted then that the "hero" of modernity transitions in a the sphere in which predominates ambiguity. Detects if a contract communication topsy‐turvy, where the contradictory proves by a éthos rebel the multifaceted superficially, revealing a "hero" your personal tragedy, devoid of divine help or myths consoladores, has distinguishes its history by their own means, methods or strategies complex, which, although nothing superficial or commonplace. Key words: cinema; speech; ethos analysis; protagonists; modern hero 1) O “ERA UMA VEZ....” NÃO EXISTE MAIS Se parodiássemos os ditos populares, poderíamos afirmar que “não se fazem mais heróis como antigamente: seres com indiscutível beleza física e/ou espiritual, com alto e inatacável senso moral, defensores da lei, sempre lado a lado com os parâmetros ideológicos preconizados pela sociedade ocidental. Como “heróis” protagonizam cenas românticas, verdadeiros idílios, ou travavam (pelo bem de seu povo) sangrentas e, às vezes, impossíveis batalhas. Seu código de conduta era rigorosamente asséptico, resistente às baixezas do mundo. Se conseguiam seu objetivo, eram premiados com méritos diversos, incluindo o clicherizado “final feliz”. Se perdessem, passavam a ser considerados símbolos de uma causa ou recebiam a aura da santificação. Em qualquer dos casos, sua honra era seu ícone predominante, portanto seu comportamento era, durante toda a película, absolutamente probo. Porém, no mundo de hoje, nem Batman (que contracenou com as mentes infantis das décadas de 60/70) possui face definida. Em O Cavaleiro das Trevas (2008) todo brilho e toda atitude estão centralizados em seu rival, o Coringa, que encarna o Mal, porém “pode mostrar seu rosto”, como afirma na película – basta “retirar a maquiagem”. Batman, em contrapartida, perde‐se na loucura de seu próprio (e particular) campo do Bem. Nem ele próprio se reconhece ou se avaliza. Seus valores morais são fluidos, daí ser amado e odiado, querido e temido, abandonado por todos, sua dupla personalidade constitui sua perdição. Fica em posição tão inferior que seu adversário, várias vezes, dele ri, impingindo‐lhe chacotas (“Por que tão sério?!”), já que sua seriedade nada lhe adianta, nem lhe afere credibilidade. No filme em questão, inclusive, o Coringa considera‐se, textualmente, melhor do que o “herói oficial”, porque sabe possuir coerência interna, perfil definido e seus atos são previsíveis. Quem é o protagonista, então ? A crise interior e existencial do “morcego” fez a classificação do filme mudar, logo após as primeiras (e excelentes) críticas: de “aventura” para “drama”. Já sobre a película Capote (Oscar de melhor ator para Phillp Seymour), já se disse que o filme “...mostra um Capote obsessivo, apaixonado, decidido a escrever um livro sobre um assassino e uma chacina cometida por ele, mas um tanto desesperado, egoísta e traiçoeiro. (Martin:2008)” Seu relacionamento com o mundo da riqueza também é dúbio e o dinheiro rola solto: a viagem, os restaurantes e (as) muitas bebidas consumidas pelo jornalista, todas estão garantidas pelo patrão, esperando uma boa história. Capote usa algumas "verdinhas" até mesmo para facilitar seu acesso à prisão – "para o senhor usar como achar melhor", diz ele, ao entregar um envelope fechado ao diretor da penitenciária que abriga os dois acusados da chacina (id, ib). O próprio roteiro se encarrega de contar uma história que busca incessantemente o seu final, assim como o autor de A Sangue Frio quer encerrar seu livro e os fatos não o ajudam. É aí que ele entra em sua pior crise, aumentando (literalmente) suas doses de álcool que o levaram a morrer em 1984, das complicações com a bebida, sem ter escrito mais nenhuma obra depois dessa. A época da fantasia (e do “era uma vez”) terminou. 