ANTOLOGIA DE CONTOS
O SABRE
E O CORVO
FANTASY & CO.
FICHA TÉCNICA:
Título:
O Sabre e o Corvo: Antologia de Contos
Autores:
Carlos Silva, Inês Montenegro, Pedro Pereira, Sara Farinha, Vitor Frazão
Montagem:
Pedro Pereira
Copyright © 2014 por Fantasy & Co.
Todos os direitos reservados aos autores.
A Antologia é distribuída gratuitamente através do website
www.fantasyandco.wordpress.com, não poderá ser vendida por outros.
Se vir este e­book á venda proceda á sua denúncia.
A LOJA
Carlos Silva
UMA HERANÇA FAMILIAR
Sara Farinha
ÚLTIMO DESEJO
Vitor Frazão
O BOM NEGOCIANTE
Inês Montenegro
VINGANÇA
Pedro Pereira
A LOJA
Carlos Silva
O Cliente bateu na vidraça, espreitando pelo pequeno círculo que abrira na sujidade com a manga do casaco. A loja parecia deserta, mas o Cliente sabia que não era assim. Era apenas um subterfúgio para afastar os visitantes que não sabiam ao que vinham. Empurrou a porta e o sininho irritante soou, batendo no espanta espíritos, derrubando uma bola que rolou até tocar na campainha de mesa. Um pigarrear ouviu­
se do fundo da loja. Talvez quisesse dizer que iria já, ou então que não queria que o chateassem. De qualquer das maneiras, o Cliente entrou, contornando os amontoados de tralha que, de tão altos, poder­se­ia supor que suportavam o tecto. Em tempos, os objectos já tinham sido coloridos, ruidosos, agitados, porém agora, sob uma uniforme camada de pó, todos eles pareciam fazer parte de uma só entidade que preenchia a loja. Um gato negro saltou de um buraco, aterrando graciosamente à frente do Cliente, olhando­o fixamente com os seus hipnóticos olhos verde­esmeralda, numa conversa silenciosa entre as duas almas. Só então o Cliente reparou que o gato tinha algo na boca. Um objecto de tecido. Uma boneca, talvez. Suja, cinzenta, sem vida, como tudo o resto na loja. O humano acocorou­se para dar uma festa ao gato mas, assim que estendeu a mão para lhe tocar, o animal sumiu­se, levando a boneca consigo. Estava de novo sozinho na gruta de quinquilharia, e nem sinal do velho que o enganara. Estremeceu, como estremecera da primeira vez, ao passar ao pé da Mão da Glória no seu pedestal de madeira identificado com uma plaquinha dourada. Ao lado, ardendo numa pequena lamparina de barro, o fogo do Farol de Alexandria alumiava o balcão de madeira escura, no qual bateu três vezes. Um novo grunhido inteligível. ­ Sei que está aí! Saia cá para fora!
A porta atrás do balcão, enfeitada com um pergaminho com o selo de Salomão chamuscado nas pontas, abriu­se e um velho baixo e magro surgiu. Arrastando os pés, curvado sobre si próprio, foi­se aproximando do balcão, parando de vez em quando como que para se lembrar do que ia fazer, levando o Cliente a suspirar de exasperação. Assim que chegou ao balcão puxou as mangas até acima dos magríssimos cotovelos, exibindo os ossos cobertos de pele a que alguns chamariam de braços, mas que mesmo assim tiveram força para afastar o enorme corvo preto que, não fosse por ter crocitado em protesto, passaria por empalhado. ­ Bom dia, seja bem­vindo! O que vai desejar ho… – semicerrou os olhos raiados de rugas – Ah! Que prazer é vê­lo de volta! Não esperava que encontrasse a loja de novo.
­ É esse o seu plano? Mudar a loja de sítio cada vez que engana alguém? – À falta de resposta do velho, que parecia distraído com o pó a bailar sob a luz dourada que entrava pela clarabóia do tecto, o Cliente prosseguiu com a sua queixa. – Pois bem, quero um reembolso.
­ Da caneta? Deixe­me ver – pediu, estendendo a mão para o pequeno objecto negro que entretanto o Cliente depositara no balcão. Olhou de vários ângulos, desenroscou, enroscou e por fim proferiu o seu veredicto – A caneta parece estar em óptimas condições.
