Termoquímica. A 1ª Lei da termodinâmica e cálculos entálpicos Texto de Apoio com problemas resolvidos e propostos Fernando M.S. Silva Fernandes Departamento de Química e Bioquímica, FCUL 1. Introdução A Termodinâmica estuda as transferências de energia entre um dado sistema e os seus arredores, as conversões entre os diferentes tipos de energia e as relações entre as propriedades dos sistemas em equilíbrio. Energia é um conceito primitivo que traduz intuitivamente a capacidade para produzir trabalho. É definida através de relações funcionais entre propriedades físicas de significado preciso e que podem ser medidas experimentalmente. Por exemplo, a energia cinética, Ec, dum corpo material A é uma função das suas massa, MA, e velocidade, v : Ec = 1/2 MA v2 (1) Existem dois processos fundamentais de transferência de energia: trabalho e calor. Trabalho é outro conceito primitivo que traduz intuitivamente o esforço realizado no deslocamento dum corpo por efeito duma força aplicada. Se a força constante, f, tiver a direcção do deslocamento ∆r, o trabalho realizado, ∆W, define-se como: ∆W = f ∆r (2) A expressão anterior traduz quantitativamente a noção intuitiva de que o trabalho é tanto maior quanto maiores forem a força aplicada e o caminho percorrido. O trabalho realizado pela força de 1N (Newton) através do deslocamento de 1m (metro) designa-se por 1J (Joule). Se este trabalho for efectuado sobre o corpo de massa MA para aumentar a sua velocidade, dizemos que o corpo adquiriu 1J de energia cinética, isto é, 1J de energia foi transferida para o corpo por efeito da realização de trabalho. ******************************* Como se justifica a expressão (1) para a energia cinética? Suponhamos um corpo em movimento, de massa M, que num dado instante tem a posição r1 e a velocidade v1. Aplica-se ao corpo uma força externa constante f = M a (de acordo com uma das leis de Newton; a é a aceleração) até que o corpo atinja a posição r2, ao fim do intervalo de tempo t. A velocidade na posição r2 será v2 = a t + v1 (a aceleração é constante) donde a = (v2-v1)/t. Por outro lado, a posição r2 = ½ a t2 + v1 t + r1, donde o deslocamento sofrido pelo corpo durante a actuação da força é, considerando as expressões anteriores: ∆r = r2 – r1 = ½ a t2 + v1 t = ½ (v2-v1) t + v1 t = ½ (v2+v1) t Uma vez que o trabalho realizado é igual à força vezes o deslocamento: ∆W = M a (r2 – r1) = ½ M (v2-v1) (v2+v1) = ½ M v 22 - ½ M v12 Isto é, o trabalho realizado sobre o corpo alterou a sua energia cinética ½ M v2. Por outras palavras: energia foi transferida para o sistema através da realização de trabalho. *************************************** Figura 1.1. Conversão de energia cinética em energia potencial gravítica A energia cinética de 1J (ou outro valor qualquer) adquirida pelo corpo A considerado atràs pode, por sua vez, ser totalmente utilizada para realizar trabalho se o corpo diminuir a sua velocidade até atingir o repouso. Por exemplo, através dum mecanismo apropriado ligado ao corpo (ver figura 1.1), pode proceder-se à elevação de uma outra massa, MB, até à altura h. Isto significa que 1J de energia cinética do corpo A se converte, através da realização de trabalho contra a força da gravidade, em 1J de energia potencial gravítica, Ep, do corpo B, a qual se define como: Ep = MB g h onde g é a aceleração da gravidade. 2 (3) ************************************** A expressão anterior tem uma justificação análoga à da energia cinética. A força que a Terra exerce sobre um corpo de massa M (o peso do corpo ou a força da gravidade) é M g. Assim, para elevar o corpo até à altura h (o deslocamento) é necessário exercer uma força igual, mas oposta, à força da gravidade. Portanto, o trabalho realizado sobre o corpo é M g h (força x deslocamento). Dizemos, então, que através da realização de trabalho o corpo adquiriu a energia potencial gravítica M g h, exactamente igual ao trabalho realizado. Note-se a diferença entre energia cinética e energia potencial. A primeira implica movimento (velocidade) enquanto a segunda diz respeito à posição de um corpo em relação a outro. Por outro lado, pode parecer que a energia adquirida por um corpo é sempre igual ao trabalho realizado sobre ele. Vamos ver que nem sempre é assim. De facto, um sistema pode adquirir energia por outro processo de transferência diferente: o calor. *************************************** As considerações anteriores sugerem que a energia é uma entidade que se conserva ao longo dos processos: a realização de 1J de trabalho deu lugar a 1J de energia cinética que, por sua vez, se converteu em 1J de energia potencial gravítica e, assim, sucessivamente. Por outras palavras, a energia não se cria “a partir do nada”, não se destroi, apenas se transforma e se transfere. A conservação da energia constitui a 1ª Lei da Termodinâmica, a qual trataremos adiante. Os corpos analisados anteriormente foram considerados como um todo, sem referência à sua constituição interna. A energia da expressão (1) é a energia cinética translacional do corpo A como um todo e a energia da expressão (2) é a energia de interacção corpo B – Terra, ou seja, a energia potencial gravítica do corpo. Designaremos a soma destas energias como energia externa. Sob o ponto de vista termoquímico, no entanto, é essencial considerar, também, a energia interna dum dado corpo. Como sabemos, todos os corpos materiais são constituídos por moléculas e átomos (os quais, por sua vez, são constituídos por electrões e núcleos) em movimento e interacção incessantes. Assim, teremos de considerar os diferentes tipos de energia molecular: energia cinética translacional, energia potencial intermolecular, energia rotacional, energia vibracional, energia electrónica, energia nuclear, etc. A energia interna do sistema é a soma dessas diferentes contribuições energéticas. Por exemplo, num sistema constituído por N moléculas, a contribuição da energia cinética translacional para a energia interna total é dada por: N 1 K = ∑ m i v i2 i =1 2 3 (4) onde mi é a massa do átomo i e vi a sua velocidade. Uma vez que os átomos colidem entre si, as respectivas