Pietro Ubaldi I – PARTE II – PARTE CONCLUSÃO DA I OBRA III – PARTE PROBLEMAS DO FUTURO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 1 I. A VERDADE ........................................................................................................................................................... 8 II. A PERSONALIDADE OSCILANTE E A VISÃO DE OUTRAS VERDADES ............................................ 12 III. EXPERIÊNCIAS EM BIOLOGIA TRANSCENDENTAL............................................................................ 15 IV. UM CASO VIVIDO ............................................................................................................................................ 19 V. A ECONOMIA SUPERNORMAL ..................................................................................................................... 22 VI. LUTA E SELEÇÃO ........................................................................................................................................... 26 VII. O MAIS FORTE ............................................................................................................................................... 29 VIII. A METAMORFOSE ....................................................................................................................................... 32 IX. A TÉCNICA DA EVOLUÇÃO ......................................................................................................................... 37 X. O PENSAMENTO CRIADOR............................................................................................................................ 40 XI. LIVRE-ARBÍTRIO E DETERMINISMO ....................................................................................................... 41 XII. EQUILÍBRIOS .................................................................................................................................................. 45 XIII. EVASÕES ........................................................................................................................................................ 49 XIV. INFERNO E PARAISO .................................................................................................................................. 52 XV. DEUS E UNIVERSO (I Parte) ......................................................................................................................... 56 XVI. DEUS E UNIVERSO (II Parte) ...................................................................................................................... 62 XVII. AS ÚLTIMAS ORIENTAÇÕES DA CIÊNCIA .......................................................................................... 67 XVIII. O “CONTÍNUO” ESPAÇO-TEMPO E A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES ........................................ 72 XIX. O ESPAÇO-CURVO E A SUA EXPANSÀO ................................................................................................ 76 XX. COM A CIÊNCIA PARA O INCONCEBÍVEL ............................................................................................. 80 XXI. A CIÊNCIA NA DESCOBERTA DE DEUS ................................................................................................. 83 XXII. O DRAMA DE QUEM CRÊ ......................................................................................................................... 86 ASCENSÕES HUMANAS I. O PRINCÍPIO DE UNIDADE .............................................................................................................................. 89 II. A ERA DA UNIDADE ......................................................................................................................................... 93 III. CAPITALISMO E COMUNISMO ................................................................................................................... 96 IV. A UNIDADE POLÍTICA ................................................................................................................................. 100 V. A UNIDADE RELIGIOSA ................................................................................................................................ 102 VI. OS CAMINHOS DA SALVAÇÃO ................................................................................................................. 104 VII. FAZER A VONTADE DEUS ......................................................................................................................... 106 VIII. COMO ORAR ............................................................................................................................................... 108 IX. A COMUNHÃO ESPIRITUAL ...................................................................................................................... 110 X. PAIXÃO .............................................................................................................................................................. 112 XI. RESSURREIÇÃO ............................................................................................................................................ 115 XII. CRISTO AVANÇA ......................................................................................................................................... 117 XIII. UMA ESTÁTUA SE MOVE......................................................................................................................... 118 XIV. SINAIS DOS TEMPOS ................................................................................................................................. 120 XV. O ATUAL MOMENTO HISTÓRICO .......................................................................................................... 122 XVI. UMA PARÁBOLA ........................................................................................................................................ 124 XVII. A DESORIENTAÇÃO DE HOJE .............................................................................................................. 126 XVIII. O ERRO DE SATANÁS E AS CAUSAS DA DOR ................................................................................. 127 XIX. O ERRO MORAL ......................................................................................................................................... 129 XX. MEDICINA E FILOSOFIA ........................................................................................................................... 131 XXI. A CIÊNCIA DA ORIENTAÇÃO ................................................................................................................. 133 XXII. O CONCEITO DE PODER EM BIOLOGIA SOCIAL .......................................................................... 135 XXIII. CRISE DE CIVILIZAÇÃO ....................................................................................................................... 137 XXIV. COMO FUNCIONA O IMPONDERÁVEL ............................................................................................. 140 XXV. AMOR E PROCRIAÇÃO ........................................................................................................................... 142 XXVI. SEXUALIDADE E MISTICISMO............................................................................................................ 145 XXVII. POR QUE AMOR É ALEGRIA .............................................................................................................. 147 XXVIII. O PROBLEMA DA CASTIDADE ......................................................................................................... 149 CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 151 DEUS E UNIVERSO PREFÁCIO .............................................................................................................................................................. 157 I. COMO FALA A VIDA ........................................................................................................................................ 160 II. “EU SOU” – ESQUEMA DO SER .................................................................................................................... 162 III. O EGOCENTRISMO ....................................................................................................................................... 164 IV. A QUEDA DOS ANJOS ................................................................................................................................... 167 V. ORIGEM E FIM DO MAL E DA DOR............................................................................................................ 169 VI. DESMORONAMENTO E RECONSTRUCÃO DO UNIVERSO ............................................................... 172 VII. A PERFEIÇÃO DO SISTEMA ...................................................................................................................... 175 VIII. SOLUÇÃO ÚLTIMA DO PROBLEMA DO SER ...................................................................................... 179 IX. CONFIRMAÇÕES EM NOSSO MUNDO ..................................................................................................... 185 X. A TEORIA DO DESMORONAMENTO E AS SUAS PROVAS .................................................................. 190 XI. A CAMINHO DA SUBLIMAÇÃO .................................................................................................................. 201 XII. OS TRÊS ASPECTOS DA SUBSTÂNCIA ................................................................................................... 204 XIII. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM ................................................................................................................ 207 XIV. A ESSÊNCIA DO CRISTO ........................................................................................................................... 210 XV. À PROCURA DE DEUS.................................................................................................................................. 213 XVI. A PRECE ........................................................................................................................................................ 217 XVII. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA ...................................................................................................... 220 XVIII. O FENÔMENO INSPIRATIVO ................................................................................................................ 224 XIX. A ALMA E DEUS........................................................................................................................................... 228 XX. VISÃO SÍNTESE ............................................................................................................................................. 231 COMENTÁRIOS PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO .................................................................................................................. 235 PREFÁCIO .............................................................................................................................................................. 235 HISTÓRIA DE UM CASO VIVIDO ..................................................................................................................... 236 MENSAGENS PARTICULARES DE PIETRO UBALDI .................................................................................. 241 MENSAGENS MEDIÚNICAS DIRIGIDAS A PIETRO UBALDI .................................................................... 241 SOBRE DEUS E UNIVERSO DE PIETRO UBALDI ......................................................................................... 245 A VERDADEIRA E INTEGRAL REALIDADE DE PIETRO UBALDI POSTA EM EVIDÉNCIA COM O MÉTODO PARAPSICOLÓGICO – PSICODIAGNÓSTICO “BLASI” .......................................................... 247 UM CASO DE BIOLOGIA SUPRANORMAL .................................................................................................... 250 PIETRO UBALDI E SUA OBRA .......................................................................................................................... 258 PIETRO UBALDI, PROFETA DO ESPÍRITO.................................................................................................... 259 A GRANDE SÍNTESE E A NOVA TEORIA DE EINSTEIN (Esclarecimentos) ............................................. 259 ENCONTROS COM EINSTEIN (I) (O Homem) ................................................................................................ 261 ENCONTROS COM EINSTEIN (II) (O Pensamento) ........................................................................................ 262 SEGUNDA PARTE – CRÍTICAS ........................................................................................................................... 264 GRANDES MENSAGENS (I) ................................................................................................................................ 264 GRANDES MENSAGENS (II) ............................................................................................................................... 265 O REGRESSO AOS DIAS CRIATIVOS DO DIVINO PENTENCOSTES ATRAVÉS DA MEDIUNIDADE INTELECTUAL ...................................................................................................................................................... 266 A PROPÓSITO DA “MENSAGEM DO PERDÃO” DO PROF. PIETRO UBALDI ....................................... 266 PIETRO UBALDI – A GRANDE SÍNTESE ......................................................................................................... 267 A “SUA VOZ” .......................................................................................................................................................... 267 A HISTÓRIA DE UM NOVO GRANDE MOVIMENTO ESPIRITUAL ......................................................... 269 O FIM DA SÍNTESE CÓSMICA (A Grande Síntese) ......................................................................................... 270 NASCIMENTO DE A GRANDE SÍNTESE ......................................................................................................... 271 O FENÔMENO UBALDI ....................................................................................................................................... 272 A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ITALIANA ....................................................... 273 A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ITALIANA ........................................................ 274 A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO ITALIANA ......................................................... 277 A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ESPANHOLA .................................................. 279 A GRANDE SÍNTESE – MENSAGEM DE EMMANUEL ................................................................................ 279 AS NOÚRES – APRECIAÇÃO DE FERMI ........................................................................................................ 279 A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DE FERMI ........................................................................................ 283 ASCESE MÍSTICA – APRECIAÇÃO DE FERMI ............................................................................................. 287 A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (I) ............................................................................. 290 A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃODA IMPRENSA (II) ............................................................................. 290 A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (III) ............................................................................. 291 A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (IV) ............................................................................. 292 A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (V) ............................................................................. 293 VÁRIAS CRÍTICAS ............................................................................................................................................... 294 UM LIVRO REVELADOR ................................................................................................................................... 295 MISTICISMO MODERNO ................................................................................................................................... 296 HISTÓRIA DE UM HOMEM ............................................................................................................................... 298 TERCEIRA PARTE – A CONDENAÇÃO ........................................................................................................... 299 CONDENAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ................................................................................................................ 299 UBALDI CONDENADO PELA IGREJA ............................................................................................................ 299 A GRANDE SÍNTESE NO ÍNDEX ....................................................................................................................... 299 A CONDENAÇÃO DE A GRANDE SÍNTESE ................................................................................................... 300 AS OBRAS DE PIETRO UBALDI NO INDEX ................................................................................................... 300 ORIENTAÇÃO ....................................................................................................................................................... 302 CONCLUSÕES SOBRE A CONDENAÇÃO ....................................................................................................... 304 PIETRO UBALDI E A IGREJA ........................................................................................................................... 307 O PONTO DE VISTA TEOLÓGICO ................................................................................................................... 309 Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO PROBLEMAS DO FUTURO INTRODUÇÃO Iniciando o presente volume, que se abre no limiar da terceira trilogia, é necessária uma pausa para nossa orientação. Cada um desses livros é uma jornada, cada trilogia representa uma volta na maturação do destino daquele que escreve e no desenvolvimento do seu pensamento, traçado nesta obra, em paralelo com o desenvolver do pensamento da própria vida, conforme esta se expressa pela ação, na fase histórica que estamos atravessando. Façamos isso, portanto, para que nos possamos orientar nesses aspectos, os quais se acham intimamente entrelaçados e se desenvolvem em ressonância, formando uma perfeita sinfonia, no mais unitário sentido da vida. Isto não é somente afirmado em cada palavra, mas também vivido profundamente. O enquadramento formal dos seis volumes, que compõem a primeira e segunda trilogias, já se encontra no prefácio do trabalho precedente: A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Vamos repeti-lo, entretanto, para o leitor novo, que ainda não conhece o argumento. A primeira trilogia compreende: 1) Mensagens1 e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segunda trilogia é formada de: 1) História de um Homem; 2) Fragmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio. A terceira trilogia inicia-se com Problemas do Futuro. No capítulo XVIII, do volume precedente, acha-se sumariamente explanada a significação dessas etapas. O autor é um viandante da vida, de uma vida em ascensão, na qual ele se eleva penosamente, degrau por degrau. Nessa subida, realiza uma série apocalíptica de experiências espirituais, que se lhe mostram muito graves e decisivas no mundo biológico e que, por transcenderem a vida comum, o deixam tão espantado, que não pode furtar-se à necessidade de analisá-las. As palavras que escreve foram por ele vividas com luta e sofrimento, portanto compreender-se-á que, atrás do desenvolvimento do pensamento racional, encontra-se o desenvolvimento de um destino e que a batalha de conceitos foi primeiramente batalha de paixão. Pode-se dizer, pois, que cada palavra aqui escrita ainda está sangrando de dor, vibrando em consequência da luta travada. No fundo, trata-se propriamente de uma biografia, vista em sua profundidade; de um caso real, em que é a vida que fala e se revela, com a experiência de um para proveito de todos. É natural que, assim sendo, o pensamento explanado nestas páginas tem de estar estreitamente unido à manifestação histórica da própria vida, porque ela é sempre una e indivisível. Foi afirmado já, na conclusão da precedente segunda trilogia, que o ciclo da primeira é explosivo e o da segunda, reflexivo. É a assimilação que se segue à inspiração. É uma espécie de recuo sobre a primeira impetuosa revelação, para que ela possa ser disciplinada e melhor compreendida racionalmente por todos. É uma assimilação necessária para se poder subir ainda mais, depois de terem sido racionalmente consideradas e consolidadas as posições alcançadas por inspiração. Foi muito forte e muito rápido o passo até à Ascese Mística. Após atingir as alturas místicas, havia necessidade de tudo disciplinar e enquadrar. O filósofo não achará nesse caminho exposição sistemática, onde se busca a construção de sistemas com um cerebralismo artificioso. Isto foi evitado, para que a própria vida falasse com o seu dinamismo. A organicidade, mais do que nos esquemas conceptuais da exposição, está inserida na sempre presente substância do argumento: a eloquente estrutura orgânica do universo. Fundamentalmente, é o mesmo processo evolutivo que falou em muitos, como a Beethoven, na Nona Sinfonia, ou a Wagner, no Parsifal. Esse processo evolutivo implica a retomada dos motivos da primeira explosão, onde foram apenas sinteticamente expressos, para se proceder depois ao seu desenvolvimento analítico. É por isso que, no volume precedente, A Nova Civilização do Terceiro Milênio, encontra-se o subtítulo: ―Análise e Desenvolvimento de A Grande Síntese‖. Esta, como escrito inspirado, permanece fundamental, mas sempre parece mais um esquema do que um verdadeiro e exaustivo tratado. Dai a necessidade de desenvolvê-lo, de ultrapassar sua vastidão sintética, descendo-se à profundeza analítica. As características da terceira trilogia não se tornarão completamente evidentes senão quando o processo for completado. Não podemos prever, senão no conjunto, aquilo