­ Pois, mas não é aquilo que eu pedi!
O velho abanou a cabeça desamparado, dizendo:
­ Sempre a mesma coisa… Vê­se mesmo que é de Lisboa. Esta caneta é exactamente aquilo que pediu. Pode não ser o que realmente queria, ou o que realmente precisava, mas é decerto aquilo que pediu. Desculpe, mas não posso fazer nada por si. Sabe, aquela mercadoria que deu em troca…já a vendi. Sim senhora, uma óptima venda. Se quiser pode trocar por um outro qualquer objecto da loja.
O Cliente olhou em volta, os amontoados pareciam­lhe ainda mais indistinguíveis do que o normal. Uma extensa camada de material amorfo sem princípio nem fim e muito menos identidade. O corvo voou por cima da sua cabeça, como se também procurasse algo para si. O Cliente deixou­se ficar a olhar para a ave até esta aterrar por fim sobre o punho sujo de um sabre, de sangue ou ferrugem, não conseguia precisar. De imediato, sem saber porquê, aquele pareceu­lhe o objecto ideal para trocar pela caneta. Virou­se para o velho ao balcão, encontrando­o já a embrulhar a espada que entretanto desaparecera do local onde o corvo pousara. ­ Como é que…
­ Um óptimo artigo de coleccionador ­ interrompeu o velho. ­ Perfeito para pendurar sobre a lareira, se tiver uma em casa. Extremamente valiosa. Repare no cabo – fungou. ­ Fique sabendo que não pode ser de outra maneira.
O Cliente elevou o objecto aos olhos e leu: “No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.” Sorriu. Sim. Era uma boa troca.
UMA HERANÇA FAMILIAR
Sara Farinha
Xavier pousou o embrulho de papel pardo aos pés da cama. As mãos esguias tremiam ao desembrulhá­lo. Estacou, observando os resquícios de sangue que permeavam a ferrugem. Pegou­lhe e acariciou a gravação na lâmina: “No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.”
Tombou o rosto e, de olhos negros fechados, murmurou as palavras com a cadência natural da língua materna. O som tornou­se em algo espesso que pressionou o seu metro e oitenta e cinco de altura e comprimiu os oitenta quilos de espadachim. Exalou, expelindo a pressão, e um intenso chamamento guiou­lhe o olhar pela divisão.
Uma ténue luz azul pulsava, visível através das minúsculas frestas que ladeavam a porta do que era suposto ser a casa de banho. Avançou pela roçada carpete castanha e murmurou a chave. Um clique soou e Xavier esgueirou­se para dentro da divisão.
Os azulejos brilhavam reflectindo o azul e, no centro, a banheira de cobre assentava em quatro patas em garra. Retirou um pingente do bolso, a medalha de prata cunhada com o brasão familiar, e largou­o dentro do líquido azulado que revolteava no fundo do enorme recipiente. O fluido pulsou uma vez, num intenso clarão, ao toque do objecto sobre a superfície. Ajoelhou­se perante a banheira e inclinou a cabeça sobre a lâmina que assentava nas palmas das mãos. Recitou as palavras que lhe permitiriam Ver. Um novo clarão invadiu o espaço. Com gestos reverentes baixou o sabre sobre o líquido que, formando pequena vagas, se afastou do objecto por uns instantes, engolindo­o de seguida. Debruçou­se sobre o enorme recipiente de cobre e esperou. Observou o líquido azul perder o brilho, apagando, tornando­se negro como os seus olhos e sapiente para aqueles que eram da sua linhagem. Esperou até o fundo da banheira ser um espelho negro, que primeiro ocultou e depois mostrou, para os que podiam Ver. Esperou até poder beber da fonte de conhecimento que se revelava no negrume.
Imagens de sangue e morte percorreram o negrume. Pescoços cortados, membros rasgados e estômagos perfurados. Sob o toque de centenas de punhos, o sabre vibrava na ânsia de mais um golpe, mais uma morte e, por fim, Xavier viu aquilo que procurava. O rosto do traidor que a usurpara e que deixara um trilho de corpos inocentes que seriam vingados.
Enfiou as mãos no líquido agora vermelho, como se a cor fosse mais uma prova da carnificina, e retirou a lâmina dos seus confins líquidos. Segurou­a nas palmas das mãos apreciando o desaparecimento da ferrugem ensanguentada que a tingira e murmurou, num espanhol perfeito, as palavras que a cobriam “No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.”, tudo o que fora desrespeitado.