velocidades têm diferentes direcções e sentidos. A energia cinética interna está, assim, numa forma desordenada (caótica) e designa-se usualmente por energia térmica. Se as moléculas forem de argon (um elemento do grupo 18 da Tabela Periódica, cujas molécula são monoatómicas) a energia potencial entre dois átomos é dada, aproximadamente, pelo chamado potencial de Lennard-Jones: ⎡⎛ σ ⎞12 ⎛ σ ⎞6 ⎤ u(r) = 4ε ⎢⎜ ⎟ − ⎜ ⎟ ⎥ ⎝ r ⎠ ⎥⎦ ⎢⎣⎝ r ⎠ (5) onde ε é o fosso do potencial , σ o diâmetro atómico e r a distância entre dois átomos, conforme representado na figura 2.1. **************************************** Note-se que a energia anterior está relacionada (de modo análogo ao da energia potencial gravítica) com a posição de um átomo em relação ao outro medida pela distância r o que, como já referimos, caracteriza a energia potencial. Neste caso, a energia é igual ao trabalho realizado para aproximar dois átomos, inicialmente a uma distância infinita, até à distância finita r . As forças em jogo são, agora, de natureza electromagnética e têm origem na estrutura atómica das espécies consideradas. ************************************** Figura 2.1. Potencial de Lennard-Jones A energia potencial interatómica total de N átomos é, então, a soma das energias dos pares diferentes de átomos: 4 N −1 N U = ∑ ∑ u ( rij ) i =1 j > i (6) Um corpo em movimento pode diminuir a sua velocidade até atingir o repouso através de fricção. Neste caso a energia cinética associada ao movimento orientado do corpo converte-se na energia dos movimentos caóticos das moléculas dos corpos entre os quais a fricção se realiza, isto é, em energia térmica. O aumento de energia térmica resulta num aumento de temperatura do sistema. Dizemos, então, que há transferência de energia, através de um processo que se designa por calor (ver figura 3.1). Figura 3.1. Atrito e calor Calor é mais outro conceito primitivo que intuitivamente está relacionado com as sensações de quente e de frio. Sempre que exista uma diferença (gradiente) de temperatura entre dois corpos em contacto, haverá uma tranferência de energia térmica, através do processo designado por calor, do corpo a temperatura mais elevada para o de temperatura mais baixa. A energia térmica deste aumenta assim como a sua temperatura enquanto a energia térmica e temperatura do outro diminuem, até que as temperaturas se igualem, ou seja, até que se atinja o equilíbrio térmico. Em resumo, o processo-calor implica a existência de um gradiente de temperatura ao passo que o processo-trabalho é caracterizado pela imposição de forças mecânicas com orientação bem definida. Quando, a partir de agora, dissermos, de modo informal e sucinto, que “um dado sistema absorveu calor” ou que “calor foi tranferido para um sistema” ou outras expressões semelhantes, isso significa que há transferências de energia por intermédio do processo-calor, mas não significa que o calor é uma forma de energia. Se o aumento de temperatura de um sistema for ∆T, a quantidade de energia, ∆Q, transferida para o sistema através de calor, define-se como: ∆Q = c M ∆T 5 (7) onde M é a massa e c é o calor específico, isto é, a quantidade de calor necessária para aumentar de 1K a temperatura da unidade de massa do sistema. O calor específico é uma propriedade característica de cada substância. Se o sistema for 1g de água e se a sua temperatura aumentar de 1K, a quantidade de calor absorvida é, por definição, 1cal (caloria). Assim, o calor específico da água é 1cal g-1 K-1. Se exprimirmos a quantidade de substância em moles, o que é usual, c designa-se por capacidade calorífica molar, a qual para a água tem o valor 18 cal mol-1 K-1. Se utilizarmos estas unidades, então, na equação (7) em vez da massa M figurará o número de moles. O que dissémos anteriormente sobre fricção mostra que o trabalho pode produzir calor (ou seja há transferências de energia por intermédio do processo-trabalho e do processo-calor). Uma questão que surge imediatamente é saber que quantidade de trabalho deve ser realizado para produzir 1cal de calor, ou seja, o equivalente mecânico da caloria. Esse valor foi determinado, pela primeira vez , por James Joule (1818-1889): 1 cal = 4.1840 J (8) Assim, a capacidade calorífica molar da água no sistema internacional é 75.3 J mol-1 K-1. Note-se, mais uma vez, que se utilizarmos a capacidade calorífica molar, em vez do calor específico, a massa M na equação (7) deverá ser substituída pelo número de moles. A expressão (7) traduz quantitativamente a noção intuitiva de que a quantidade de calor necessária para produzir uma variação de temperatura ∆T depende da massa (quanto maior for a quantidade de uma dada substância mais calor será necessário para produzir um dado ∆T), das propriedades da substância (as quantidades de calor necessárias para produzir o mesmo ∆T em massas iguais de diferentes substâncias, são diferentes) e, evidentemente, do valor de ∆T. Adicionalmente, a expressão (7) é a equação fundamental da calorimetria, uma técnica que permite determinar a quantidade de calor posto em jogo numa dada transformação, a partir da medição da respectiva variação de temperatura e sabendo antecipadamente os números de moles e as capacidades caloríficas molares das substâncias envolvidas. A expressão (7) mostra, também, que calor e temperatura são entidades diferentes o que é importante sublinhar, uma vez que esses conceitos são frequentemente confundidos. Mas, afinal, o que é temperatura? Para além da resposta trivial de que temperatura é o que se mede com um termómetro, é conveniente analisarmos a interpretação molecular da temperatura. Quando uma quantidade de calor é 6 transferida para um corpo parte da energia molecular caótica da fonte de calor passa para o corpo por intermédio de colisões entre as moléculas. Essa energia molecular não é mais do que energia cinética molecular numa forma desordenada (energia térmica): as moléculas movem-se em todas as direcções e sentidos. Quando essa energia é absorvida pelo sistema parte dela vai, em geral, aumentar a sua energia térmica e a outra parte vai ser armazenada na forma de energia