A REPRESENTAÇÃO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA NA OBRA O CASO DO MARTELO, DE JOSÉ CLEMENTE POZENATO Cristina Loff Knapp (UCS) A Serra Gaúcha é marcada pela imigração italiana, podemos perceber isso na cultura da região e também na literatura. Os descendentes da cultura italiana que se instalaram na região procuram manter viva sua tradição de diversas formas, seja em festas, seja na linguagem e por meio da literatura. Uma das obras que podemos dizer que pode representar traços da cultura italiana é O Caso do Martelo, do autor José Clemente Pozenato. Com isso, o objeto de nosso estudo é a obra do escritor caxiense com a intenção de mostrar como a imigração italiana está ali representada, assim como podemos identificar o entrecruzamento da literatura e da história. Também é nosso intento destacar a construção dos detalhes que fazem dessa novela um texto envolvente e muito bem construído. A Literatura e a História são áreas que conversam entre si e com diversas outras. Se focarmos nossa análise na representação da história na literatura e viceversa, podemos dizer que ambas são reflexos da humanidade a partir de narrativas. Na verdade, tanto a Literatura quanto à História são permeadas por narrativas que tem como pilar o homem e suas histórias, sejam elas fatos verídicos ou apenas alicerçadas no real. Aristóteles na sua Poética (1997) afirma que a Literatura é uma representação da realidade- assim surge a ideia de mímesis. A narrativa ficcional é construída a partir de uma imagem do real, é um discurso sobre o que poderia ter acontecido. Para o filósofo, a História é a narrativa de fatos verídicos. Ambas, Literatura e História se aproximam a partir dessa narrativa. A possibilidade de uma representação do real é o mote que subsidia a nossa reflexão na obra O Caso do Martelo. O texto de Pozenato procura fazer uma representação da colônia italiana. Outro teórico que, no século XX, nas suas últimas décadas, por volta dos anos 80, analisa a aproximação de Literatura e História é Paul Ricouer, na sua obra de três volumes, Tempo e Narrativa (1997). Segundo o autor, alguns relatos podem apresentar dados ficcionais e ter abordagens literárias. Ricoeur em sua obra estudou a potencialidade do tempo narrado, tanto no texto histórico como ficcional. Os aspectos por ele estudados o permitiram falar em ficcionalização da história e historicização da ficção. Ou seja, a história tem algo de ficção, assim como a literatura tem algo de histórico. Para o teórico, o entrecruzamento da história com a literatura faz surgir um tempo humano. Todavia, este só poderá surgir com o ato da leitura, por meio de quem está lendo e a forma como lê o texto. Isso tudo é possível na medida em que a história se serve da literatura e a literatura da história. Dessa maneira, pode ser factível pensar na ideia de ficcionalização da História, isto é, o dado histórico utiliza a ficção para refigurar o tempo. Assim como, a Literatura se apropria do dado histórico como uma forma de imaginação de um passado. Como diz Piovesan “o imaginário se incorpora à consideração do ‘ ter-sido’, sem com isso enfraquecer seu intento realista” (PIOVESAN, 2008: 27). Ricoeur também defende o conceito de representância. A representância pode ser entendida como os vestígios, instrumentos capazes de fazer essa mediação. A produção do sentido ocorre a partir de imagens, objetos, enfim, vestígios, que podem lembrar o fato histórico. Para que isso aconteça se deve recorrer ao imaginário. Nas palavras do autor, a narrativa de ficção imita a narrativa histórica, de certa forma. Contar alguma coisa é contá-la como se ela se tivesse passado. Com isso, Ricoeur afirma que tanto a história como a ficção são escritas feitas a partir de representações da realidade. O texto histórico busca o ter sido, a ficção é formada a partir do como se. A aproximação de Literatura e História pode ser pensada, no entendimento de Ricouer, a partir do conceito de refiguração que configura a maior diferença entre a Literatura e a História. A História é remodelada a partir das vivências do leitor baseadas nos vestígios que são deixados. Já a Literatura, ou melhor, dizendo, a ficção parte da transformação da realidade temporal, criando a sua irrealidade. Essas considerações iniciais são importantes para entendermos a representação histórica da cultura italiana na obra O Caso do Martelo, de José Clemente Pozenato. Segundo