Raios azulados inundaram o espaço, banhando de luz os rachados azulejos brancos, e devolvendo a divisão ao seu usual estado de inércia. Agarrou a medalha de prata que pairava acima da linha de água e devolveu­a ao bolso.
Pela janela do quarto Xavier reconheceu os primeiros raios da aurora que se aproximava. A noite passara num ápice com Xavier absorto pela longa lista de sangue derramado. Quantas vidas destruídas pelas mãos daqueles que usurparam a espada do seu verdadeiro dono… negligentes das regras forjadas na sua lâmina. Em breve, Xavier teria a oportunidade de eliminar aquele que a havia empunhado… laços que precisava cortar, em razão e honra.
O velho relógio de pêndulo anunciou a meia hora, o gongo retinindo pela casa fora, enquanto ele se ajoelhava à frente do sabre. Cerrou os olhos e deixou que os sentidos se fechassem ao mundo. A mente longe da carpete roçada que o acomodava, do estrado elevado onde dormia, do relógio de pêndulo que anunciava o galopar das horas, das várias lâminas embainhadas que cobriam as paredes. Por trás das pálpebras cerradas bailavam imagens de sangue e morte. O passado, o presente, o futuro, tudo convergia na escuridão da sua mente, tudo se alinhava para a nova batalha. Xavier serviria a sua poderosa linhagem. Faria, por fim, o que o sangue e tradição lhe exigiam: Devolver o Sabre a um uso honrado.
O retinir da campainha trouxe­o de volta ao espaço físico. Baixou o rosto sobre a lâmina, em sinal de reverente respeito, levantou­se e alinhou­a com o corpo. Devagar, desceu as escadas para o vestíbulo, ainda na penumbra, quando a campainha voltou a soar. Os dedos roçavam a maçaneta da porta da rua quando foi ladeado por três presenças. Cercado por sombras dentro da própria casa. Assim começava o reclamar do Sabre que era seu para usar. Assim tinha início a maior luta da sua existência. Empunhá­lo­ia com razão e embainhá­lo­ia com honra. Seu para cuidar, respeitar… e matar.
ÚLTIMO DESEJO
Vitor Frazão
O corpo destroçado recusava a obedecer. Encostado ao tronco putrefacto de uma árvore tombada, traseiro a afundar­se na lama fresca, Luís tentava respirar algum do ar fresco da floresta por entre o cheiro a sangue, suor e pólvora. Mal conseguia levantar a cabeça, quanto mais mexer as pernas partidas. O braço direito fora arrancado, deixando apenas um tosco e ensanguentado coto. O esquerdo, a pender dormente sobre a lama, nem conseguia alcançar a caçadeira de dois canos, a um palmo de distância. A dor e a opressiva proximidade da morte eram insuportáveis. Nem mesmo o orgulho de ter cumprido o dever até ao amargo fim afastava o terror.
Em redor, o solo revolvido, enlameado, coberto com ramos partidos e cartuchos vazios estava pejado de hierocoesfinges mortas ou moribundas. Enquanto a aurora começava a pintar o céu em tons de laranja e vermelho, deslizando pelos ramos nus das árvores, um vulto caminhava por entre a carnificina. Os afiados saltos não se afundavam na lama fofa, como se a recém­chegada flutuasse a escassos milímetros dela. ­ Pintou um belo quadro, Sr. Ribeiro.
Entre a cortina de longos cabelos castanhos e a névoa da exaustão, viu, no meio dos cadáveres leoninos, uma mulher alta e esbelta, envergando um elegante fato azul­escuro, sobre uma camisa branca. Excepto uma madeixa rebelde que caía sobre o olho esquerdo, usava o lustroso cabelo negro preso na nuca, revelando toda a acutilante letalidade das feições finas. Se a presença naquele campo de morte, por si só, não fosse suficiente para a denunciar, o modo como os olhos brilharam, quais tições, atrás dos óculos rectangulares perante o fumo do charuto, fragmentou qualquer dúvida
­ Para trás, demónio! – exigiu Luís, entre ataques de tosse, tamborilando a coronha da caçadeira com os desajeitados dedos, numa tentativa desesperada de a agarrar. ­ O termo politicamente correcto é djinn, Sr. Ribeiro. ­ Djinni, hierocoesfinges, lobisomens, krakens, o quer que seja. Um monstro é um monstro. Lixo não precisa de nome, apenas de arder. ­ Ah! Ah! Estou a ver que a chama ainda está bem viva. Pelo menos, por enquanto… É essa a grande vantagem do ódio, não é? Quando mais fracos estamos mais forte ele fica, até ser a única coisa que resta. É onde está agora, sem nada, indefeso, apenas com o seu ódio ardente.