potencial intermolecular (a qual depende, evidentemente, do tipo de moléculas) e, eventualmente, na realização de trabalho: a expansão do sistema contra uma pressão externa, por exemplo. Isto significa que, em geral, nem toda a energia térmica que saí da fonte de calor aparece sob a forma de energia cinética molecular do corpo. Ora a temperatura do corpo está somente relacionada com a sua energia cinética molecular interna, mais precisamente com a energia cinética média das moléculas. De facto, a teoria cinética mostra que a temperatura absoluta, T, é definida como: N T= 2 < ∑1/ 2mi vi2 > i =1 3Nk B (9) onde N é o número de moléculas, kB é a constante de Boltzmann (1.381x10-23J.K-1) e < > representa uma média, sobre o tempo, da energia cinética das N moléculas. A expressão anterior mostra que a temperatura é uma intensidade energética: energia cinética média por molécula. A interpretação molecular da temperatura explica porque razão, em determinadas circunstâncias, um sistema pode absorver calor sem experimentar uma variação da sua temperatura como, por exemplo, durante as transições de fase sólido-líquido e líquido-gás. Nesses casos, o calor absorvido não vai aumentar a energia cinética molecular média, mas converte-se, totalmente, em energia potencial intermolecular provocando um maior afastamento entre as moléculas (fusão dos sólidos e vaporização dos líquidos). Vimos que quando se realiza trabalho sobre um corpo de massa M ele pode aquirir energia cinética sendo o movimento do corpo orientado segundo uma direcção bem definida. Por outro lado, observámos que ao calor está associada, também, energia cinética. Existe, no entanto, uma diferença fundamental : a energia cinética resultante do trabalho é orientada, a do calor é desordenada, caótica, isto é, a qualidade da energia num e noutro caso é diferente. Essa diferença tem uma consequência de crucial importância: o calor transfere uma forma degradada de energia (energia térmica). De facto, é possível transformar completamente uma dada quantidade de trabalho em calor (por fricção, por exemplo), mas não é possível estabelecer um 7 processo cujo único resultado seja a conversão dessa quantidade de calor (energia térmica) em trabalho. Esta impossibilidade que, como veremos, constitui a 2ª Lei da Termodinâmica traduz afinal uma experiência diária: é muito fácil transformar um sistema ordenado num sistema desordenado, mas o inverso não é verdadeiro. Em resumo, trabalho e calor são processos (métodos) de transferência de energia. O trabalho implica conexões mecânicas entre os sistemas e está relacionado com movimentos orientados. O calor implica diferenças de temperatura e está relacionado com movimentos moleculares desordenados (caóticos). Uma vez que um sistema adquira uma dada quantidade de energia interna, não é possivel distinguir se essa energia foi obtida através de calor ou de trabalho. De facto, a energia interna do sistema é apenas a soma de energias cinética e potencial moleculares, nada mais. O calor ou o trabalho só podem ser identificados se considerarmos o sistema mais conexões com os seus arredores, isto é, se considerarmos os métodos de transferência de energia. 2. Algumas Definições Sistema é a parte do universo sob observação. O complementar do sistema no universo designa-se por vizinhança, arredores ou exterior. A interface entre o sistema e a vizinhança designa-se por parede. A união do sistema e da vizinhança constitui o universo. A definição exacta do sistema e das suas paredes é fundamental em Termodinâmica. Assim, um sistema cujas paredes sejam impermeáveis ao calor (paredes adiabáticas), inflexíveis (paredes rígidas) e impermeáveis à matéria (paredes fechadas) é um sistema isolado, isto é, não interactua com a sua vizinhança. As transformações que o sistema eventualmente sofra não têm qualquer interferência com o exterior. O universo é, por definição, um sistema isolado. Um sistema cujas paredes sejam permeáveis ao calor (paredes diatérmicas), rígidas e fechadas é um sistema não isolado pois pode realizar trocas de calor com a sua vizinhança. Se a rigidez das paredes for eliminada o sistema poderá, ainda, expandirse ou comprimir-se e, por conseguinte, trocar trabalho com o exterior. Finalmente, se as paredes do sistema forem permeáveis à matéria (paredes abertas) o sistema poderá trocar matéria com o exterior. Diz-se, por esse motivo, um sistema aberto. A célula viva é um bom exemplo desse tipo de sistema. É evidente que as transformações que um sistema pode realizar dependem directamente do tipo de paredes. Um sistema termodinâmico é caracterizado por propriedades específicas, designadas por funções ou variáveis de estado, que podem ser medidas experimentalmente. O 8 volume, a temperatura, a pressão, a densidade, a composição química e a energia interna são exemplos de funções de estado. É importante sublinhar que as funções de estado só são precisamente definidas quando o sistema se encontra em equilíbrio, ou seja, quando as propriedades do sistema não variam no tempo e no espaço. Consideremos, por exemplo, o sistema gasoso num cilindro provido de um êmbolo, representado na figura 2.1. Quando o êmbolo está imóvel, fig. 2.1. a), o estado do gás pode especificar-se indicando valores bem definidos para a sua pressão, temperatura e densidade. Figura 2.1. Estados de equilíbrio e não equilíbrio de um gás. Se o gás for comprimido bruscamente, Figura 2.1.b), o seu estado, imediatamente após a compressão, não pode descrever-se em termos de valores bem definidos para a pressão, temperatura e densidade. De facto, o gás situado junto ao êmbolo está mais comprimido (mais denso e com maior pressão interna) e quente do que o gás situado no outro extremo do cilindro. Existem diferenças (gradientes) entre as temperatura, pressão e densidade locais do gás. Trata-se de um estado de não-equilíbrio, porque não sendo as suas propriedades espacialmente uniformes, a tendência espontânea do sistema é eliminar, ao longo do tempo, os gradientes existentes, caminhando de modo irreversível para um estado final de equilíbrio onde, então, as propriedades se manterão