que a vida poderá dizer em uma determinada fase de sua manifestação. O certo é que este primeiro volume da terceira trilogia se inicia com um retorno à obra A Grande Síntese, com um desdobramento reflexivo sobre a sua parte mais difícil, que é a inicial, científica. O alforje do autor, caminhante da vida, tem se tornado sempre mais cheio de experiências. Ele está cansado de palavreado inútil e tem pressa em concluir a demonstração da doutrina de A Grande Síntese com provas resolutivas. Ele sente toda a vacuidade e a corrosão das polêmicas filosóficas e religiosas. Preocupa-o apenas o que é consistente para provocar no involuído o abalo decisivo na hora histórica crucial. Por isso ele se dirige à ciência, procurando o motivo da vida na origem e na psicologia do homem, para então desenvolver o presente volume. Mas, também aqui, o caminho continua sempre, assim como a vida segue da matéria para o espírito. Deste modo o presente livro, tal como os outros, nada mais é senão uma diversa sinfonia da ascensão. Mesmo retomado de baixo, o traçado é sempre o mesmo, portanto, embora não se possa exatamente prever o conteúdo desta terceira trilogia, porque a vida fala com os fatos e se expressa em formas concretas, reais e vividas, a lógica do desenvolvimento e o pressentimento de intuição dizem que, como a nota dominante da primeira trilogia foi explosão e a da segunda, assimilação, então a da terceira será sublimação. Dados esses graus de desenvolvimento, é natural que a nota inspiradora tenha dominado no primeiro tempo (primeira trilogia). Daí, os qualificativos de médium, ultrafano 2, inspirado e místico, aplicados ao autor. De fato, ele falou em nome de outra personalidade, em forma ultrafânica, em Grandes Mensagens e A Grande Síntese. No seu segundo volume, As Noúres, ele se pôs logo a observar a si mesmo, para poder compreender o fenômeno da inspiração e suas consequências, a fim de que tudo viesse a ser controlado com responsabilidade e plena consciência. Porém o ímpeto da explosão não pôde deixar de levá-lo até à altura do terceiro volume: Ascese Mística. No segundo tempo (segunda trilogia) a nota inspirativa, tratando-se de um período reflexo, se atenua e, com o primeiro livro, aparece um retorno autobiográfico: História de um Homem, no qual o autor procura a si mesmo. O segundo volume é uma coletânea de artigos que expunham de forma dispersa o seu pensamento e que foram publicados em revistas. O terceiro é, como foi dito antes, uma retomada e um desenvolvimento dos problemas mais humanos de A Grande Síntese, decisivamente apontando para a meta de toda a obra, que é a nova civilização do espírito, o grande motivo, apenas assinalado anteriormente. Retornos necessários, sem os quais o desenvolvimento não é possível, método que, embora ao leitor menos avisado possa parecer apenas repetição, é conscientemente adotado. Assim, cada volume, significando uma etapa do caminho e exprimindo uma fase de vida, à qual adere, tem sua característica própria, que o distingue, como se dá, por exemplo, com as sinfonias de Beethoven. Assim, o terceiro tempo (terceira trilogia), 2 1 Traduzidas em português como Grandes Mensagens. (N. do T.) 1 O que pratica a ultrafania, quer que dizer: luz do além. Ultrafano corresponde ao médium espiritista. (N. do T.) 2 PROBLEMAS DO FUTURO que podemos chamar de sublimação, inicia-se com este primeiro volume, no qual é feito primeiramente um profundo exame da personalidade humana, já iniciado no livro anterior; abarca-se depois a ciência da matéria, a fim de finalmente levá-la até à fé e ao espírito, seguindo um método ultramoderno de renovação, em que, alcançando uma visão mais profunda do universo, não mais materialista, a ciência se torna um grande motivo de sublimação, que não poderá deixar de constituir o final místico de toda a obra nos ulteriores volumes. Este final, para o autor, significa a última sublimação do seu destino e, para o mundo, o despontar da aurora da nova civilização do espírito. Nestas três formas estreitamente ligadas: exposição conceptual, caso individual de evolução espiritual e ascensão coletiva do homem, a vida fala, exprimindo o mesmo pensamento. Há, na tempestade dos conceitos, nos dramas de paixão e de dor de quem escreve e nas lutas do mundo, a mesma elevação, a purificação criadora que da matéria leva ao espírito, a sublimação na dor que redime. ◘ ◘ ◘ Nesta curva da vida do autor, da exposição que constitui sua obra e do próprio destino do mundo, três fatos sintonizados no mesmo ritmo ascensional, é necessário aprofundar os conceitos acima expostos, com coragem e sinceridade, para proveito de todos. Que significa, nesses seus três aspectos, essa sublimação que caracteriza a terceira trilogia? Comecemos pelo primeiro. Para o autor, isto significa aprofundar sempre mais a consciência do próprio destino, quer dizer, manter sempre mais estreito contato com o infinito; significa completar a purificação. Há muitos anos, o misterioso processo biológico da maturação vemse realizando, sem ser visto exteriormente nem compreendido, através de uma profunda e dilacerante maceração, sob múltiplas formas. Trabalho intenso, dor, renúncia, pobreza. Um contínuo afastamento de si mesmo, de tudo o que é humano, arrancando a própria carne viva pedaço por pedaço, lentamente, para não acabar morto. Sim, e tudo isto endossado pela vestimenta exterior do imbecil que não sabe conduzir seus negócios, pela máscara do homem educado que deve sorrir para não incomodar, mas, intimamente, acompanhando o progressivo esclarecimento da consciência do seu próprio destino, num crescente senso da missão que deve desempenhar, numa afirmação no plano do espírito. A grande experimentação evangélica da qual nasceram os volumes precedentes não foi para o autor literatura, mas um fato vivido, carregado de frutos vivos. Ele, tendo em vão procurado livrar-se do peso da riqueza, que constituía um embaraço à marcha encetada, acabou por enfrentar o dilema: ou cuidar de seus próprios negócios ou renunciar à sua missão. Conciliar duas coisas, onde cada uma exigia totalmente o homem, era impossível. E o senso da missão a cumprir, cada dia que passava, mais se acentuava em seu íntimo e mais forte gritava. Precisava então abandonar os interesses materiais, deixando-os à mercê do assalto de todos. Eis o dilema: salvar os valores do espírito ou os da matéria? Ora, uma vez que, neste nosso mundo, sempre se encontra aquele que está pronto a levar o que não é guardado nem defendido, além do que é impossível confiar em outros, pois quem sabe desincumbir-se de seus negócios, em geral, só o sabe para si mesmo, então ocupar-se dos valores do espírito significava pobreza. Precisava escolher. Vivemos em um mundo no qual os involuídos são ativíssimos em realizar sua vida com seu próprio método, a qualquer preço. O homem de espírito, que nesse campo é inepto, facilmente é eliminado. Então, a escolha foi feita, e foi iniciada a experimentação evangélica. O autor pôde descrevê-la nos volumes anteriores, porque a estudou de perto, porque a viveu. Evangelho experimental. Só assim essas coisas podem ser verdadeiramente compreendidas; só assim se pode fazê-las compreendidas, quando as pregamos; de outro modo, não passaria de retórica. Trata-se de experimentação que verdadeiramente inverte os valores e refaz o homem; catarse que penetra até aos ossos. É um avanço que Pietro Ubaldi parece de loucos, nas trevas rasgadas pelo lampejar de uma alucinante luminosidade interior, em meio da qual o Evangelho, como sentinela ao longe, grita: ―Ocupai-vos das coisas do espírito e tudo o mais vos será dado‖. Se soubermos, pois, inverter os valores correntes e realmente viver a utopia do Evangelho, entraremos no mundo dos prodígios, tornando atual a já descrita economia do evoluído, baseada na Providência. O milagre consiste em que sua vida, parecendo humanamente ter que findar no desespero da miséria e da fome, deságua, ao contrário, num confiante abandono em Deus, porém não só confiante pela fé, mas também através da prova experimental, onde os fatos demonstram que o apoio nunca falta a quem verdadeiramente crê no Evangelho, praticando-o. Quando é superada a grande barreira que nos separa da inversão dos valores correntes, desenvolve-se a série dos milagres. A percepção do mundo que nos circunda é dada pela nossa natureza; se nós mudamos, tudo muda. Assim, com a nossa elevação no espírito, tudo tende a sublimar-se; o que antes era dor, transforma-se em regozijo. Então, o trabalho, hoje transformado em condenação pela máquina e pela avidez humana, torna-se um livre e alegre ato da criação, no qual o homem é chamado a colaborar no funcionamento do universo e operar, à semelhança de Deus, imitando-o em Sua perene ação criadora. Toda renúncia na matéria aparece no lado positivo, como construção do eu, isto é, como conquista e afirmação no espírito. A solidão se povoa de forças amigas que nos estendem os braços e nos ajudam; as provações se suavizam e se tornam criadoras de nós mesmos. Eis as maravilhas da ascensão, o milagre experimentado pelo autor. O valor destes escritos não se baseia na novidade de conceitos, que são velhos como a vida, mas sobre o fato de que eles foram experimentalmente vividos, e não apenas repetidos, ainda que em perfeita ortodoxia de forma. É certo que, antes de Colombo descobri-la, a América já existia, contudo ela foi no seu tempo a maior descoberta do século. Desta forma, se hoje, assim como Colombo fez com a América, o homem descobrisse verdadeiramente o Evangelho, vivendo-o experimentalmente, tocandoo com as mãos, esta também seria a maior descoberta do século. Atingindo pela evolução o plano do espírito, tem-se a sensação de que emergimos de um fétido mar de lama. Liberdade no infinito. Entre tantas imperfeições dolorosas, se percebe, de outro lado, a harmoniosa perfeição da obra de Deus. No plano do universo, percebe-se a lógica do próprio destino, que é assim aceito, porque se verifica que ele nos conduz ―sempre‖ ao encontro daquilo que representa o nosso bem. Compreende-se a maravilhosa trama da vida, admira-se tudo e bendiz-se a Deus. É verdade que há as provações, mas, depois de superá-las, compreende-se o respectivo sentido e o seu valor criador; adquire-se então uma visão profunda, que vê o porquê de cada uma das vicissitudes humanas. Tudo se vai revelando completamente, a dor se faz instrumento de redenção, e cada acontecimento de nossa vida se torna um amigo, porque é para nós, sempre, o melhor possível. O grande milagre da ascensão é a nossa progressiva libertação da dor e do mal. Todo assalto destruidor se transforma em meio de criação. E a força de cada ocorrência nos fará sempre sentir perto de nós a mão operante de Deus, imanente em nós! Então, o caminhante da vida, carregado de recordações, em que o futuro, antes um tanto vago, se transformou em passado, vê e compreende. Compreende como cada golpe da adversidade provocou como reação uma nova luz, como cada obstáculo o estimulou, como cada provação o instruiu e como toda vicissitude se transformou em força criadora. Então ama-se tudo o que antes desagradava e pesava, porque já se sabe que tudo serve para edificar o espírito. A catarse é de todo o ser, de suas qualidades, de suas necessidades e desejos, assim como de sua dor. Tudo se sublima nele e, nele e com ele, destila-se e transmuda-se. E isto o faz verdadeiramente rei da vida. É o superamento de todo um Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO mundo, para entrar em outro mais alto. O ser é levantado para o céu por esta sua sublimação acima de todos os males e dores humanas. Eis o conceito dominante na terceira trilogia. ◘ ◘ ◘ Com relação a este conceito, observemos agora a obra escrita, a série de volumes que dele são consequência. O processo evolutivo do autor não pôde deixar de produzir nele um relampejar da mente, um clarão de conceitos que, regularmente registrados e depois publicados, têm dado lugar a várias interpretações. No princípio, no período explosivo da primeira trilogia, esse clarão foi tão forte, misterioso e imprevisto, que tomou o aspecto de verdadeira mediunidade. O autor foi, pela necessidade bem humana do enquadramento, catalogado logo no campo mediúnico (primeiro período das Grandes Mensagens e de A Grande Síntese). Mas, saberemos nós o que, verdadeiramente, seja a mediunidade? O autor passou, pois, a procurar por si mesmo, tentando aprofundar a visão nesse abismo que é o mistério da personalidade humana, fenômeno até hoje bem longe de ser plenamente conhecido. Assim, começou a compreender o seu caso e procurou defini-lo (segundo volume: As Noúres). Pôde, então, precisar que se tratava de mediunidade inspirada, ativa e consciente. Nenhum transe, inconsciência ou cessão passiva de seu próprio eu a qualquer entidade incorpórea ou forças estranhas. Ele, permanecendo consciente, captava a onda (noúre) e registrava, escolhendo com pleno conhecimento, como uma antena que captasse a frequência transmissora porque a conhece e quer sintonizá-la, recebendo-a por relação voluntária de ressonância, livremente. A mediunidade torna-se assim inspirativa, isto é, não mediunidade de efeitos físicos – nunca praticada e sempre evitada pelo autor como barôntica 3 – mas ultrafania ativa e consciente, sem transe. E assim foi ele tido por ultrafano. À vista disto, os seus escritos foram considerados suspeitos pela Igreja e aceitos no campo espírita. Mas, eis que no fim do primeiro período, com o seu terceiro volume, Ascese Mística, o autor supera também o campo ultrafânico e, deixando atrás o espiritismo, que o havia catalogado entre os seus, se transforma em inspirado e, enfim, em místico, entrando num campo apropriado sobretudo às religiões. Os trabalhos que compõem a segunda trilogia perderam a vestimenta mediúnica, ultrafânica ou inspirativa e falam a linguagem normal. Assim é o presente volume. Ora, muitos perguntam se esses novos livros que se expressam como falam todos, e não com tonalidade extra ou sobrenatural, são ou não inspirados. Os leitores, em geral, estão habituados, como os demais, a tratar com o homem normal de tipo único e constante, de enquadramento estável, e não com o tipo múltiplo, em contínua evolução, como é o nosso caso, que, por isso mesmo, não pode ser enquadrado em esquemas fixos. Em se tratando desta trilogia, era necessário responder a esta pergunta, esclarecendo dúvidas. O autor, agora, acha-se cônscio de haver completado seu misticismo na forma ativa de sua missão e o tem estudado em si mesmo, com auxilio de outros místicos, embora ainda esteja longe de tocar o fundo deste mistério (que aliás não pode findar), de tal maneira que, em seu caso, através de um contínuo controle racional do fenômeno de sua intuição e dos seus produtos por ele registrados, transformou a sua própria inspiração em técnica regular de pesquisa, que ele chama o método da intuição, não tendo nada a ver com a ultrafania em transe e muito menos com o mediunismo de efeitos físicos. A finalidade da vida do autor, como acima ficou dito, não é de nenhuma maneira o estudo dos fenômenos mediúnicos, e o espiritismo lhe interessa relativamente. Sua vida é missão, e seu escopo não é a experimentação espiritista, mas sim a evangélica; não é a indagação do além-túmulo, mas a as3 De natureza densa, inferior. (N. do T ) 3 censão espiritual. O grande problema é a conquista da felicidade, e o que transforma tudo em nós, para o bem e a alegria, não é o além-túmulo, mas sim a evolução, a catarse da vida, elevando-nos do plano animal humano ao super-humano. O que importa é a sublimação, sem o que tudo permanece cego, inferior, doloroso, seja aqui ou acolá. E o mediunismo de efeitos físicos ocupa-se bem pouco da sublimação; visa problemas particulares, realmente secundários em relação ao problema de apresentar, na atual e tremenda hora histórica, cada vez melhor contribuição para a salvação do mundo. Se o misticismo é para o autor o vértice da ascensão, o método da intuição (a inspiração reduzida a método) é a sua disciplina, que organiza e racionaliza a inspiração, dirigindo-a metodicamente à conquista do conhecimento, para resolver os mais variados problemas, inclusive os da ciência, com o objetivo de melhorar o homem, para seu próprio bem. A sublimação atua então em dois campos: no sentimento, levando ao misticismo, e na mente, levando à disciplina orgânica e racional da inspiração – disciplina da técnica receptiva após analisá-la, e organização de uma doutrina racional com os dados obtidos pela inspiração. Nesse trabalho múltiplo e complexo cumpre-se a missão do autor. Com o progresso da sua maturação, enquanto por um lado sublima-se como paixão no misticismo, por outro assenhoreia-se cada vez mais da técnica receptiva e da sistematização orgânica e racional dos resultados, de modo a poder expô-los em linguagem normal. Tudo isto, ainda que possa desagradar aos espiritistas, era necessário dizer, para que estes escritos fossem aceitos pela ciência, pela cultura séria, pelos que têm prevenções antiultrafânicas, para os quais todas as coisas expressas em tais roupagens inspirativas não são sérias nem aceitáveis. Certo é que a inspiração subsiste ainda na segunda e terceira trilogias, mas é normalizada em veste comum. A mesma característica, não mais explosiva (primeira trilogia), e sim reflexiva, de assimilação e análise (segunda trilogia), leva a esta conclusão. Mas, nem por isto, o autor perde o contato com a fonte da inspiração. Ao contrário, na sua ascensão mística, o contato é normalizado, a sintonia estabilizada, a distinção no uníssono das vozes se torna, assim, sempre menos sensível. A catarse é de fato uma sublimação também neste sentido: uma união sempre mais estreita com a fonte. A recepção, em geral salteada e inconsciente no ultrafano, aqui é contínua e consciente, é um colóquio, um contato, uma comunhão que tende à unificação; torna-se prece, religião, misticismo, amor de Deus. A terceira trilogia, que representa a fase da sublimação, não pode acabar senão em pleno misticismo. Assim, sempre progredindo, fecha-se o caminho iniciado com manifestações que foram chamadas mediúnicas, alcançando resultados que, como técnica receptiva, são bem diversos e, como conteúdo, estão muito longe da mensagem ultrafânica usual em função de certa entidade. Aqui, a mensagem é uma obra orgânica racional, que já atinge o oitavo volume; a mediunidade é uma missão que se apossa de uma dada hora histórica e de toda a vida de um homem. Como se vê, os conceitos espíritas comuns não são mais suficientes para conter estes resultados. Chegamos aqui a uma disciplina consciente e racional, que analisa e põe em ordem, organicamente, os produtos da intuição. Em geral, todos, mais ou menos, possuem intuição, mas de um modo vago e sumário, sem a crítica e a precisão de um método. Em nosso caso, a intuição não só se faz método de investigação cientificamente exata, vasta a ponto de permitir compreender e orientar todos os problemas do conhecimento, mas também é traduzida do seu natural funcionamento por clarões sintéticos e intermitentes para os termos da exposição contínua e da análise racional. Se tudo é antes sentido por via intuitiva, como síntese, conclusão e solução dos problemas, deve ser, depois, analiticamente demonstrado pela força da lógica, para uso da forma mental corrente, não intuitiva. Trabalho de reflexão e 4 PROBLEMAS DO FUTURO coordenação, útil e necessário para permitir a compreensão; de precisão analítica e cultural, sem o que, a mensagem inspirativa ficaria confusa e distante. A mensagem provém de superiores dimensões conceptuais, sendo necessário reduzi-la à nossa dimensão racional. Trabalho inicialmente de audição e compreensão, posteriormente de elaboração dos dados da inspiração, desconhecido portanto do ultrafano comum. Em nosso caso, a inspiração, embora se possa dizer que dirige como um guia a mente do sujeito, é todavia por este controlada. Mais do que de recepção, pode-se neste caso falar de colaboração consciente de ambas as partes, sem com isto deixar de reconhecer quão mais sábia e potente é a fonte transmissora. Por outro lado, uma vez que o já conhecido fenômeno da união mística, através da progressiva catarse do sujeito, torna-se sempre mais intenso, compreende-se como vem a ser cada vez mais difícil distinguir o receptor do transmissor – fundidos que estão num mesmo ritmo de pensamento – e isolá-lo de uma fonte em que a sua personalidade, distinta no sentido humano, sente-se como que diluir em sublime alegria. De fato, uma das mais perturbadoras sensações que a elevação mística produz é a da dissolução do próprio eu como unidade egocêntrica. Na alta psicologia, como na alta matemática, os conceitos comuns não têm mais sentido. Tudo isto transforma o fenômeno neste nosso caso, distanciando-o cada vez mais da ultrafania e aproximando-o da inspiração do artista, do sábio, do místico, enfim daquele que, em todo campo, cria no espírito. Em nosso caso, a sensibilidade ultrafânica veio tornar-se um método preciso de pesquisa, que encara os problemas com o velho sistema experimental analítico apenas num segundo tempo, como controle, enquanto, num primeiro tempo, perlustra-os por vias intuitivas, sintéticas, somente alcançáveis por um hipersensitivo, tornado tal pela evolução do instrumento humano. Este será o método de indagação do amanhã, que só um tipo humano mais evoluído saberá empregar. Mas não há só este trabalho de controle da recepção, de coordenação e organização dos resultados, de precisão analítica racional e cultural. Em geral, os leitores creem que a inspiração representa qualquer coisa concedida gratuitamente, no entanto ela é conquistada com trabalho e fadiga. É necessário procurar ardentemente, porque Deus não se revela senão àquele que o procura e o chama. É preciso subir com o próprio esforço para chegar a escutar, é preciso duramente maturar-se e merecer para ter resposta. É necessária uma fé positiva, que saiba vencer todos os obstáculos. E quando a inspiração chega, é preciso seguila a todo custo e em qualquer condição, no seu arremesso impetuoso, ainda que estejamos atordoados por tantas exigências de um mundo que pretende andar por estrada bem diferente. Ainda que haja sofrimento, é preciso escrever; extenuado ou doente, mesmo assim é preciso escrever. Pode faltar de tudo, mas escreve-se; se os interesses materiais estão a caminho da derrocada e os involuídos roubam tudo não importa, escreve-se; se a casa cai e o mundo explode ou está perto do fim não importa, escreve-se até ao último suspiro. É necessária uma vida concentrada toda em um ponto: registrar esse pensamento que nasce dentro de clarões, de turbilhões, como um furacão que grita, canta, arrebata e atordoa. Registrar tudo, nos mínimos detalhes, quer na