­ Mata­me, aberração. Diverte­te a espremer os últimos vestígios de vida deste corpo arruinado, mas fica sabendo que um dia todos os vermes como tu serão purgados da face do planeta. ­ Esse é o problema com vocês, caçadores, metem­nos todos no mesmo saco e acabam por perder excelentes oportunidades. Como djinn posso… Oh, peço desculpa. Dá­me um momento? Enquanto passarinhava descontraidamente, rodando o charuto, uma das hierocoesfinge moribundas começou a rastejar para ela. Agressiva até ao fim, movendo freneticamente a cabeça de falcão, abria e fechava o afiado bico, contorcendo o arruinado corpo leonino para atacar uma última vez. Irritada com a interrupção, limitou­se a largar o resto do charuto sobre a criatura, consumindo­lhe o corpo numa imensa e impossivelmente violenta nuvem de cinzas e fagulhas. Quando terminou, com uma rajada súbita, entre as unhas pintadas de azul­marinho rodava um charuto novinho em folha. ­ Peço, desculpa. Onde ia? Ah, sim, oportunidades desperdiçadas.
­ Não te aproximes!
­ Ou o quê? Nem consegue levantar esse “canhão”. – Como quem tira o novelo a um gato preguiçoso, agarrou na caçadeira e abriu­a para sacar os cartuchos usados. – Relaxe, não o vou matar. Já está a fazer um excelente trabalho sozinho.
­ Toda a minha vida combati o Mal. Não farei um pacto com o Diabo para me salvar. ­ Vamos manter o Diabo fora disto, pode ser? – pediu, ligeiramente irritada com a menção ao concorrente. Equilibrando a caçadeira ainda aberta no antebraço esquerdo, levou à boca o charuto, que se acendeu mal lhe tocou nos lábios. Um violento ataque de tosse impediu Luís de retaliar, dilacerando­o com dores. Sorriu. Ao que parecia, não teria de aturar a criatura durante muito mais tempo. Em breve partiria… Pelo menos teria o derradeiro prazer de frustrar­lhe os planos. A djinn teria de procurar outra alma para corromper.
Um agudo crocitar fê­lo rodar dolorosamente o pescoço. No tronco onde se encostava, a pouco mais de um braço de distância, pousara um corvo de leitosos olhos brancos e penas desgrenhadas.
­ Para trás, canário, este é meu. É vergonhoso. Ao que isto chegou… Ainda me lembro do tempo em que a Morte se dava ao trabalho de vir pessoalmente guiar cada alma. Agora, deixa tudo para os lacaios. Onde está o tratamento personalizado, o carinho devido a um marco desta importância? Enfim…
Apesar de brancos, os olhos do mensageiro do Além apenas transmitiam negrume a Luís. Uma aura negra e fria, como se não houvesse neles nada mais além de vazio. Nada. Nem Inferno, nem Paraíso, apenas absoluto esquecimento.
­ Não tenho medo – mentiu, sentido pela primeira vez uma faísca de dúvida. ­ Claro que não. É um homem corajoso. Um exterminador de monstros. Não lhe importa que ninguém verdadeiramente saiba o que jaz além do Véu. O desconhecido não o assusta. Nem que o seu destino seja passar a eternidade na escuridão do absoluto esquecimento ou bloqueado na dor e frio que sente neste momento. Nada disso o intimida, porque partirá deste mundo com todos os objectivos cumpridos. Certo? ­ Cala­te, sei o que estás a tentar fazer…
­ Não tento nada. Só estou a dizer, para que é que desejaria mais tempo, se não deixa nenhum assunto pendente? Quer dizer, o mundo ainda não foi purgado de todos os monstros… Mas também, não é problema seu, pois não? Já fez mais que a sua parte. Outro tipo que pegue na tocha. Afinal, não os pode proteger para sempre.