constantes e uniformes. Irreversível, significa que o sistema por si só, isto é, espontâneamente, não voltará ao estado de não-equilíbrio. Vamos estudar apenas os estados de equilíbrio e as variações sofridas pelas funções de estado quando um sistema passa dum estado de equilíbrio para um outro estado de equilíbrio. Este estudo baseia-se numa propriedade muito importante das funções de estado: a sua 9 variação não depende do processo (ou caminho) pelo qual se realiza uma transformação, mas apenas do estado inicial e do estado final. B 1 2 A Figura 2.2. Transformação do estado A para o estado B realizada por dois processos diferentes. Consideremos a Figura 2.2. e suponhamos que o estado A representa a Universidade de Lisboa caracterizada pela sua altitude hA, em relação ao nível do mar, e o estado B representa o Cristo-Rei caracterizada pela sua altitude hB, em relação ao mesmo nível. Se nos deslocarmos de A para B podemos seguir caminhos diferentes. Por exemplo, podemos sair da Universidade e atravessar a ponte Vasco da Gama até chegar ao Cristo-Rei (caminho 1) ou ir através da ponte 25 de Abril (caminho 2). É evidente que qualquer que seja o caminho seguido, a diferença de altitudes entre A e B, isto é, a variação de altitude que sofremos através da nossa viagem é independente do caminho seguido: (10) hB – hA (caminho 1) = hB – hA (caminho 2) = ∆h A altitude é, assim, uma função de estado. No entanto, propriedades como a distância percorrida, o trabalho realizado e o calor dispendido não são funções de estado pois dependem, evidentemente, do caminho escolhido. Suponhamos, agora, a seguinte reacção de oxi-redução: Zn ( s ) + Cu 2+ ( aq ) → Zn 2+ ( aq ) + Cu ( s ) (11) Designaremos o estado inicial, constituído pelos reagentes, por A e o estado final, constituído pelos produtos, por B. Tanto o estado inicial como o final estão bem definidos pelas suas funções de estado, nomeadamente, temperatura, pressão, composição química e energia interna. A reacção anterior pode ser realizada por dois processos completamente diferentes. Um dos processos, que designaremos por 1, pela mistura directa dos reagentes. O outro processo, que designaremos por 2, com os reagentes separados no espaço e constituindo uma pilha electroquímica. Suponhamos que ambos os processos se realizam a temperatura e pressão constantes o que é fácil 10 de executar experimentalmente uma vez que se disponha dum termostato e que as reacções se realizem, por exemplo, em recipientes abertos (pressão atmosférica). Os processos considerados constituem, assim, uma tranformação do estado A para o estado B, realizada por dois caminhos diferentes. Se partimos das mesmas condições iniciais e chegamos às mesmas condições finais as variações das propriedes de estado (que por definição o caracterizam) devem ser iguais para os dois processos. Assim, teremos para a energia interna: E B − E A ( processo 1) = E B − E A ( processo 2 ) = ∆E (12) Se designarmos a composição química, de um modo geral, por CQ: CQ B − CQ A ( processo 1) = CQ B − CQ A ( processo 2 ) = ∆CQ (13) Dado que a transformação se realiza a temperatura e pressão constantes, teremos: TB − TA ( processo 1) = TB − TA ( processo 2 ) = ∆T = 0 p B − p A ( processo 1) = p B − p A ( processo 2 ) = ∆p = 0 (14) Contudo, tal como nas opções para atingir o Cristo-Rei, o calor e o trabalho postos em jogo nos dois processos não são iguais. De facto, a experiência mostra que quando a reacção é realizada pela mistura directa dos reagentes (processo 1) a quantidade de calor libertada 216 kJ.mol-1. Neste caso não é realizado trabalho eléctrico. Quando a reacção é realizada numa pilha electroquímica (processo 2) pode realizar-se trabalho eléctrico com um valor máximo de 212 kJ.mol-1 e, neste caso, o calor libertado será apenas de 4 kJ.mol-1. Em resumo, existem grandezas físicas, designadas por funções ou variáveis de estado, que caracterizam o estado de um sistema em equilíbrio e cujas variações não dependem dos caminhos pelos quais os sistemas realizem transformações: energia interna, composição química, temperatura, pressão, etc. Por outro lado, existem grandezas físicas, tais como o calor e o trabalho, cujas quantidades dependem dos caminhos pelos quais os sistemas realizem transformações. Tais grandezas, como é evidente, não podem caracterizar o estado de um sistema. Esta a razão porque dizemos, por exemplo, que o sistema A tem a energia interna EA, a temperatura TA e a pressão pA, mas nunca dizemos que o mesmo sistema tem, como propriedade, o calor QA ou o trabalho WA. 11 É importante distinguir dois tipos de funções de estado: intensivas e extensivas. Observemos a figura seguinte: a d c b e f g h Figura 2.3. O todo nem sempre é igual à soma das partes! Suponhamos que o rectângulo representa um sistema num estado de equilíbrio e que a, b, c, ... são subsistemas obtidos por uma partição arbitrária. O sistema é caracterizado por um determinado número de moléculas ou massa, energia interna, volume, temperatura, pressão , densidade, etc. A massa, volume e energia do sistema são iguais à soma das massas, volumes e energias de cada um dos subsistemas, pois tratam-se, claramente, de propriedades directamente proporcionais ao número de moléculas. No entanto, a temperatura, pressão e densidade do sistema são iguais, respectivamente, à temperatura, pressão e densidade de cada um dos subsistemas, pois tratam-se de propriedades independentes do número de moléculas. De facto, vimos que a temperatura não é mais do que uma intensidade energética: energia térmica média por molécula. Analogamente, a pressão é, também, uma intensidade: número médio de colisões por unidade de área e de tempo. Assim é, também, a densidade: número médio de moléculas (ou massa) por unidade de volume. Como a legenda da Figura 2.3 exprime: o todo nem sempre é igual à soma das partes. Isto é, a temperatura do sistema, por exemplo, não é igual à soma das temperaturas dos subsistemas. As propriedades que são directamente proporcionais ao número de moléculas (ou, o que é equivalente, à massa) como o volume, energia interna e a própria massa, designam-se por variáveis extensivas. As propriedades que são independentes do número de moléculas, ou da massa, como a temperatura, pressão e densidade, designam-se por propriedades intensivas. Finalmente, um dos objectivos da Termodinâmica é estabelecer relações entre as funções de estado dos sistemas em equilíbrio. Um exemplo dessas relações é a equação de estado dos gases perfeitos: pV = n R T onde n é o número de moles e R é a constante dos gases (8.314 J.mol-1.K-1). 