2‐ O CINEMA BRASILEIRO E SEUS PROTAGONISTAS Para o estudo do herói/protagonista, investigaremos como se edifica o personagem João Francisco, posteriormente Madame Satã (2004), em película nacional de mesmo nome. Metodologicamente faremos uso das situações de contraste/conflito entre os protagonistas do contrato comunicativo. Assim, adotaremos, como linha mestra de trabalho, a teoria semiolinguística de Charaudeau (1983;1996): o ato da linguagem atua como uma “mise‐en‐scène”, na qual os participantes interagem, comunicando‐se, sobredeterminados por um prévio “contrato de comunicação”. Para haver tal contrato, é necessário aceitar‐se que a significação discursiva resulte da união dos componentes linguístico (material verbal) e situacional (material psicossocial, testemunha dos comportamentos humanos) que colaboram na definição dos próprios integrantes, ao mesmo tempo como atores sociais e indivíduos comunicantes. Os atos de linguagem resultam, portanto, de regras implícitas estabelecidas socialmente, partilhadas pelo interlocutores. Em decorrência disso, o contrato tem de definir, a priori, tais normas, tanto no campo do texto quanto do contexto que o gerou. Com as regras, advêm as restrições – o que pode e o que não pode ser dito, como se pode e como não se pode agir. Os sujeitos que encenam o ato da linguagem desempenharão seus papéis em dupla dimensão: uma externa e, outra, interna. De acordo com Charaudeau (1996), atuam na primeira instância os chamados interlocutores, responsáveis de fato pela produção do ato de linguagem (sujeito comunicante ou EUc) e por sua interpretação (sujeito interpretanto ou Tui). Já na dimensão interna, agem os intralocutores, ou seres discursivos, hipotéticos, projeções estrategicamente elaboradas pelo sujeito comunicante em relação a si próprio e ao outro, Trata‐se, respectivamente, do sujeito enunciador (EUe) e do sujeito destinatário (Tud), a imagem visualizada pelo sujeito anteriormente. Em nosso caso específico, tomamos a liberdade de realizar uma adaptação teórica, pela própria necessidade do meio de comunicação escolhido para análise – um filme, baseado em uma história real. A película cinematográfica mostra‐se extremamente complexa: representa, no mínimo, o somatório de pessoas/atores, que atuam perfazendo uma história, idealizada por seus criadores (autores, diretores, cenógrafos) e comentada/ revista pela crítica especializada. Assim, pela especificidade de nosso objeto de estudo e, sobretudo, pelo fato de ensejarmos o exame de situações de contraste/conflito entre o personagem principal e suas instâncias de atuação, situações que são as pedras fundamentais para a construção do “herói” (ou “anti‐ herói”) João Francisco/Madame Satã, adaptamos a teoria aos nossos dados. Isto posto, consideramos como Sujeito‐Comunicante o personagem João Francisco. Como Tu‐
interpretantes, todos os personagens que com ele atuam na narrativa. Como instância interna, passam à categoria de Eu‐enunciador o autor, os diretores, os cenógrafos, os iluminadores, ou seja, todos os responsáveis – diretos e indiretos – pela produção. Como Tu‐
destinatário, optamos por utilizar depoimentos da crítica especializada, responsável por mais um olhar frente à narrativa, agora um produto, exposto nas telas. O inter‐relacionamento entre cada segmento será avaliado ao final, como conclusão de nosso estudo. Os exemplos – retirados das transcrições das falas dos personagens – são apresentados, no corpo do texto, em itálico. 3‐QUESTÃO/HIPÓTESE O personagem‐título mesmo se define na narrativa como um malandro (vou levar vida de malandro... e rasgada!). Então, como um “malandro da década de 30”, negro, pobre, considerado socialmente problemático à época, consegue chegar (na vida real e na tela) à categoria de mito? Nossa hipótese, na tentativa de responder a essa pergunta, embasa‐se no fato de que as situações contrastivas – e eloqüentes cenicamente – em seu somatório configuram uma cena discursiva CONTRADITÓRIA, mas que, ao revés do que o léxico afirma, não levam à “incoerência entre o que se diz e o que se disse, entre fatos e ações”. (FERREIRA: 1993, p.143). A contradição, no filme, é parcial, localizada, pontual. Mas, em seu somatório, os desacordos parciais é que vão construir a trajetória do personagem, transformando‐o, aos olhos da sociedade de então e aos dos criadores da narrativa, em figura mítica, forma não definível em linhas particulares, isto é, valora‐se gradativamente pela imaginação popular, pois não se deixa capturar em um definição única – daí mítica, fabulística, quase “irreal” DIRETOR: (ele) construía invenções e reinvenções em torno de si mesmo... essa capacidade contínua de se reinventar é um dos pontos mais interessantes e fascinantes da personagem. 4‐‐“MADAME SATÔ, O FILME A película “Madame Satã” foi lançada em 2002, sob a direção de Karim Aïnouz. Indicada a trinta e cinco prêmios, sendo vencedora de 21 deles, conta a trajetória do malando João Francisco (doravante JF), a partir de 1932 até sua consagração como “Madame Satã”. Vive humildemente com o que denomina sua família (“Aqui é o local onde moro com a minha família” / cena com os policiais), ou seja, o travesti Tabu, a prostituta Laurita e a filha desta, ainda criança. Durante a narrativa, relaciona‐se com outros personagens de sua classe social e da classe dominante, sonha em ser artista e conhece seu grande amor, Renatinho. No início, vive de trabalho honesto, mas que não encontra retorno por parte de seus patrões (JF, educadamente: Gregório, será que dá para amanhã sair meu pagamento? Já faz dois meses que eu estou trabalhando aqui...). É encarcerado na penitenciária por duas vezes. No retorno da primeira, recebe a notícia da morte de Renatinho e resolve afirmar‐se definitivamente na carreira artística. No entanto, sua primeira consagração é interrompida pelo crime que comete logo após sua apresentação Na fala do diretor do filme, Achei que foi naquele momento onde se apresentou um duplo rito de passagem para o personagem: ele se firmava como estrela, realizava o sonho de ser amado no palco e, logo depois, cometia um delito grave, se transformando em criminoso. E esses dois fatos culminam na criação de Madame Satã, nome que sintetiza toda a dualidade do personagem: Madame, feminino, sofisticado, delicado, importado da França, e Satã, masculino, violento, destrutivo. 4‐ SITUAÇÕES DE CONTRASTE/CONFLITO 4.1 – EUc (JF) X TUi (OS OUTROS) Durante toda a história, o relacionamento de JF com “o outro” – todos os personagens à sua volta ‐ é marcado pela desarmonia. Geram‐se, pois, quatro (04) eixos de conflito, abaixo delineados, mesmo que brevemente. 1º) FJ x SUA FAMÍLIA É extremamente agressivo, impaciente e autoritário tanto com Laurita quanto com Tabu, chegando mesmo a lhes inferir agressões físicas. Sente‐se ali o “patrão” e “dono da casa”. Ao mesmo tempo, porém, brinca com eles, é companheiro, paternal, preocupa‐se com seus problemas e chega até mesmo a ser carinhoso, sobretudo com a criança, filha de Laurita (a quem chama de “princesa”, “menina” e “neném”) (Para LAURITA) Que chão imundo é este, Laurita? Termina de limpar esta porcaria, vamos! (Para TABU) Teu nome é trovão, desgraçado? Essa tua voz de miado está me dando enfado, enjôo! Que seja a última vez que tu faz as tuas porcarias na frente de todo o mundo! E se minha princesa acordasse? (Para LAURITA) Vem mexer o arroz aqui, “Madama”, que eu vou ali olhar a menina. (PARA A CRIANÇA) Hora da sopinha, meu neném Laurita, amiga inseparável, aceita