NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA: REFLEXÕES A PARTIR DE UM TRABALHO DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DO MUNICÍPIO DE SÃO CARLOS, SÃO PAULO Osmair Benedito da Silva1 Sabrina Maria de Amorim1 Luciana Nobre de Abreu Ferreira1 Salete Linhares Queiroz2 1 2 Universidade Federal de São Carlos Instituto de Química de São Carlos – USP RESUMO Neste trabalho nos propusemos a apresentar considerações a respeito de reflexões advindas de professores em formação continuada da rede municipal de São Carlos-SP, a respeito de suas práticas educativas, tendo como base discussões baseadas na leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire. Participaram da formação dois professores coordenadores e dezessete educadores que lecionam no ensino fundamental da unidade escolar mencionada, tanto no Ensino Regular, quanto na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Após a leitura, os educadores foram instigados a fazer considerações sobre sua concordância ou não com os saberes apontados pelo autor. Solicitamos ainda que fizessem comparações com tais saberes e suas práticas em sala de aula. Verificamos que os professores apontam principalmente como pontos concordantes entre suas convicções e os saberes colocados por Freire que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. Assim, eles consideram que este saber acarreta outros benefícios como o favorecimento do diálogo em sala de aula. Os educadores enfatizam também a ética como aspecto fundamental da prática educativa e alicerce para que outros saberes venham à tona. No entanto, observamos também que poucos professores se reportaram aos saberes que remetem mais diretamente às características do professor-pesquisador. Sugerimos, a partir da literatura relacionada aos estudos sobre formação de professores, alguns elementos que podem justificar a dificuldade dos professores em pesquisar suas práticas: o conceito de pesquisa como algo complexo e, por conseguinte, a falta de incorporação dos resultados de pesquisa em sala de aula, além das influências de prováveis “falsa segurança” e “formação ambiental” nos educadores. Os resultados obtidos sinalizam a necessidade de se proporcionar novas discussões em trabalhos de formação continuada de professores de modo a estimular a prática reflexiva nos mesmos. Palavras-chave: Paulo Freire; formação continuada; práticas educativas. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 1 INTRODUÇÃO No meio educacional e na sociedade em geral, os discursos sobre a má qualidade dos professores e o desinteresse dos alunos é recorrente. Ao mesmo tempo, nesses espaços, o discurso que atribui à educação o papel de melhorar a qualidade de vida das pessoas também é constante. Assim, as questões sobre a formação dos professores, tanto inicial quanto continuada, têm sido amplamente discutidas na sociedade, especialmente entre professores, alunos e pesquisadores em educação. De acordo com Galiazzi (2003), a preocupação com a formação dos professores começou a ganhar destaque na década de 70, a partir de uma perspectiva tecnicista, na qual o professor era visto como um organizador de conteúdos. Segundo Villani e Pacca (1997), nesse período o desenvolvimento de recursos tecnológicos e didáticos quase autônomos e a focalização do professor como gerente dos recursos obscureceram de certa forma a importância do conhecimento científico do docente em favor de habilidades de organização. Na década de 80, observou-se uma multiplicação de instâncias de controle dos docentes, por meio de práticas institucionais de avaliação; além de haver um novo direcionamento do olhar sobre a vida e a pessoa do professor. Na década de 90, a área viveu uma “crise de paradigmas” e o discurso do “professor-reflexivo” surgiu e foi ganhando força (Forteza & Diniz, 2004). Essa questão do professor-reflexivo está contemplada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores (Brasil, 2002), que destaca a importância do movimento ação-reflexão-ação na ação do professor e o aprimoramento de práticas investigativas na formação docente. O marco inicial da tendência do professor-pesquisador deve ser localizado na Filosofia Educacional de John Dewey, nos Estados Unidos, no início do século XX. Para ele, a educação está sempre reconstruindo a experiência concreta, ativa e produtiva de cada sujeito. Dewey acreditava que a experiência concreta de vida surge quando a pessoa se defronta com problemas. No caso específico do professor, pode ser um problema relativo à sua prática docente. O objetivo da educação consiste na reconstrução e reconstituição da experiência (Maldaner, 2006). No Brasil, Anísio Teixeira desenvolveu sua prática político-educacional sob inspiração do pensamento de Dewey. A contribuição de Anísio