Uma única imagem saltou à mente de Luís: o filho. 14 anos mal feitos, mais tomates que miolos e dominado por uma ânsia incontrolável de seguir as pisadas do pai. O que lhe aconteceria se não estivesse lá para o ensinar e resfriar­lhe a imprudência juvenil? Quem o protegeria dele mesmo e das coisas que rastejam na escuridão? ­ Não posso realizar desejos a quem não os tenha. Erro meu. É melhor ir procurar outro cliente. Deixo­o apreciar os últimos momentos. Pela proximidade do pardaleco, suponho que não tardará muito. Não se preocupe, só dói quando ele começa a debicar os olhos, depois…
­ …preço…
­ Desculpe? Não ouvi, tem de falar mais alto.
­ Q­qual é o preço?
­ Qual é o desejo? – quis saber, rasgando um sorriso que teria envergonhado o Gato de Cheshire.
­ Quero viver… p­por favor… Pode ser feito?
­ Não nesse corpo. Tarde demais para isso – decretou, colocando o charuto no canto da boca e agachando­se. – Mas, sim, pode ser feito. Pelo preço certo, claro.
­ Não roubarei a vida a outra pessoa.
­ Imaginei que não. Assim é mais complicado, mas não impossível – assegurou, tirando­lhe dois cartuchos do cinto e molhando­os no sangue de Luís. ­ Continuarei a caçar aberrações como tu.
­ E? Estou aqui para fazer negócio, o resto não me interessa – Erguendo­se, colocou as munições na caçadeira. ­ O­o preço? A minha alma?
­ Fique com ela. Almas tenho às dúzias. O que quero é ele.
­ O corvo? Mas?... Como é que?… Ele não é meu.
­ É sim. Ele é a hora da sua morte, o seu prazo de validade. Todos têm um. Só precisa de doar­mo e receberá um corpo novo. Sem truques, prometo.
Perto o suficiente para começar a bicar­lhe a orelha, o pássaro olhava­o com uma expressão quase inquisitiva. Toda a vida combatera criaturas paranormais, agora estava prestes a pactuar com uma apenas porque era demasiado cobarde. Não queria, não podia, deixar o filho sozinho… Mais que isso, aterrorizava­o o desconhecido que existia para além do Véu. ­ Então?
­ Sim – concordou, quase se engasgando de nojo perante a própria fraqueza. – Ele é teu.
­ Óptimo – Com um clique repentino a caçadeira foi fechada e disparada, convertendo o corvo numa nuvem de penas e sangue.
­ O que…
BUM!
Surpresa. Medo. Tiro. Escuridão. Nada. E depois…
Ainda com a derradeira maldição à djinn na ponta da língua, Luís inspirou violentamente como se tivesse acabado de reemergir. Estava vivo! Caído na lama diante do próprio cadáver, em redor do qual ainda choviam penas pretas, mas, sem sombra de dúvida, vivo. A custo ergueu a cabeça da lama fria para o caos ensanguentado do antigo corpo, cuja cabeça pendia para trás, ainda a escorrer massa encefálica. Triste pela perda, mas satisfeito por o pacto ter funcionado, quis levantar­se para contemplar a nova forma. Depressa entendeu que algo estava errado. Conseguia mexer­se, estrebuchando na lama, só que o corpo não reagia como esperara. Os braços estavam pouco sólidos e as pernas dormentes. Entrando em pânico, num mundo de castanho e preto que lhe parecia muito maior que antes, abriu a boca para gritar e apenas conseguiu libertar um profundo crocitar.
­ Parabéns, Sr. Ribeiro, o seu desejo foi realizado. Espero que goste do novo corpo, pois viverá nele durante muitos, muitos anos – assegurou, sorrindo ao agarrar no pequeno, enlameado e desajeitado corvo com delicadeza, para colocá­lo numa gaiola de madeira. Os olhos dela brilhavam como tições por entre o fumo. – Não se preocupe, tenho a certeza que encontrarei um comprador para um exemplar tão raro como o senhor. Pelo preço certo, claro.
O BOM NEGOCIANTE
Inês Montenegro
O sininho da loja repicou e os saltos finos tocaram o chão empoeirado sem que um som se produzisse. O azul­escuro do fato que envergava parecia ser o que de mais colorido existia dentro do local.