potencialidade como na doçura, seja como conceito seja como paixão. Abandonando-se ao irresistível, deve-se muitas vezes exprimir o inexprimível, sem contudo deixar de permanecer na forma. É preciso viver as teorias expostas, fazer-se campo experimental e, com as provações trazidas por elas, confirmar a exposição. Com uma vida elevada de sacrifício, é necessário manter-se em permanente sintonização, fazendo de tudo isto uma missão para o bem dos outros, vivida em abrasamento, como cumprimento de um destino. Levar tudo isto adiante, ardendo sempre mais e não ceder nunca, fiel a Deus até à morte. ◘ ◘ ◘ Pietro Ubaldi Agora, que vimos o significado da terceira trilogia relativamente à maturação do autor e à natureza de sua produção intelectual, observemos a conexão que tudo isto pode ter com a atual hora histórica, como contribuição e como missão. Em nosso caso, não há só a catarse do autor e a criação efetuada pelo fenômeno inspirativo, mas há também o fato da compreensão sempre maior por parte do público. De que deriva isto? Nota-se que, no leitor que lê estes volumes, nasce um senso íntimo de convicção que não é apenas racional. Muito mais do que pelos processos lógicos, geralmente quem lê fica persuadido pela ressonância íntima, pela convicção segura de quem escreve, pela sua sincera paixão, pela misteriosa formação daquela sintonia que constitui base e condição necessária para a compreensão. Mas o que, então, determina o aparecimento dessa sintonia? De onde desponta essa vibração que une leitor e escritor? O fenômeno inspirativo a que se deve a gênese primeira destes escritos coloca o autor em uma posição especial, diferente daquela assumida pelo escritor comum, que exprime apenas a si mesmo, quando não faz coisa menos sincera e verdadeira, como uma criação de fantasia. Em nosso caso, a inspiração permite ao autor colóquios diretos com a vida, com o pensamento de Deus, ouvindo a voz de todos os seres, em todas as suas formas, da pedra ao gênio e sempre mais alto, até às dimensões do superconcebível, pelas sendas do misticismo. Aquele que aqui escreve não inventa nada, simplesmente lê no grande livro da vida universal; é um espectador da infinita sabedoria de Deus, que ele contempla em visões e exprime em livros. Assim, quando quem fala não é o indivíduo, mas sim a própria vida, o pensamento não envelhece. O mundo está repleto de ideias cansadas, que têm exaurido seu dinamismo e sua função. Lá onde é a vida que fala, a ideia é sempre jovem e viva. Se o autor simplesmente revela aquilo que já está escrito no íntimo de todos e que é instintivamente sentido, ainda que de modo impreciso, é natural que o fundo comum, o elemento base da sintonia, já preexista com grande potência. Então o leitor, em seu instinto, onde fala a vida, sente e reconhece aquela voz como sendo a voz da verdade e, mesmo sem poder ainda compreender o porquê, aprova com um irresistível senso de íntima convicção. Eis a sintonia e o consentimento pleno. O leitor, mais do que isso, sente alegria ao encontrar um intérprete exato de seus vagos sentimentos, que ele mesmo tentava precisar, mas que não conseguia levar à plena luz de sua consciência; sente-se feliz em encontrar feito o esforço que a vida lhe pedia, de levantar o véu do mistério; regozija-se ao encontrar pronta uma resposta a tantos porquês que o torturavam e ver assim resolvidos os seus mais tormentosos problemas. Parece então ao leitor tornar a ouvir a sua própria voz, clara e engrandecida, tão perfeita é a sintonia dada pela mesma lei da vida que a todos anima. Há uma aproximação com aquele que lê, um retorno de alma para alma, que pela sintonia e convicção que se seguem, reforça-se em admiração, gratidão, simpatia e amizade. Estes livros terminam assim em afetuoso liame, em vínculo não só de compreensão, mas de ação e de missão. No campo social, esse é o resultado, no terceiro tempo, da trilogia com a qual a obra se concluirá, e essa é a estrada pela qual o autor, pelo caminho da livre e espontânea convicção, quer dar a sua contribuição para o advento da nova civilização do espírito. Porém há mais. A expressão da voz da vida, captada pelo autor por via inspirativa, não é vaga e genérica, e sim precisa, na forma do atual momento histórico, falando aos homens do amanhã próximo, em função de acontecimentos iminentes. Eis então que todos os sensitivos que já verificam o fermento da hora prestes a soar, se incendeiam na leitura como diante de uma revelação. O fato é que estes livros são estreitamente ligados ao nosso tempo, são expressões da vida, que tem de dizer alguma coisa de muito grave e se apressa a dizê-lo aos que têm ouvidos para ouvir. Estes escritos estão ligados à história e Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO à evolução biológica, delas exprimem o atual drama e a elas desejam dar uma contribuição efetiva. Mais exatamente, eles revelam as correntes biopsíquicas que dominarão no dia de amanhã, anunciando-as e preparando-as. Realizando a função de antena biológica, quem os escreve capta a antecipação do futuro. Muitos já o pressentem, embora não consigam precisar tudo, porém já estão aptos a reconhecer qual é a voz da vida, porque esta fala neles, e aguardam ansiosamente quem se levante para exprimi-la, prontos para abraçá-la com paixão, quando se encontrarem com a sua revelação. Os homens somente respondem a um apelo quando este já se encontra no interior deles, de onde a vida já lhes está bradando. De outro modo, ficam mudos, sem compreender. Somente então se forma a corrente coletiva, constituída pela corrente das forças da vida, que quer atingir assim os seus objetivos, corrente que pertence a todos e a todos vai arrastando. O revelador da ideia, que parece o seu criador, é tão-somente um expoente exterior; é apenas o representante de um pensamento que não é seu e que ele tem a função de sentir antes, para depois exprimi-lo e divulgá-lo. Trata-se apenas disso, e não de outra coisa. Na vida, mais que o indivíduo, importa a sua função. Se muitos não ouvem o chamamento da vida, se estão fora desta corrente que impele a evoluir, se não podem sintonizar-se com ela e se, enfim, são surdos a ela, não importa. À grande massa dos involuídos, daqueles que, podemos dizer, servem como lastro, a vida não tem confiado funções de antecipação e criação. Esses têm que ser impelidos para depois chegar por último. Os inferiores são os que mais opõem resistência e, no entanto, são os que mais precisam ser ajudados para evoluir. Se compreendermos a estrutura e a gravidade da atual hora histórica, justamente porque involuída, veremos que tal contribuição é hoje necessária. Os valores do domínio autoritário, da vitória baseada somente na força, se é que ainda há quem pense ter domínio próprio, já caíram substancialmente, porque, depois do desastre geral para vencedores e vencidos na última guerra, diminui sempre o numero dos que neles acreditam. Os valores da riqueza subsistem ainda, mas sob a ameaça de tamanhos golpes, que já vacilam, inspirando sempre menor confiança. A que valores se prenderá então o mundo assim abalado, senão aos únicos que restam, os do espírito? Onde se poderá de outra maneira achar aquela solidez e invulnerabilidade que a humanidade demonstrou não possuir? O mundo está desiludido e tem fome de uma fé, porque não se pode viver sem esperar alguma coisa e sem crer no amanhã. As filosofias não servem, e as religiões devem adaptar-se às massas involuídas e supersticiosas. Mas o motivo do espírito já desponta nas conclusões dos grandes intelectuais da ciência, que começa a emergir de seu velho materialismo. Eis aí alguns sintomas, que não são os únicos. A vida é uma viagem. Parar é morrer. Mas não se pode conceber caminho sem meta. A vida tem, portanto, absoluta necessidade de possuir uma tábua de valores e subir para planos mais elevados, a fim de realizar a evolução, que é o imperativo absoluto. A culpa mais grave, aquela que se paga mais caro, é a de furtar-se à ascensão, é a de não atender à lei da evolução. A nova aristocracia não poderá ser, por certo, a da força ou a da riqueza, porque de tais aristocracias, até hoje, o mundo já teve superabundância. Tais formas exauriram a sua experiência e deram o seu rendimento biológico. A vida não alimenta senão aquelas formas que têm uma função e um objetivo definidos, por isto liquidará esses tipos de classes dirigentes. Ela tem necessidade de outras formas, para outro trabalho. O tipo dos novos condutores não será o bélico, político ou econômico, mas um tipo completo, que, mais do que religioso, seja sábio e justo. Depois da falência dos chefes armados, dar-se-á o advento dos chefes espirituais, dos profetas desarmados. A vida tem necessidade também dos valores mais desprezados hoje, que são os da vida interior. Deles tem necessidade para reequilibrar-se, 5 justamente porque deles hoje há extrema carência. O homem tem fome destes valores. As novas classes dirigentes não poderão, portanto, formar-se segundo o nascimento, o poder ou apenas a inteligência, mas deverão basear-se nos valores espirituais, que superam a animalidade, valores constituídos por sensibilidade psíquica e moral, sabedoria, sensatez, altruísmo, caridade e amor, bondade, desprendimento das riquezas, renúncia a toda forma de excesso. A vida pede ao homem muitas vitórias, principalmente sobre o ódio e a cobiça, que hoje envenenam a vida. Deve aparecer um novo tipo de lutador, evangélico, desprendido e desarmado, mas inteligente e consciente, muito mais poderoso que o rude e violento de hoje. Há bem maiores revoluções para se fazer do que aquelas que o homem atual concebe. Tudo isto, hoje, pode parecer muito longínquo e, portanto, de escasso interesse. Mas todo amanhã é feito para tornar-se depressa o hoje. Quando o homem tiver realizado as suas necessidades e desejos de hoje, que fará? Quando o homem, com a máquina e a técnica, com suas novas teorias econômicas e distributivas, tiver resolvido o problema do bem-estar material para todos, quais os problemas que encontrará pela frente? Quando o progresso científico e social tiver reduzido, para todos, o dia de trabalho a poucas horas e resolvido as dificuldades da vida material para todos, ao menos quanto a um mínimo necessário, como ocupará o homem o supérfluo de seu tempo e de suas energias? É certo que ele se aproveitará disto para abandonar a luta e, em vez de continuá-la em um plano superior para conquistas mais altas, deixar-se-á quedar no ócio, em busca de prazeres e vícios, chegando assim ao destino de todas as aristocracias e dos povos ricos e preguiçosos, que é o esfacelamento. A vida fere quem dorme sobre as conquistas feitas. Ela hoje caminha com rapidez, e essas conquistas estão mais perto do que possa parecer. Todo futuro é feito para tornar-se presente; assim a utopia se transforma em realidade. Nenhuma utopia é maior que a do Evangelho; entretanto, se ele foi pregado, não o foi, decerto, para permanecer como utopia, mas para se transformar em realidade. A atual hora apocalíptica, através de grandes lutas e crises, prepara novas condições de vida. Entre tantos homens que pensam somente no presente, é necessário que haja alguém que enxergue mais longe no futuro e tenha a intuição desse futuro, o anuncie, o prepare. Os problemas existem para serem solucionados, mas há decerto, além dos atuais relacionados ao dinheiro e ao estômago, outros problemas, que também devem ser resolvidos. Nas grandes voltas da história, como a verificada hoje, não bastam os homens de ação, administradores, que seguem perspectivas imediatas e realizações vizinhas, é necessário que haja também homens de pensamento, capazes de se orientar segundo óticas mais amplas, em relação não só ao que é contingente, mas a todo o funcionamento orgânico da história e da vida. Da compreensão da extrema gravidade da hora, da necessidade de preparar um amanhã que se avizinha rápido, da consciência do dever de dar a contribuição necessária, nasce então, em alguns pioneiros de sensibilidade apurada e aptos para esse fim, o senso de missão, confiada a eles pela vida, que neles escolhe seus meios para fazer ouvir a sua voz. Estes pioneiros, por serem evoluídos, já superaram o egocentrismo animal e somente sabem viver fundidos no amor ao próximo, missão inevitável para eles, que não sabem dar outro conteúdo à vida senão esse. Eis em particular o significado deste volume, Problemas do Futuro, e da terceira trilogia que ele inicia, bem como de toda a Obra. Com o novo milênio, o homem entra em um novo ciclo histórico e biológico. É preciso fazer que ele compreenda essa imensa realidade que o espera. É necessário incendiá-lo, enfim, com uma fé e com um impulso proporcionado ao esforço que hoje a vida lhe pede, para que ele saiba conquistar essa realidade. A vida nunca dá presentes, mas nos convida e nos ajuda a merecermos tudo. Há perigos, mas há também ilimita- 6 PROBLEMAS DO FUTURO dos horizontes. É preciso orientar o homem. Ele hoje procura sua realização e alegria fora de seu verdadeiro lugar e fica desiludido. É preciso transformá-lo de involuído em evoluído. Quem escreve deve ter vivido antes, pessoalmente, a sublimação da vida, para depois ensiná-la aos outros, oferecendo-lhes gratuitamente a sua conquista biológica, um precioso produto experimental, fruto de tremendas lutas. O nosso mundo atual está em estado de colapso espiritual. O homem moderno, enfunado de descobertas, tornou-se um vazio espiritual. A fase da onda atual representa a inércia das qualidades mais nobres da alma. A imprensa gosta de destacar os delitos e todas as piores baixezas humanas. A arte se está degenerando em todos os seus aspectos. Mesmo debaixo das aparências mais intelectuais, respira-se sempre um ar de depravação. Parece mesmo que tudo há de ter hoje esse sabor fundamental. Mas é preciso reagir e salvar-se. Há uma quantidade apreciável de valores superiores que nos podem tornar muito poderosos e ricos. Mas é preciso descobrir esses novos continentes do espírito, para desfrutá-los. É preciso aprender a substituir por esses valores superiores os inferiores da riqueza material, para nos tornarmos, o mais que pudermos, independentes dela e de todos os dissabores que dela se originam. Dá-se tanto valor ao dinheiro, que não se pode resolver o problema espiritual se não for antes resolvido o material. É verdade, mas o grande erro consiste em se considerar as coisas do espírito como artigo de luxo, supérfluo, a que se recorre somente quando se está saciado de tudo e não se sabe mais desejar outra coisa, no entanto são elas as coisas de primeira necessidade. O bemestar econômico por si só não basta. O problema da vida não é de solução assim tão simples, como o crê a moderna psicologia utilitária e materialista. Nada está isolado na vida, nenhum problema pode ser resolvido isoladamente e, portanto, também o material e o espiritual, tanto que se pode dizer o contrário do que todos dizem, isto é, que o problema material não pode ser resolvido se antes não foi resolvido o espiritual. A riqueza pode ser nociva para quem dela não sabe fazer bom uso. Hoje não se crê senão nela e se tem horror da pobreza. Não se compreende hoje uma pobreza que não é miséria, mas um estado de poucas necessidades materiais e de grandes riquezas espirituais, a ponto de poder tornar aquele que as possui mais rico do que os ricos. Essa pobreza de vastos horizontes, bem diversa daquela que também é miséria de alma, pode transformar-se em terreno de grandes conquistas espirituais, que são afastadas pela riqueza, porque esta nos adormece nas comodidades. É necessário que falte alguma coisa em baixo para sermos induzidos a procurá-las mais no alto. Quem está saciado não procura. Para progredir, é preciso viver com o ânimo vibrante e não satisfeito. Para poder superar a matéria e enriquecer-se mais elevadamente, é preciso não gozar-lhe os enlevos; para formar desejos e exigências mais espirituais, é preciso que a alma encontre fechada a porta para os gozos materiais. Essa pobreza pode ser um estímulo para alcançar intuições inatingíveis de outra forma, ela nos ensina a caducidade do nosso apego às coisas terrenas. A riqueza é um resultado vitorioso, mas efêmero. A pobreza a vence neste seu ponto fraco, que é a falta de segurança e de paz. E assim é o nosso mundo: sem segurança e sem paz. É preciso vencer e superar esses pontos fracos. Hoje nada se compreende disto, vivendo-se desesperadamente numa luta feroz. Este é o tormento que nos impõe a nossa cobiça. É preciso compreender o lado que é conquista e valor positivo dentro da renúncia e do desprendimento. Porém, infelizmente, o conceito tradicional de virtude nos mostra aí o lado negativo, de perda e pobreza material, em vez de conquista e riqueza espiritual. É a nossa vacuidade interior que despreza a vida simples e pobre, enquanto esta pode ser, ao contrário, um meio de superação e libertação, criando formas de vida superiores, mais ricas e mais poderosas. Pietro Ubaldi É preciso fazer com que o homem suba da matéria ao espírito. Só ali há salvação. O materialismo centralizou a nossa mente nos bens materiais. A ciência, conquistando e desfrutando as forças naturais, criou uma psicologia de prazer e de poder em vez de sacrifício e renúncia, roupagem para os tolos e os vencidos. Daí resultou um homem moralmente fraco, sem resistência nas adversidades, um homem que se sente sempre mais pobre. Uma artificial multiplicação de necessidades inúteis e nocivas está anulando a elevação do nível econômico, o que significa empobrecimento, porque a riqueza não é absoluta, mas sim uma relação entre meios e necessidades. Em meio a um bem-estar crescente, adveio uma sensação de miséria, uma vida mais difícil, um estado de angústia pela falta de espaço vital, enfim um abandono das necessidades superiores, única saída para a alma, que fica assim comprimida, restringindo-se à satisfação de necessidades inferiores, insuficientes para nos satisfazerem, porque se multiplicam a expensas daquele outro estado de alma muito mais vital. Isto é patológico, é antivital. Há uma descida para as necessidades mais elementares, que invadiram todo o campo dos desejos humanos. Há uma riqueza econômica que não compensa a carência dos bens espirituais. Há uma capacidade de saber procurar os primeiros e uma incapacidade de saber usufruir os segundos, ainda que vizinhos e gratuitos. E, assim, vai tudo por água abaixo. A indústria, com a publicidade, faz do homem um consumidor e das nações um mercado a ser desfrutado. É preciso produzir e depois vender, fazer consumir. Mas é preciso pagar tudo isto, ainda que seja inútil ou supérfluo, com o nosso tempo e o nosso fadigoso esforço, com a nossa paz. Cultiva-se assim o consumidor, criase e educa-se ele com a propaganda, e há sempre novas necessidades, a escravidão das necessidades artificiais. Isto se chama bem-estar e civilização. Atrai-se com prazeres fictícios o consumidor, para que ele, estando viciado e persuadido de que vai ao encontro de sua alegria e seu bem, submeta-se à exploração. Assim, novos hábitos sociais vão nascendo, uma determinada moda para cada coisa, sempre mutável, para encher tantos cérebros vazios. Na medicina, essa moda e essa psicologia de exploração do consumidor chegam ao ponto de representar um atentado à saúde e um perigo para a raça. A nossa civilização, que é tão sábia no particular (hoje também a ciência é especialização), está desorientada nas grandes linhas; falta-lhe diretriz geral, falta-lhe um guia inteligente. Por ora, o progresso, apesar das conquistas materiais, ainda não atingiu a alma, onde está o verdadeiro homem, e limita-se a um espantoso excitamento das cobiças animais, com todas as suas consequências. É preciso ensinar ao involuído atual que as alegrias que ele procura no fumo, no álcool, na cocaína, no vicio ou até mesmo no furto e no delito, ele as encontrará, mais belas e mais poderosas, mais no alto, em realizações novas, que o moderno caçador de êxitos, sempre ansioso e agitado, perseguido pelo tempo, não conhece. O crescimento do ser em direção da alegria é direito sagrado, mas deve ser dirigido para outro tipo de volúpias, vitais, e não precárias, em sentido ascendente, e não descendente. É preciso analisar e demolir esses prazeres que intoxicam e desfazem o homem, para ir em busca dos grandes prazeres do espírito. É preciso substituir os gozos destrutivos pelas grandes alegrias construtivas, substituir o sucesso exterior, vão e fictício, em que hoje se crê, por aquele outro, vindo do próprio valor íntimo e substancial. O evoluído não renega a vida, mas a enaltece muito mais. Os tempos são maduros e é necessário aprender novos modos de viver. É necessário começar a preparação do terreno para uma nova civilização, fazendo o homem compreender que ele é muito mais do que um simples animal, é o dono de um destino radioso; fazê-lo compreender que o universo não é somente um campo a ser explorado, mas um sábio organismo de pensamento e de matéria, fundidos entre si. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO O homem, hoje, não se realiza, dispersa-se. A felicidade da posse, que ele tanto procura, é primitiva e traidora. Ela é própria de uma dada fase do desenvolvimento, e não das fases sucessivas, mais elevadas. Hoje, é preciso aprender a conhecer a felicidade superior que está na criação. Muda, desta sorte, a atual concepção da vida. Assim como o conceito de materialismo, uma vez tido por definitivo, perdeu todo o valor no seu velho significado sensório, também mudará o conceito de trabalho. Este, em nosso mundo de hoje, é condenação e, por isto, exige um salário. Daí as maiores lutas do nosso tempo, daí capitalismo e comunismo, guerras e destruições. O trabalho é cada vez maior condenação, porque o temos privado do espírito animador, cujo sopro é alegria. A máquina, a indústria, a organização e a cobiça levam ao cálculo do dinheiro e do tempo, ao horário e à escravização. A descida na matéria sufoca na limitação, que é seu elemento; a elevação no espírito dá liberdade, fora da limitação. A involução humana reduziu o trabalho a uma condenação oprimente, embora ele seja o mais alegre recurso do ser e, realizando e nos desenvolvendo, esteja entre os mais ativos instrumentos de evolução, isto é, de libertação para a felicidade. Transformou-se assim nessa opressora miséria aquilo que acima tínhamos chamado de livre e alegre ato da criação, no qual o homem não só se realiza e se desenvolve, mas também é chamado a colaborar e operar no funcionamento orgânico do universo, à semelhança de Deus, imitando-O na sua perene ação criadora. A evolução é lei de vida, e o mundo deverá percorrê-la, como teve de percorrê-la quem aqui escreve. Chegar-se-á, com a ascensão, a uma grande transformação de valores. Compreender-se-á então que o bem-estar material, embora seja um grande passo, por si só não basta para dar felicidade. Na vida há necessidade de muitas outras coisas, que hoje matamos, como a fé, o belo, a poesia, a paz interior, o amor elevado, a esperança. O mundo de hoje cresceu no plano físico, como corpo; urge um paralelo desenvolvimento no espírito, pois é extremamente perigoso que um tão grande corpo fique em poder de uma mente tão limitada e primitiva, sem a direção de uma alma adequada. É exatamente a hipertrofia técnica e científica que exige, para equilibrar-se, um proporcional desenvolvimento espiritual que assuma a direção, sem o que tudo ameaça acabar em desastre. A ditadura da ciência materialista e da sua psicologia é uma fase superada, e o mundo invoca desesperadamente uma sistematização diversa, espiritual e moral. Entre tantas revoluções que o homem moderno deseja, há também aquela contra a asfixia espiritual, contra o nivelamento numa animalidade universal, contra o embrutecimento geral, próprio tanto do capitalismo como do comunismo, nos problemas do ventre. Bem outras revoluções hão de realizar-se, não para a conquista dos bens materiais, mas sim dos bens espirituais, continente inexplorado de riquezas infindáveis, lugar ao sol também este, sol que o homem tem extrema necessidade para a mente e o coração. É preciso rebelar-se contra a imersão na massa nivelada, opondo-se aos gostos podres das maiorias. A verdadeira revolução será feita chegando-se à compreensão dos valores de substância e substituindo por eles, na própria vida, os atuais de superfície e de forma, dados pela abastança ou sucesso, hoje tão em moda. É preciso conquistar uma potência superior de domínio espiritual e lançá-la à face do mundo como um desafio. Potência de uma riqueza que não é de dinheiro ou de poder, uma riqueza que permite ter piedade dos ricos e dos poderosos. Deve-se contrapor à riqueza econômica, hoje supremo ideal, a riqueza da inteligência e do coração, que hoje falta. É preciso mostrar tanto aos ricos do capitalismo como aos pobres do comunismo a sua vacuidade espiritual, que os iguala e os torna os mesmos homens em luta no mesmo terreno, com os mesmos fins egoístas e os mesmos instintos de avidez. 7 É preciso ser o pioneiro de um ideal diverso, de destaque e de libertação, para subtrair-se à obsessão econômica que é o tormento moderno; é preciso ensinar a desfazer as falsas miragens dos prazeres oferecidos por traição pela nossa chamada civilização, rebelando-se contra a prostituição e o sufocamento do espírito que ela nos quer impor. É necessário enriquecer-se bem diversamente da maneira como hoje se anseia. É preciso saber colocar-se nesse terreno utilitário tão diverso e compreender-lhe as vantagens superiores. É preciso ensinar a gozar em planos mais altos, a possuir alegrias mais refinadas e gratuitas, que provêm do íntimo, e não do exterior. É preciso alijar o peso do trabalho-pena para amar o trabalho-função e missão, que não é fadiga para uma paga, mas livre e espontânea realização. É preciso conquistar a riqueza da tranquilidade e a riqueza do tempo, hoje perdidas, especialmente pelos ricos. ―Não tenho tempo‖ é a frase moderna, e é também a sua pobreza. E não há obras de beneficência que permitam doar essa mercadoria, ajudando em sua miséria esses desgraçados pobres de tempo! Essa carência de tempo é uma vingança da matéria, que escolhemos como padrão, enquanto o espírito se mantém fora do tempo. Somente no alto há liberdade, que se deve conquistar elevandose, e não roubando de outros escravos os seus grilhões de ricos. A grande luta social hodierna se reduz a esse desejo intenso de roubar esses grilhões, isto é, de roubar aos ricos o tormento imposto pelo medo de perder os próprios bens, pela paixão de aumentá-los, pela necessidade de conservá-los. O mundo atual anseia por essa prisão dourada, cárcere que cerca e prende entre seus muros e do qual, depois, é tão difícil e penoso sair. Mesmo aí dentro também se está roído pelo tédio e pela saciedade de tudo, roído pela fome do espírito privado de alimento. Pouco dinheiro valoriza tudo; quanto mais as alegrias são moderadas, tanto mais são prelibadas. Muito dinheiro desvaloriza tudo, alegrias abundantes e repetidas terminam em náusea. Sábias compensações, justas vinganças da vida. A atual máquina social funciona, em grande parte, pela força. Precisamos ser os pioneiros de um ideal diverso, de amor, convicção e colaboração. Só assim será possível alcançar a ordem necessária, subtraindo-se ao peso da coação. Cada forma de poder, hoje, é mais ou menos uma forma de coação contra a precedente, somente para se impor; a autoridade, mais que uma função social a serviço da coletividade, é uma vantagem pessoal a serviço de quem a conquistou. O egoísmo foi até ontem um elemento útil e necessário para as conquistas materiais e o progresso humano, que lhe têm sido devidos, porém hoje, quando a vida humana entra na fase social orgânica, aquele egoísmo constitui um elemento antivital, porque é antissocial, tornando-se destrutivo e inaceitável na nova coletividade. Hoje, que a técnica tanto progrediu, a caridade se encontra em pleno retrocesso. O progresso não consiste, como hoje se crê e se quer, em uma vã multiplicação de necessidades a que, depois, se oferece satisfação, pois disto resulta uma custosa dependência, pela qual é necessário, logo após, pagar o custo com trabalho forçado. O atual desenvolvimento dos valores mais baixos não é progresso, mas sim atraso, não é vitória, mas sim derrota que o mundo está pagando caro. Qual o uso que o homem sabe fazer hoje dos melhoramentos econômicos? E se não sabe empregálos no bem, mas só no mal, então não é melhor para ele a pobreza? Quando o homem, com a ciência, a máquina e a justiça social, chegar ao bem-estar material, que uso dele saberá fazer com sua psicologia? Certo é que, se não for educado a tempo, não fará mais do que multiplicar e estender a sua atividade abusiva. E se a finalidade da vida é bem outra, o alcance desse tão desejado bem-estar não pode representar, para uma humanidade como a de hoje, um dos maiores perigos? Este é um quadro sumário das condições do nosso tempo. A finalidade destes livros é demonstrar através da razão a realidade e a utilidade de uma vida superior no espírito, mais rica e 8 PROBLEMAS DO FUTURO mais feliz, e o escopo da vida do autor é demonstrá-la com o exemplo. Se, depois disto, outros quiserem compreender com a sua razão e proceder com o seu exemplo, então a ideia de uma nova civilização não será mais utopia. Já foi afirmado que estes livros não representam nada de novo e que não são mais do que repetições de coisas que já foram ditas. Certamente, não pretendemos oferecer descobertas no sentido moderno, particular e analítico, como invenção técnica e utilitária para solução de casos isolados. Se isto acontecer, será apenas incidentalmente, como consequência da realização fundamental, que é bem outra. Esta encontra-se nos antípodas da atual ―forma mentis‖ humana e tende não ao resultado utilitário no particular, mas à síntese, à orientação, a uma utilidade de conjunto, a uma nova compreensão da organicidade da vida. Há uma descoberta, porém em sentido diferente do corriqueiro: a verificação da onipresença de uma lei que tudo guia. Embora essas verdades sejam repetidas muitas vezes, isto se faz mecanicamente, por tradição, por quem não as vive, o que acaba por matá-las em vez de vivificá-las. Dizendo-as e repetindoas assim, por hábito e sem senti-las, chega-se ao resultado de torná-las fastidiosas, falsas, inaplicáveis. Aqui, no entanto, elas são ditas por quem as vive e, por isso, as faz viver também em quem as escuta, e não por quem não as vive e, por isso, as faz morrer em quem as ouve. Esta é a novidade e a descoberta que tentamos fazer. Elas consistem em superar aquela mentira que acabou por invadir toda a nossa vida. Há aqui mais uma coisa nova: o método de comando e de governo. Aqui, saímos fora do plano humano e de seus sistemas tradicionais; trata-se, portanto, não mais das habituais revoluções de forma, mas de uma revolução de substância. Hoje, a sociedade em geral é regida por emersão, com o sistema representativo ou totalitário de um chefe que trabalha antes de tudo para si; outrossim é regida por um grupo de homens que se coligam em torno dele, por força de seus próprios interesses, prontos a se desembaraçarem dele tão logo não satisfaça mais àqueles interesses. O princípio do comando hoje é, no fundo, mais ou menos como aquele característico da alcateia de lobos ou da associação bélica, em que um guia é aceito porque serve como coordenador, tornando-se útil na luta, pois a união faz a força. Baseando-se nisto, a lei humana que nasce de tais associações é naturalmente fruto de partido e está, por isto, contra quem está fora do grupo; por essa razão essa lei, logicamente, é fraudada por quem está do lado de fora, quase com um sentido de justa defesa. A novidade, pois, dos princípios aqui expostos consiste num método todo diverso. O indivíduo se põe sozinho em face da lei do ser e deve fazer a sua descoberta, chegando a senti-la como atividade própria e em tudo à sua volta. A sociedade não vem a ser regida por nenhum chefe físico e muito menos por suas leis, que temos visto o que são, tampouco pela força de que ele dispõe. Em face da Lei, que tudo sabe e tudo pode, esses menores poderes humanos não conservam mais do que um valor relativo e subordinado. Se o espírito de grupo subsiste, ele é baseado nas afinidades, com finalidade orgânica de colaboração criadora, segundo as normas da Lei, sem interesses materiais para defender, sem fins utilitários que excluam os que estão fora do grupo. Não se baseando na coação, a força não serve mais, mas somente a convicção. A liberdade que antes havia somente para quem comandava, agora é de quantos são capazes de compreendê-la. Ninguém pensa em fraudar a Lei. Aqui, o chefe não tem corpo, mas é uma lei onipotente e onipresente, situada no imponderável, que, portanto, não se pode liquidar quando mais não sirva, não se pode coagir ou fraudar, porque ela é a alma das coisas e até mesmo o rebelde é formado por ela. Não se pode matar esse chefe por revoluções ou por atentados. Ele não precisa de polícia, porque é imaterial e indestrutível: é o próprio princípio da vida. A justiça desse Pietro Ubaldi governo é perfeita porque, em face desse chefe-Lei, cada um deve responder e pagar pessoalmente, caso tenha violado as suas normas. Essa é uma responsabilidade da qual não é possível eximir-se. O indivíduo, ainda que agindo em coletividade, se acha sempre só e despido diante da Lei, sem poder descartar-se de nenhum modo das suas ações. Cada um, sem hierarquia, está sempre em contato direto com o chefe-Lei, que nele sempre funciona. Aqui, o proselitismo com o fim de engrossar a fila e, com isto, a força do próprio poder contra os contrários não tem sentido, porque os seres não se podem unir senão fraternizando-se para o bem de todos. Esse bem, qualquer que seja a sua forma humana, que aparecerá como coisa secundária, será o verdadeiro governo do homem evoluído do futuro. Concluamos. Dissemos que a ideia dominante desta terceira trilogia, que aqui se inicia, é sublimação. Ela se encontra aqui projetada em relação à maturação do autor, ao desenvolvimento da exposição e ao cumprimento do destino do mundo. Sob este aspecto tríplice, continuaremos o seu desenvolvimento no presente volume. Esta sublimação que o autor viveu e que tenta exprimir nesta terceira trilogia, está, pela fatalidade da hora histórica, segundo a intuição que tem, para ser projetada no destino do mundo. É uma sublimação da vida que entra em uma de suas mais altas fases de evolução e arrasta primeiramente os mais sensíveis. É o ingresso do homem em um novo plano de vida, o plano evangélico do Reino de Deus; é a aproximação da nova civilização do espírito. Este é o significado da sublimação no campo social. Este é o coroamento desta obra, bem como da vida do autor. Ter compreendido a hora histórica e explicar o seu significado como sublimação, lendo os seus traços escritos nas leis da vida; viver essa sublimação e projetá-la nos outros, fazendo-os participar da maravilhosa nova realidade alcançada; oferecer assim, gratuitamente, uma contribuição para o advento da nova civilização do espírito; realizar essa sublimação no próprio destino e também no destino do mundo – eis a significação de toda esta obra em volumes, eis o cumprimento do destino do autor, a realização da sua missão. I. A VERDADE Não! Nada é verdade! Com este brado de desespero, abre-se este volume. O ideal que dos escritos precedentes perseguimos até aqui é uma ilusão, a verdade sonhada é utopia, as nobres afirmações são falsas e, já que não correspondem em nada à realidade da vida, constituem uma traição. O leitor foi enganado. É preciso ter a coragem de confessá-lo e mudar de rota a tempo! Os fatos desmentem em cheio as conclusões destiladas pelos trabalhosos raciocínios! Esses fatos repetem a cada passo, em quotidiana evidência, que não é o bem, mas sim o mal que vence e domina em nosso mundo, que o mais forte e o mais astuto é que triunfam, e não o mais justo; e quem crê de outro modo é um néscio que sonha e pagará caro o seu sonho, porque será subjugado e eliminado. Mas é preciso ser cego para não ver que a realidade biológica zomba de todos os ideais e de todos os idealistas, para não compreender que, enquanto estes últimos intentam construir com palavras as suas belas teorias, a vida os circunda e assalta com os fatos, para os esmagar e suprimir! Mas quem é que não sabe que, enquanto eles sonham bondade e justiça, a realidade biológica, na prática, premia com alegrias imediatas o mais ousado e egoísta, que, livre dos liames do dever, sabe procurá-las com todos os meios? Mas o próprio instinto da vida, que fala e se revela na mulher, naquele momento decisivo para a seleção e para a raça, da escolha sexual, ri-se do homem honesto e sábio, escravo do dever, aplaudindo o audacioso, para o qual tudo se faz licito quando demonstre saber vencer. Isto prova que a vida marcha para a bestialidade, e não para a espiritualidade. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Mas que evolução! Na Terra há que pensar em não se deixar subjugar. E quem esquece disso morre. A vida nos quer fortes, audazes, egoístas, sem escrúpulos, sem moral, e pune como fracos os que não o são; o ideal biológico terrestre, que a mulher adora e o homem respeita, é o delinquente, aquele naturalmente astuto, esperto, que vence, e não aquele que perde. Hoje caiu também a medieval tentativa do Cavaleiro, que procurava disciplinar e nobilitar o furto e o assassínio; aqueles que saibam perpetrá-los legalmente e com êxito são admirados, dando prova de engenho. Estes são os valores da vida real; os outros, aqueles tão declamados do espírito, são falsos. De fato, na prática, quem neles crê, quem os usa? São usados como uma bela mentira, com a qual os astutos, que são aqueles que mais valem, sabem cobrir o seu jogo, para sua vantagem e dano dos que acreditam em tais fantasias. Mas que ideal! Enquanto sonhas bondade e justiça, o próximo te espia e estuda como te possa despedaçar e, apenas te distraias da luta para seguir o ideal, salta sobre ti para acabar contigo. O mundo não está sob um controle moral de sabedoria, mas sob um controle brutal de força. O Evangelho se apresenta inerme. E quem hoje pode tomar a sério alguém que está sem armas? A vida é de ferro, e quem não é forte deve perecer. É inútil querer dar-nos a entender outras verdades. Esta é a única verdadeira. As outras são astúcias para esconder a luta pela vida, são uma das tantas armas sutis para subjugar e vencer os ingênuos e os fracos. A realidade é que o indivíduo quer egoisticamente viver e crescer; que a fêmea é prêmio ao esforço do macho, que a quer possuir para gozá-la e multiplicar-se; que as alegrias da vida se exaurem na Terra e que, só aqui, hão de ser procuradas; que as superações, as evasões, o céu são utopias para loucos; que o homem são lança-se pelo mundo, contra todos, para robustecerse na luta e colher, com qualquer meio, todas as alegrias que quer. Não importa se o herói é um semeador de carnificinas, basta que vença. Não importa quantos vêm a ser prejudicados por ele. A grandeza humana consiste justamente em saber pisar nos outros e elevar-se sobre as ruínas; ela deve ser fabricada sobre o sangue. Oh! quanta ingenuidade para proceder por persuasão e por fé em um mundo onde não existem senão vencedores e vencidos! Para o forte, tudo. Para o honesto não restam senão belas e estéreis palavras, que lhe são jogadas pelo filantropo por compaixão simulada, extremo insulto da hipocrisia humana. Assim é que o justo é defendido com belas palavras por todos os paladinos do bem, que se regozijam do seu ato magnânimo, distribuído gratuitamente. Isto chega a dar-lhes ótima aparência e não oferece perigo, pois quem o recebe não sabe e não pode defender-se, o que lhes fornece enfim a ilusão de ter feito alguma coisa em desagravo da própria consciência. Como renunciar a tantas vantagens? Florescem, assim, os teóricos do amor fraterno e os idealismos confortantes que hipotecam o futuro e o outro lado da vida, em que acham, para os outros, compensação para a derrota e a escravidão terrena, do que, no entanto, se aproveitam e gozam. Para melhor e mais longamente aproveitar-se delas, as vítimas são adormecidas com o narcótico do ideal. Assim, os bons são preciosos, porque mais desfrutáveis; os sinceros são preferidos e amados, porque, com astúcia, são enganados, tornando-se úteis e poupando a fadiga da luta. A exploração do honesto organiza-se, então, como uma indústria; este homem é procurado (a caça ao simplório); querer-se-ia criá-lo em uma cultura intensiva se a própria exploração não tivesse, ao contrário, a tendência de eliminá-lo; chegarse-ia a curá-lo e a protegê-lo, como se faz com os animais domésticos, para melhor utilizá-lo. É desse modo que se formam as religiões e as respectivas castas sacerdotais; dessa maneira se formam o estado, os governos e respectivos grupos dominantes, bem como o poder, a autoridade, as instituições, as leis, tudo. E todas essas coisas com a finalidade de dominar, sempre a expensas de alguém, um ente mais fraco a ser dominado. Cada um 9 desses grupos tem o seu tipo-modelo e outros tantos campeões para explorarem, tornando-os estandartes, e tudo isto para manter e multiplicar o tipo do simplório, que acredita neles e, assim, obedece e serve. Mas o povo-rebanho começa a despertar e a inquirir das razões mais verdadeiras que lhe impunham obediência, que não aquelas que até hoje bastaram para dominar; e os dominadores não as sabem dar. Novas astúcias eles terão que estudar para que não se descubra o seu jogo. Outro significado não pode ter a pregação de honestidade e bondade num mundo em que o esmagamento ao próximo é prova de valor e a culpa do furto não é atribuída ao ladrão, que é considerado esperto, mas ao imbecil que se deixa roubar. Que iluminar e melhorar! A ignorância deve ser mantida nos outros, a fim de que se possa explorá-la. Que sanear o mal de tanta algazarra humana! É preciso pisar os outros e triunfar, embora semeando lágrimas e sangue. Que importa? Tudo isto é para os outros. A vida nos quer vencedores, isto é, heróis da destruição, mestres da esperteza. Mas certo é que a bondade é útil na Terra e, por isso, tanto a proclamam e apregoam, justamente porque desarma, domestica e serviliza, e, inculcando-a, melhor se comanda. De outro modo, para que serviria? Diante do caminho tortuoso das mentiras humanas, não é bela a pura simplicidade dessas palavras? Assim é a vida. Cada um há de trazer a sua máscara de mentira. O vencido mais que o vencedor. Este, quando triunfa, jogaa e mostra-se à admiração de todos como o belo campeão que a luta pela seleção criou. Mas o vencido nunca a joga. Sob a máscara, o seu rosto está em chagas. Na Terra, ai dos vencidos e ai deles caso se mostrem! A máscara lhes é imposta; a dor é uma derrota e deve pudicamente ser escondida. A dor não é conhecida como um instrumento de redenção, isto é, como uma força e uma glória. Não, ela é uma derrota. Ai, pois, de quem a revela. O vizinho a goza e está pronto para dela aproveitar-se; se percebe que és um vencido, salta-te logo ao pescoço. A verdadeira face, quanto mais chagada e sangrenta está, tanto mais há de ser cuidadosamente coberta com sorrisos floridos. Quantas máscaras macabras andam assim desconsoladas pelo mundo! A dor que não pode expandir-se escava sempre mais por dentro. Tudo isto para o triunfo do tipo biológico do vencedor, para fazê-lo grande, para que a vida seja sua, toda sua e de nenhum outro. Mas sabe ela sobre quais ruínas avança esse macho triunfador? Parece que nada lhe importa mais do que ele. Os vencidos sofrem e morrem; eles não pesam na balança. A grande aventura da vida está aberta para todos; se tantos não conseguem vencer, pior para eles! Se ao menos morressem! Ao contrário, a luta pela vida, ao lado de poucos selecionados, a quantos não deixa quase como mortos, estropiados fisicamente e, ainda mais, moralmente! É que nem no vencido a vida quer morrer e a tudo se adapta, deformando-se até à monstruosidade, e assim, estropiada, continua, seja mesmo na sombra, à traição, por despeito, nutrindo-se de ódio e de veneno, mas continua, subterrânea e em espasmos, para vingar-se um dia, quem sabe quando, do vencedor. Assim, a vida oculta a reação por séculos, adiando-a por gerações, à espera da desforra; assim, o impulso do mal fixa-se no sangue e nos corações e torna-se instinto, um automatismo do subconsciente. Tudo grava-se em nós e a nós retorna, até que os longínquos descendentes do vencedor sejam um dia esganados pelos descendentes do vencido. Na realidade, não se chega assim à seleção do melhor, mas a uma multiplicação de adaptados, de mutilados, de feridos, de malvados, de monstros. O resultado não é um número de selecionados, mas de estropiados na luta. E o próprio vencedor não é o mais forte, mas sim o mais astuto e traidor. A vida, pois, segue para o mal, e não para o bem. Abalase o edifício da evolução. Essa luta não é, então, instrumento de seleção, mas um atentado à vida, um esforço para subjugá-la, deformá-la, pelo que ela se dirige para o pior, em vez de para o melhor. Os poucos vencedores triunfam, enquanto há uma mul- 10 PROBLEMAS DO FUTURO tidão de vencidos que os sustêm no alto, de cuja derrota eles se fazem grandes. O herói é sempre, mais ou menos, um carrasco, que tem sua alegria extorquida de um desgraçado que paga o seu quinhão por conhecê-lo; é um carro triunfal que avança por cima de todos os outros que ficam abatidos ao longo de um caminho de dores. A luta não representa