12 (15) Note-se que basta conhecerem-se, apenas, duas variáveis de estado, para que a outra fique determinada através da equação anterior. Assim, se medirmos o volume e a temperatura das n moles do gás a sua pressão será: p=nRT/V (16) Se, pelo contrário, medirmos a pressão e a temperatura o volume será: V=nRT/p (17) e, assim, sucessivamente. Isto significa que o gás em equilíbrio fica inteiramente definido, apenas, por duas variáveis de estado. Trata-se, afinal, duma característica fundamental da Termodinâmica: o número de variáveis de estado independentes para definir o estado termodinâmico de um sistema em equilíbrio é muito pequeno quando comparado com o número de moléculas que o constituem. Na realidade, n moles de um gás contêm um número de moléculas da ordem de n.1023. As moléculas encontram-se em movimento e colisões incessantes e se pretendermos seguir a sua dinâmica teremos de definir, pelo menos, 6.n.1023 variáveis: 3 coordenadas para a posição e 3 coordenadas para a velocidade de cada molécula. Um estado dinâmico do sistema definido deste modo designa-se por microestado. É claro que o microestado do sistema varia ao longo do tempo, a despeito das propriedades termodinâmicas, medidas experimentalmente, se manterem constantes num estado de equilíbrio. Este facto, reflecte um dos aspectos mais apaixonantes da Natureza: as propriedades que caracterizam um estado de equilíbrio de um sistema, medidas experimentalmente, não são mais do que valores médios das propriedades dos microestados que o sistema realiza ao longo do tempo. Existe, assim, uma infinidade de microestados, a nível molecular, compatível com um dado estado termodinâmico de equilíbrio onde as propriedades macroscópicas se mantêm constantes. 3. A 1ª Lei da Termodinâmica Já vimos que a energia é uma propriedade que se conserva ao longo dos processos. Pode ser transferida de um sistema para outro, através de calor e/ou de trabalho, e convertida em diferentes tipos, mas nunca pode ser criada a partir do nada, nem destruida. Estes factos, confirmados pela experiência diária, são traduzidos pela 1ª Lei da Termodinâmica, a qual pode ser enunciada do seguinte modo: a energia do universo é constante. Tratando-se de uma lei de conservação, ela ensina-nos a fazer o 13 balanço correcto das transferências de energia entre um dado sistema e a sua vizinhança. Por exemplo, se um sistema absorver uma quantidade de energia, ∆Q, através do processo-calor e sobre o sistema for realizada uma quantidade de trabalho ∆W, então a variação da energia interna do sistema, ∆E, é: ∆E = ∆Q + ∆W (18) A equação anterior traduz, claramente, que a energia se conserva e é a expressão matemática da 1ª Lei da Termodinâmica: a energia transferida para o sistema pelos dois processos (calor e trabalho) é totalmente contabilizada e vai contribuir para o aumento da energia interna do sistema. Note-se que ∆Q e ∆W são fornecidos pela vizinhança, portanto, a energia do universo mantem-se constante. É importante introduzir a convenção de sinais relativamente ao calor e ao trabalho. Assim : Se o sistema absorver calor ∆Q > 0 Processo endotérmico Se o sistema libertar calor ∆Q < 0 Processo exotérmico Se o sistema receber trabalho ∆W > 0 Se o sistema realizar trabalho ∆W < 0 Reescrevendo, por exemplo, a equação (18) como: ∆Q = ∆E - ∆W (19) é evidente que a quantidade de calor só será totalmente armazenada como energia interna se o sistema não receber ou realizar trabalho, isto é, se ∆W = 0. Se o sistema realizar trabalho sobre o exterior, então, uma parte da energia absorvida vai ser utilizado na produção desse trabalho e a outra parte contribuirá para a energia interna. Um tipo de trabalho importante é o de pressão-volume (também designado por trabalho de expansão-compressão), ou seja, o trabalho contra uma força externa que actue sobre o sistema, resultando numa expansão ou compressão. Se a força externa, f ex , for constante o trabalho realizado será: ∆W = −f ex .∆r (20) onde o sinal negativo significa que a força exercida pelo sistema tem sinal contrário ao da força externa. 14 A expressão anterior pode ser reescrita em termos de propriedades de estado o que é, obviamente, mais conveniente sob o ponto de vista termodinâmico. Introduzindo a área, A, da superfície do sistema, no segundo membro da expressão (20), teremos: ∆W = − f ex A ∆r = − pex ∆V A (21) onde p ex é a pressão exercida sobre o sistema e ∆V é a variação do seu volume. Se a pressão interna, p in , for maior do que a pressão externa, p ex , então o sistema realizará uma expansão: ∆V>0 e ∆W < 0, isto é, o sistema realiza trabalho sobre o exterior. Se, pelo contrário, p in < p ex , então o sistema sofre uma compressão: ∆V<0 e ∆W> 0, ou seja, o sistema recebe trabalho do exterior. Finalmente, se p in = p ex , o sistema estará em equilíbrio. Note-se que na expressão (21) considerámos a pressão constante. Dum modo geral, a pressão varia com o volume e, assim, a expressão geral para o trabalho de pressãovolume é: V2 ∆W = − ∫ pex dV V1 (22) É claro que para calcular o integral anterior teremos de saber como a pressão varia com o volume. Se o sistema for um gás perfeito, por exemplo, essa variação é expressa pela equação de estado (16). 