Rita Teresinha Schmidt, A ficção de Pozenato registra um momento significativo de revitalização do regional no quadro da literatura gaúcha contemporânea. Consciente da existência de uma lacuna sobre a região de colonização italiana a nível da abordagem romanesca, Pozenato empreende a tarefa de fixar determinados momentos da história da imigração italiana no Rio Grande do Sul inserindo-se, assim, num projeto coletivo de revisão da história formativa do Estado, do qual participam escritores tais como Assis Brasil e Aldyr Schlee, cujas obras tratam da matéria regional sob o prisma da história (In: PIOVESAN, 2008: 13). No livro temos uma comunidade pequena do interior de Caxias do Sul, Santa Juliana, onde há uma pequena igreja, o salão paroquial, a cooperativa, a vinícola. A sede da pequena localidade era igual a muitas outras da colônia. A igrejinha de tijolos, branca, com o campanário ao lado, no topo da elevação. Em baixo, na beira da estrada o edifício comprido da cooperativa, com a pintura cinzenta descascada, onde se enfileiravam duas ou três carretas e outros tantos tratores com carroceria, esperando para despejar os “bigunhos” de uva. Três casas grandes, de madeira, e outras duas, de construção moderna, com janelas amplas e persianas, completavam o quadro (POZENATO, 1991: 14). De certa forma, fica evidente que a descrição é universal, ou seja, a maioria das pequenas comunidades tem uma pequena igreja, uma vinícola. Isso pode ser associado à memória da comunidade. Busca-se um traço representativo da sua cultura a fim de estabelecer um elo com o passado. Conforme Ferreira e Orrico, se a necessidade de memória é universal, as práticas da memória são culturalmente determinadas por redes discursivas que envolvem fatores de diferentes ordens – míticos, históricos, políticos, etc. Na busca de novas ancoragens, discutem-se os discursos fundadores das nações e dos grupos sociais, as referências que se estabilizaram no imaginário do grupo e que, de alguma forma, constituem a sua identidade (FERREIRA, ORRICO, 2002: 08). Outra evidência que pode ser considerada como típica da cultura italiana é a atitude dos moradores do lugar. É comum do italiano não conversar muito quando não conhece bem as pessoas, ou seja, você só passará a frequentar a casa dos indivíduos da comunidade quando conquistar a confiança de todos. É isso o que acontece com o delegado Pasúbio. No início das investigações a maioria dos moradores da localidade ficava em silêncio, não respondiam as suas perguntas. Pareciam sempre desconfiados, ou como se estivessem encobrindo alguém. Após ganhar a confiança de alguns, Pasúbio é convidado para almoçar com a família de um dos moradores e, lá, recebe algumas informações que o levarão a descobrir quem é o verdadeiro assassino de Nàne Tamànca. - Essa gurizada de hoje em dia não sabe mais o que é certo. Meu nome é Antenor Coltrani. Sou o pai dele. - Muito prazer, seu Antenor. Sou o Comissário Pasúbio. - Nunca ouvi esse nome. De onde é a sua família? - Sou de Dona Isabela. Também nasci na colônia (POZENATO, 1991: 47). Verifica-se que a pergunta feita “de onde é sua família” é uma característica, frequentemente, do povo de origem italiana. Na cidade de Caxias de Sul ou em outra cidade da Serra Gaúcha antes de perguntamos o nome da pessoa, pergunta-se de onde é a sua família. É a uma forma de tentar buscar a identidade das pessoas, uma espécie de traço cultural, ou um modo carinhoso de identificar um grau de parentesco. Constante Delloro levou-o a almoçar na mesa da família. A fazer-lhe companhia, estava a menina que acabava de voltar do colégio em Caxias. Os demais já haviam almoçado. - Não repara, doutor- desculpava-se a mãe. – É comida de pobre. Não fiz nada de especial. A comida de pobre era uma generosa travessa de massa, coberta de molho suculento e queijo ralado. Uma salada de radice, temperada com vinagre tino e lardo. E uma galinha assada, em postas douradas (POZENATO, 1991: 50). Constatamos na citação acima a referência textual aos costumes culinários da cultura italiana. Uma mesa farta, mas simples, a família reunida. E como já afirmamos Pasúbio só foi convidado para almoçar com a família, após conquistar a confiança de todos. E, é justamente durante esta refeição que o comissário recebe informações que irão o ajudar a desvendar o assassino de Nàne Tamànca. - É bom ser detetive? - Não sei – sorriu Pasúbio. - O senhor não é