mais que um assalto das forças negativas da vida, a que ela mesma frequentemente fica submissa; representa a sua negação, que culmina na morte. A vida, assim, decai em vez de se elevar. Isto prova como todo ideal de ascensão humana seja falso e absurdo. Evolução! E quem paga o seu custo? Onde está, na economia da vida, a compensação para um esforço similar? Apenas longínqua e hipotética miragem! O problema da evolução é um problema de energia. Quando, para o dever e a virtude, nos impomos limites, sacrifícios e obrigações, onde e como achamos compensação? A vida não se lança para tentativas de novas criações senão quando há margem de superabundância de energias e de meios. E deveríamos arriscar um capital biológico precioso e duramente conseguido em semelhantes aventuras, com o risco de tudo perder? Evoluir é a mais ousada experiência da vida, na qual se investem e se arriscam todos os capitais acumulados, assumindo o perigo de estragá-los; além disso, sabemos que, para quem estiver assim enfraquecido, não há piedade. Se perdermos a força, nossa única defesa, a vida nos pune sem perguntar se gastamos aquela força por um ideal. Não. A luta para viver é um trabalho mais que suficiente para tudo absorver, sem que haja necessidade de lhe acrescentar nada mais. Não há margem de energia supérflua para isto, e, nos raros casos em que possa haver, nós preferimos aproveitá-la para gozar, mais do que para evoluir. O sábio se recusa a lançar-se nas aventuras da evolução. Por que se há de encontrar fadiga para o que constitui uma incógnita? Nenhum homem, até agora, experimentou o futuro, e o que está fora da experiência não merece crédito. A vida é prudente, e a sua prudência ensina a não conceder antecipações de confiança. Quem garante que o seu resultado valha a fadiga que custa? A dura experiência ensinou ao homem a desconfiança. Ele não possui reservas e recursos que possa dissipar em especulações espirituais. É melhor não tentar o ignoto. Tudo em torno não é senão mistério, que pode conter infinitos perigos. É melhor não sair das velhas sendas, que, embora pequenas, são conhecidas e seguras; é melhor desinteressar-se das grandes coisas, pois sabe-se que não são feitas para o homem comum, que não está preparado nem encaminhado para elas. Embora esta seja a psicologia do involuído, que se fecha no seu egoísmo, é a única que oferece segurança. Mas que liberdade! O homem está adaptado e apto para esta vida terrena, que é a sua, com suas alegrias e dores, e outra coisa não quer. Para que voar, quando não se sabe voar, quando tentá-lo é perigoso e, para tanto, não se tem nenhum desejo? O involuído não sabe o que fazer do paraíso dos místicos, das glórias do herói, dos triunfos do gênio. Essas ascensões vertiginosas perturbariam a sua consciência. Ele sabe contentar-se com alegrias bem menores, seguras e ao alcance de sua mão, sem necessidade de grandes fadigas Ele diz: ―Há um limite para o conhecimento e a conquista. Respeitemos o limite, não nos arrisquemos, não dissipemos esforço em pompas e grandezas de super-homens, contentemo-nos, permaneçamos no certo, nunca antecipemos nada por simples confiança‖. Não são belas estas palavras cheias de bom senso? Que evoluídos e super-homens! Loucuras. A humanidade é feita de almas pequenas, míopes, fracas, apegadas a coisas pequenas. Cada um tem o que lhe basta para o seu pequeno drama da vida, da sua dor a suportar, do seu problema a resolver, do seu destino a cumprir. Ninguém sente a necessidade de trazer para casa o supernormal, o mistério, os enfados e os perigos das ascensões espirituais. Está fora de propósito propor um esforço evolutivo, um aumento de fadiga, o peso dos ideais, do dever, Pietro Ubaldi da virtude. Para evoluir, é preciso sofrer, e já se sofre demais! Qual sofrer! A vida, ao contrário, quer gozar. Por que se deveria ir contra isto, que é o seu instinto fundamental? Quando a vida alcançou os seus fins, ela se recusa a tentar novos caminhos e a cumprir novos esforços. O normal está satisfeito no seu mundo, acha nele tudo o que deseja e não faz caso da evolução. Aliás, que faria ele num mundo sábio, em que fosse eliminada a sua principal ocupação de subjugar na luta o próximo para submetê-lo, onde encontra a sua alegria! Que faria ele num mundo melhor, não sabendo fazer nada melhor? A sua miséria e baixeza, as rivalidades dos atritos já se tornaram ingredientes naturais da sua vida, fazem parte do equilíbrio desta, certas resistências estúpidas lhe são necessárias. A libertação alteraria aquela certa ordem que, de qualquer modo, se formou entre as forças da sua existência no seu plano. Muitas vezes houve pobres que, tirados da miséria a que estavam habituados, sucumbiram por isso. Além disso, para evoluir, há de se ter muita vontade, audácia, tenacidade, esforço, inteligência, e quem dá ao homem tudo isto? Mas como pretender que estes escritos incendiários possam sacudir o animal humano que, por hábito milenário, está curvado na terra, onde está o seu pasto? É natural que ele não compreenda e jogue para longe essas fastidiosas questões, tornando a olhar para a terra, onde estão todas as suas alegrias, das quais não pretende abrir mão. O mundo do evoluído é para ele um superconcebível que não lhe desperta nenhuma ressonância, nenhum desejo. É inútil mostrar a um jumento os quadros de Rafael. Estes não lhe dizem respeito, estão fora da sua órbita, e ele voltaria para a sua cocheira. E mais, para ressurgir no espírito, coisa longínqua e incompreensível, teria o homem de enfrentar a consumação do corpo até à morte, daquele corpo que para ele é toda a vida? Loucuras! Mas, quando o evoluído pretende escapar da dor, escapará de verdade? Como escapará, se a sua vida é a mais espinhosa, se é toda feita de renúncias e de dores? Que vida é a sua, se está baseada na destruição de tudo o que é humano? Começa-se não com um abrandamento, mas com um redobrado peso de sacrifício. A dor fica, aumenta até; a evasão é um sonho, ninguém foge. Começa-se mal, e a coisa ameaça acabar pior. Como se pode pretender que gente de bom senso siga semelhante caminho? É natural que ninguém pense assim. As ilusões da Terra podem ser ilusões, mas também o são as do céu, então tudo dá na mesma e uma coisa vale a outra. O evoluído diz que vence. Mas vence verdadeiramente? A vitória vem depois da morte, no mistério, em um mundo muito problemático. E se, ao contrário, ele perde? Quem controla tudo e nos assegura algo? Quem nos indeniza dos danos? Que lástima então haver-se sacrificado por nada! Ao menos quem gozou, gozou, e isto, conquanto seja pouco, ninguém lhe pode tirar, seja o que for que depois aconteça no futuro. É tão intrincado o problema da vida! Nada há de seguro. Tem razão então o epicurista em arrancar os maiores prazeres que possa desta vida avara e amarga, em querer gozar logo, haja o que houver depois. Há uma lógica, e que lógica, na sua filosofia! E depois, tanto para o evoluído como para o involuído, tudo tende a resolver-se na dor. O gozo será uma alegria roubada, mas dado que outra coisa não é possível obter e que uma felicidade completa e eterna não é alcançável, faz-se o que se pode. Enfim, tudo é ilusão para todos. Se a evolução, em lugar de uma alegria longínqua e hipotética do lado de lá, com uma barreira de dor maior, oferecesse logo uma alegria vizinha e segura, acima de tudo segura e sem aquela barreira, naturalmente todos correriam para ela. Mas essa evolução se opõe à natureza humana e aos seus instintos fundamentais. Lógico é que, assim, seja evitada, pois não oferece senão fadiga e dor. Dessa mercadoria temos superabundância. A natureza humana formou-se para ser levada à alegria. Como se pode pretender que vá para uma alegria que, ao menos nos seus primeiros graus, é feita de dor? Esse é um Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO contrassenso inaceitável. É natural que o homem ache que a evolução é extremamente repugnante. Nem é sua a culpa se o mundo e ele próprio foram construídos assim. Mas, enfim, somos feitos de estômago. Para que negá-lo? As nossas principais funções são animais, e não espirituais. Se temos o corpo, é para gozá-lo, e não para atormentá-lo ou sufocá-lo. É verdade que, à força de experimentar com esses meios e nessa linha, um dia nos cansaremos, e a humana insatisfação procurará algo além. Mas que importa o amanhã! Somos positivos e atentamos no que é hoje, e hoje é assim. Que nos importa se, num dia longínquo, virá um reino do céu, onde impere o bem? Hoje vivemos no reino da Terra, onde impera o mal. Já que aqui estamos e não escolhemos vir para aqui, devemos aprender a saber viver neste reino do mal. Mas que heroísmo haveis de pretender desses homens que não são mais que ventres ambulantes! A maior parte das pessoas, a parte sã e equilibrada da sociedade, nem cogita desses problemas. Ela é como Deus a fez: carne que vegeta. Às vezes, aparece aqui ou ali uma pequena chamazinha de espírito, mas é logo utilizada com bom senso, para fins práticos e utilitários! Sim! Há os ideais, mas justamente porque se tornam utilíssimos para enganar a gente. Quantos não se fazem seus intérpretes e divulgadores com esse fim! É tão lógico isto, tão justificado em um mundo utilitário como o é o nosso! Tudo deve servir para dominar, e, para tanto, os ideais são utilíssimos. Assim é natural que cada um sustente só aquele ideal com que se pode enaltecer, condenando os outros, desde que tudo deve servir para si, e não para os outros. Também é natural que dos princípios do bem se haja de fazer estrita observância da execução sobretudo nos outros; que a aplicação da virtude comece sempre neles, para serem, assim, facilmente subjugados. Há as religiões, dádivas do céu, para guiar os homens para a salvação. Mas, nesta baixa atmosfera terrena, se querem sobreviver, também elas têm que se adaptar à baixeza humana, que aqui embaixo, queira-se ou não, é a mistura de todas as coisas. Não é conveniente destruir essa acomodação, que é resultado de um trabalho milenário de tantas gerações e corresponde ao fim, que, aliás, não é facilmente alcançado, de tornar suportáveis na Terra as utopias do céu. Não falemos destes tantos espiritualismos, reduzidos hoje a um aristocrático esporte de moda, a um substituto erótico, para distração de salões. Dizeis vós, idealistas, que possuís a verdade e a anunciais ao mundo. Mas que verdade? Ela é bem diversa nos fatos. O mundo possui uma verdade sua, e bem diferente. Na Terra, ela é simplíssima: destrói-se quem a contraria e dela discorda. A verdade está em que o vencedor tem razão e quem perde está errado; ele possui a razão só pelo fato de ter sabido, com a força, fazer calar o mais fraco. Este não tem mais voz, não pode mais falar, é inútil enfim que ele tenha um pensamento próprio. A vida discute, despedaçando; faz calar, estrangulando. Lógica estridente. As proposições do raciocínio constituem outros tantos golpes e alcançam as conclusões esmagando o antagonista. Método persuasivo. O direito de ditar a lei e fazer as normas compete ao vencedor; dele é o direito de fazer a verdade a seu modo e a vantagem de impô-la. A única verdade dominante na Terra é a do vencedor. Não existem verdades absolutas e universais, mas só particulares, relativas aos interesses de quem possuí os meios para impô-las; são feitas por ele e para ele. Pode ser esta a lógica da besta, mas o vencedor com qualquer meio, aquele que há demonstrado ser o mais forte, é o que verdadeiramente tem razão na vida. Ele representa a verdade, e por quê? Somente porque venceu. A obediência lhe é devida, pertence-lhe de direito. Segundo a lógica animal do plano biológico humano, compete-lhe a determinação dos valores. A vida procura o vencedor e tudo lhe concede, porque dele espera tudo. Biologicamente, a verdade é a afirmação egoísta do próprio eu. Por que se deve condenar e combater o egoísmo num uni- 11 verso egocêntrico por sua própria natureza, no qual tudo vai ter a Deus? Não é o homem feito à sua imagem e semelhança? Pois bem, na sua pequenez, ele o imita. O homem que, com qualquer meio, triunfar sobre todos, será o herói e virá a ser deificado. Os vencidos beijarão seus pés. Esta é a lei da Terra. A ele pertence o direito de ter razão e de fazer a verdade, de modo egoísta e exclusivista, deus da luta e da vitória, intransigente e ciumento como o antigo Deus da Bíblia. Uma vez, também, o Deus único era feito assim. Pois bem, igualmente, o homem pode ser feito assim, conforme as mesmas leis. Diante dele, a vida prostra-se e adora pelo mesmo princípio único do mais forte; princípio que, na fase involuída, o homem aplicou a si como a Deus, a quem o homem faz à própria imagem e semelhança. Os mais fracos, os vencidos, ficam verdadeiramente persuadidos que, nesse mundo, o mais forte, o vencedor, é o melhor e pode, enfim, representar a verdade. Mesmo ainda em nossos tempos, igualmente involuídos, o vencedor, com o poder da imprensa, do rádio e de todos os meios de divulgação do pensamento, tem razão pelo simples fato de ter sabido fazer a coisa e por ter demonstrado, assim, ser o mais forte e o mais esperto. Basta isto para que ele adquira o direito de lançar as ideias que mais lhe convêm, não interessando se têm ou não qualquer valor ou significação, e de incutir nas massas as verdades que quer, não importando se redundam em proveito ou em malefício. As massas não possuem ideias próprias, não compreendem por si mesmas, nem distinguem qualquer verdade, estão indiferentemente prontas a aceitar tudo; mas aceitar enquanto debaixo delas haja a verdade do vencedor, a real, aquela que as massas bem compreendem por instinto e pelo que lhe dão razão, aquela que está debaixo de todas as verdades e que as sustenta, isto é, o fato de que aquela é a voz do mais forte, daquele que venceu. Eis a verdade. Esse é o mundo real, sólido e resistente, e querer refazê-lo constitui verdadeira loucura. Se está feito assim, é sinal que assim deve ser. Uma das provas está em que não se deixa mudar. Não pode dar-nos altruísmo, porque está construído sobre o egoísmo; nem paz, porque se baseia na luta; nem verdade, porque é feito de mentira. Não peçamos a esse mundo justiça, porque nele reina a força, nem uma economia de justiça, porque nele os bens vão naturalmente às mãos dos maiores ladrões. Como pretender ordem e disciplina se, nesse lugar, o maior merecimento está em rebelar-se e estar na oposição? Esse pode ser o reino do mal, mas onde está o reino do bem? Sim! Consumirse-á o justo no caminho do dever, não obstante tudo acabará em destruição. Inútil. Tenta-se o voo, para recair na terra. Procuram-se vitórias, libertação, quer-se sair da prisão da vida, e sempre se recai nela. A vida é esta. Inútil debater-se. Além dos seus limites não se pode ir. Ela é tudo para nós. Não se sabe viver senão dela. Idealismos piedosos e ridículos! As grandes verdades não servem para nada. A vida esconde o seu mistério. Ela age sem falar, sem nos dar explicações. Quando quer, ferenos como quiser, sem nos dizer o porquê. É inútil pensar, não se subtrai nada. O pensamento é uma doença do espírito, o psiquismo do evoluído é uma hipertrofia patológica, um desequilíbrio. É preciso matar o espírito, suprimir o olho da consciência, que nos enfada com as exigências morais e revela tantos males humanos, tão-só para assim torná-los mais sensíveis, sem, porém, saber oferecer remédio. É inútil pretender poder e saber intervir num mundo de leis fatais. Tem razão a nossa civilização, que tende a nos estupidificar com a mecanização da vida e a nos barbarizar completamente, cientificamente, com todos os meios da técnica e da razão. O pensamento desenvolve-se para acabar providencialmente suicida. A inteligência superior, que nos conduz para fora da realidade terrestre, não só não serve, mas também é um perigo para a vida. É preciso vencer no plano material, onde hoje está toda a vida. Vencer de maneira mais elevada não tem sentido; é inútil para quem deve viver na Ter- 12 PROBLEMAS DO FUTURO ra. Importa resolver primeiramente os nossos problemas imediatos e só depois os do universo, que estão longe. Este deve estar em função nossa, e não nós em função dele. É melhor, então, não pensar, não revelar, não descobrir. Tanto é assim, que os resultados da ciência não servem senão para destruir. Melhor é gozar. Tudo o que existe vale tão-só enquanto serve ao nosso prazer. As grandes coisas do espírito estão afastadas, as pequenas, da Terra, estão perto. Na prática, estas são as maiores, porque estão vizinhas. É preciso nutrir-se, viver e gozar. Há tantos meios para gozar e olvidar! Quando tu, que queres subir, tiveres gasto todas as tuas energias pelo ideal e ficares abatido na Terra, o ideal abandonar-te-á, a vida rir-se-á de ti, como é natural para com os vencidos, e esmagar-te-á. Besta és, e a besta torna à Terra. O brado da tua alma é vão. A vida escarnece das tuas explosões. E, na luta entre a besta e o anjo, pode acontecer que, em vez de o anjo matar a besta, a besta mate o anjo. Era tempo de abandonar os sonhos e de não enganar mais o leitor com utopias. Era tempo de dizer esta verdade, mais verdadeira, que está além das palavras, nos fatos. As religiões, a cultura, a política, toda atividade material e espiritual, individual e social, tudo é uma mentira, um pretexto, um modo de camuflar a luta pela vida em procura do único fim, o próprio bem-estar. Todas essas coisas são astúcias para, com um jogo simulado, mascarar o jogo verdadeiro. E os ideais fazem parte do jogo. Forma-se, assim, um consenso universal no desejo de fazê-los entendidos como reais, sem que sejam de fato. Formase um consenso na mentira, para a vantagem própria que daí deriva, e isto basta para constituir a base de tantas instituições. Assim, a autoridade e o poder que, em teoria, deveriam ser função e missão, na realidade não passam de meios de exploração. Não se explicaria de outro modo como as posições de comando são tão cobiçadas e se travem tão ásperas lutas para conquistá-las. Isto, certamente, não se faz por amor ao próximo. É assim que autoridade e poder, muitas vezes, são parasitários, não obstante aqueles que os detêm procurarem dar a entender que são úteis, protetores e produtores insubstituíveis, justamente porque só assim podem, aparentando função e missão, justificar suas posições. Se, depois, os ocupantes do poder caem, fica-se deveras surpreendido pela verificação de que as coisas prosseguem igualmente, mesmo depois de desaparecidos os tidos como insubstituíveis. Assim se prega fé, honestidade, ordem, confiança, sacrifício, altruísmo, porque são úteis para o domínio. O ideal verdadeiro é o rebanho a mugir, rebanho passivo, que se comanda com menor esforço. O próximo não é um irmão, mas um inimigo. O próximo que mais se ama é o mais imbecil, é aquele que é mais facilmente vencido. Qual fraternidade e amor! A vida é rivalidade desapiedada. Para alcançarmos um posto, devemos tirá-lo do vizinho. Ao menos confessamo-lo, não mentimos, temos a coragem de jogar com cartas abertas. Se Deus existe, Ele está no céu; por certo não está na Terra. A sua ordem, harmonia e bondade não estão aqui embaixo Ele está longe de nós e nós d'Ele. É preciso saber viver sem Ele. Somos chamados de involuídos? Pois bem, este é o nosso orgulho. Somos feras, mas fortes e audazes como as feras. É com a força que o homem conquistou o mundo, e não com a piedade. Seremos demônios, mas também é grande a nossa força e belo este nosso poder selvagem. Esta é a vida do nosso nível, e como tal a aceitamos. Com nosso calcanhar, alegremente pisamos sobre a cabeça do idealista, que, traído por seus sonhos, cai na terra desfalecido... Temos esse direito, porque, em nosso mundo, onde vive, ele é um vencido. Esta é a verdade. Hoje estamos na época da liquidação dos idealistas, liquidação dos que creem em qualquer coisa que não seja o próprio desapiedado egoísmo. É inútil ser forte no espírito. Quem é fraco no plano animal, na Terra, onde está a vida, há de ser esmagado e suprimido. A destruição material pela guerra nada é comparável à destruição maior, das al- Pietro Ubaldi mas. Se há loucos que seguem em sentido contrário, pior para eles; tão logo estejam cansados, acabaremos com eles. Quem pretende sair dos limites biologicamente assinalados de ataque e defesa para sua vantagem, submetendo-se ao peso inútil do ideal, biologicamente passivo, luxo inadmissível, vai contra a vida, então é justo que esta o elimine. A verdade destas afirmações é evidente, muito mais do que as elevadas construções dos volumes precedentes. Muitos leitores irão regozijar-se agora, ao verificar o arrependimento do autor, e dirão: finalmente ele compreendeu também ter errado. Não é um espetáculo comum de um autor, réu confesso, reconhecer o seu erro. E, assim, tudo caiu de chofre; do grande sonho nada resta; a realidade da vida retomou as rédeas e fez valer os seus direitos, nivelou e devorou a superconstrução tentada. Foi uma ilusão, uma mentira. Enfim, a loucura não é grande culpa. A ilusão lubrifica a vida; a Terra é lugar de traições. O homem pode encontrar-se em quatro posições: do vencedor que acredita vencer, do desgraçado que se perde, do imbecil que se contenta ou do evoluído que se sacrifica. Pois bem, cada posição se resolve igualmente em uma traição. Também o autor foi traído; é natural. Mas, assim, desceu do céu e compreendeu uma realidade que antes lhe escapava, sobre a qual ele hoje baseia a sua novíssima concepção da vida. II. A PERSONALIDADE OSCILANTE E A VISÃO DE OUTRAS VERDADES Qual é a significação do capítulo precedente? Que é que aconteceu? Arrependimento, evolução, contradição? Será outro o autor que fala? Que significa, no lógico desenvolvimento construtivo resultante dos volumes precedentes, essa tão diversa voz destruidora, que lembra Nietzsche e se parece com a do mal? Ela exprime uma mentalidade que se encontra nos antípodas daquela dos escritos anteriores, uma psicologia não de quem se eleva, mas do homem que se encerra no seu egoísmo e tudo encara em posição egocêntrica. Como, depois de tanto caminhar, encontramos aqui, aceita e levada a primeiro plano, como verdade, a filosofia do involuído? Observemos o fenômeno. Não podemos, por ora, demorarnos na refutação das observações precedentes. Somente o leitor superficial pode vir a ser persuadido. Basta aprofundar um pouco a questão, para obter pontos de vista e soluções diversas e mais satisfatórias. Essas são dadas a cada passo nos volumes precedentes, dos quais este é a continuação. O problema que nos defrontamos agora é explicar como o autor possa ter possuído, seja mesmo naquele breve tempo, uma verdade tão diversa da sua habitual; como lhe puderam parecer verdadeiras, por um pouco, as vias da descida, em vez daquelas da ascensão, em que geralmente se move. Assim, é bom