4. Entalpia Sabemos que a energia interna dum sistema é uma função de estado, isto é, a sua variação não depende do caminho pelo qual o sistema realize uma dada transformação. No entanto, como vimos, o calor e o trabalho dependem do caminho. Consideremos, uma reacção química qualquer: A+B→C+D (23) A variação da energia interna do sistema é: ∆E = ( E C + E D ) − ( E A + E B ) 15 (24) Suponhamos que a reacção é endotérmica, isto é, absorve energia através de calor, ∆Q > 0. De acordo com a expressão da 1ª Lei (19): ∆E = ∆Q + ∆W. Se reacção for realizada a volume constante a variação do volume será nula e de acordo com (21), o trabalho de pressão-volume também será nulo. Então, se não houver a realização de outro tipo de trabalho (por exemplo, trabalho eléctrico) teremos: ∆E = ( ∆Q ) V (25) isto é, todo o calor é armazenado como energia interna. Isto significa que, neste caso, para determinar a variação da energia interna da reacção basta medir o calor posto em jogo num calorímetro a volume constante. Suponhamos, agora, que a mesma reacção é realizada a pressão constante. Então, de acordo com (21) o trabalho de pressão-volume será ∆W = - p∆V. Se não houver a realização de outro tipo de trabalho, teremos, de acordo com a 1ª Lei: ∆E = ( ∆Q ) p − p∆V (26) Uma vez que ∆E é igual nos dois casos, pois a energia interna é uma função de estado, é evidente que ( ∆Q ) p ≠ ( ∆Q ) V , ou seja, o calor posto em jogo, neste caso, já não é igual à variação da energia interna do sistema. Podemos definir, no entanto, uma outra função de estado, cuja variação é igual ao calor posto em jogo na reacção em condições de pressão constante. Essa função designa-se por entalpia, H, e define-se como: H = E + pV (27) Dado que a energia interna, pressão e volume são funções de estado, é evidente que a entalpia também é uma função de estado. Para uma transformação a pressão constante, teremos: ∆H = ∆E + p∆V (28) Para a mesma transformação, e supondo que apenas é realizado trabalho de pressãovolume, ∆E é dado pela expressão (26). Introduzindo essa expressão na equação (28) obtem-se: ∆H = ( ∆Q ) p 16 (29) Isto significa que a variação de entalpia duma reacção química pode ser determinada medindo o calor posto em jogo na reacção num calorímetro a pressão constante. Em resumo, numa reacção química em que o único trabalho realizado seja trabalho de pressão-volume, o calor posto em jogo na reacção é igual: a) à variação da energia interna se a reacção for realizada em condições de volume constante. b) à variação de entalpia se a reacção for realizada em condições de pressão constante. Suponhamos que a mesma reacção se realiza a pressão constante, mas com produção de trabalho eléctrico numa pilha electroquímica. Neste caso, é fácil estabelecer que: ∆H = (∆Q)elp − ∆Wel (30) Como ∆H é a mesma nos dois casos, então ( Q )p é diferente de ( ∆Q ) p da expressão el (29). Se ∆H >0 e se o sistema realizar trabalho eléctrico, a quantidade de calor absorvido terá de ser maior do que se não realizasse esse trabalho, uma vez que ∆H será o mesmo para ambos os processos. Se ∆H <0 o calor libertado será menor do que se não realizasse trabalho eléctrico, como vimos para a reacção (11). A partir da expressão (27) e de um modo geral: ∆H = ∆E + ∆ ( pV ) = ∆E + ( p 2 V2 − p 1 V1 ) (31) em que 1 e 2 designam, respectivamente, o estados inicial e final do sistema. A diferença entre ∆E e ∆H depende, assim, do valor da variação de pV para os estados inicial e final. No caso de reacções químicas, a pressão constante, em que intervenham somente sólidos e líquidos p 1 V1 ≅ p 2 V2 e, como tal, ∆E e ∆H são aproximadamente iguais. No entanto, no caso de reacções gasosas, essa diferença pode ser apreciável. Consideremos uma reacção qualquer onde somente intervenham gases e suponhamos que a reacção se realiza a temperatura, T, constante: aA ( g ) + bB( g ) → cC ( g ) + dD( g ) (32) De acordo com a lei de Dalton das pressões parciais: pV (produtos) = (c + d) RT 17 (33) e pV (reagentes) = (a + b) RT (34) ∆(pV) = [(c + d) - (a + b) ] RT = ∆n RT (35) donde: onde ∆n representa a diferença entre o número de moles dos produtos e reagentes. Finalmente: ∆H = ∆E + ∆n RT (36) A expressão anterior foi deduzida com base na equação dos gases perfeitos (15) e, por conseguinte, é uma relação aproximada. No entanto, a maioria dos gases reais, a pressões e densidades suficientemente baixas, são descritos, com boa aproximação, por essa equação. Assim, a equação anterior dá-nos, pelo menos, uma ordem de grandeza da diferença entre ∆H e ∆E para reacções químicas em fase gasosa. 5. Cálculos Entálpicos O calor posto em jogo numa reacção química está relacionado, como vimos, com a variação de energia envolvida na passagem dos reagentes aos produtos. É importante determinar a energia absorvida ou libertada pelas reacções químicas e, de acordo com a 1ª Lei da Termodinâmica, analisar como essa energia pode ser utilizada. Os cálculos energéticos relativamente aos processos de combustão, por exemplo, são de importância fundamental para decidir se o carvão, ou o gás natural, é o combustível mais económico para um determinado objectivo, ou se as batatas engordam mais do que o bife. A base desses cálculos, aparentemente tão desconexos, é, no entanto, a mesma: a 1ª Lei. Consideremos a seguinte reacção realizada à temperatura constante de 298 K (25 ºC) e à pressão constante de 1 bar (105 Pa): C ( grafite ) + O 2 ( g ) → CO 2 ( g ) (37) O calor posto em jogo nesta reacção pode ser medido directamente num calorimetro obtendo-se 393.5 kJ. Como a reacção é exotérmica, e se realiza em condições de pressão constante, podemos estabelecer que ∆H = -393.5 kJ, tendo em conta o que 18 dissémos sobre processos que se realizem a pressão constante e sobre convenções de sinais. Se, nas mesmas condições experimentais, pretendermos determinar o calor posto em jogo na seguinte reacção: 1 C ( grafite ) + O 2 ( g ) → CO( g ) 2 (38) deparamos com uma enorme dificuldade: formam-se, simultaneamente, quantidades apreciáveis de CO2. A formação deste subproduto é acompanhada de libertação de calor como vimos acima, o que torna impossível medir directamente o calor referente, exclusivamente, ao monóxido de carbono. Todavia, podemos estabelecer o ciclo de reacções representado na figura seguinte. A cada um dos passos está associado um valor de ∆H e como a entalpia é uma função de estado: ∆H1 = ∆H2 + ∆H3 (39) onde, como vimos, ∆H1 = -393.5 kJ. A reacção correspondente ao passo 3 pode ser, também, facilmente realizada num calorimetro sem a interferência de reacções pararalelas, uma