O corvo, empoleirado num dos amontoados de objectos que se espalhavam pela loja em aparente desordem, crocitou furiosamente, as asas batendo sem que levantasse voo.
– Então, Sr. Ribeiro, que maneiras são essas? – admoestou a mulher. – Comporte­se, por favor.
Com um sorriso malicioso, ergueu os braços, segurando uma caçadeira que segundos antes não se encontrava lá, e fingiu mirar a ave. O corvo fugiu, desaparecendo num dos buracos do compartimento.
– Não me assuste a mercadoria, sabe que a pode danificar.
A mulher prendeu os olhos castanhos no velho que surgira atrás do balcão de madeira escura. A sombra da caçadeira desapareceu­lhe das mãos. – Não negoceio com marionetas. Ambos estão fartos de saber disso.
O velho pareceu ofendido.
– Sou um receptáculo – corrigiu, antes de o crânio começar a derreter, revelando a forma oca. Um gato preto saltou do interior assim que a massa disforme chegou ao chão. A cauda agitava­se no ar à sua volta, descontente.
– Uns não acreditam quando não é um homem, outros ofendem­se quando é – resmungou, os olhos verde­esmeralda brilhando na obscuridade do local. – Que posso fazer por si?
A djinn pousou os dedos sob o queixo, fingindo analisar os objectos que os rodeavam.
– O arco de Ártemis seria interessante, o rastilho de Supernova também… Ou o canto inédito de Homero, esse colocaria os eruditos a beijar­
me os saltos…
O gato ronronou.
– Ainda tenho os dentes da serpente de Cleópatra que desejou da última vez – aventou. A djinn ajeitou os óculos rectangulares, ocultando a irritação. A última vez fora a primeira e única em que não tivera como pagar o preço.
– Não – determinou. Outras prioridades haviam­se feito presentes pelo entretanto. – Desejo informação.
– E em troca?
Pagar a crédito não era opção. Pousou sobre o balcão o frasco cheio de líquido azul brilhante. O gato aproximou­se, cheirando o vidro do objecto, as orelhas espetadas para diante. Numa aberração à natureza, sorriu, reconhecendo o fluído: revelação. Revelação tornada líquida e aprisionada para uso e proveito daquele que a possuísse.
Não perguntou à djinn onde o conseguira, não era proveitoso ao negócio questionar os clientes.
– Aceito. – Uma mercadoria daquelas compraria qualquer tipo de informação, por mais confidenciosa que pudesse ser. – Que deseja saber?
Ambos sabiam que ela não poderia usar o líquido para tomar conhecimento do que queria. Um desejo que negociara décadas antes fechara­
lhe essa via.
A djinn olhou em redor, confirmando o que já sabia: o objecto desaparecera.
– Quem levou o sabre?
– Qual sabre?
– Ora então, não é assim que se devem conduzir os negócios – sorriu, fingindo candura. – Temos um acordo sobre a mesa.
O corvo crocitou, saindo do esconderijo e esvoaçando pela loja. Tanto a djinn quanto o gato o ignoraram.
– A menina sabe que manter o segredo da identidade dos meus clientes é a única lei deste estabelecimento – censurou o gato. O corvo acalmou­se com as suas palavras, pousando no balcão ao seu lado. – Mas talvez a Boneca possa cumprir as suas especificações.
Uma boneca de pano sujo apareceu em frente às patas negras. A djinn pegou­lhe, virando­a nas mãos e admirando­a. Não se tornou necessário explicar­lhe o funcionamento do objecto. Ela reconhecera­o pelo que era.
Silenciosamente, o gato estendeu­lhe a caneta que pertencera antes ao homem. Por mais contrafeito que se tivesse sentido, por menos tempo que a tivesse possuído, tinha sido o último proprietário da dita, naquilo que à Boneca dizia respeito. O dono da loja não era mais do que uma ponte neutra entre proprietários.
A djinn pegou­lhe, desenhando na face em branco da Boneca dois pontinhos negros e uma linha sorridente. Soprando sobre a tinta, deu vida à Boneca. Viu­a piscar os olhos antes de a guardar dentro do casaco do fato. O pedaço de pano servi­la­ia bem.
– É um prazer negociar consigo – declarou, já a caminho da saída. Por cima do ombro, lançou ainda um olhar risonho ao corvo. – Não julgou que eu deixaria que o libertassem tão facilmente desta vida, pois não, Sr. Ribeiro? Não se esqueça do seu desejo.
A campainha voltou a retinir, suplantada pelos protestos do corvo, que se lançara num voo desgovernado em direcção à porta. O gato miou, um miado longo e de mau agoiro, que levou o corvo a pousar obedientemente no chão.
– Deixa­a, já está longe do teu alcance. Fizeste o que podias ao manipular a escolha daquele homem. Mas não te esqueças que não permitirei que o teu desejo de morte interfira com os meus negócios.
Sabia do charco que era a sua loja, das pedras que ali guardava até aparecer quem as quisesse atirar. Mas as consequências eram­lhe indiferentes. A prioridade era, como ontem, hoje e amanhã, o bom funcionamento do estabelecimento. E sobre isso, não precisava de revelação.
VINGANÇA
Pedro Pereira
Passou o pano húmido pela lâmina do sabre, manchando o tecido de vermelho. Mergulhou­o de novo na pequena bacia de água quente e repetiu o processo, dando especial atenção ao sangue que cobria as palavras “No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.”
Interrompendo o silêncio da noite, o relógio de parede tocou indicando as quatro da madrugada. Fora uma noite longa, mas produtiva para Xavier. Olhou de relance para a folha ensanguentada em cima da mesa, onde constava uma lista de nomes: apenas três restavam por riscar. A sua missão estava quase concluída.
Voltou de novo a atenção para a lâmina do sabre, acariciando­a com o pano. Nas últimas semanas tornara­se mais do que uma arma, era sua amiga e confidente. Conseguia ouvir a lâmina cantar cada vez que ceifava uma vida. Não, o sabre já não era simplesmente uma arma: era parte de si. Era a sua vida.
Já sem resíduos de sangue na lâmina, passou com um pano seco para retirar a humidade. Pegou no sabre como se de um recém­nascido se tratasse, colocou­o com zelo na bainha.
Sobressaltou­se ao ouvir o som estridente da campainha. Não era habitual receber visitas, muito menos àquela hora. Levantou­se e encaminhou­se para a porta. Parou a meio do caminho, lançado um olhar de relance para a mesa e para o sabre. Ponderou em levar a arma consigo, mas com a insistência do toque apressou­se em direcção à porta. Espreitou pelo óculo.
Uma mulher atraente de cabelos negros e de fato azul aguardava do outro lado. Ponderou se devia abrir a porta.
– Xavier, querido, abre a porta. Não tenho a noite toda. Eu sei que estás aí.
Apanhado de surpresa, puxou o trinco da fechadura. Mal a porta se abriu, a mulher entrou no pequeno apartamento. Embasbacado, Xavier viu­a avançar em direcção à sala.
O som dos saltos altos a bater no soalho de madeira quebrou o silêncio da noite. A desconhecida vagueava pela sala, observando a colecção de armas penduradas na parede.
– Tens aqui uma bela colecção – comentou, ao mesmo tempo que ajustava os óculos.
– Conhecemo­nos?
– Não.
– O que quer?
– Tenho uma proposta para te fazer. Ah, aqui está ele… – declarou, aproximando­se do sabre pousado na mesa.
Num salto, Xavier aproximou­se da mulher e pegou na arma antes que esta lhe pudesse tocar.
– Ora, ora, isso são modos?
– O que quer? – insistiu, desta vez sem esconder a irritação que sentia.
– Esse sabre – disse a mulher, apontando para a arma que Xavier segurava agora na mão.
– Não está à venda – respondeu bruscamente. – Agora saia.
– Mas ainda nem ouviste a minha proposta…
– Não estou interessado.
– E se eu oferecer a vida dos traidores da tua pequena lista?
Xavier sentiu um arrepio percorrer­lhe o corpo. Ela sabia. Num movimento rápido, tirou o sabre da bainha e apontou­o à mulher.
– Eu ofereço­me para ajudar e tu apontas­me uma arma? É assim que agradeces?
– Como sabe?
– Eu sei muitas coisas…
Por detrás dos óculos, os olhos da mulher brilharam de uma forma estranha, denunciando­a.
– Para trás, criatura!
A Djinni sorriu e começou a vaguear pela sala, ignorando por completo a postura ameaçadora de Xavier.
– Agora que já esclarecemos isso, que tal falarmos sobre um acordo? Eu trato dos desgraçados que restam na tua lista e tu podes ficar sossegadinho em casa – passou de novo os olhos pela colecção de armas nas paredes – a tratar das tuas espadas sem teres de sujar as mãos. Vê isto como um outsourcing, um serviço para aumentar a tua comodidade. A única coisa que peço em troca é esse sabre que tens nas mãos.
Xavier ponderou a situação. A oferta da Djinni iria poupar­lhe o trabalho de ter de perseguir os traidores. Muito provavelmente levaria a cabo a tarefa com maior facilidade do que ele. As palavras do sabre lhe ecoaram na cabeça, “No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.” Não, tinha de ser ele a concluir a vingança, tinha de o fazer com honra.
– Eu não negoceio com demónios – declarou.
– Isso é uma chatice – suspirou a Djinni, ao mesmo tempo que sacava de um charuto e o acendia. – Infelizmente para ti, eu não aceito um “não” como resposta.
A mulher estendeu a mão na sua direcção e Xavier foi projectado pelo ar. Uma dor aguda percorreu­lhe o corpo quando bateu violentamente contra uma das paredes. Cerrou com força a mão em torno do punho do sabre e tentou avançar sobre a criatura. No entanto não se conseguia mover, estava paralisado. Tentou libertar­se daquelas correntes invisíveis que o prendiam pelos membros de encontro à parede. Moveu­se freneticamente numa tentativa de se afastar da parede, mas sem sucesso. Era como se o tivessem pregado numa árvore.
A Djinni aproximou­se num passo sensual, fumando o seu charuto.
– A minha oferta final. Dá­me o sabre e deixo­te viver.
– Não.
O seu rosto ficou vermelho e o cenho arreganhado.
– Como queiras!
A Djinni começou a fechar a mão. Xavier sentiu um enorme peso no peito, como se algo o estivesse a esmagar. O ar fugia­lhe dos pulmões deixando­o com uma dor agonizante. Os olhos lacrimejavam. Tentou gritar, pedir ajuda, mas quando abriu a boca não saiu nenhum som. A sala em seu redor começou a ficar turva.
Sem aviso, um corvo entrou pela janela aberta e lançou­se sobre o rosto da mulher, atacando­a com o bico, afastando­a do homem moribundo. Os pulmões de Xavier voltaram a encher­se de ar e sentiu que os membros estavam livres.
Cerrando as mãos em torno do corvo que lhe bicava o rosto, a Djinni esmagou­
o e atirou­o contra uma das paredes brancas. O malfadado Ribeiro não sabia quando desistir. Recompôs­se e focou de novo a sua atenção no humano.
A Djinni avançou em direcção a Xavier quando sentiu algo frio trespassar­lhe o peito. O humano olhava­a nos olhos, a poucos centímetros dela. Com horror, baixou o olhar em direcção ao peito, a lâmina prateada do sabre estava cravada no seu coração.
Xavier puxou pelo punho, libertando­se da Djinni. O corpo da mulher tombou, transformando­se em cinzas no momento em que tocou no soalho de madeira.
***
De embrulho nos braços, Miguel entrou a correr em casa e fechou a porta com um estrondo. Pousou­o na mesa da cozinha e procurou o remetente. Para surpresa do adolescente de catorze anos, não havia informação de quem lhe enviara a encomenda, constava apenas o seu nome e a sua morada.
Curioso, desfez o embrulho revelando o seu conteúdo. A lâmina do sabre brilhou quando o jovem lhe pegou. Aproximou­a do rosto e leu a inscrição: “No me saques sin rason. No me embaienes sin honor.”
Gesticulou a arma no ar, avaliando o seu peso. O pai teria gostado, era um bom sabre.
Foi então que reparou numa pequena nota deixada no interior do embrulho. Pousou o sabre e desdobrou o papel, revelando uma caligrafia cuidada. “Para que possas seguir as pegadas do teu pai. Usa­a com honra”.
Miguel colocou o papel na mesa e pegou novamente no sabre. Estava ali o seu propósito, a sua missão. Seguiria o exemplo do pai, não descansaria até o mundo se ver livre dos monstros e aberrações que viviam nas sombras.
Download

A LOJA