esclarecê-lo, as páginas do capítulo precedente não constituem ficção literária, mas foram verdadeiramente sentidas como verdade por quem aqui escreve. Devo também explicar que falo de mim mesmo na terceira pessoa, pois separo-me completamente do meu caso, que observo, destacando-o de mim e tornando-o independente, como se o fenômeno se passasse com outra pessoa. Para compreendê-lo, é necessário saber mudar a posição psicológica, observando as coisas sob diversos pontos de vista. Agora, o problema está em conhecer como uma mesma personalidade possa existir sucessivamente em diversos planos do concebível, tomar deles exata consciência e chegar, enfim, à visão de outras verdades. Para chegar a isto, é necessário, primeiro, compreender o fenômeno da personalidade oscilante. Os fenômenos biológicos são rítmicos. A onda, segundo a qual a trajetória do seu desenvolvimento caminha, desenvolvese por vértices e depressões, por máximos e mínimos de intensidade, por períodos de atividade e de repouso. Essa é uma lei de oscilação que já observamos no desenvolvimento e decadên- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO cia das civilizações, no nascimento, juventude e senilidademorte do indivíduo etc. Tratando-se de um sistema de forças equilibrado, deve haver proporção entre as duas fases, que, se são opostas, são também complementares. É natural, enfim, que, quanto maior é a altura atingida pelo vértice da onda, tanto maior é a profundidade da sua descida. Ora, não se atingem as superiores realidades do espírito senão nas horas de graça, em que a vida oscila de tensão e potencial até alcançar o ponto mais alto da evolução conquistada, isto é, no período de máxima intensidade psíquica, no vértice da onda, depois do qual deve seguir um período de descida da luz nas trevas, uma precipitação da consciência, um desabamento de um mundo. O ciclo completo resulta de dois períodos evolutivos: um elevado, de afirmação, e outro baixo, de negação. De resto, a consciência não é fenômeno constante e, segundo o princípio da dualidade que rege todos os fenômenos, compõe-se da sua fase lúcida e da sua fase obscura, que se completam reciprocamente, com funções opostas: a primeira de intuição sintética, a segunda de elaboração analítica e de controle. Assim, as grandes verdades e os ideais representam uma alta meta longínqua, uma antecipação da evolução, ainda a ser atingida, acima da realidade biológica atual; representam mais o futuro que o presente, e o cântico do futuro é um som débil no presente. Para ouvi-lo, é preciso aguçar a audição psíquica, é preciso levar a própria consciência até ao alto potencial e às altas frequências de onda, somente nas quais se pode perceber as grandes vozes longínquas. Para antecipar o futuro biológico, registrando a visão do mundo espiritual do futuro, é preciso atingir a alta tensão nervosa que abrasa e esgota. Só quem vive esses fenômenos pode compreender que dinamismo biológico e que ímpeto de sensações eles representam; porém, se eles enchem de entusiasmo quem os alcança, dando-lhe na hora inspirativa o senso de uma inusitada plenitude de vida, deixam-no depois desfeito, como que incinerado pelo incêndio vivido. Não é o espírito que se cansa, a parte do ser que está no ápice da zona evolutiva, mas é a parte orgânica, inferior, que está situada no fundo dessa zona evolutiva. Cansaço pelo trabalho da catarse, que é mais sensível onde a vida vem a ser abandonada, embaixo, correspondente à que paralelamente é conquistada no alto. Mas o equilibrado dualismo do fenômeno não se faz sentir só nessa direção. Pela mesma lei de equilíbrio e dualidade, esse estado de hipertensão, período de alto potencial, deve depois compensar-se em um estado de hipofunção, isto é, num período de baixo potencial. Assim, à alta tensão que, se prolongada, queimaria o organismo físico, segue um período de relaxamento e de repouso. Tudo isto é lógico e de acordo com as leis da vida. Um tipo normal, em geral, é evolutivamente inerte e estático, portanto estavelmente equilibrado na sua fase animal, e não na fase de transformação intensa; não é lançado para formas de vida mais elevadas. Ele não se ressente, enfim, de oscilações e desequilíbrios que, se podem parecer anormais, na verdade são criadores. O tipo corrente, que não toca as alturas do espírito, não pode de fato cair nesses estados de depressão, que são coisa bem diferente daqueles patológicos, e somente quem não compreendeu o fenômeno pode fazer esta afirmação. Para o homem comum, as oscilações da onda são levíssimas, a sua consciência se mantém mais ou menos estática no mesmo nível, portanto a sua visão é constante, de uma realidade que assim lhe aparece única e sem contradições. A sua inteligência, não tendo oscilações entre o supernormal e o subnormal, é para ele quase exclusivamente um instrumento de luta pela vida e esgota a sua função na defesa do corpo. É para isto que ele está armado, e não para as conquistas biológicas; construído mais para conservar-se tal qual é, do que para se arriscar nas grandes aventuras da evolução. Ele é mediocremente inteligente, porém mais ou menos constante o tempo todo. Ele não encon- 13 tra na experiência das suas sensações esse fenômeno da oscilação resultante de posições de transição e de tensões criadoras, que estão fora do seu campo biológico. A verdade do capítulo precedente é, também ela, uma verdade, mas exclusiva do mundo inferior da Terra. O autor a sentiu verdadeira numa hora de baixa tensão, na qual ele viveu naquele plano evolutivo. Isto nos antípodas das horas inspirativas, em que ele pôde, ao contrário, sentir e registrar as verdades superiores do espírito, que fazem parte do futuro da evolução, expostas em A Grande Síntese. Ora, se essas oscilações de potencial nervoso e psíquico não estão corretamente adaptadas para ajudar na luta pela vida, todavia são condição necessária para atingir planos evolutivos mais altos, de onde os normais, equilibrados no seu plano, são excluídos, ao menos até alcançarem superações biológicas no futuro. Se essa oscilação pode ser também dolorosa pelo permanente sentido de tempestade que dá à vida, pelo contínuo acúmulo de criações e de ruínas, num estado de elaboração ascensional que queima as etapas da evolução bem como a vida orgânica, todavia somente assim, por esse excepcional esforço, é que pode nascer a possibilidade, de outro modo muito afastada, de atingir diversos aspectos da consciência em diversos planos evolutivos e, assim, a visão de outras verdades e o seu confronto. Lá, onde o homem comum está fechado na concepção de uma só verdade, limitada ao seu plano de vida, com poucos elementos de apreciação, podemos obter em nosso caso uma vastíssima escala. Com o avanço da evolução, essas ondas em que se acumulam os períodos de luz e de treva, embora conservando a sua amplitude, elevam-se sempre mais, o que lhes permite atingir vértices sempre mais altos, avançando assim de conquista em conquista para verdades sempre mais vastas e profundas. Arquejando, o pobre organismo físico segue esse vertiginoso curso de ascensão, que se faz cada vez mais acentuado, e também ele, dessa forma, para adaptar-se às novas exigências de vida impostas pelo espírito, deve sofrer a sua catarse. Esta, por sua vez, permite ao espírito, que deve arrastar consigo o corpo ao qual está ligado, avançar sempre mais, porque, transformando o organismo pela adaptação, torna-o sempre menos inapto para a respiração nas altas atmosferas rarefeitas e à vida de alta potencialidade. Quem escreve fala de experiências vividas, controladas por ele experimentalmente, a cada dia, pois que esta é a grande aventura biológica que forma o conteúdo da sua vida. Trata-se, todavia, de sensações e experiências intransferíveis de homem para homem, e quem não se encontra nessa posição evolutiva não pode experimentá-las. Por isto elas fogem à ciência positiva de hoje. Assim se explica a contradição entre a verdade exposta no capítulo precedente e as que foram anteriormente expostas nos outros volumes ou ainda o serão depois. A contradição é dada pelo contraste entre posições diversas, tratando-se de coisa tão natural, que normalmente constitui a base da percepção. Só assim se podem perceber verdades evolutivamente futuras, às quais a maioria chegará somente mais tarde. Porém, justamente porque o autor não é estático em nenhum plano, nem mesmo no alto, a sua consciência pôde completar a oscilação que o levou ao máximo de depressão da onda, isto é, ao plano da consciência terrena daquele homem que é ainda, em grande parte, animal. Porém, não sendo este para o autor senão o ponto mais baixo da sua oscilação, o próprio fenômeno o leva logo a remontar aos planos mais altos e a sentir e afirmar verdades superiores. Ao leitor oferecemos justamente, junto à análise do fenômeno, a possibilidade de assistir a essa retomada ascensional de consciência. Veremos, assim, no desenvolvimento conceptual que segue, reconstituir-se lentamente a tensão e reaparecerem sempre mais nítidas e vizinhas as verdades do espírito, de que se afastou apenas por um momentâneo colapso. O exame de tal desenvolvimento constitui o esqueleto deste volume, cujo an- 14 PROBLEMAS DO FUTURO damento, por isso, é ascensional. Assim, serão expostos ângulos visuais progressivamente mais salientes, embora depois, uma vez terminado o estudo do fenômeno psicológico, não nos ocupemos mais de tratar da causa que o determina, mas somente de pôr em evidência o seu resultado conceptual. Veremos, dessa maneira, uma verdade continuamente progressiva, que se eleva aos poucos, até ao vértice, onde contemplaremos, no seu conjunto, o Criador e a Sua criação, para descer depois aos problemas particulares, da síntese e análise. Isto porque a consciência não pode se manter longamente na alta tensão da síntese máxima e deve, depois, relaxar-se, para repousar nas menores visões da análise. Na ascensão, o espírito aponta para a unidade, o absoluto, com concepções sintéticas; na descida, ele vê, mais que o conjunto, o particular, o relativo, com concepção analítica. No fundo, ele não faz mais que percorrer, ao longo da escala da evolução, o caminho de ida ou de retorno que o ser percorre, ascendendo para Deus ou descendo d'Ele. Nesse caso particular que agora observamos neste volume, vemos refletido o esquema da estrutura do universo, confirmando que ele, como já o dissemos muitas vezes, está construído por esquemas únicos, de modo que, em cada caso menor e em todas alturas, vemos reaparecer reproduzido o esquema máximo Deus-universo. Assim o crescendo conceptual que se seguirá não é senão a expressão da maior lei da vida, que é a ascensão de todos os seres para Deus. Mas, se esta é a meta para a qual se caminha, pela própria transformação das visões que se obtêm na ascensão, poderemos dar-nos conta da relatividade da nossa verdade. Não dizemos, com isso, que não exista uma verdade absoluta ou que ela mude à medida que progredimos. A verdade absoluta existe, o que muda é somente a nossa percepção dela, é o aspecto subjetivo daquele fato objetivo. Assim é que, para cada plano evolutivo que atravessamos, achamos para nós uma verdade relativa diversa, dependente do nosso ponto de vista e sua variação. Essas verdades relativas parecem contradizer-se, entretanto completam-se. É preciso compreender esse conceito da relatividade das nossas verdades, que estão em função do ponto de vista dado pela nossa posição ao longo da escala da evolução. A verdade absoluta, total, completa, nos escapa. Ela está em Deus, não no homem. É a visão simultânea de todos os pontos e posições ao longo da escala da ascensão. O homem, situado no relativo, não pode perceber mais que uma verdade particular e relativa, aproximada e progressiva, que, justamente por isto, está em movimento e relacionada com a outra, absoluta e imóvel. Dessa forma, o homem não pode compreender senão por sucessivas aproximações a mesma e única verdade, que está somente em Deus. Dessa maneira, todo plano tem a sua verdade, que, na sua forma relativa, continuamente se retifica e aperfeiçoa. Assim, uma forma que, em dado nível, vem a ser justa, pode tornar-se injusta em outro mais elevado. Os valores e, portanto, os juízos são diversos nos vários planos. Quem é sábio no plano da matéria pode ser tolo no do espírito, e ao contrário. Dessarte, um não-valor pode se tornar um valor máximo e ao contrário, segundo a altura evolutiva da qual é observado e o mundo ao qual ele se aplica. É assim que se explica a inversão evangélica dos valores. O que na Terra é dor e derrota, mais no alto pode significar redenção e salvação. Evoluindo, o valor das coisas muda, como muda a verdade da qual ele depende. O corpo pertence ao mundo, e o espírito a outro plano de vida. Eles têm duas verdades e leis diversas. O antagonismo que está em nós, quando o espírito é forte, pode assumir violência tremenda. São duas vidas em luta, na qual a mais poderosa vence. Na maior parte dos casos, o espírito dorme e, se acorda, é para o serviço do corpo. Mas, no caso contrário, em que o espírito domina, nascem tempestades apocalípticas que o homem comum não imagina. A psicologia do capítulo precedente é a terrena, é a do involuído, ignorante das leis da vida, cego diante da grande harmo- Pietro Ubaldi nia do universo, incapaz de agarrar as maiores forças, que lhe fogem, fechado em uma pequena verdade limitada ao plano terrestre animal da evolução. Para poder fazer confrontos e dar-se conta de uma parte maior da verdade universal, o autor devia conhecer também aquela psicologia, atravessando-a toda, mesmo que fosse por um momento. Somente essa sua possibilidade de ter consciência em planos evolutivos diversos lhe pode permitir coligar as diversas verdades e levar para o plano humano verdades próprias de planos superiores, que, naquele momento, parecem erradas ou utópicas; com isso, pode-se ajudar a evolução, antecipando verdades que hoje estão ainda evolutivamente longínquas, próprias de um futuro biológico ainda não alcançado. O produto da vidência de alta potencialidade pode ser imitado nas concepções mais turvas e menos ativas do plano de baixa potencialidade ou de cegueira em relação àquela vidência. É natural que a verdade mais baixa se revele feroz e infernal quando vista de um plano mais alto, enquanto pode parecer justa para quem, por evolução e sensibilidade, está proporcionado àquela ferocidade. Assim se explica como a Terra pode se assemelhar a um inferno aos mais evoluídos e o céu, visto da Terra, pode parecer utopia; explica-se também como a verdade inferior, que parece tão verdadeira no seu plano, caia para o absurdo tão logo fique em contato com realidades superiores. E que faria a primeira por si só? Permaneceria sem esperança, sem futuro. E esse futuro está fatalmente implícito na instintiva insatisfação humana, que exprime o impulso da evolução, fazendo que, cedo ou tarde, tudo seja superado. A vantagem está em saber achar a passagem da verdade inferior para a superior, e essa é a função e missão dos mais evoluídos, condenados a viver no inferno terrestre. Trata-se de passar para mais elevadas formas mentais, e só nisto pode consistir o progresso para mais altas civilizações. À medida que se evolui, a vida torna-se mais vasta e potente, ampliam-se os horizontes do conhecimento e, portanto, do domínio. O involuído vive, dia a dia, das pequenas coisas imediatas, imprevidente, impulsivo, sem sabedoria e sem senso. O evoluído domina a vida, sabe e calcula causas e efeitos longínquos, é previdente, reflexivo, sábio e sensato. O campo do seu conhecimento, portanto de seu domínio, é muito mais vasto. Ele sente, enfrenta e resolve problemas dos quais o involuído não cogita. Este nem mesmo suspeita da presença do imenso mundo que está além da sua pequena consciência, do qual há nele algum germe, apenas assinalado, mas ainda não conquistado, perdido no inconcebível. Se bem que ele não compreenda tudo o que o evoluído faz e diz, ainda assim este tem muitas coisas a dizer-lhe, porque ele vê onde o outro ainda não vê e está mais adiantado no caminho da evolução, que todos devemos percorrer. Ainda que estranha, incompreendida e desprezada, a palavra do evoluído tem o valor e a potência de uma revelação, porque manifesta novas zonas do pensamento do universo, traz para a luz o que está recôndito e descobre o mistério. E o saber nos guia ao poder. Conhecer os porquês da vida, possuir a solução dos problemas, agir com ordem, em vez de ao acaso, orientado, e não desorientado, representa uma posição de grande vantagem também para os fins práticos da defesa e da conquista. O involuído, que se apoia na força, não sabe que o pensamento é o maior poder, capaz de vencer a própria força. Esta é obtusa por si mesma, um desencadeamento brutal sem rendimento, perdendo-se em erros e atritos. E a inteligência vence. O pensamento é criador e, pertencendo a planos mais altos, domina tudo o que lhe está abaixo, porque evolutivamente inferior. O poder que procuramos com tanta fadiga na Terra vem a nós espontaneamente, assim que saibamos subir. Assim, o evoluído pode representar, em favor dos involuídos, uma verdadeira função biológica, antecipadora e criadora de valores. A vida o produz para esse fim e lhe confia a correspondente missão. Desse modo, ainda que o seu sacrifício pela Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO utopia possa parecer tolice, é sempre um testemunho necessário para dar impulso à vida. E, se esta o deixa morrer, é somente para fazê-lo frutificar. Assim, a vida salva a melhor parte e, para seus fins universais, consegue o rendimento maior. Desse seu método de agir se conclui qual a importância dada à evolução. Se nenhuma posição é mais criadora do que a do macho, ninguém mais do que ele se arrisca a ser esmagado. E ninguém é mais macho do que o evoluído, que representa a potência ultraviril do pensamento, a função criadora e diretriz, colocada na direção da ascensão, sem a qual as outras duas grandes funções da vida, a conservação e a reprodução, tornar-se-iam estéreis. A evolução tem os seus arautos, que ela manda à frente, armando-os mais do que os normais, a fim de que tentem o ignoto com risco e perigo seus. A natureza não os protege exteriormente, modificando o ambiente para eles, mas os mune interiormente pela premunição. A vida faz deles especialistas em funções evolutivas, como antenas investigadoras e antecipadoras. Para esse fim, ela produz poucos exemplares de exceção, enquanto a maioria, prudentemente, mantém-se em posições mais recuadas e mais seguras. Ela, depois, os lança para a luta, não aquela da competição recíproca entre os homens para a formação de qualidades humanas, mas uma luta direta contra o mistério e as forças biológicas, para avançar, conquistando campos inexplorados. Assim é que o progresso avança com a colaboração entre os mais e os menos evoluídos. A vastidão e a profundidade dos problemas que o homem se propõe e resolve, a elevação dos mundos com que ele chega a se pôr em contato e a viver, são índice de seu grau de evolução, o que significa também o grau de autonomia, poder, segurança e felicidade que o homem alcançou. A vida é sempre utilitária, e o progresso, que também custa fadigas e riscos, deve trazer uma melhoria. A sabedoria e a sensatez não constituem um fim em si mesmas, mas um meio para constituir um modelo, dado que o poder e o domínio não podem ser concedidos senão a quem deles fizer bom uso. É dessa forma que a Lei quer que a vida floresça. Com a evolução, o jogo da vida, de curto e míope, qual é para o involuído, limitado aos planos inferiores, se transforma em um jogo sempre mais amplo e complexo de longas e amplas realizações. O homem, então, passa a viver em função de um sempre maior círculo de seres. A sua esfera de ação se expande no espaço e no tempo, descendo sempre mais profundo na essência das coisas. O involuído é impotente para viver uma vida assim vasta; não sabe usar senão dos poucos elementos de que dispõe e nada mais. Enquanto ele, pela assimilação das tão necessárias experiências, não estiver amadurecido para novas formas de vida, delas estará excluído. Desconhecendo o complexo jogo das forças do seu destino e a técnica do seu funcionamento, ele deverá aceitá-lo como fado inexorável, sem compreendê-lo nem assimilá-lo, enquanto quem as conhece torna-se senhor dele. Ignorando os fios que ligam causas e efeitos, ele não sabe estabelecer aquelas conexões que explicam tantos fatos e que, para outros, permitem a previsão. O homem de hoje ignora a solução dos problemas fundamentais da vida, de modo que possui bem poucos meios para defender-se dos dolorosos efeitos de seus contínuos erros, que, dessa maneira, não são resolvidos e eliminados, ensejando que venham a ser continuamente semeadas novas causas. Estas o homem de hoje vai procurando em tudo, nos outros e até mesmo em Deus, que chama de injusto, sem saber que elas estão nele próprio. Ele cria à sua volta um caos, perde toda a confiança na ordem do universo, na bondade e sabedoria das leis da vida, e procura a salvação na psicologia da vantagem imediata. Então resultam posições instáveis, porque usurpadas, desequilíbrios e ruínas, ilusões e dores. A vantagem imediata, o sucesso rápido que não foi ganho antes, não pode ser senão traição. Assim, em baixo há sempre mais o estridor da luta, enquanto, no alto, a Lei exprime as grandes harmonias da criação. 