vez que se disponha de CO e O2, sendo ∆H3 = -283.0 kJ. Então, a partir de (39) teremos: ∆H2 = ∆H1 - ∆H3 = -110.5 kJ (40) Consideremos as reacções correspondentes a ∆H1 e ∆H3, respectivamente: C ( grafite ) + O 2 ( g ) → CO 2 ( g ) ⇒ ∆H 1 19 (41) e 1 CO ( g ) + O 2 ( g ) → CO 2 ( g ) ⇒ ∆H 3 2 (42) Se, por analogia com (40) subtrairmos, membro a membro, a equação (42) da equação (41) obtemos: 1 C ( grafite ) + O 2 ( g ) → CO ( g ) ⇒ ∆H 2 = ∆H 1 − ∆H 3 2 (43) isto é, a equação correspondente ao passo 2. As equações químicas podem, assim, ser formalmente tratadas como equações matemáticas no que diz respeito aos cálculos entálpicos. Vejamos o exemplo seguinte: Exemplo 1: Calcular o valor de ∆H para a reacção: C(grafite) + H2O(g) → H2(g) + CO(g) a partir das variações de entalpia para as reacções: C(grafite) + 1/2 O2(g) → CO(g) ∆H = -110.5 kJ H2(g) + 1/2 O2(g) → H2O(g) ∆H = -241.8 kJ Subtraindo, membro a membro, a segunda equação da primeira, obtemos: C(grafite) + H2O(g) → H2(g) + CO(g) ∆H = -110.5 -(-241.8) = +131.3 kJ A equação (39) traduz a Lei de Hess: a variação de entalpia de uma reacção química é independente do número de etapas ou do processo pelo qual se realiza a reacção. A sua validade reside no facto de a entalpia ser uma função de estado e a sua importância é evidente: permite o cálculo das entalpias de reacções cuja determinação experimental seja difícil ou impossível. 20 6. Entalpias Padrão Consideremos uma reacção química qualquer: aA + bB → cC + dD A variação de entalpia será: ∆H = (cHC + dDD) - (aHA+ bHB) onde Hi ( i = A,B,C,D ) são as entalpias molares absolutas dos reagentes e produtos. Dum modo geral: ∆H = ∑ n H(produtos) − ∑ n H(reagentes) (44) onde n designa os coeficientes estiquiométricos. Se tivessemos uma tabela com os valores das entalpias absolutas para todas as substâncias conhecidas, poderiamos, a partir da equação anterior, calcular ∆H para qualquer reacção. Sob o ponto de vista experimental, no entanto, é impossível determinar entalpias absolutas. Apenas se podem medir diferenças de entalpias através do calor posto em jogo nas reacções. Mas é precisamente na diferença de entalpia, ∆H, que estamos interessados. Para resolver o problema pensemos por analogia com o exemplo seguinte. Consideremos as montanhas da figura Figura 6.1. hM B A hA1 hB1 Superfície do Mar hF hA2 hB2 Fundo do Mar 21 Figura 6.1. As altitudes dependem do estado de referência, mas as suas diferenças não. Quais as altitudes das montanhas? Evidentemente que dependem do estado de referência. Se escolhermos a superfície do mar com estado de referência, atribuindolhe a altitude zero, então as altitudes das montanhas serão +hA1 e +hB1 e a “altitude” do fundo do mar -hF. Mas se escolhermos o fundo do mar como referência, atribuindo-lhe a altitude zero, então as altitudes das montanhas serão diferentes: +hA2 e +hB2 e a altitude da superfície do mar +hF. Repare-se, no entanto, que a diferença de altitudes das montanhas, ∆h, é independente do estado de referência escolhido, isto é: ∆h = hB1 - hA1 = hB2 - hA2 = hM Assim como a diferença de altitudes da superficie e do fundo do mar: ∆h = 0 - (-hF) = hF - 0 = hF Isto significa que podemos constituir uma tabela com as altitudes das diferentes montanhas e vales convencionando um estado de referência qualquer a que atribuimos o valor zero. A partir dessa tabela podemos calcular as diferenças de altitudes de quaisquer duas montanhas ou vales. Essas diferenças são invariantes. Um raciocínio análogo pode ser aplicado ao problema das entalpias. Define-se o estado normal de cada elemento ou composto como a sua forma física mais estável à pressão de 1 bar (105 Pa) e a uma temperatura especificada, geralmente 298 K (25ºC). Por convenção atribui-se a cada elemento, no seu estado normal, a entalpia zero. Estabelece-se, assim, um estado de referência ou estado padrão para as entalpias. A variação de entalpia que acompanha a formação de 1 mole de um composto no estado normal a partir dos seus elementos no estado normal, chama-se entalpia padrão de formação e designa-se por ∆H of . Por exemplo: C(grafite,1bar,298K) + O2(g,1bar,298K) → CO2(g,1bar,298K) ∆H = ∆H of (CO2) = -393.5 kJ.mol-1 H2(g,1bar,298K) + 1/2 O2(g,1bar,298K) → H2O(g,1bar,298K) ∆H = ∆H of (H2O,g) = -241.8 kJ.mol-1 22 Dispondo de uma tabela com as entalpias padrão de formação para as diferentes substâncias (ver bibliografia indicada) a variação de entalpia padrão, ∆Ho, para uma dada reacção será: ∆H o = ∑ n ∆H fo (produtos) − ∑ n ∆H of (reagentes) (45) onde o símbolo º designa as condições físicas padrão em que se processa a reacção: temperatura de 298K e pressão de 1bar. Se as condições forem diferentes, o valor de ∆H para a reacção será, em geral, diferente de ∆Ho. Teremos de saber, então, como calcular ∆H a partir de ∆Ho. Veremos mais tarde essa relação. Consideremos o exemplo seguinte: Exemplo 2: A partir de uma tabela de entalpias padrão calcular a variação de entalpia padrão da combustão do amoníaco para formar vapor de água e i) azoto ii) monóxido de azoto. Para o caso i): 2NH3(g) + 3/2 O2(g) → N2(g) + 3H2O(g) o ∆H = [ ∆H of (N2) +3 ∆H of (H2O)] - [2 ∆H of (NH3)+3/2 ∆H of (O2)] = = 0 + 3(-241.8) - 2(-46.2) - 3/2(0) donde: ∆Ho = -632.99 kJ Para o caso ii): 2NH3(g) + 5/2 O2(g) → 2NO(g) + 3H2O(g) o ∆H = [2 ∆H of (NO) +3 ∆H of (H2O)] - [2 ∆H of (NH3)+5/2 ∆H of (O2)] = 2(+90.4) + 3(-241.8) - 2(-46.2) - 5/2(0) donde: ∆Ho = -456.4 kJ As tabela de entalpias padrão contêm, também, valores para entalpias de átomos e de iões. É importante ver como elas foram estabelecidas em relação ao estado padrão de entalpia zero: os elementos químicos no seu estado normal. A existência de átomos livres em sistemas químicos é, em geral, transitória. O átomo de hidrogénio, por exemplo, apenas existe em pequenas concentrações nas chamas, explosões e outros sistemas reaccionais em que intervenham compostos que contenham hidrogénio. O valor de ∆H of para o átomo de hidrogénio é definido como metade da energia necessária para romper as ligações de 1 mol de moléculas de hidrogénio, ou seja, metade da energia de dissociação do hidrogénio: 23 H2 → 2 H ∆H = 2∆H (H) - ∆H of (H2) = 2∆H of (H) = 436 kJ o o f donde ∆H of (H) = 218 kJ.mol-1 As entalpias de formação de outros átomos são calculadas de modo semelhante, com base nas energias de dissociação das respectivas moléculas. As entalpias de formação de átomos correspondentes a elementos sólidos obtêm-se medindo ∆Ho para o processo de vaporização. Assim, por exemplo, o estado normal do carbono é o cristal de grafite a 298 K e pressão de 1bar para o qual a entalpia é zero. O calor absorvido quando se vaporiza 1 mole de grafite para formar 1mole de átomos gasosos é a entalpia de sublimação do carbono: C(grafite) → C(átomos gasosos) ∆H = ∆H (C,átomo) - ∆H of (C,grafite) = 716.7 kJ mol-1 (entalpia de sublimação) ∆Ho = ∆H of (C,átomo) = 716.7 kJ mol-1 o o f Em muitas reacções em fase líquida, particularmente em solução aquosa, intervêm iões. Estudámos, por exemplo, as reacções ácido-base onde existe uma reacção iónica comum: H+(aq) + OH-(aq) → H2O(liq) Dada a importância das reacções iónicas é necessário estabelecer os valores de ∆H of para iões individuais como, por exemplo, H+ e OH-. Consideremos a formação de uma solução 1M de ácido clorídrico a partir de cloro e hidrogénio nos seus estados normais: 1/2 H2(g) + 1/2 Cl2(g) → HCl (g) ∆Ho = ∆H of (HCl) = -92,5 kJ.mol-1 HCl(g) + n H2O(liq) → H+(aq) + Cl-(aq) ∆Ho = -74.9 kJ onde nH2O representa a quantidade de água necessária para produzir uma solução 1M. Somando membro a membro as equações anteriores, obtem-se: 1/2 H2(g) + 1/2 Cl2(g) → H+(aq) + Cl-(aq) ∆Ho = -167.4 kJ É evidente que -167.4 kJ é a soma das entalpias de formação de H+(aq) e Cl-(aq). Dado que as soluções iónicas são sempre neutras, não é possível individualizar, 24 experimentalmente, as entalpias de formação do ião positivo e do negativo. No entanto, convenciona-se, que ∆H of (H+) = 0 donde ∆H of (Cl-) = -167.4 kJ.mol-1. Com base na convenção anterior é fácil estabelecer as entalpias para outros iões. Consideremos o seguinte: Exemplo3: Quando 1mol de ácido forte se neutraliza com uma base forte ∆Ho = -57.3 kJ. A entalpia padrão de formação da água líquida é -285.8 kJ.mol-1. Calcular a entalpia de formação de OH-. As reacções a considerar são: H+(aq) + OH-(aq) → H2O(liq) ∆Ho = -57.3 kJ H2(g) + 1/2 O2(g) → H2O(liq) ∆Ho = -285.8 kJ Subtraindo a primeira equação da segunda: H2(g) + 1/2 O2(g) → H+(aq) + OH-(aq) ∆Ho = -228.5 kJ Considerando as convenções estabelecidas anteriormente: ∆Ho = ∆H of (OH-) = -228.5 kJ mol-1 7. Energia de Ligações Químicas A partir das entalpias de reacções apropriadamente escolhidas é possível estimar as energias médias de ligações químicas. Trata-se de um aspecto muito importante sob o ponto de vista teórico e experimental. Considere-se o metano: e a reacção da sua decomposição (dissociação) completa: CH4 (g) → C (g) + 4H(g) ∆Ho = 1665 kJ mol-1 Nesta reacção são dissociadas 4 ligações químicas C-H. Assim, a energia média que é necessário fornecer ao metano para dissociar 1mol dessas ligações é 1665 / 4 = 416 kJ mol-1. Este será, por sua vez, o calor libertado quando 1 mol de ligações C-H se formarem no metano. 25 As energias de dissociação para as ligações C-H, que designaremos dum modo geral por D(C-H), existentes em diferentes compostos não são exactamente iguais à do metano, pois as respectivas estruturas moleculares diferem. Contudo, a experiência mostra que os valores são suficientemente próximos para se estabelecerem tabelas com energias médias de diferentes ligações, calculadas sobre uma vasta selecção de compostos que contenham uma dada ligação (ver tabela 7.1). Tabela 7.1- Energias médias de ligação (298K) Ligação Energia de Ligação kJ mol-1 Ligação Energia de Ligação kJ mol-1 H2 436 F2 153 C-H 413 H-F 565 C-C 348 H-Cl 431 C=C 614 H-Br 366 C≡C 839 H-I 297 C-Cl 339 C-F 485 C=O 745 P-H 322 C≡N 891 H-N 391 C-O 358 H-S 277 O-H 462 N=O 628 O-O 146 S=O 435 O-N 209 N-N 268 O-Cl 205 C-Br 285 Note-se que enquanto D(C-H) = 416 kJ mol-1 para o metano, o valor tabelado é de 413. Este é o valor médio obtido sobre um vasto número de compostos contendo a ligação C-H. *********************************** Problemas Propostos 1. Detemine D(C-C) para o etano: considerando os valores médios de D(C-H) e D(H2) na tabela 7.1, e sabendo que ∆H of (C2H6) = -83 kJ mol-1 e D(grafite) = 717 kJ mol-1. Compare com o valor médio de D(C-C) tabelado. 2. Considere os compostos representados pelas seguintes estruturas simplificadas: 26 ; H-C ≡ C-H a) Identifique os compostos. b) Estime as respectivas energias D(C=C) e D(C≡C) considerando os valores médios de D(C-H) e D(H2) da tabela 7.1, e sabendo que ∆H of (C2H4) = 52,26 kJ mol-1 e ∆H of (C2H2) = 226,73 kJ mol-1. Compare os valores obtidos com os da tabela. 3. a) Identifique os seguintes compostos c) Estime as energias D(C=O) para os dois compostos, considerando as energias médias D(C-H), D(C-O), D(O-H) e D(H2) tabeladas, e sabendo que ∆H of (CH3COCH3 (g)) = -218,5 kJmol-1 e ∆H of (CH3COOH (g)) = -438,1 kJmol-1. Compare os resultados obtidos com o da tabela. 4. Considere a seguinte reacção de hidogenação em fase gasosa: Recorrendo à tabela 7.1, estime a entalpia padrão da reacção, ∆Ho. A reacção será exotérmica ou endotérmica? (Sugestão: calcule as energias de dissociação totais para o eteno e hidrogénio, e a energia total da formação das ligações do etano). 5. Questão análoga à anterior para a reacção: 3CH4 (g) → C3H8 (g) + H2 (g) 6. a) A variação de entalpia experimental para a reacção de atomização do benzeno: 27 traduzida pela equação: C6H6 (g) → 6C (g) + 6H (g) é ∆Ho = 5535 kJ Estime o valor da entalpia da reacção com base na tabela 7.1 e na fórmula de estrutura acima. b) Compare o valor estimado com o experimental e interprete o resultado com base nas estruturas de ressonância do benzeno, por exemplo, e na deslocalização das orbitais moleculares π: (Sugestão: faça uma revisão do estudo sobre a estrutura molecular) Nota Final Este texto de apoio destina-se a complementar algumas aulas teóricas, mas não dispensa a consulta da bibliografia recomendada. Agradeço aos leitores que me indiquem possíveis erros ou afirmações que considerem pouco claras. 28