com tranquilidade suas atitudes, atribuindo‐as a um destino pré‐determinado: (LAURITA) Tu parece um bicho. Sai por aí batendo a cabeça na parede... (JF) Eu quero é me endireitar... (LAURITA) Endireitar o quê? Tu já nasceu torto... (cena da janela do quarto) 2º) JF X OUTROS PERSONAGENS (MESMA CLASSE SOCIAL) Por um lado, JF inspira respeito, por sua altivez, valores éticos (legítimos para o segmento populacional em questão) e inteligência; por outro, medo, pelas suas habilidades como capoeirista. (AMADOR) Sabe, estive pensando... você bem que poderia vir aqui todos os dias... (JF, rindo) Ah, entendi. Eu fazia a segurança, ninguém brigava, e os clientes aumentam, né? (cena do Bar Danúbio‐I) (AMADOR, sério) Não. Aqui não é lugar de show. (JF, colocando‐se à sua frente e encarando‐o) Mas a minha pessoa acha que é. (cena do Bar Danúbio‐II) Não se poupa, entretanto, em associar “violência” com estratégia de sedução, quando fala ao personagem Renatinho, tentando estabelecer sedução (Tu sabe que foi por você e por mais ninguém que eu quebrei a cara daquele patureba, não sabe? Foi por esses olhos de madrepérolaque eu dei aqueles golpes). 3º) JF X PERSONAGENS DA CLASSE DOMINANTE JF, melhor do qualquer outro personagem do filme, reconhece sua situação de excluído pelas classes média e favorecida economicamente, o que não quer dizer que não reaja – veementemente – à tal situação. Vejam‐se os exemplos: EXEMPLO 1 Para VITÓRIA ( dona do Cabaré, com extrema educação) Desculpe com a minha pessoa, isso nunca mais vai acontecer. É que sou apaixonadíssimo por esse número. Até perdi a noção (VITORIA) Perdeu a noção? Tu acha que tu é quem, hein? Chega atrasado, fica me imitando desse jeito, vestindo a minha roupa... (JF) Desculpa... (Vitória) Ai, que despropósito isso! (JF) Desculpa... (VITÓRIA) Bem que me avisaram, não confia nesse preto... vai, vai, vai fechar a porta! / JF reage e agarra‐lhe os cabelos/ (VITÓRIA) Tá maluco? ( JF) O nego ficou maluco, sim senhora (...) Nunca mais me trate desse jeito! (...) Precisava me tratar desse jeito por causa de uma coisinha de nada? (cena do camarim) EXEMPLO 2 (/SEGURANÇA) Por favor, queiram se retirar do recinto ! (JF) Por quê? (SEGURANÇA) Porque não podem (JF) Por que não podemos? (SEGURANÇA) Porque aqui não entra nem puta nem vagabundo ! (/JF) E tem algum nome desses escrito na minha cara? (cena da tentativa de entrada no High Life Clube) O “escrito” também vale para os elementos policiais. Depois de revistarem a casa de João, a que denominam “mafuá”, lêem para ele uma intimação, acusando‐o (infundadamente) de furto, queixa realizada por proprietários de um “estabelecimento”, com direito a adjetivação e endereço (a queixa vem do apurado Cabaré Lux, localizado na rua do Boticário, número 68). E se JF tem apenas prenome, o mesmo não ocorre com os queixosos (... da parte do Senhor Gregório Albuquerque Freitas e da Senhora Vitória Aparecida Ximenes dos Santos Cruz, proprietários do estabelecimento). A voz social também atua “in off”, ou seja, as palavras de um juiz são proferidas, na sua segunda condenação – é essa a cena que inicia o filme ‐, mas a câmera só focaliza o personagem principal.  O sindicado que também diz chamar‐se Benedito Entobajá da Silva é conhecidíssimo na jurisdição desse Distrito Policial como desordeiro, sendo freqüentador contumaz da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar. Exprime‐se com dificuldade. Intercala em sua conversa palavras da gíria de seu ambiente. É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele dados os seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana‐se de possuir economias, mas como não aufere proventos de trabalho digno, só podem ser essas economias produtos de atos repulsivos ou criminosos. Pode‐se adiantar que o sindicado já respondeu a vários processos e sempre que ouvido em cartório provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É indivíduo de temperamento calculado, propenso ao crime. E por todas as razões é inteiramente nocivo à sociedade. Rio de Janeiro, Distrito Federal, doze dias do mês de maio do ano de 1932. A voz da condenação, infelizmente, parte de um senso comum, de caráter ideológico, projetando, no discurso, uma “imagem social” (um “self coletivo”, na teoria psicanalítica) que não coincide com as cenas visualizadas, veiculadas pelo filme. Veja‐se: *O sindicado que também diz chamar‐se Benedito Entobajá da Silva é conhecidíssimo na jurisdição desse Distrito Policial como desordeiro, sendo freqüentador contumaz da Lapa e suas imediações JF sempre foi conhecido pelo seu verdadeiro nome, pelos companheiros e por pessoas, mesmo de outra classe social, que com ele conviviam. *É pederasta passivo, usa sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. A figura do “travesti” – embora existisse na época, como é o caso de Tabu – não tinha nenhuma projeção social, diferentemente de JF que é conhecido e, por muitos, respeitado. Além disso, só “altera a própria voz” em suas apresentações no palco, travestido em personagens que unem o masculino e o feminino. *Não tem religião alguma. Por certo, à época, o conceito de religião era preenchido por conceitos como “catolicismo” ou “protestantismo” Por duas vezes, JF se declara ... filho de Iansã com Ogum e afirma, em determinado momento, que ... se alguém disser ao contrário, meu São Jorge será minha testemunha. * Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Elementos da classe média ‐ como Gregório, dono do Cabaret e os agentes policiais ‐ também são fumantes. Além disso, não há um único consumo de bebida que o leve à referida condição no filme. Por fim, o assassinato que comete é justamente contra alguém, um cliente do Bar Danúbio Azul, totalmente sob estado de embriaguez, que o ofende e o agride física e moralmente. *Sua instrução é rudimentar. Exprime‐se com dificuldade. Intercala em sua conversa palavras da gíria de seu ambiente. Mesmo que JF revele não ter freqüentado escola (“Eu posso ser analfabeto, mas cega minha pessoa não é”), seu vocabulário é rico e criativo. Observem‐se os excertos: Sherazade inventava fantásticas históricas de amor e aventura... Como estou? Alinhadíssimo, como sempre Por favor, cavalheiro, vamos zelar pela paz deste recinto? Sou protegido por Josephine Baker. *É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele dados os seus vícios. Sempre que convive com pessoas de outra classe, procede educadamente – a falta de postura e a clara discriminação desta última é que lhe afastam dela. *É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana‐se de possuir economias, mas como não aufere proventos de trabalho digno, só podem ser essas economias produtos de atos repulsivos ou criminosos. Judicialmente, ninguém pode ser incriminado pelas pessoas com quem é visto. Quanto ao dinheiro, é especulação. * Pode‐se adiantar que o sindicado já respondeu a vários processos e sempre que ouvido em cartório provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É indivíduo de temperamento calculado, propenso ao crime. E por todas as razões é inteiramente nocivo à sociedade. Rio de Janeiro, Distrito Federal, doze dias do mês de maio do ano de 1932. De fato, várias são seus processos, mas seu temperamento não é calculado – ao contrário, JF mostra‐se intempestivo, totalmente imprevisível. E a afirmação de “ser propenso ao crime” não se baseia em nenhuma análise psicológica. O problema é que a voz social não o julga como “cidadão”, porque, para o contexto da década, ele não possui este estatuto – o mesmo ocorrendo com outros elementos da narrativa, igualmente desfavorecidos economicamente. 4º) JOÃO X JOÃO‐ELE‐MESMO Um fato inusitado com relação ao personagem – como um corolário de sua dualidade – é o fato de ele referir‐se a si próprio de duas maneiras: “eu” (=ele próprio) e “a minha pessoa” (uma espécie de alter‐ego que sempre aparece em situações em que se sente acuado ou quando não consegue uma resposta para uma pergunta que ele mesmo se faz). EXEMPLO 1 GREGÓRIO : Eu não te despedi... JF: Eu mesmo despedi a minha pessoa!. EXEMPLO 2 JF para LAURITA: Não adianta querer conversar comigo porque eu mesmo já conversei comigo mesmo e já resolvi comigo mesmo que não vou ter profissão artística. Cansei de torcer pela minha pessoa. EXEMPLO 3 LAURITA: E por que que tu não te acalma? JF: Tem uma coisa em mim que não me deixa... LAURITA: E que coisa é essa? JF: Não sei... é raiva... LAURITA: Tu parece que tem raiva de estar vivo... JF: Vai ver que é... LAURITA: Mas essa raiva passa... JF: Pois em mim, na minha pessoa, parece que só aumenta uma raiva que não tem fim... 4.2 – EUe (A PRODUÇÃO) X TUd (A CRÍTICA ESPECIALIZADA) Pelo fato de não podermos agruparmos todos os depoimentos dos elaboradores da cena 1)
2)
3)
4)
discursiva – o filme, em si ‐, optamos por focalizar as declarações do diretor, extraídas de comentários por ele realizados na própria divulgação da película em DVDs. Utilizamos 8 (oito) jornais nacionais 4 (quatro) internacionais para os excertos relativos à crítica especializada. (A) Karim Aïnuz optou por um caminho CONTRÁRIO ao esperado pela maioria dos telespectadores – que, no mínimo, aguardavam o que, para os produtores, seria, na verdade, o personagem MADAME SATÃ, título do filme. “Minha intenção foi tentar construir uma crônica íntima do cotidiano do personagem. Eu não queria falar do mito nem do que aconteceu depois mas da pessoa, do pré‐mito. Do João Francisco que não sabia que ia ser mito nem que entraria para a história da cidade como Madame Satã”. Ao entender que ao “...longo da vida, ele sempre foi um excluído”, também se fascina pelos próprios rituais conflitivos e contrastivos de sua personalidade, afirmando que “... o curioso foi a sua forma de reagir: por meio da raiva, da criatividade, da violência, da doçura”. (B) A posição da CRÍTICA ESPECIALIZADA também é controversa. Embora o filme tenha recebido diversas indicações para prêmios nacionais e internacionais (Grande Prêmio BR de Cinema Brasileiro, 2003 (Brasil) – Melhor Atriz , Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino, Melhor Maquiagem; Chicago International Film Festival (EUA) – Melhor Filme; Festival de Havana , 2002 (Cuba) ‐ Melhor Direção de Arte e Prêmio Especial do Júri para Melhor Primeiro Trabalho (Karim Ainouz); Troféu APCA 2003 (Associação Paulista de Críticos de Arte, Brasil) – Melhor Ator e Melhor Diretor.; Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2002 (Brasil) – Prêmio Especial do Júri (Lázaro Ramos); Festival de Cartagena 2004 (Colômbia); Indicado na categoria de Melhor Filme; Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente 2003 (Argentina) – Menção Especial e indicado na categoria de Melhor filme), em nenhum testemunho ou documento por nós recolhido (e foram mais de vinte, entre nacionais e estrangeiros) jamais se afirma que a película é de qualidade, refinada na sua edição – ou, como se coloquialmente afirma, “que é um bom filme”. Aliás, nem os próprios adjetivos referentes à película são coincidentes. Quatro exemplos justificam, a nosso ver, as posições várias. Observem‐se: “uma das estréias mais VIGOROSAS de nosso recente cinema brasileiro” (O Globo) “... ELEGANTE” (Time out) “... AUDACIOSO” (Folha de São Paulo) “... FASCINANTE e PERTURBADOR” (Le Figaro) 5‐ CONCLUSÃO Propusemo‐nos, neste trabalho, utilizando‐nos de o filme “Madame Satã” como corpus, a investigar as situações de contraste/de conflito na construção do protagonista moderno. O protagonista dessa narrativa, João Francisco (Madame Satã, ao final) – Eu‐comunicante do discurso que analisamos – deixa marcas evidentes tanto no material verbal (componente lingüístico) por ele empregado, como nas situações/instâncias de atuação (material psicossocial) em que se envolve. A análise do filme nos leva a confirmar nossa hipótese, pois, no discurso que se constrói na narrativa sob crivo, a contradição (o contraste, o conflito) – marca demasiadamente humana, marca essencialmente mítica – ao ser pensada pela perspectiva do processo de semiotização do mundo proposto por Charaudeau (2005), torna, pelo processo de transformação, o mundo a significar, exposto na película, em mundo significado, pois é ela (a contradição) que faz daquele personagem AO MESMO TEMPO um ser dócil e agressivo com aquela família a qual adotou para si; solícito, gentil e impositivo com os outros personagens que fazem parte de sua classe social; violento e sedutor com o “objeto” de seu desejo; submisso e insubordinado, educado e grosseiro com os que estão numa posição sócio‐econômica superior a sua – porém, jamais passivo diante daqueles que aviltam ou tentam aviltar os seus direitos e é ela também que termina por lhe conferir a AURA MÍTICA. Ratifica‐se o fato também pela memória popular, no samba‐enredo a ele dedicado, pela agremiação carnavalesca Lins Imperial, em 1999: E, no República, brilha João fantasiado de morcego Ganhou o vulgo de Madame Satã Pela polícia que roubou o seu sossego Satã é mais um ANJO que o INFERNO acolheu (bis) A Lapa é um mundo que eles jamais esqueceu. Em outros termos: Madame Satã era negro, homossexual, malandro, violento – o que, em 1932, seriam índices de “apagamento” social, esquecimento “apropriado”, mácula “sem perdão” que o ideológico discriminatório prefereria esquecer. No entanto, por algum tipo de ironia, a imagem dele criada (e alimentada nas/pelas circunstâncias de seu meio) IMORTALIZA‐
O em uma película , exibida em circuitos nacionais e internacionais, vencedora inquestionável de vinte e um dos trinta e cinco prêmios a que fora indicada. De fato, para um novo mundo, um novo protagonista. Para um novo protagonista, a revisão do conceito de herói – para um mundo transverso, um herói à sua altura. 6‐ BIBLIOGRAFIA CARNEIRO, Agostinho Dias (org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996. CHARAUDEAU, Patrick. Por uma nova análise do discurso. In: CARNEIRO, Agostinho dias. O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996. ______. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006 ______. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2007 CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993 GAVAZZI, Sigrid. Marcas morfossintáticas como procedimentos argumentativos na interação prefeito/(e)leitores. In: GAVAZZI, Sigrid et al. (orgs.) Português em debate. Niterói: EDUFF, 1999. ________. Estratégias argumentativo‐contrastivas em entrevistas com professores: esboço de um perfil ideológico. In: Cadernos Pedagógicos e Culturais. v. 6/ no. 1‐2/ 1997 KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais : identidade e política entre o moderno e o pós‐moderno. Bauru : EDUSC, 2001. KOTHE, Flávio R. O herói. São Paulo: Ática, 1985. PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino & GAVAZZI, Sigrid (orgs.) Da língua ao discurso : reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005 CAPOTE (2006) BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS(2008) MADAME SATÃ (2004) 
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1) O “ERA UMA VEZ....” NÃO EXISTE MAIS