15 III. EXPERIÊNCIAS EM BIOLOGIA TRANSCENDENTAL Depois de haver sumariamente traçado no precedente capítulo a direção do nosso caminho pela via ascendente que, à semelhança do grande caminho evolutivo do ser, nos propomos seguir neste livro, é necessário, antes de continuar, completar com uma visão psicológica mais exata aquilo que já acenamos no começo a respeito do fenômeno da personalidade oscilante entre vários planos de evolução e de consciência, com a respectiva visão das várias verdades. Esse salto do eu, do vértice da onda para a profundidade das suas depressões e ao contrário, essa precipitação da alta à baixa potencialidade e a subida em sentido inverso, quais as sensações que, além da visão dos diversos planos da verdade, produz em quem vive o fenômeno, como acontece esse fato, como se explica, qual o seu significado biológico na economia da vida? Quem escreve procura documentar aqui, através da própria experiência, o estranho fenômeno por ele vivido, aprofundando assim o complexo problema já tratado da personalidade humana, para o qual enviamos os leitores, indicando-lhes o final do precedente volume, A Nova Civilização do Terceiro Milênio4. Tornar-se-á assim mais aclarado o fenômeno inspirativo, já examinado no volume As Noúres. O mundo ideal, que o evoluído antecipa nas suas visões, não é uma realidade que haja alcançado sua manifestação em nosso ambiente terrestre. Aqui, aquele mundo superior não existe senão como miragem, utopia, no estado potencial de futuras realizações, como é o da árvore na semente, isto é, o estado de uma coisa que poderá ser, mas que ainda não é. Não existindo em nosso mundo como realidade concreta e objetiva, essas verdades superiores não são suscetíveis de exata percepção e de experimentação, o que as torna irreais, fantasias, ilusão. De fato, na Terra, elas são uma miragem, uma projeção de uma realidade longínqua, porém plenamente objetiva para planos evolutivamente superiores ou para quem saiba conscientemente encontrá-las. Essas realidades espirituais, portanto, podem ser exatamente percebidas e experimentadas em estados de consciência de alta potencialidade. Então, enquanto o observador fica nessas condições, é possível explorar aquele mundo ignorado, da mesma forma como se explora a realidade concreta do nosso mundo terreno através dos sentidos comuns. Isto pode ser bem compreensível para todos, pois é sabido que tudo o que nos circunda toma uma certa aparência somente em função dos nossos meios sensórios e que, quando estes mudam, essa aparência pode mudar completamente. O método inspirativo ou intuitivo aqui usado por quem escreve, meio de pesquisa que ele atingiu pela evolução de suas qualidades de sensibilidade, é justamente o que lhe permite atingir conscientemente planos superiores de vida e, num estado supernormal de percepção, levar a cabo observações, experiências, crítica e registro das soluções dos problemas focalizados. As melhores páginas de toda a obra, da qual este volume faz parte, foram obtidas com esse método. É verdade que ele não pode ser usado por todos, como os comuns meios de pesquisa. No entanto é compreensível a contribuição que pode trazer para o conhecimento esse inusitado instrumento, que é metodicamente usado desde alguns anos, numa produção orgânica conceptual que haverá de ser compreendida somente quando a obra for completada. Tratando-se de um caso de exceção e não tendo a ciência resolvido tais problemas, esse método veio a ser confundido com a mediunidade, com a ultrafania em transe, com o espiritismo etc. Mas, aqui, não existem fenômenos físicos nem transe. O transmissor se funde em colaboração com o receptor numa obra orgânica em que, cientificamente, é enfrentado, inclusive como síntese, o campo do saber humano, para dar orientação e solução aos problemas mais árduos e vitais. 4 Cap. XXVII e XXVIII. (N. do T.) 16 PROBLEMAS DO FUTURO Nada há de estranho que, nessas condições especiais e com esses meios, seja possível alcançar o conhecimento de outros planos de vida, onde o real e objetivo não é a matéria, mas sim o espírito, e obter a expressão daquela realidade imaterial por trás de todas as formas, que são regidas por ela e não passam de uma sua manifestação exterior. É desta forma que o imponderável emerge do mistério e, visto com os olhos do espírito, assume a mesma solidez que a realidade concreta apresenta aos olhos comuns. Assim a vida, percebida com outros meios, revela-se diversa, e o significado e o aspecto das coisas mudam completamente. Então o nosso mundo, que se apresenta a nós como realidade em face do espírito, torna-se ilusão, enquanto o mundo do espírito, que nos parece sonho, aparece como realidade. Nós nos movemos de fato entre duas realidades, cada uma das quais parece ilusão se observada do ponto de vista da outra. No final do volume precedente, A Nova Civilização do Terceiro Milênio, descrevemos os dois caminhos que levam para as duas realidades, a primeira, por percepção direta exterior, a segunda, por percepção inversa interior. As chamadas criações do espírito não são mais do que percepções de realidades evolutivamente mais elevadas, registradas por meio dessa percepção interior. Dessa maneira, tanto no campo científico como no artístico, o gênio nos mostra, sem transe e com potência de resultados que superam aqueles da comum ultrafania, haver tido contato com realidades que não são da Terra, sendo que até estas, que sempre tocamos com a mão, desfazem-se no imponderável quando observadas com a análise penetrante da ciência moderna,. Veremos isto melhor no capítulo ―As últimas orientações da ciência‖. Desse modo, a estabilidade da matéria se reduz, em última análise, à simples constância dos princípios diretores abstratos que a regulam. Isto confirma o conceito acima exposto da completa relatividade do nosso conhecimento, visto ser óbvio que os axiomas que colocamos como base de seu edifício estão em função dos nossos meios sensórios e são dados por um consenso derivado da semelhança entre esses meios. A compreensão entre os seres se dá enquanto e porque são feitos do mesmo modo, de outra forma eles não se compreendem mais. Certo é que deve haver uma realidade última que seja objetiva em si e por si. Mas o que ela seja na sua absoluta objetividade, além de todas as formas, ignoramos. Esta última realidade verdadeira, que está além de todas as aparências relativas, deve ao menos possuir, relativamente aos meios de observação, tantos aspectos objetivos quantas são as reações e reflexões que podem produzir em todas as possíveis formas de consciência. Não vemos que o nosso estado físico e psíquico, assim que muda, produz em nós sensações diferentes? E não o julgamos, então, como uma realidade diversa? A absoluta realidade nos escapa completamente. Não somos senão caminheiros do relativo, para nele caminhar sem parada, sem nunca poder exauri-lo. E, mesmo avançando em nosso caminho evolutivo, enquanto o campo do nosso relativo não muda, não possuímos nele senão alguma oscilação, que serve para experimentarmos a nossa vida. Verdades definitivas e estáticas, pois são impossíveis na Terra, onde há somente progressivas aproximações do inconcebível absoluto, que não nos pode aparecer senão como um ponto de referência, porém dele, caminhando no relativo, procuramos sempre mais avizinhar-nos. As duas realidades, exterior da matéria e interior do espírito, são os dois extremos que confinam o atual concebível humano, entre os quais, em ascensão e descida, move-se a observação da personalidade oscilante aqui estudada. Embora, por razões sensórias, a primeira realidade da matéria venha a ser considerada a mais verdadeira, perguntamo-nos a que ficaria reduzida a sociedade humana se fossem suprimidas as realidades imateriais do mundo moral e ideal, onde estão o bem e o mal, o sentimento, a fé, o pensamento, a arte e a própria ciência, produtos pertencentes a um outro mundo, que, mesmo perdendo-se no im- Pietro Ubaldi ponderável, inegavelmente se projeta em manifestações bem sólidas e tangíveis também em nosso mundo material. Os símbolos, as bandeiras, as imagens, veneradas representações do imponderável, não são criações ou convenções arbitrárias, mas sinais e formas nas quais a maioria reconhece uma realidade interior, outro tanto verdadeira. Se o consenso não se houvesse formado antes, em torno de uma substância interior, ele não seria possível depois, em torno da forma exterior que a representa. Certas afirmações de fé coletiva não são artificiais; elas estão além de todo poder humano de criá-las e mantê-las e têm uma resistência que, muitas vezes, falta na realidade concreta. Podemos até perguntar-nos se não será essa própria realidade interior, relegada entre as ilusões, que plasma o mundo humano e, através desse, também o físico. Não está, talvez, nesse íntimo imponderável eu, que tudo deseja plasmar e marcar sem limites, a maior força do ser? Se pudesse, não quereria dar uma expressão própria em todo o universo? Era necessário, com tudo isso, explicar como as afirmações ideais que iremos expondo respondem, ainda que pareçam utopias, a uma potente e objetiva realidade interior. É esta que, em qualquer caso, sustém tudo. Sem esta realidade interior, que é a alma das coisas, a forma cai como coisa morta. A instintiva necessidade de evoluir faz com que também o involuído procure essa realidade interior nas coisas, cuja existência somente ela justifica. Em todos está radicado esse instinto de procurar em tudo uma substância espiritual, repelindo-se tudo o que não se torna vivo e vital por essa substância. Somente nisto é que está a potência destes escritos. A base do consenso que se forma e sempre mais se formará em torno deles é dada pelo regozijo de tantas almas ao se encontrarem nesse mundo interior de onde surge a vida. Uma fantasia ou criação individual, não mantida por uma completa aderência e mais potente realidade interior, não acharia eco nem correspondência nas almas e ficaria incompreendida, sem ser ouvida. O consenso, além de todo raciocínio, é dado pelo instinto que, super-racionalmente, sente que aqui não é apenas um homem falando, mas sim a vida universal respondendo. É neste mundo interior que o escritor se colocou e é para lá que conduz os seus leitores. E estes, inconscientemente, vibram, reconhecendo em si mesmos estas afirmações, em que a própria vida fala. Eles percebem ter encontrado quem soube exprimir a voz que sentem vagamente ressoar também neles. O organismo que opera tais percepções e registros é o espírito, situado no plano da realidade interior, no polo oposto ao corpo, situado na realidade sensória exterior. Sendo o espírito um organismo imponderável, a sua anatomia ainda nos foge. Todavia podemos sumariamente concebê-lo como uma unidade dinâmica radiante, existente em uma dimensão superior à nossa de espaço-tempo. Trata-se de um organismo de forças equilibradas e hierarquicamente coordenadas, segundo leis que podemos analogicamente deduzir do funcionamento dos outros infinitos organismos do universo, inclusive do físico humano. O ignoto pode sempre ser explorado, assumindo como segura a hipótese de trabalho indicada pelo princípio de analogia, porque o universo é unitário, regido por esquemas únicos, reconduzíveis a um tipo central único, que se repete em todas as alturas evolutivas e em todas as formas e combinações possíveis. Já explicamos em A Grande Síntese a evolução das dimensões. Podemos assim dar-nos conta de qual seja o plano de existência em que devemos procurar o espírito. A sua característica principal é o dinamismo. E isto é natural, já que a potência aumenta com a elevação do grau evolutivo. Esta unidade é vibrante; nisto está a sua vida, o seu modo de existir; nisto está o elemento fundamental da sua individualização. O espírito, por sua natureza, é teletransmissor e telereceptor, sendo definível não por uma sua forma física, mas por uma frequência de vibrações e por um tipo e comprimento de onda. No futuro, Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO a personalidade humana não será individualizada por caracteres somáticos, mas psíquicos. A identidade de cada um será expressa por um diagrama, definindo o tipo pela trajetória e frequência da onda individual. Um novo mundo de radiações, que hoje não imaginamos, invadirá a nossa vida quotidiana. A posição do indivíduo será determinada pelo próprio tipo de vibração, resultante dos pensamentos e atos dominantes, e a convivência social será, em grande parte, um problema de sintonia. Esses são os primeiros passos da futura evolução humana. A nossa existência tornar-se-á sempre menos física e sempre mais psíquica, nervosa, espiritual. Trata-se de uma expansão imensa da personalidade humana, que lembra aquela atingida pelo ser quando, da imobilidade da planta, alcançou a mobilidade do animal, realizando assim a possibilidade de infinitas novas experiências, base de novas e amplíssimas ascensões. O ser existe até onde alcançam os seus meios de percepção e, tornando-se sempre mais espírito, amplia este campo, alcançando assim uma imensa expansão da personalidade, que agiganta o seu campo de ação e o seu poder de domínio. Quantas realidades, quantas experiências e, com isto, quantos novos meios de elevação poderá amanhã realizar um ser que, além das atuais escassas possibilidades sensórias, poderá alcançar uma telepercepção e uma telecomunicação radiante! Então, os atuais limites do concebível se ampliarão para dar lugar a formas de existências hoje insuspeitas. Os evoluídos, que já se encaminham por esse lado, sentem o corpo não como um meio de expansão e de experimentação, mas sim como um limite à vida, uma prisão da qual se deve fugir. A evolução representa para todos, em todos níveis, uma expansão vital. Procuremos observar sempre mais a fundo essa biologia transcendental, na qual a própria vida do corpo, gradativamente, evolui para a do espírito, que dela é o resultado e a meta. Podemos fazer isto dispondo dos princípios, dos meios e dos métodos acima expostos. Certo é que essa catarse biológica pode implicar, como efeito colateral e secundário, um turvamento do equilíbrio da normal e medíocre ―mens sana in corpore sano‖5. Isto porque a transformação se dá com dano do corpo (atrofia), em proveito do espírito (hipertrofia). Desequilíbrio, porém, que se reequilibra gradativamente em outros equilíbrios, para atingir o superior equilíbrio de uma nova fase evolutiva. Procuramos dar a documentação experimental de tais fenômenos de biologia transcendental vividos pelo autor. No homem de tipo médio, funcionamento orgânico e psíquico se equilibram e, assim, o diagrama do tipo da onda psíquica individual exprime uma trajetória e frequência medianas e quase constantes. A psique esgota a maior parte das suas funções em atividades relativas à vida física do corpo. A personalidade é estática, sem saltos evolutivos. Os planos superiores da vida estão, por isto, fora do concebível e da experiência. Mas, logo que, por maturação, ao término de longos períodos experimentais, o registro e assimilação dos seus resultados estão completados e há saturação do dinamismo daí resultante, iniciase então, no campo dado pelo organismo de forças constituído pelo espírito, que se atinge somente através do amadurecimento, um deslocamento no equilíbrio daquelas forças, tendendo a deslocar o baricentro evolutivamente para mais alto. Esses conceitos espaciais constituem pura imagem, dado que o fenômeno se verifica em dimensões superiores. Substancialmente, trata-se de deslocamentos cinéticos da substância, onde se efetuam os registros daquelas experiências que, depois, formam as qualidades instintivas adquiridas, ideias inatas posteriormente inseridas na personalidade, como suas características, que a individualizam. Não entramos aqui no problema de sermos, assim, filhos dos nossos pensamentos e ações no passado, nem naquele outro, de que já tratamos, do nosso destino, que é a sua consequência. 5 ―Espírito são num corpo são‖. (N. do T.) 17 É assim que se inicia de fato a hipertrofia psíquica, encabeçando a evolução para aquele determinado tipo. Hipertrofia porque a vida é uma contínua experimentação, que nutre o ser em sentido evolutivo, e tudo que se nutre armazena dinamismo e deve, por isto, desenvolver-se. Mas, pelo dualismo e equilíbrio universais, no polo oposto, isto é, na cauda da evolução, deve ocorrer um correspondente afrouxamento no metabolismo vital, um hipofuncionamento, tendente à atrofia de qualidades e órgãos correspondentes, que o exprimem. Tudo isto ficará abandonado no passado, do qual não sobrevivem senão ruínas no organismo físico e no subconsciente. Veremos mais adiante que a matéria, em seu último elemento, não é mais do que um pequeno feixe de ondas e se reduz, assim, a uma frequência ondulatória ou vibração, o que a torna capaz de formar a vida e os vários tipos biológicos. Então, a todo salto da personalidade para diante, em direção a futuras formas, sempre mais psíquicas, a onda individual conquista uma frequência, um potencial (intensificação cinética e potência dinâmica) e, com isto, um vértice evolutivo sempre mais altos. À maior tensão biológica nesse plano corresponde uma paralela depressão no plano físico. O organismo físico sofre então agonia e morte, gasta-se ardendo, para ressuscitar como organismo psíquico, num processo que lembra a histólise do inseto. O fenômeno foi vivido por muitos pensadores, artistas, místicos e santos, os quais, porém, não se deram ao trabalho propositado de observá-lo introspectivamente, com psicologia analítica e orientação científica moderna. O conceito de morte e ressurreição, de sacrifício da vida física para o triunfo da espiritual, é fundamental nas religiões e, especialmente, no cristianismo. Se a humanidade o sentiu, fica provado que ele tem um significado biológico universal. Ora, se, nesse processo, a vida no plano físico vem a ser sufocada, no plano espiritual ela cresce em triunfo. Isto é totalmente lógico para quem conhece os métodos e a economia da vida, de compensação e equilíbrio: sempre criar e jamais procurar uma renúncia senão para compensá-la com uma conquista. E é justamente nos momentos de graça, em que se alcança nesse processo a fase de hipertensão, de máxima frequência, que o sujeito pode perceber, por intuição, o que ao equilibrado normal está impedido. Mas, pelas mesmas leis mencionadas, a vida deve retrair-se das posições demasiado avançadas, que, se persistissem, ameaçariam definitivamente a estrutura, somente sendo possível a retomada depois do reequilíbrio das posições mais embaixo. Assim, a tensão deve voltar a descer, mas isto para novamente se elevar mais tarde. Nessas oscilações, as novas posições instáveis devem estabilizar-se gradualmente, depois de haver assimilado experimentalmente todos os elementos constitutivos. Entretanto, por compensação, deve se dar uma queda, que é ignorada pelo tipo normal; deve haver uma descida proporcional à subida, para um nível inferior ao normal, uma caída em hipotensão, depressão ou colapso, em que o sujeito é menos inteligente do que o tipo médio. Ele, então, aparecerá como um vencido na luta, e o seu caso será tido como patológico. Mas ele não o é perante a vida, que o retomará num lance ainda mais potente, sempre mais para o alto, enquanto o normal ficará adormecido na sua mediocridade. Dos dois tipos, somente o primeiro é o verdadeiro vencedor. Assim, a evolução avança para uma progressiva expansão da personalidade, por contínuos ensaios e estabilizações em mais altos níveis espirituais. A oscilação entre máximos e mínimos do concebível não é estéril, porque ela nunca se repete idêntica, mas cada vez toca um vértice mais alto e desce a uma depressão menos baixa. Desse modo, todo o sistema caminha para formas de vida mais elevadas. Se, de um lado, essa oscilação significa conquistas sempre mais vertiginosas, é, de outro lado, constituída de quedas pavorosas. Se temos os momentos de expansão paradisíaca, temos igualmente os de desânimo e agonia. Quem vive o fenômeno sente esse res- 18 PROBLEMAS DO FUTURO piro evolutivo da personalidade nas duas inversas fases de expansão e contração de consciência. Primeiro, um dilatar-se, quase um explodir do eu além dos limites comuns da vida, com uma triunfal expansão de alegria; depois, um abismarse, um precipitar-se, retraindo-se nas formas comuns da vida. Esse retroceder involutivo é terrificante. A superconsciência atingida inicialmente parece desfazer-se em cinzas, o que dá ao eu uma angústia sem nome, uma sentida saudade do grande bem perdido, como conhecimento, poder e liberdade, num choro salutar, porque nele se aninha o desejo criador de novos ímpetos e a necessidade de realizá-los a todo custo. Então, purificado por essa dor necessária, transformado, livre das escórias, tornado digno de novas ascensões, o eu ressurge de suas cinzas para se lançar sempre mais para o alto. A elaboração evolutiva consiste exatamente nessas anulações e reconstruções do eu. Há como que uma desintegração e reintegração da personalidade. Definir tudo isto como patológico é extremamente fácil, mas nada explica. Embora muito estranho, um estado do qual resultam potenciais criadores de tamanho porte é desejável, e considerá-lo patológico seria como definir patológicas as dores do parto. Permanece o fato de que a reintegração da personalidade se processa regularmente e sempre para um nível mais elevado. Para bem compreender, seria necessário introduzir, em biologia, o conceito de evolução das dimensões. Parece que, além dessa destrutibilidade de superfície, haja uma mais profunda indestrutibilidade de substância, isto é, que o fenômeno obedeça a uma íntima e inesgotável potência criadora das coisas, que está em Deus. Essa potência não pode absolutamente ser detida, pois é mais forte que toda destruição, da qual ela se serve para transformar o ser, destruindo a cada passo o velho para reconstruir o novo sobre suas cinzas. No fundo desse respiro destrutivo-criador sente-se a imanência de Deus, continuamente presente e criador, e chega-se ao contato sensível com o Seu poder, pois é este que nos plasma diretamente. Só quem o experimentou pode dizer quanto tudo isto seja tremendo. Assim, a alma caminha entre os extremos da alegria e da dor. No fim de cada volume pode-se dizer que, para o autor, verifica-se uma dessas destruições e que cada novo volume exprime uma sua nova ressurreição e elevação para mais altos planos. Atrás da exposição conceptual dos mais diversos temas, esconde-se esse fenômeno de sua evolução espiritual, com a qual seus escritos estão estreitamente ligados e da qual são consequência. De modo que, na apresentação dos mais variados problemas gerais, existe o fenômeno real da sua particular metamorfose, que o leva de um plano biológico para outro, mais alto. Aqui, a vida está realmente trabalhando, aplicando as suas leis a um caso particular, para produzir um tipo biológico conforme os seus fins. Desse modo, nos encontramos em face de um fenômeno que a vontade humana de terceiros não pode deslocar, por isso qualquer dificuldade interposta para a divulgação destes livros ou mesmo a sua completa destruição consumaria um dano para os leitores, mas não para o autor, que trabalha sobretudo em contato com as leis da vida. Quando ele pode dizer a Deus que fez todo o possível para cumprir a sua missão, não pode ser considerado responsável pelo restante. Ninguém pode desfazer o fato de haver sacrificado a sua vida para esse escopo e, com isto, ter cumprido a sua tarefa, o que significa realizar a sua transformação biológica e alcançar, independentemente de todo ser humano, a mais alta finalidade da vida. Não importa se isto, mais do que a transformação do ambiente, constitui a evolução do eu, pois o que realmente vale, mais do que a realização alcançada, é o esforço levado a efeito. O sucesso exterior, pode-se dizer, será um produto secundário. Não haja estranheza com esses desfazimentos de consciência. Ela nunca é um estado fixo, estável, definitivo, mas sim uma flutuação contínua de formações em evolução. Geralmen- Pietro Ubaldi te, chamamos consciência somente o seu lado afirmativo, isto