detetive? - Mais ou menos. - O senhor não veio descobrir quem matou o Nàne Tamànca? - Estou vendo que tu darias uma boa detetive – disse Pasúbio, divertindo-se com essa inversão de papeis. A menina riu. - O senhor já descobriu quem foi? – tornou a perguntar. - Ainda não. Sou um detetive muito ruim. - O papai sabe- disse a menina, séria (POZENATO, 1991: 51) Outra caracterização que lembra a imigração italiana é o uso do dialeto vêneto. Os descendentes da colônia italiana misturam em meio à sua linguagem expressões que lembram o antigo dialeto vêneto. Isso é uma forma de manter viva a sua cultura. Ecléa Bosi afirma que (...) a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, desloca estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1994: 46-7). O uso do dialeto entre os moradores de Santa Juliana, na obra de Pozenato, é uma forma de resgate do passado. Algumas pessoas, inclusive, só conseguem denominar certos objetos usando o dialeto, não conhecem a palavra em português que possa ser utilizada. A memória é a responsável por ativar o uso da linguagem do passado e manter viva a sua origem. A linguagem utilizada, com a mistura de expressões do dialeto vêneto é a representância, conceito defendido por Ricouer. Tudo são vestígios que estão associados a fatos históricos. A construção narrativa de O Caso do Martelo é de uma narrativa policial. Todo o romance desse gênero tem um crime a ser resolvido. O esclarecimento dessa problemática se dá através de um raciocínio lógico. Porém, o texto não é propriamente um romance. Estamos diante de uma novela, pois retrata algo mais próximo da vida diária, como diz Massaud de Moisés na obra A criação literária (2003). A novela está próxima da fantasia e reflete um pouco da subjetividade do leitor. Para Moisés a novela focaliza vários conflitos. Se pensarmos na obra O Caso do Martelo essa afirmação é bastante plausível, uma vez que o grande acontecimento é a morte de Mansueto Gamba, entretanto temos outros pequenos conflitos que vão se delineando ao redor desses, como: o amor de Dona Giulieta pelo morto, um amor que era correspondido e que não pode acontecer de verdade, apenas às escondidas. A autoridade e a falta de caráter de Camilo Gamba, o silêncio de todos os moradores sobre o acontecido. As histórias inventadas pela comunidade para encobrir o verdadeiro assassino. Moisés (2003: 113) diz que na novela as unidades dramáticas estão interligadas entre si denotando a totalidade da narrativa. E, é isso tudo que vimos na estruturação narrativa da obra O Caso do Martelo, de Pozenato. Aparentemente, temos núcleos separados, com problemas diversos, no entanto, todos eles estão interligados e procuram retratar a vida da comunidade de Santa Juliana. Isso causa o que Moisés chama de sucessividade narrativa. Para o autor: O novelista não esgota por completo o conteúdo de uma unidade para depois efetuar o mesmo com as seguintes: no fim de cada episódio, procura deixar sementes de mistério ou conflito para manter aceso o interesse do leitor. É raro que esvazie o recheio dramático duma célula antes de prosseguir, pois frustraria a curiosidade do leitor (MOISÉS, 2003: 114). Além disso, a organização temporal de uma novela é histórica ou cronológica, tudo flui numa perspectiva horizontal que corresponde ao encadeamento dos fatos. A narrativa ocorre em um curto espaço de tempo, são dois dias que o investigador Pasúbio ficará na comunidade de Santa Juliana para descobrir quem matou Mansueto Gambá. Também percebemos que o texto é de tal modo estruturado que faz com que o leitor queira saber a cada instante quem é o assassino de Gambá, é instaurado um clima de suspense. Tem tudo de uma boa narrativa policial, com um investigador que aparentemente só queria prolongar as suas férias e degustar um bom vinho. O ritmo da narrativa não é acelerado, à medida que Pasúbio vai se apropriado de informações a história vai avançando. Pode-se dizer que o tempo da narrativa anda no compasso do tempo da investigação. Constata-se que a caracterização de Pasúbio envolve o leitor. O aparente e atrapalhado investigador mostra-se um excelente detetive e surpreende a todos na comunidade. A novela seduz o leitor, por essa caracterização de personagem e pela beleza dos detalhes da caracterização do ambiente. Conforme o Delegado vai descobrindo pistas, também vai revelando particularidades da vida dos moradores da comunidade. A narrativa do escritor caxiense é recheada por menores que remetem a origem da colonização italiana e ao mesmo tempo, como o progresso chegou às pequenas comunidades do interior. Um dos exemplos mais marcantes da narrativa é o uso da toalha de rendinha de plástico, encontrada na casa da personagem Giulieta. A renda que forra a bandeja que é usada para servir o café, já não é mais de linha de crochê, mas sim de plástico. São esses pequenos detalhes que podem passar despercebidos pelo leitor, que demonstram o quanto o autor conhece a cultura italiana e acompanhou tudo isso nas pequenas comunidades do interior da Serra Gaúcha. Pasúbio sentou-se. Era uma sala espaçosa, com móveis de cerejeira e estofados de couro. Tinha ainda o cheiro da loja. A mulher voltou daí a pouco com uma garrafa e três copos de cristal, num bandeja de prata estampada. A toalhinha da bandeja era de plástico imitando renda (POZENATO, 1991: 63). Ainda centrando a análise nas particularidades da narrativa não podemos deixar de salientar o início do segundo capítulo, intitulado Santa Juliana. O aroma de uvas maduras chegava a ser estonteante, ao sol da primeira hora da tarde. Em pouco mais de vinte minutos, Pasúbio chegava já em Santa Juliana. Os quinze quilômetros de estrada, de terra batida, estava quase sem buracos. Pelo visto, os eleitores estavam fiscalizando mais de perto a prefeitura (POZENATO, 1991: 14). Ao lermos esse trecho, a riqueza da descrição da localidade nos faz sentir o cheiro da uva. A caracterização do ambiente é tão perfeita que a imagem que o leitor produz é possivelmente de uma pequena comunidade que tem como pano de fundo um grande parreiral. Esses pormenores da narrativa tornam-se fundamentais para que leitor interaja com a história que está sendo narrada. Contudo, esses mesmos detalhes não tornam o texto cansativo, são perfeitamente aceitáveis e tem a função de tornar à narrativa mais verossímil. Como também a descrição do morto, Mansueto Gamba, também conhecido como Nàne Tamànca, na qual podia se ver os sapatos pretos que estavam com o bico apontado para fora. É possível deduzir que eram novos, pois se via a marca da etiqueta na sua sola, que também não estava gasta. Dessa forma, constatamos que a construção narrativa com todos esses detalhes, não torna o texto cansativo e descritivo, mas sim interessante. Isto porque, todos os pormenores que são delineados tem um sentido bastante significativo no texto, não foram colocados ali à toa, mas sim para construir o enredo narrativo. É a ideia de refiguração, conceito elucidado por Ricouer. O texto ficcional transforma a realidade temporal criando uma nova irrealidade. Com isso, fica claro que a obra mostra uma (re) construção da cultura do italiano na Serra Gaúcha, nas pequenas localidades por meio do texto literário. A obra O Caso do Martelo, permite o enriquecimento do universo cultural, assim como o seu universo narrativo acaba por revelar a (re) criação dos imigrantes italianos. Isso fica registrado por meio da linguagem, com o uso do dialeto vêneto, no comportamento das pessoas da comunidade e também na ambientação do lugar. Ressaltamos, desse modo, que o foco de nossa análise apresentou a (re) criação da própria história no texto ficcional, por meio do resgate das memórias das personagens e da utilização de expressões e do comportamento das mesmas. A obra O Caso do Martelo transforma a realidade histórica em ficção historicizada, que tem a função de recriar a realidade histórica. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética Clássica. Tradução de Roberto de Oliveira Brandão e Jaime Bruna. 7.ed. São Paulo: Cultrix, 1997. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FERREIRA, Lucia M. A.; ORRICO, Evelyn G. D. Linguagem, identidade e memória social: novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. MOISES, Massaud. A criação literária. 19 ed. São Paulo: Cultrix, 2003. PIOVESAN, Edivane Silvia. Em busca da cocanha: a (re) construção da identidade cultural italiana no Rio Grande do Sul. 2008.117 f. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Frederico Westphalen, 2008. Disponível em: http://www.fw.uri.br/site/posgraduacao/mestrado/106/Turma%202006/EDIVANE%20SI LVIA%20PIOVESAN%20A%20Cocanha%20a%20re%20construcao%20da%20identid ade%20cultural%20italiana%20no%20RS.pdf. Acesso em: 15/10/2013. POZENATO, José Clemente. O Caso do Martelo. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991.