Teixeira foi importante, pois foi ampliada por Paulo Freire, nas décadas de sessenta e setenta, sobretudo ao ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 2 focalizar a relação dialógica entre docente e aprendiz e o compromisso com uma busca de uma educação libertadora para ambos (Forteza & Diniz, 2004). Os trabalhos sobre formação continuada reportados na literatura, em geral, sugerem o desenvolvimento de pesquisas e a participação em grupos de reflexão coletiva como alternativas para o desenvolvimento profissional de professores. A ideia básica é partir da experiência didática dos professores para desenvolver a formação continuada. Segundo Maldaner (2006), ao não se negar as práticas atuais dos professores, novas teorias educacionais levadas ao contexto de formação continuada tornam-se, potencialmente, instrumentos mediadores de novas construções de significados à medida que passam a ser usadas voluntariamente por eles. Nessa perspectiva, apresentamos neste trabalho reflexões de professores de uma escola municipal paulista advindas de um trabalho de formação continuada, a partir da leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire (1996). Tais reflexões estão assentadas na leitura que os professores fizeram dos saberes evidenciados no capítulo Não há docência sem discência e nas relações que fazem com os saberes que permeiam a sua prática educativa. Apresentamos também uma análise do perfil desses profissionais, de modo a caracterizar os participantes desta pesquisa. METODOLOGIA O trabalho de formação continuada ocorreu em uma escola municipal da periferia de São Carlos, no primeiro semestre de 2008, nas reuniões de horas de trabalho pedagógico coletivo (HTPCs). Participaram da formação dois professores coordenadores e 17 educadores que lecionam no ensino fundamental da unidade escolar mencionada, tanto no ensino regular, quanto na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nas reuniões foi proposta a leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire. Os professores foram divididos em pequenos grupos com três integrantes cada. Cada grupo foi incumbido de ler todo o livro e este foi dividido em partes, de modo que cada grupo pudesse apresentar uma dessas partes, na forma de seminários, com posterior discussão, para que cada participante pudesse expressar suas ideias e compartilhar experiências. Dessa forma, todo o livro foi estudado e discutido pelos professores. Ao final do semestre foi aplicado um questionário. Nas duas primeiras partes do questionário haviam questões fechadas com perguntas de múltipla escolha, sendo que os ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 3 respondentes poderiam optar por mais de uma alternativa em cada questão. Nessa parte do questionário, o intuito era coletar informações a respeito de diversos aspectos, como: área de formação, formação complementar, participação em eventos, tempo de magistério, metodologias e recursos didáticos que utilizam, entre outros. Na terceira parte do questionário eram feitos questionamentos a respeito das discussões oriundas da leitura do livro em questão, os quais tratavam das impressões dos professores a respeito do livro e, especialmente, das observações feitas a partir da leitura do capítulo Não há docência sem discência. “Pedagogia da autonomia” – Não há docência sem discência Em “Pedagogia da autonomia”, Paulo Freire aborda a prática educativa no cotidiano da sala de aula e fora dela, discorrendo sobre o desenvolvimento da formação docente e o que constitui o universo educacional, mantendo sempre uma visão crítica e democrática. O autor defende com veemência a autonomia do educando e sugere a reflexão sobre a prática educativa, afirmando que formar é muito mais que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas. Segundo ele, a responsabilidade dos professores e dos que estão em formação é muito grande. Dessa forma, faz-se necessário o processo de mudança, as lutas, a criticidade e o exercício da cidadania para a efetivação da prática docente. A reflexão crítica sobre a prática pedagógica para o docente torna-se uma exigência da relação entre teoria e prática. Assim, uma das preocupações centrais de Paulo Freire é a formação de professores. As suas palavras conduzem o leitor a reconhecer entre outros objetivos, a necessidade de dar ao formando a oportunidade – desde o começo da sua vida acadêmica – de assumir-se como sujeito da produção do saber. No capítulo Não há docência sem discência o autor deixa claro que o professor deve ser um grande aprendiz e estar aberto a aprender com a realidade de seus educandos. Assim, ele apresenta saberes que considera indispensáveis à prática docente, “demandados pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora” (Freire, 1996, p.21): 1. Ensinar exige rigorosidade metódica, de modo que o que se ensina não se esgote no tratamento do objeto ou conteúdo, mas se estenda à produção de condições que tornem o “aprender criticamente” possível; ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 4 2. Ensinar exige pesquisa, pois, segundo Freire (1996, p.29), “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”. Assim, o autor evidencia que enquanto ensina o professor deve sempre buscar para constatar. Isso implica a superação do senso comum e o estímulo à capacidade criadora do aluno; 3. Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. O professor não deve somente respeitar os saberes socialmente construídos pelos estudantes, na prática comunitária, mas também discutir com os alunos a relação entre esses saberes e os conteúdos; 4. Ensinar exige criticidade, para que a “curiosidade ingênua” seja superada pela “curiosidade epistemológica”; 5. Ensinar exige estética e ética, uma vez que a prática educativa “tem de ser um testemunho rigoroso de decência e pureza” (idem p.33) e, ao se respeitar a natureza do ser humano, o ensino de conteúdos não pode ser dado à parte da formação moral do educando; 6. Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo, ou seja, as palavras e ações do professor devem seguir os mesmos caminhos, pois “não há pensar certo fora de uma prática testemunhal” (idem p.34); 7. Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação. Quem ensina está vulnerável ao risco e não pode negar o novo. Do mesmo modo, deve-se rejeitar qualquer discriminação, não apenas no discurso, mas também com a força do testemunho; 8. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. A prática docente crítica envolve o movimento dinâmico entre o fazer e o pensar sobre o fazer; 9. Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural, ou seja, o professor deve assumir-se como ser social e histórico e nenhuma formação docente pode fazer-se alheia ao reconhecimento do valor das emoções. RESULTADOS Caracterização dos educadores Dos 17 educadores participantes da formação continuada, 70% são do sexo feminino e 30% do sexo masculino, com idades que variam de 25 a 62 anos. Com relação à formação desses professores, 76% têm formação na área das Ciências Humanas (Letras, História, Geografia, Educação Artística, Ciências Sociais e ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 5 Pedagogia), 12% na área das Ciências Exatas (Matemática e Ciências Exatas) e 12% em Ciências Biológicas (Biologia), e lecionam as disciplinas dessas áreas. A grande maioria desses profissionais possui uma formação complementar. Do grupo analisado, dois professores são mestres, seis têm curso de especialização e dois estavam fazendo o curso de especialização no momento de realização da pesquisa. Quatro professores participaram de cursos de extensão universitária e um estava realizando o curso de Pedagogia. Quanto à participação em eventos, somente um professor afirmou não ter participado de simpósios, encontros ou congressos na área de ensino nos últimos cinco anos. O menor tempo de atuação informado foi de dois anos e o maior de 24 anos. Com relação às suas atuações em outros estabelecimentos, os professores informaram, ainda, que lecionam nas redes estadual, municipal e particular de ensino e ministram entre 6 e 58 horas-aula semanais, tanto no ensino fundamental, quanto no ensino médio. No segundo bloco do questionário os profissionais foram indagados sobre as metodologias utilizadas no decorrer de seus cursos de graduação e foram, essencialmente, aulas expositivas. No entanto, eles também relataram experiências com outros tipos de metodologias como apresentação de seminários (88%) estudos em grupos (76%) e aulas expositivas dialogadas (76%). Em contrapartida, os educadores apontam como principais metodologias usadas em suas práticas docentes as aulas expositivas (94%) e as expositivas dialogadas (88%). Os principais recursos didáticos que os educadores relataram fazer uso são: quadro negro (100%), listas de exercícios (76%), filmes (70%), textos de revistas, jornais e livros (70%), livro texto (64%) e relatórios (23%), entre outros. Todos os educadores declararam ter acesso a computadores, seja em casa (88%), na universidade (17%) ou na unidade escolar na qual trabalham (11%). Os educadores informaram também que usam a internet com objetivos variados: busca de informações para planejamento de aulas e trabalhos (94%), verificação de email (94%), entretenimento (47%) e participação em comunidades virtuais (11%). Quando questionados sobre o planejamento dos cursos, observamos que 35% deles afirmaram que se reúnem para programar o curso em conjunto, 76% seguem orientações dos professores coordenadores, 41% se orientam com as sugestões da Diretoria de Ensino ou da Secretaria Municipal de Educação por meio de documentos, 58% trabalham independentemente, 23% combinam procedimentos citados e 11% seguem um determinado material didático pronto. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 6 Resultados provenientes da leitura do livro Conforme mencionado anteriormente, faziam parte do questionário respondido pelos professores questões a respeito da leitura e discussão concernentes ao livro “Pedagogia da autonomia”. Dessa forma, neste tópico teceremos considerações sobre as respostas dadas pelos educadores para o seguinte questionamento pertencente ao referido questionário: Em relação ao capítulo 1, “Não há docência sem discência”, diga com suas palavras se você concorda com o autor sobre todas as exigências necessárias para se ensinar. Ao final, reflita sobre sua prática docente comparando o que é exigido e o que você realiza quando leciona. Com relação à primeira parte do questionamento, verificamos que todos os professores concordam com Freire (1996) – embora em graus variados – no que concerne aos saberes necessários à prática docente apontados por ele. Ao tecerem comentários a esse respeito, os educadores indicaram os saberes que mais se assemelham às suas convicções. O saber citado com maior frequência se refere ao respeito que o professor deve ter com os saberes dos educandos, aqueles advindos de sua vivência fora da escola, do senso comum. Observamos que alguns professores se referem a esse saber como base para que haja o diálogo em sala de aula, uma vez que o professor pode tirar proveito desses conhecimentos para articular a troca de informações e, dessa forma, relacionar os conteúdos. Esses aspectos podem ser observados nas respostas de dois professores, apresentados nos fragmentos 1 e 2: Fragmento 1 “... o que Paulo Freire propõe é o diálogo, com trocas de informações, respeito às origens, às diferenças e a própria pessoa em si, no qual os dois lados aprendem”. Fragmento 2 “Sim. Concordo, pois o professor não só ensina mas também aprende, o aprender envolve diversos saberes e é preciso aproveitar o que já se sabe, cabe ao professor interagir, intervir nesses saberes para que haja construção do saber”. No fragmento 3 observamos que um dos professores encara o saber em pauta como uma responsabilidade do docente para com seus alunos: Fragmento 3 “Sim, concordo com o ponto de vista que os educadores têm uma grande responsabilidade para com os educandos. Sendo assim, as exigências que demandam dessa responsabilidade (...) precisam ser trabalhadas e levadas muito a sério, pois só assim as duas partes saem igualmente satisfeitas e recompensadas”. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 7 Outro professor concorda com a importância de se levar em conta os saberes do senso comum dos educandos, contudo, alerta para a necessidade de se fundamentar adequadamente as relações entre esses saberes e os conteúdos (Fragmento 4): Fragmento 4 “De todas as orientações de Paulo Freire, acredito que a mais importante deve ser a de levar verdadeiramente a sério o conhecimento não escolar do aluno na construção do conhecimento científico. Essa orientação, porém, é muito delicada se não for bem fundamentada”. A importância de os professores entenderem que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos também é apontada no trabalho de Carvalho e Gil-Pérez (2009). Esses autores descrevem quais conhecimentos teóricos seriam necessários para a aprendizagem das ciências e apontam a necessidade de os educadores reconhecerem a existência de concepções espontâneas, assim como sua origem; saberem que os alunos aprendem significativamente construindo conhecimentos e que tais conhecimentos são respostas a questões, o que implica propor a aprendizagem a partir de situações problemáticas de interesse para os alunos. Alguns professores enfatizaram também que concordam com Paulo Freire sobre a importância da ética na prática educativa. Um deles a coloca como aspecto fundamental para que outros valores em sala de aula sejam alcançados, como o respeito ao aluno e a segurança nas suas próprias argumentações (Fragmento 5). Este último aspecto inclui outro saber apontado por Freire: ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo. Fragmento 5 “Concordo com o autor em relação a todas as exigências necessárias para a prática de ensino; nesse sentido, enfatizo a questão ética, tanto no que se refere ao respeito ao aluno e a sua condição como tal, considerando todo o conhecimento que lhe é próprio e concernente a sua realidade, como no que se refere ao posicionamento do professor que, também como sujeito político, deve participar suas ideias e, sem as impor, fazê-las de conhecimento de seus alunos, possibilitando a discussão das mesmas, seja para que sejam aceitas ou não.”. A ética também é apontada por outro professor como necessária para que sejam colocados em funcionamento os saberes ligados à importância da rigorosidade metódica e da pesquisa para a prática educativa (Fragmento 6): Fragmento 6 “Um professor ético e profissional necessariamente pesquisa e planeja as suas aulas. E, quando se avalia reflete sobre sua prática...”. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 8 Faremos a partir de então considerações a respeito dos comentários dos educadores relacionados a três saberes que, na nossa convicção, estão estreitamente ligados: ensinar exige pesquisa, criticidade e reflexão crítica sobre a prática. Observamos que poucos professores fizeram referências a esses saberes. Os fragmentos 7, 8 e 9, à semelhança do fragmento 6, exemplificam essas questões: Fragmento 7 “Enfatizo (...) a questão crítica sobre a prática docente, instrumento de suma importância para o processo como um todo”. Fragmento 8 “Sim, concordo. Acho que o educador que se compromete com sua prática pedagógica deve refletir, analisar e avaliar agindo de acordo com as exigências referidas pelo autor”. Fragmento 9 “Sim, uma vez que um professor comprometido com sua prática educativa deve a todo o momento planejar, refletir e avaliar o processo de ensino-aprendizagem com seus alunos”. Algumas considerações reportadas na literatura a respeito de estudos sobre formação de professores nos ajudam a justificar tais resultados, especialmente aquelas ligadas ao professor-pesquisador. Moreira (1988) destaca que é possível melhorar o ensino pela experiência, mas, por meio da pesquisa, chega-se a resultados mais significativos e respostas mais abrangentes. Assim, o autor defende que não se deve entender pesquisa como algo trivial nem como algo extremamente complexo. Esse conceito de pesquisa como algo exclusivo de especialistas, que remetem à noção de pesquisa acadêmica, é geralmente apontado como um dos fatores que excluem o professor dessa prática (Moreira, 1988; Maldaner, 1999). Segundo Maldaner (2006) a concepção restrita dada à pesquisa pelas “comunidades científicas” é um dos principais fatores que dificultam a implementação da pesquisa como prática de formação. Além disso, alguns pesquisadores são unânimes em apontar a exclusão do professor das pesquisas como o fator responsável pela falta de incorporação dos resultados de pesquisas nas salas de aula (Moreira, 1988; Galiazzi, 2003; Maldaner, 2006; Carvalho & Gil-Pérez, 2009). Para Moreira (1988) o professor só assumirá o papel de usuário da pesquisa quando ele se sentir comprometido com os resultados, ou seja, quando ele também fizer pesquisa. Outro problema apontado nos estudos sobre a formação de professores e que pode explicar o distanciamento demonstrado pelos professores a respeito da reflexão sobre a própria prática diz respeito ao que é denominado pelos autores de “falsa ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 9 segurança”. Segundo Maldaner (2006), a ideia do profissional professor está profundamente enraizada na vivência cultural de cada pessoa. Esse talvez seja um dos maiores problemas relacionados à formação de professores: antes de atuar como docente, o futuro professor já foi aluno durante pelo menos 16 anos (Flores, 1999). Para Flores (1999) é justamente nessa “familiaridade” que reside a origem dos problemas de formação, pois ela passa ao profissional uma “falsa segurança”. Além da “falsa segurança”, outra consequência do longo período em que o professor foi aluno é o desenvolvimento de ideias, atitudes e comportamentos sobre o ensino, conhecidas como “formação ambiental” ou “pensamento docente espontâneo” (CARVALHO Carvalho & Gil-Pérez, 2009). Os autores afirmam, ainda, que as pesquisas em ensino vêm percebendo a grande influência dessa formação, devido principalmente à sua natureza de exemplo vivo, o que a torna muito mais eficaz que qualquer explicação. Corresponde a experiências adquiridas de forma não-reflexiva como algo natural, escapando assim à crítica e transformando-se em um verdadeiro obstáculo (Carvalho & Gil-Pérez, 2009). As dificuldades apontadas anteriormente são corroboradas pelos depoimentos de alguns professores a respeito da segunda parte do questionamento feito a eles, quando lhes era solicitado que comparassem os saberes apontados por Paulo Freire com aqueles por eles praticados. Em algumas respostas observamos insegurança por parte dos educadores em fazer afirmações a respeito de tais relações, como nos fragmentos 10, 11 e 12: Fragmento 10 “É difícil dizer se sou solidário, ético ou dedicado; tento realizar meu trabalho respeitando os educandos”. Fragmento 11 “Nem sempre conseguimos seguir a pedagogia pregada por Paulo Freire, mas é dessa forma que tento trabalhar, como elemento transformador e não como transmissor de conhecimento”. Fragmento 12 “Acredito nisso, mas deixo uma questão: ‘Será que o professor tem tempo?’ Hoje o professor ‘auleiro’ não consegue ser professor pesquisador”. No entanto, verificamos nos depoimentos de alguns professores indícios de reflexão da sua prática, como nos fragmentos 13 e 14: Fragmento 13 “Desde quando comecei a dar aula, até hoje, com certeza amadureci muito e acho que ainda vou melhorar bastante”. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 10 Fragmento 14 “Todos os saberes são reais e fundamentais. Sempre que analiso minha conduta como docente, descubro que ainda tenho muito a aprimorar”. Vale salientar que apenas uma minoria dos professores se reportou a essa parte da questão. Acreditamos que tal fato pode ser explicado por eles terem se empenhado em responder a primeira parte do questionário e acabaram esquecendo-se de responder a segunda parte. Outra justificativa estaria exatamente nas dificuldades enfrentadas por eles em fazer tais comparações. CONCLUSÕES Neste trabalho nos propusemos a apresentar considerações a respeito de reflexões advindas de professores em formação continuada a respeito de sua prática educativa, tendo como base discussões baseadas na leitura do livro “Pedagogia da autonomia”, de Paulo Freire (1996). Após a leitura, os educadores foram instigados a fazer considerações sobre sua concordância ou não com os saberes apontados pelo autor. Solicitamos ainda que fizessem comparações com tais saberes e suas práticas em sala de aula. Verificamos que os professores apontam principalmente como pontos concordantes entre suas convicções e os saberes colocados por Freire que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. Assim, eles consideram que este saber acarreta outros benefícios como o favorecimento do diálogo em sala de aula. Os educadores enfatizam também a ética como aspecto fundamental da prática educativa e alicerce para que outros saberes venham à tona. No entanto, observamos também que poucos professores se reportaram aos saberes que remetem mais diretamente às características do professor-pesquisador. Sugerimos, a partir da literatura relacionada aos estudos sobre formação de professores, alguns elementos que podem justificar a dificuldade dos professores em pesquisar suas práticas: o conceito de pesquisa como algo complexo e, por conseguinte, a falta de incorporação dos resultados de pesquisa em sala de aula, além das influências de prováveis “falsa segurança” e “formação ambiental” nos educadores. Contudo, acreditamos na relevância da atividade proposta para a formação dos professores envolvidos, uma vez que entendemos que as contribuições de Paulo Freire são extremamente pertinentes à vida dos educadores, de forma que estes possam ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 11 desempenhar seu trabalho a partir de uma prática educativa comprometida com o saberfazer docente. Tais resultados sinalizam, ainda, a necessidade de se proporcionar novas discussões em trabalhos de formação continuada de professores de modo a estimular a prática reflexiva nos mesmos. REFERÊNCIAS Brasil (2002). Ministério de Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação / Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 1/2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Brasília, DF: MEC/CNE. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_02.pdf Carvalho, A. M. P. & Gil-Pérez, D. (2009). Formação de professores de ciências. São Paulo: Editora Cortez. Flores, M. A. (1999). (Des)ilusões e paradoxos: a entrada na carreira na perspectiva dos professores neófitos. Revista Portuguesa de Educação, 12 (1), 171-204. Forteza, M. S. & Diniz, R. E. S. (2004). Grupo de estudo: uma perspectiva de prático crítico-reflexiva na formação continuada de professores. In: R. Nardi; F. Bastos & R. E. S. Diniz. (Eds.) Pesquisa em ensino de Ciências: contribuições para a formação de professores, (pp. 57-78). São Paulo: Escrituras Editora. Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. Galiazzi, M. C. (2003). Educar pela pesquisa: ambiente de formação de professores de ciências. Ijuí: Editora Unijuí. Maldaner, O. A. (1999). A pesquisa como perspectiva de formação continuada do professor de Química. Química Nova, 22 (2), 289-292. Maldaner, O. A. (2006). A formação inicial e continuada de professores de Química professor/pesquisador. Ijuí: Editora Unijuí. Moreira, M. A. (1988). O professor-pesquisador como instrumento de melhoria do ensino de ciências. Em Aberto, (40), 43-54. Villani, A. & Pacca, J. L. A. (1997). Construtivismo, conhecimento científico e habilidade didática no ensino de ciências. Revista da Faculdade de Educação, 23 (1-2), 196-214. 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