é, a sua metade positiva, esquecendo que cada individualidade é o resultado composto de duas metades inversas e complementares. A consciência completa tem dois polos, é dúplice por lei de dualidade, e cada unidade é formada não só do consciente mas também do inconsciente. Assim, se uma parte do eu funciona como consciência, a outra parte deve existir e funcionar como inconsciência, coisa bem diversa de um estado de nada, pois constitui um funcionamento inverso e complementar, subterrâneo, de maturação e preparação, condição do outro. Na primeira posição, o eu trabalha ativamente, projetando-se para o exterior, vivendo no ambiente e o sentindo segundo as suas reações; na segunda posição, o eu trabalha passivamente, projetando-se para o interior, assimilando as experiências e com elas se elevando. Essa elaboração advém de um estado que é de inconsciência com relação à consciência exteriormente ativa, mas que não é senão uma consciência diversa, que só parece assim porque é vista de seu outro polo e ao contrário. Quanto de nossa vida transcorre e do nosso eu funciona, como corpo e como espírito, sem intervenção de vontade e de consciência! Parte de nosso tempo passa no sono, outra parte de nossa existência está submersa no olvido. Quanto da nossa consciência se aprofunda nas trevas! Ela se apaga toda noite, no fim de cada dia, no entanto sempre ressurge e se reconstitui das suas próprias cinzas com os sepultados elementos do passado. Toda noite, nos anulamos no sono e, cada manhã, nos reencontramos como éramos à tarde. Assim, a cada morte, temos nossa consciência terrena anulada num sono que não é senão uma consciência diversa, seu lado negativo, e a reencontramos em cada renascimento, tal como a tínhamos antes de morrer. Sempre o mesmo ritmo. Assim, a consciência emerge e se aprofunda, dos céus aos abismos e ao contrário, oscilando entre dois mundos opostos para realizar trabalhos complementares. Nada pode anular-se em substância. Tudo continua sempre a viver e a funcionar, a trabalhar e a amadurecer. Não é a memória o único índice de uma atividade cumprida no passado. Quando a possuímos, ela é tão imperfeita, que bem pouco prova com fatos. Como se pode pretender, então, que a falta de uma lembrança exata constitua uma prova contra a nossa existência em vidas precedentes? Como se pode pretender que, além de uma lembrança intuitiva, que permanece mesmo para quem não saiba percebê-la no espírito, também se conserve uma lembrança cerebral e sensória, quando cérebro e órgãos sensórios foram destruídos? É surpreendente observar que enorme trabalho é feito nos períodos de sono e de repouso, na fase negativa, na inconsciência, e como desta ressurgimos mudados. Deve haver, também nisto, um outro ritmo de duas atividades opostas. Enquanto o eu fica imerso no esforço de lutar e experimentar, a Lei o guia de longe, deixando-o com o seu cansaço. Mas, quando percorreu essa primeira fase do fenômeno criador, então é ele que se abandona à Lei, que automaticamente realiza nele, por sua vez, o trabalho de assimilação e maturação. Assim, ritmicamente, agem, em posições inversas e com funções complementares, a livre iniciativa de cada um e o sistema de princípios e forças da Lei. A atividade consciente do primeiro dá livremente um impulso inicial, que deve ser seu, como suas serão as consequências. A Lei recolhe depois esse impulso e automaticamente o desenvolve, fazendo que o indivíduo, ao despertar, reencontre-o purificado das escórias e do supérfluo, destilado no essencial, e possa retomar, com esse novo material, feito seu e elaborado para ele pela Lei, o seu novo caminho, sobre essas novas bases e com esses novos meios. Assim, progredimos em parte pelo nosso impulso, e em parte arrastados pelas suas consequências. Na fase de inconsciência, continua-se e caminha-se do mesmo modo, porque é a Lei que então intervém para maturar os germes e as causas que nós mesmos provocamos. O ofuscamento, pois, faz parte do fenômeno da consciência e do seu desenvol- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO vimento, como a sombra faz parte do fenômeno da luz. Isto porque o ser é composto do ser e não-ser, e não é ser enquanto é não-ser, e ao contrário. O existir é dado justamente por essas oscilações entre as duas fases opostas do existir. O nada não é mais que uma posição reversa, e as duas posições se condicionam uma à outra. Sem o ser, não pode existir o não-ser, assim como, sem o não-ser, não pode existir o ser. Com isto, temos orientado o nosso caso em relação à fenomenologia universal, explicando assim, sobre bases amplas, o fenômeno acima exposto de expansão e contração de consciência e o seu andamento ondulatório, que estamos estudando. Essa oscilação da personalidade se enquadra e se liga com o funcionamento universal e nele encontra o seu significado e a sua justificação. Esse exame nos prova que as quedas de consciência são aparentes e que, na realidade, na profundeza do esfacelamento, depois da destruição do estado de graça, a consciência fica igualmente viva e operante, mas em uma posição diversa. Trata-se de um fenômeno evolutivo progressivo, com uma respiração rítmica, oscilando entre expansão e contração, do alto ao baixo potencial e ao contrário. O que é esforço e atividade de elevação se equilibra, compensando-se com um correspondente repouso ou inércia. Não devemos atemorizar-nos com essas quedas de consciência, pois sabemos que, depois, ela se reconstitui sempre mais no alto. O eu não pode morrer senão em sentido relativo, como dada forma de consciência, e isto somente para ressurgir em uma outra. As noites do eu são os dias de uma outra sua vida subterrânea, que também faz parte da sua vida maior, que compreende essas oscilações do consciente ao inconsciente. Não temamos. Reencontraremos sempre em nós o fruto do nosso passado. Quando um trabalho nos deixa desfalecidos, abandonemo-nos confiantes à Lei. Ela então trabalhará por nós. É a sua vez. Ela é sábia e boa, é a expressão de Deus. IV. UM CASO VIVIDO Depois de haver completado a crítica poliédrica do fenômeno, concluamos com a descrição das sensações que produz no sujeito. Quando se avizinha a fase da retomada de alta potencialidade, ele é advertido como por um longínquo ribombar de trovão no meio de uma calmaria que prenuncia tempestade. Aquele ribombar lhe diz que iniciou-se um trabalho interior, passando da fase latente no inconsciente para sua fase atual no consciente Há nisto qualquer coisa que se assemelha ao despertar da vida na primavera, depois do seu sono de inverno, isto é, um ―quid‖ de apocalíptico, que se sente surgir no relativo, vindo do absoluto. Percebe-se, então, que alguma coisa age profundamente em nós, proveniente das fontes do ser. É uma gênese, uma criação, uma nova manifestação divina que vem à luz. Sente-se, então, que a vida, e nela o nosso pobre ser, é um canal através do qual o pensamento divino abre o caminho para a sua expressão, e que o nosso pobre eu é um instrumento de algo vertiginoso, que o transcende e quer operar através dele. E eis que a mente se torna túrgida de conceitos. É uma floração interior, intuitiva, irresistível, não preparada, não buscada. Acumula-se assim, pouco a pouco, um punhado de pensamentos, em que navegam visões, problemas, soluções e conexões com o todo, em uma orquestração sempre mais vasta e complexa. Assim, os simples motivos iniciais se dilatam, entrelaçando-se em uma completa organicidade. Os germes conceptuais se esboçam e vêm a desabrochar quais gemas e flores. O pensamento se diferencia e se desenvolve como na multiplicação celular do embrião e assim, crescendo, faz pressão de dentro para manifestarse à luz, como feto maduro que quer nascer. Esse é o período de mais intenso e cansativo trabalho. A consciência lança-se ávida sobre todos estes conceitos para registrá-los, mas eles ainda lhe fogem na sua integridade. As visões são ainda fragmentárias e evanescentes. A mente não tem ainda o poder da penetração, 19 dado pela alta frequência, e persegue como em corrida laboriosa esse primeiro vertiginoso turbilhonar do pensamento. Essa ascendência conceptual não assume a mesma forma; algumas vezes é racional e científica, outras vezes é mística. Assim emergem as soluções dos mais variados problemas de qualquer gênero, conforme o que foi proposto ao espírito nos ciclos precedentes. Influem ainda as estações. O outono, em nosso caso, está mais adaptado aos trabalhos racionais, como a primavera o é para a inspiração mística, culminando no período pascal. O verão ardente de sol é negativo para esses estados de alma, que, similarmente, refogem de dia para florir à tarde, até alta noite. Dessa maneira, a pressão interior se faz sempre mais intensa. Ela quer explodir, tomando a forma de uma exposição orgânica completa no seu campo. Cada conceito tem uma face e uma voz. O leitor pode imaginar uma maré subindo de um oceano feito pelas imensas massas de vultos e pelo estrépito das infinitas vozes da vida. Estas começam a falar submissas como o murmúrio da floresta, formado pelo sussurro de infinitos seres que despertam ao sol da primavera. E, verdadeiramente, o espírito tem a sensação de ser tocado por uma radiação que ilumina, aquece e vivifica. Mas, gradualmente, aquele murmúrio se torna voz possante, e a radiação que aquece se faz abrasadora. Tudo, pouco a pouco, se agiganta, se levanta, se põe adiante, imponente e ameaçador. A ânsia para seguir, para tudo agarrar, para estreitá-lo e mantê-lo em seu poder, se torna tensão, em que o espírito parece despedaçar-se. Esse é o momento crítico da ascensão e da transformação de potencialidade. O ser o supera com angústia, sentindo-se preso e envolvido por um turbilhão de forças, como por um furacão que tudo abala. A consciência é perturbadora, porque o centro vital se desloca para um plano mais alto. Ela sente-se presa no turbilhão de uma vida sempre mais intensa. É uma sensação de vertigem e de amedrontamento, como cair em um abismo de fogo. Superado esse ponto crítico, o eu reencontra-se em um plano mais alto, onde não há mais a agitação das mutações, e sim apenas a grande alma da alta potencialidade. Então, o eu toma plena posse do seu novo estado e se reconhece qual era no cume do ciclo precedente, reencontrando a sua potência e lançando-se com ímpeto e alegria no vórtice da criação. A vertigem do estado de transição é superada, e todo problema é encarado e resolvido por visão, com um novo sentido da verdade, que dá a orientação na organicidade universal e em cada problema particular. A consciência encara, sem mais tremer, o abismo do infinito, que é agora o seu elemento natural, com o qual está em plena sintonia. Sente-se senhora dele e, lançando-se em voo nessa nova atmosfera, como um ser aéreo destacado da terra, encontra a calma potente das altas velocidades. Surge então a exposição conceptual, calma e alegre, límpida e vibrante, por escrito, nos profundos silêncios da noite. Estando tudo já completo na elaboração interior, a redação torna-se simples fato mecânico. Tudo se reduz a um registro de visões conceptuais. Para estas, a preparação cultural não serve, nem os livros humanos, porque se lê somente no grande livro da vida, onde está escrito o pensamento de Deus. Trata-se de um trabalho absolutamente livre, ao qual são inaplicáveis as normas dos trabalhos comuns, obrigatórios e com pagamento. A maior obra criadora não se pode fazer senão indo além dos meios e das leis humanas. Enquanto, assim, o organismo espiritual se inflama, o organismo físico diminui o seu metabolismo e estaciona em calma, num regime de vida reduzido, fugindo do alimento. Então o sono, mais do que uma continuação da maturação do pensamento, representa para ele a preparação do pensamento que é registrado no estado de vigília. Uma vez formado tal estado de alma em plena atividade, as distrações exteriores não têm o poder de paralisá-lo; ainda que tormentosas, elas podem, quando muito, retardar o parto espiritual, mas não impedi-lo. Assim nascem os volumes, um depois do outro. O espírito arde, mas não se 20 PROBLEMAS DO FUTURO queima. Sabe que o instante é precioso e foge ao corpo; sabe que, se produzir, obedecendo os fins da vida como à própria mãe, então cumpre a sua missão, que o valoriza, embora o seu organismo físico, no incêndio, naturalmente se gaste. Mas não importa. Esse torna-se para ele sempre mais uma escória a ser abandonada. O corpo não segue completamente essas tensões, e as exigências materiais da vida aumentam o seu quotidiano tormento. Enquanto o principal ator desse drama se sente enlevado em um trabalho conceptual que se torna prece e mística união com Deus, o homem comum, sem nada compreender, enfrenta-o com a sua psicologia, exercendo pressão, conforme as leis do seu plano biológico, no sentido de fazê-lo agir na forma de luta pela vida. Exercício útil somente para as finalidades de uma seleção animal. Pode-se imaginar como essa atividade se torna sem sentido para ele, enquanto é bem necessária para fazer evoluir quem vive no plano normal. No entanto o sujeito deve pensar em se defender de todos, deve escutar os ociosos, não se deixar roubar, vigiar as astúcias dos outros, trabalhar para viver, consumir as suas energias para opor resistência a quem está cheio de forças porque não tem nada para fazer, deve lutar na vida banal de todos. Mas, nem por isto, pode apagar-se aquela atmosfera de incêndio. Enquanto algum novo motivo se movimenta em turbilhão, arrastando a consciência aturdida, diante de improvisos, abismais rasgos do infinito, escancarados e cegantes, também a pequena ofensa do vizinho, que arranha a epiderme, pode tomar, naquele estado de hipersensibilidade, a potência de um cataclismo. O centro da vida, para o sujeito, está deslocado, e o normal acha que se encontra em frente de um fraco inepto, fácil de se vencer Como não se aproveitar desse grato convite para dele tirar vantagem? Para quem está nesses estados especiais, o espírito está no céu, o corpo ainda na Terra, com os pés no lodo. A posição é cheia de riscos, e o contraste pode tornar-se sofrimento agudo. Mas não há outro caminho para quem quer verdadeiramente progredir na Terra. Da descrição acima exposta compreende-se que o fenômeno inspirativo não é tão simples como sói ser considerado. Já o havia enfrentado e descrito, em meu caso vivido, no volume As Noúres. E, longe de crer haver conseguido com isto esgotar a complexa questão, quis agora voltar a ela com uma diversa maturidade, para redescobrir novos aspectos. Era necessário, por isto, ter antes separado o problema da personalidade humana e muitos outros com ele conexos. Como se vê, estamos longe daquele fenômeno que se chama ultrafania, com que se crê poder simplesmente reduzi-lo a uma receptividade passiva do sujeito em transe, recebendo o pensamento de uma entidade transmissora. Em nosso caso, não há nenhum transe ou passividade, mas sim um estado de hiperconsciência e hiperatividade espiritual, exclusivamente ao qual se deve a capacidade do sujeito para elevar-se a mais altos planos de consciência e pôr-se em comunicação com correntes de pensamento situadas em dimensões superiores à normal humana. Não se trata, pois, de um contato esporádico, limitado a poucos conceitos morais, mas de um contato com retorno periódico, para registrar sistematicamente uma visão orgânica do universo, que abraça e orienta todo o saber humano. O fenômeno ultrafânico, que alguns querem encontrar neste caso, não é mais que uma particularidade. Na realidade, trata-se de coisa bem diferente, que escapa das órbitas do campo espírita das comunicações mediúnicas. Trata-se de catarse biológica, fenômeno imenso que toca toda a vida, do seu polo físico ao seu polo espírito, fenômeno do qual médiuns e ultrafanos pouco se ocupam e que, pelos seus resultados, interessa mais à ciência, à religião e à filosofia do que à ultrafania. Para o sujeito, ele não termina na mediunidade, mas no misticismo, no caminho da união com Deus. O que pretende, de fato, a vida alcançar através desse fenômeno? Parece que o espírito, esse novo imponderável organismo, centelha de Deus, na qual Ele se manifesta através da evolução humana, quer continuá-la Pietro Ubaldi da sua fase orgânica à psíquica. Parece que, em certo grau de maturidade biológica, o resultado do funcionamento do organismo físico e da sua experimentação registrada na psique vem a tornar-se um filho adulto, avançado demais para poder ainda exprimir-se nas formas da animalidade. Então, o espírito, sentindo no corpo mais uma prisão do que uma casa, tenta transcendê-lo com suas manifestações supernormais, transbordando das limitadas vias de percepção sensória, até ao ponto de quase libertar-se dele, destacando-se do seu velho suporte corpóreo. Eis o que acontece quando o ser, percorrida toda a fase terrena da animalidade humana, se apresenta no limiar de mais altos planos de existência. As oscilações observadas na personalidade não são mais que periódicas, rítmicas e graduais oscilações de adaptação a novas posições biológicas. Assim se explica o andamento ondulatório e progressivo do transformismo evolutivo que examinamos. Dessa maneira, compreende-se como a vida se retrai dos vértices alcançados, porém descendo a mínimos cada vez menos baixos, para se lançar em busca de vértices sempre mais altos, depois de se ter apoderado, através desses percursos, das posições atravessadas. Tais são as leis da vida, e cada um as encontra a seu tempo, quando atinge esta fase. Nos grandes momentos da vida, nas passagens críticas, é o ritmo da Lei que nos aferra, sem que nada possamos fazer, senão seguila. Assim, o nascimento e a morte, a fome e o amor, o crescimento físico e a ascensão espiritual têm o seu ritmo e seus ciclos fatais, nos quais não se pode mandar. O nosso livre arbítrio é uma pequena liberdade enquadrada em uma lei absoluta porém boa, que nos comanda somente para nos impor o nosso bem, pois somos ignorantes e não sabemos encontrá-lo. Por sermos livres, devemos sempre viver todos no âmbito da lei de Deus. O que acontece ao corpo nessas transformações biológicas é fácil imaginar. Mas, pela lei de equilíbrio e justiça, é preciso pagar a alegria da nova ressurreição no espírito com a dor de uma agonia de morte no corpo. Porém, se o corpo, embaixo, grita desesperado a sua lenta consumação, no alto o espírito canta triunfante a sua maior vida. A transformação deve alcançar o ponto em que se tornará secundário o que hoje, para o espírito humano, é o principal meio de sua expressão, isto é o corpo. Os atuais meios sensórios devem ser superados por uma sensibilização que abrirá novos canais perceptivos e, com ela, a via para novos contatos. Mas as leis da vida são benignas também para o corpo, por isto nunca forçam o fenômeno, amadurecem sem romper, pois que o fim é transformar para criar, e não para matar. As forças da vida sabem operar essas profundas elaborações, que do espírito penetram até no metabolismo celular e transformam a composição química e atômica, atuando harmonicamente em todo o complexo orgânico, do poloespírito ao polo-matéria, estreitamente conexos e comunicantes. Se o espírito, na sua mais profunda substância, é redutível a uma estrutura cinética, como também o são o organismo físico e a matéria que o compõe, encontramos naquela fundamental estrutura, que é o denominador comum ao qual se pode reduzir o ser de um polo a outro, a possibilidade do mencionado transformismo evolutivo. Assim se concebe como, através dessas oscilações progressivas, possa formar-se o organismo espiritual, até ao ponto de, no fim, poder reger-se com vida autônoma, independente de uma sua expressão física. Entretanto o corpo é veículo necessário aos fins dessa elaboração, qual instrumento de experimentação no denso ambiente terrestre. Todavia a sua energia vital é absorvida em favor do espírito. Em outros termos, a íntima atividade cinética constitutiva se desloca do corpo para o espírito, abrandando-se no primeiro polo e tornandose mais ardente no segundo. É necessário que a reconstituição vital venha a ser simultânea e paralela, de modo que, no conjunto, não haja nenhuma destruição de vida, mas somente um deslocamento de centro para o polo-espírito, ao qual pertence o porvir, uma vez que essa é a direção da evolução. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Esta íntima análise do fenômeno explica o verdadeiro significado da experiência não só do místico que, na renúncia ao mundo, sobe para Deus, mas também do gênio que, na alta tensão do espírito, revela os mistérios do ser. Neste sentido, a virtude é verdadeiramente a morte do eu inferior e, por isto, repugna; o erro está em concebê-la somente neste seu aspecto negativo, enquanto o seu valor e sua alegria estão no seu aspecto positivo e criador de expansão vital. É justo que o eu se revolte contra uma virtude somente negativa, que destrói embaixo, sem construir no alto; tudo o que destrói sem criar é contra a lei de Deus. Jamais é lícito matar, nem mesmo o eu inferior, senão como condição para a construção do eu superior; a morte não é admitida pela Lei senão como condição de um paralelo renascimento. Nenhuma dor é admitida senão para conquistar uma alegria, nenhum limite senão para alcançar uma expansão. A virtude apenas negativa, que destrói sem criar, transformada em perseguição e ódio à vida, é um erro biológico que se deve pagar. Sadia e salutar é somente a virtude que, enquanto sufoca uma parte do ser, desenvolve-lhe uma outra, melhor e mais alta. A vida é utilitária e econômica; tudo deve produzir um valor no bem, que é uma alegria, e não uma demolição no mal e na dor. Ai de quem se mata com a renúncia sem saber ressuscitar! A virtude sadia e positiva é construtiva e se inflama no espírito, deixando cair em esquecimento os instintos inferiores, ao invés de se encarniçar contra eles e provocar, assim, uma reação cujo resultado é reforçá-los. Primeiro construir e, depois, deixar cair o resto, pois que os construtores nunca são destruidores. Tudo o que toma o aspecto de perseguição, ainda que sob a veste de ódio ao mal, é mal. A vida deve ser incitada a elevar-se, e nunca agredida para ser suprimida. Caso contrário, ela se revolta, se adapta à força por meio da mentira, mutila-se, mas não cede, porque ela não pode abandonar uma sua forma enquanto não possuir outra melhor. É um erro muito difundido esse de ver sempre o lado-morte no polo inferior, e nunca o lado-vida no superior. Daí os escassos resultados espirituais de tanta prática de virtudes e renúncias. Ao contrário, o homem que se reconstrói no espírito vê tudo positivo, não fala de renúncia, mas sempre de conquista. Assim, por exemplo, os três votos franciscanos: pobreza, castidade e obediência, perdem o sentido negativo para adquirir o positivo. