NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UM
TRABALHO DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DO
MUNICÍPIO DE SÃO CARLOS, SÃO PAULO
Osmair Benedito da Silva1
Sabrina Maria de Amorim1
Luciana Nobre de Abreu Ferreira1
Salete Linhares Queiroz2
1
2
Universidade Federal de São Carlos
Instituto de Química de São Carlos – USP
RESUMO
Neste trabalho nos propusemos a apresentar considerações a respeito de
reflexões advindas de professores em formação continuada da rede municipal de São
Carlos-SP, a respeito de suas práticas educativas, tendo como base discussões baseadas
na leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire. Participaram da
formação dois professores coordenadores e dezessete educadores que lecionam no
ensino fundamental da unidade escolar mencionada, tanto no Ensino Regular, quanto na
Educação de Jovens e Adultos (EJA). Após a leitura, os educadores foram instigados a
fazer considerações sobre sua concordância ou não com os saberes apontados pelo
autor. Solicitamos ainda que fizessem comparações com tais saberes e suas práticas em
sala de aula. Verificamos que os professores apontam principalmente como pontos
concordantes entre suas convicções e os saberes colocados por Freire que ensinar exige
respeito aos saberes dos educandos. Assim, eles consideram que este saber acarreta
outros benefícios como o favorecimento do diálogo em sala de aula. Os educadores
enfatizam também a ética como aspecto fundamental da prática educativa e alicerce
para que outros saberes venham à tona. No entanto, observamos também que poucos
professores se reportaram aos saberes que remetem mais diretamente às características
do professor-pesquisador. Sugerimos, a partir da literatura relacionada aos estudos sobre
formação de professores, alguns elementos que podem justificar a dificuldade dos
professores em pesquisar suas práticas: o conceito de pesquisa como algo complexo e,
por conseguinte, a falta de incorporação dos resultados de pesquisa em sala de aula,
além das influências de prováveis “falsa segurança” e “formação ambiental” nos
educadores. Os resultados obtidos sinalizam a necessidade de se proporcionar novas
discussões em trabalhos de formação continuada de professores de modo a estimular a
prática reflexiva nos mesmos.
Palavras-chave: Paulo Freire; formação continuada; práticas educativas.
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INTRODUÇÃO
No meio educacional e na sociedade em geral, os discursos sobre a má qualidade
dos professores e o desinteresse dos alunos é recorrente. Ao mesmo tempo, nesses
espaços, o discurso que atribui à educação o papel de melhorar a qualidade de vida das
pessoas também é constante. Assim, as questões sobre a formação dos professores, tanto
inicial quanto continuada, têm sido amplamente discutidas na sociedade, especialmente
entre professores, alunos e pesquisadores em educação.
De acordo com Galiazzi (2003), a preocupação com a formação dos professores
começou a ganhar destaque na década de 70, a partir de uma perspectiva tecnicista, na
qual o professor era visto como um organizador de conteúdos. Segundo Villani e Pacca
(1997), nesse período o desenvolvimento de recursos tecnológicos e didáticos quase
autônomos e a focalização do professor como gerente dos recursos obscureceram de
certa forma a importância do conhecimento científico do docente em favor de
habilidades de organização.
Na década de 80, observou-se uma multiplicação de instâncias de controle dos
docentes, por meio de práticas institucionais de avaliação; além de haver um novo
direcionamento do olhar sobre a vida e a pessoa do professor. Na década de 90, a área
viveu uma “crise de paradigmas” e o discurso do “professor-reflexivo” surgiu e foi
ganhando força (Forteza & Diniz, 2004). Essa questão do professor-reflexivo está
contemplada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores
(Brasil, 2002), que destaca a importância do movimento ação-reflexão-ação na ação do
professor e o aprimoramento de práticas investigativas na formação docente.
O marco inicial da tendência do professor-pesquisador deve ser localizado na
Filosofia Educacional de John Dewey, nos Estados Unidos, no início do século XX.
Para ele, a educação está sempre reconstruindo a experiência concreta, ativa e produtiva
de cada sujeito. Dewey acreditava que a experiência concreta de vida surge quando a
pessoa se defronta com problemas. No caso específico do professor, pode ser um
problema relativo à sua prática docente. O objetivo da educação consiste na
reconstrução e reconstituição da experiência (Maldaner, 2006).
No Brasil, Anísio Teixeira desenvolveu sua prática político-educacional sob
inspiração do pensamento de Dewey. A contribuição de Anísio Teixeira foi importante,
pois foi ampliada por Paulo Freire, nas décadas de sessenta e setenta, sobretudo ao
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focalizar a relação dialógica entre docente e aprendiz e o compromisso com uma busca
de uma educação libertadora para ambos (Forteza & Diniz, 2004).
Os trabalhos sobre formação continuada reportados na literatura, em geral,
sugerem o desenvolvimento de pesquisas e a participação em grupos de reflexão
coletiva como alternativas para o desenvolvimento profissional de professores. A ideia
básica é partir da experiência didática dos professores para desenvolver a formação
continuada. Segundo Maldaner (2006), ao não se negar as práticas atuais dos
professores, novas teorias educacionais levadas ao contexto de formação continuada
tornam-se, potencialmente, instrumentos mediadores de novas construções de
significados à medida que passam a ser usadas voluntariamente por eles.
Nessa perspectiva, apresentamos neste trabalho reflexões de professores de uma
escola municipal paulista advindas de um trabalho de formação continuada, a partir da
leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire (1996). Tais reflexões estão
assentadas na leitura que os professores fizeram dos saberes evidenciados no capítulo
Não há docência sem discência e nas relações que fazem com os saberes que permeiam
a sua prática educativa. Apresentamos também uma análise do perfil desses
profissionais, de modo a caracterizar os participantes desta pesquisa.
METODOLOGIA
O trabalho de formação continuada ocorreu em uma escola municipal da
periferia de São Carlos, no primeiro semestre de 2008, nas reuniões de horas de trabalho
pedagógico
coletivo
(HTPCs).
Participaram
da
formação
dois
professores
coordenadores e 17 educadores que lecionam no ensino fundamental da unidade escolar
mencionada, tanto no ensino regular, quanto na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Nas reuniões foi proposta a leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo
Freire. Os professores foram divididos em pequenos grupos com três integrantes cada.
Cada grupo foi incumbido de ler todo o livro e este foi dividido em partes, de modo que
cada grupo pudesse apresentar uma dessas partes, na forma de seminários, com
posterior discussão, para que cada participante pudesse expressar suas ideias e
compartilhar experiências. Dessa forma, todo o livro foi estudado e discutido pelos
professores.
Ao final do semestre foi aplicado um questionário. Nas duas primeiras partes do
questionário haviam questões fechadas com perguntas de múltipla escolha, sendo que os
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respondentes poderiam optar por mais de uma alternativa em cada questão. Nessa parte
do questionário, o intuito era coletar informações a respeito de diversos aspectos, como:
área de formação, formação complementar, participação em eventos, tempo de
magistério, metodologias e recursos didáticos que utilizam, entre outros. Na terceira
parte do questionário eram feitos questionamentos a respeito das discussões oriundas da
leitura do livro em questão, os quais tratavam das impressões dos professores a respeito
do livro e, especialmente, das observações feitas a partir da leitura do capítulo Não há
docência sem discência.
“Pedagogia da autonomia” – Não há docência sem discência
Em “Pedagogia da autonomia”, Paulo Freire aborda a prática educativa no
cotidiano da sala de aula e fora dela, discorrendo sobre o desenvolvimento da formação
docente e o que constitui o universo educacional, mantendo sempre uma visão crítica e
democrática.
O autor defende com veemência a autonomia do educando e sugere a reflexão
sobre a prática educativa, afirmando que formar é muito mais que puramente treinar o
educando no desempenho de destrezas. Segundo ele, a responsabilidade dos professores
e dos que estão em formação é muito grande. Dessa forma, faz-se necessário o processo
de mudança, as lutas, a criticidade e o exercício da cidadania para a efetivação da
prática docente. A reflexão crítica sobre a prática pedagógica para o docente torna-se
uma exigência da relação entre teoria e prática.
Assim, uma das preocupações centrais de Paulo Freire é a formação de
professores. As suas palavras conduzem o leitor a reconhecer entre outros objetivos, a
necessidade de dar ao formando a oportunidade – desde o começo da sua vida
acadêmica – de assumir-se como sujeito da produção do saber.
No capítulo Não há docência sem discência o autor deixa claro que o professor
deve ser um grande aprendiz e estar aberto a aprender com a realidade de seus
educandos. Assim, ele apresenta saberes que considera indispensáveis à prática docente,
“demandados pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do
educador ou educadora” (Freire, 1996, p.21):
1. Ensinar exige rigorosidade metódica, de modo que o que se ensina não se esgote no
tratamento do objeto ou conteúdo, mas se estenda à produção de condições que
tornem o “aprender criticamente” possível;
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2. Ensinar exige pesquisa, pois, segundo Freire (1996, p.29), “não há ensino sem
pesquisa e pesquisa sem ensino”. Assim, o autor evidencia que enquanto ensina o
professor deve sempre buscar para constatar. Isso implica a superação do senso
comum e o estímulo à capacidade criadora do aluno;
3. Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. O professor não deve somente
respeitar os saberes socialmente construídos pelos estudantes, na prática comunitária,
mas também discutir com os alunos a relação entre esses saberes e os conteúdos;
4. Ensinar exige criticidade, para que a “curiosidade ingênua” seja superada pela
“curiosidade epistemológica”;
5. Ensinar exige estética e ética, uma vez que a prática educativa “tem de ser um
testemunho rigoroso de decência e pureza” (idem p.33) e, ao se respeitar a natureza
do ser humano, o ensino de conteúdos não pode ser dado à parte da formação moral
do educando;
6. Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo, ou seja, as palavras e
ações do professor devem seguir os mesmos caminhos, pois “não há pensar certo
fora de uma prática testemunhal” (idem p.34);
7. Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação. Quem ensina está vulnerável ao risco e não pode negar o novo. Do
mesmo modo, deve-se rejeitar qualquer discriminação, não apenas no discurso, mas
também com a força do testemunho;
8. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. A prática docente crítica envolve o
movimento dinâmico entre o fazer e o pensar sobre o fazer;
9. Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural, ou seja, o
professor deve assumir-se como ser social e histórico e nenhuma formação docente
pode fazer-se alheia ao reconhecimento do valor das emoções.
RESULTADOS
Caracterização dos educadores
Dos 17 educadores participantes da formação continuada, 70% são do sexo
feminino e 30% do sexo masculino, com idades que variam de 25 a 62 anos. Com
relação à formação desses professores, 76% têm formação na área das Ciências
Humanas (Letras, História, Geografia, Educação Artística, Ciências Sociais e
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Pedagogia), 12% na área das Ciências Exatas (Matemática e Ciências Exatas) e 12% em
Ciências Biológicas (Biologia), e lecionam as disciplinas dessas áreas.
A grande maioria desses profissionais possui uma formação complementar. Do
grupo analisado, dois professores são mestres, seis têm curso de especialização e dois
estavam fazendo o curso de especialização no momento de realização da pesquisa.
Quatro professores participaram de cursos de extensão universitária e um estava
realizando o curso de Pedagogia.
Quanto à participação em eventos, somente um professor afirmou não ter
participado de simpósios, encontros ou congressos na área de ensino nos últimos cinco
anos. O menor tempo de atuação informado foi de dois anos e o maior de 24 anos. Com
relação às suas atuações em outros estabelecimentos, os professores informaram, ainda,
que lecionam nas redes estadual, municipal e particular de ensino e ministram entre 6 e
58 horas-aula semanais, tanto no ensino fundamental, quanto no ensino médio.
No segundo bloco do questionário os profissionais foram indagados sobre as
metodologias utilizadas no decorrer de seus cursos de graduação e foram,
essencialmente, aulas expositivas. No entanto, eles também relataram experiências com
outros tipos de metodologias como apresentação de seminários (88%) estudos em
grupos (76%) e aulas expositivas dialogadas (76%). Em contrapartida, os educadores
apontam como principais metodologias usadas em suas práticas docentes as aulas
expositivas (94%) e as expositivas dialogadas (88%).
Os principais recursos didáticos que os educadores relataram fazer uso são:
quadro negro (100%), listas de exercícios (76%), filmes (70%), textos de revistas,
jornais e livros (70%), livro texto (64%) e relatórios (23%), entre outros.
Todos os educadores declararam ter acesso a computadores, seja em casa (88%),
na universidade (17%) ou na unidade escolar na qual trabalham (11%). Os educadores
informaram também que usam a internet com objetivos variados: busca de informações
para planejamento de aulas e trabalhos (94%), verificação de email (94%),
entretenimento (47%) e participação em comunidades virtuais (11%).
Quando questionados sobre o planejamento dos cursos, observamos que 35%
deles afirmaram que se reúnem para programar o curso em conjunto, 76% seguem
orientações dos professores coordenadores, 41% se orientam com as sugestões da
Diretoria de Ensino ou da Secretaria Municipal de Educação por meio de documentos,
58% trabalham independentemente, 23% combinam procedimentos citados e 11%
seguem um determinado material didático pronto.
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Resultados provenientes da leitura do livro
Conforme mencionado anteriormente, faziam parte do questionário respondido
pelos professores questões a respeito da leitura e discussão concernentes ao livro
“Pedagogia da autonomia”. Dessa forma, neste tópico teceremos considerações sobre as
respostas dadas pelos educadores para o seguinte questionamento pertencente ao
referido questionário: Em relação ao capítulo 1, “Não há docência sem discência”,
diga com suas palavras se você concorda com o autor sobre todas as exigências
necessárias para se ensinar. Ao final, reflita sobre sua prática docente comparando o
que é exigido e o que você realiza quando leciona.
Com relação à primeira parte do questionamento, verificamos que todos os
professores concordam com Freire (1996) – embora em graus variados – no que
concerne aos saberes necessários à prática docente apontados por ele. Ao tecerem
comentários a esse respeito, os educadores indicaram os saberes que mais se
assemelham às suas convicções. O saber citado com maior frequência se refere ao
respeito que o professor deve ter com os saberes dos educandos, aqueles advindos de
sua vivência fora da escola, do senso comum. Observamos que alguns professores se
referem a esse saber como base para que haja o diálogo em sala de aula, uma vez que o
professor pode tirar proveito desses conhecimentos para articular a troca de informações
e, dessa forma, relacionar os conteúdos. Esses aspectos podem ser observados nas
respostas de dois professores, apresentados nos fragmentos 1 e 2:
Fragmento 1
“... o que Paulo Freire propõe é o diálogo, com trocas de informações,
respeito às origens, às diferenças e a própria pessoa em si, no qual os
dois lados aprendem”.
Fragmento 2
“Sim. Concordo, pois o professor não só ensina mas também aprende, o
aprender envolve diversos saberes e é preciso aproveitar o que já se
sabe, cabe ao professor interagir, intervir nesses saberes para que haja
construção do saber”.
No fragmento 3 observamos que um dos professores encara o saber em pauta
como uma responsabilidade do docente para com seus alunos:
Fragmento 3
“Sim, concordo com o ponto de vista que os educadores têm uma
grande responsabilidade para com os educandos. Sendo assim, as
exigências que demandam dessa responsabilidade (...) precisam ser
trabalhadas e levadas muito a sério, pois só assim as duas partes saem
igualmente satisfeitas e recompensadas”.
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Outro professor concorda com a importância de se levar em conta os saberes do
senso comum dos educandos, contudo, alerta para a necessidade de se fundamentar
adequadamente as relações entre esses saberes e os conteúdos (Fragmento 4):
Fragmento 4
“De todas as orientações de Paulo Freire, acredito que a mais
importante deve ser a de levar verdadeiramente a sério o conhecimento
não escolar do aluno na construção do conhecimento científico. Essa
orientação, porém, é muito delicada se não for bem fundamentada”.
A importância de os professores entenderem que ensinar exige respeito aos
saberes dos educandos também é apontada no trabalho de Carvalho e Gil-Pérez (2009).
Esses autores descrevem quais conhecimentos teóricos seriam necessários para a
aprendizagem das ciências e apontam a necessidade de os educadores reconhecerem a
existência de concepções espontâneas, assim como sua origem; saberem que os alunos
aprendem significativamente construindo conhecimentos e que tais conhecimentos são
respostas a questões, o que implica propor a aprendizagem a partir de situações
problemáticas de interesse para os alunos.
Alguns professores enfatizaram também que concordam com Paulo Freire sobre
a importância da ética na prática educativa. Um deles a coloca como aspecto
fundamental para que outros valores em sala de aula sejam alcançados, como o respeito
ao aluno e a segurança nas suas próprias argumentações (Fragmento 5). Este último
aspecto inclui outro saber apontado por Freire: ensinar exige a corporeificação das
palavras pelo exemplo.
Fragmento 5
“Concordo com o autor em relação a todas as exigências necessárias
para a prática de ensino; nesse sentido, enfatizo a questão ética, tanto
no que se refere ao respeito ao aluno e a sua condição como tal,
considerando todo o conhecimento que lhe é próprio e concernente a
sua realidade, como no que se refere ao posicionamento do professor
que, também como sujeito político, deve participar suas ideias e, sem as
impor, fazê-las de conhecimento de seus alunos, possibilitando a
discussão das mesmas, seja para que sejam aceitas ou não.”.
A ética também é apontada por outro professor como necessária para que sejam
colocados em funcionamento os saberes ligados à importância da rigorosidade metódica
e da pesquisa para a prática educativa (Fragmento 6):
Fragmento 6
“Um professor ético e profissional necessariamente pesquisa e planeja
as suas aulas. E, quando se avalia reflete sobre sua prática...”.
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Faremos a partir de então considerações a respeito dos comentários dos
educadores relacionados a três saberes que, na nossa convicção, estão estreitamente
ligados: ensinar exige pesquisa, criticidade e reflexão crítica sobre a prática.
Observamos que poucos professores fizeram referências a esses saberes. Os fragmentos
7, 8 e 9, à semelhança do fragmento 6, exemplificam essas questões:
Fragmento 7
“Enfatizo (...) a questão crítica sobre a prática docente, instrumento de
suma importância para o processo como um todo”.
Fragmento 8
“Sim, concordo. Acho que o educador que se compromete com sua
prática pedagógica deve refletir, analisar e avaliar agindo de acordo
com as exigências referidas pelo autor”.
Fragmento 9
“Sim, uma vez que um professor comprometido com sua prática
educativa deve a todo o momento planejar, refletir e avaliar o processo
de ensino-aprendizagem com seus alunos”.
Algumas considerações reportadas na literatura a respeito de estudos sobre
formação de professores nos ajudam a justificar tais resultados, especialmente aquelas
ligadas ao professor-pesquisador. Moreira (1988) destaca que é possível melhorar o
ensino pela experiência, mas, por meio da pesquisa, chega-se a resultados mais
significativos e respostas mais abrangentes. Assim, o autor defende que não se deve
entender pesquisa como algo trivial nem como algo extremamente complexo. Esse
conceito de pesquisa como algo exclusivo de especialistas, que remetem à noção de
pesquisa acadêmica, é geralmente apontado como um dos fatores que excluem o
professor dessa prática (Moreira, 1988; Maldaner, 1999). Segundo Maldaner (2006) a
concepção restrita dada à pesquisa pelas “comunidades científicas” é um dos principais
fatores que dificultam a implementação da pesquisa como prática de formação.
Além disso, alguns pesquisadores são unânimes em apontar a exclusão do
professor das pesquisas como o fator responsável pela falta de incorporação dos
resultados de pesquisas nas salas de aula (Moreira, 1988; Galiazzi, 2003; Maldaner,
2006; Carvalho & Gil-Pérez, 2009). Para Moreira (1988) o professor só assumirá o
papel de usuário da pesquisa quando ele se sentir comprometido com os resultados, ou
seja, quando ele também fizer pesquisa.
Outro problema apontado nos estudos sobre a formação de professores e que
pode explicar o distanciamento demonstrado pelos professores a respeito da reflexão
sobre a própria prática diz respeito ao que é denominado pelos autores de “falsa
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segurança”. Segundo Maldaner (2006), a ideia do profissional professor está
profundamente enraizada na vivência cultural de cada pessoa. Esse talvez seja um dos
maiores problemas relacionados à formação de professores: antes de atuar como
docente, o futuro professor já foi aluno durante pelo menos 16 anos (Flores, 1999). Para
Flores (1999) é justamente nessa “familiaridade” que reside a origem dos problemas de
formação, pois ela passa ao profissional uma “falsa segurança”.
Além da “falsa segurança”, outra consequência do longo período em que o
professor foi aluno é o desenvolvimento de ideias, atitudes e comportamentos sobre o
ensino, conhecidas como “formação ambiental” ou “pensamento docente espontâneo”
(CARVALHO Carvalho & Gil-Pérez, 2009). Os autores afirmam, ainda, que as
pesquisas em ensino vêm percebendo a grande influência dessa formação, devido
principalmente à sua natureza de exemplo vivo, o que a torna muito mais eficaz que
qualquer explicação. Corresponde a experiências adquiridas de forma não-reflexiva
como algo natural, escapando assim à crítica e transformando-se em um verdadeiro
obstáculo (Carvalho & Gil-Pérez, 2009).
As dificuldades apontadas anteriormente são corroboradas pelos depoimentos de
alguns professores a respeito da segunda parte do questionamento feito a eles, quando
lhes era solicitado que comparassem os saberes apontados por Paulo Freire com aqueles
por eles praticados. Em algumas respostas observamos insegurança por parte dos
educadores em fazer afirmações a respeito de tais relações, como nos fragmentos 10, 11
e 12:
Fragmento 10
“É difícil dizer se sou solidário, ético ou dedicado; tento realizar meu
trabalho respeitando os educandos”.
Fragmento 11
“Nem sempre conseguimos seguir a pedagogia pregada por Paulo
Freire, mas é dessa forma que tento trabalhar, como elemento
transformador e não como transmissor de conhecimento”.
Fragmento 12
“Acredito nisso, mas deixo uma questão: ‘Será que o professor tem
tempo?’ Hoje o professor ‘auleiro’ não consegue ser professor
pesquisador”.
No entanto, verificamos nos depoimentos de alguns professores indícios de
reflexão da sua prática, como nos fragmentos 13 e 14:
Fragmento 13
“Desde quando comecei a dar aula, até hoje, com certeza amadureci
muito e acho que ainda vou melhorar bastante”.
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Fragmento 14
“Todos os saberes são reais e fundamentais. Sempre que analiso
minha conduta como docente, descubro que ainda tenho muito a
aprimorar”.
Vale salientar que apenas uma minoria dos professores se reportou a essa parte
da questão. Acreditamos que tal fato pode ser explicado por eles terem se empenhado
em responder a primeira parte do questionário e acabaram esquecendo-se de responder a
segunda parte. Outra justificativa estaria exatamente nas dificuldades enfrentadas por
eles em fazer tais comparações.
CONCLUSÕES
Neste trabalho nos propusemos a apresentar considerações a respeito de
reflexões advindas de professores em formação continuada a respeito de sua prática
educativa, tendo como base discussões baseadas na leitura do livro “Pedagogia da
autonomia”, de Paulo Freire (1996). Após a leitura, os educadores foram instigados a
fazer considerações sobre sua concordância ou não com os saberes apontados pelo
autor. Solicitamos ainda que fizessem comparações com tais saberes e suas práticas em
sala de aula.
Verificamos que os professores apontam principalmente como pontos
concordantes entre suas convicções e os saberes colocados por Freire que ensinar exige
respeito aos saberes dos educandos. Assim, eles consideram que este saber acarreta
outros benefícios como o favorecimento do diálogo em sala de aula. Os educadores
enfatizam também a ética como aspecto fundamental da prática educativa e alicerce
para que outros saberes venham à tona.
No entanto, observamos também que poucos professores se reportaram aos
saberes que remetem mais diretamente às características do professor-pesquisador.
Sugerimos, a partir da literatura relacionada aos estudos sobre formação de professores,
alguns elementos que podem justificar a dificuldade dos professores em pesquisar suas
práticas: o conceito de pesquisa como algo complexo e, por conseguinte, a falta de
incorporação dos resultados de pesquisa em sala de aula, além das influências de
prováveis “falsa segurança” e “formação ambiental” nos educadores.
Contudo, acreditamos na relevância da atividade proposta para a formação dos
professores envolvidos, uma vez que entendemos que as contribuições de Paulo Freire
são extremamente pertinentes à vida dos educadores, de forma que estes possam
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desempenhar seu trabalho a partir de uma prática educativa comprometida com o saberfazer docente. Tais resultados sinalizam, ainda, a necessidade de se proporcionar novas
discussões em trabalhos de formação continuada de professores de modo a estimular a
prática reflexiva nos mesmos.
REFERÊNCIAS
Brasil (2002). Ministério de Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação /
Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 1/2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de
licenciatura, de graduação plena. Brasília, DF: MEC/CNE. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_02.pdf
Carvalho, A. M. P. & Gil-Pérez, D. (2009). Formação de professores de ciências. São
Paulo: Editora Cortez.
Flores, M. A. (1999). (Des)ilusões e paradoxos: a entrada na carreira na perspectiva dos
professores neófitos. Revista Portuguesa de Educação, 12 (1), 171-204.
Forteza, M. S. & Diniz, R. E. S. (2004). Grupo de estudo: uma perspectiva de prático
crítico-reflexiva na formação continuada de professores. In: R. Nardi; F. Bastos & R. E.
S. Diniz. (Eds.) Pesquisa em ensino de Ciências: contribuições para a formação de
professores, (pp. 57-78). São Paulo: Escrituras Editora.
Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra.
Galiazzi, M. C. (2003). Educar pela pesquisa: ambiente de formação de professores de
ciências. Ijuí: Editora Unijuí.
Maldaner, O. A. (1999). A pesquisa como perspectiva de formação continuada do
professor de Química. Química Nova, 22 (2), 289-292.
Maldaner, O. A. (2006). A formação inicial e continuada de professores de Química
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Moreira, M. A. (1988). O professor-pesquisador como instrumento de melhoria do
ensino de ciências. Em Aberto, (40), 43-54.
Villani, A. & Pacca, J. L. A. (1997). Construtivismo, conhecimento científico e
habilidade didática no ensino de ciências. Revista da Faculdade de Educação, 23 (1-2),
196-214.
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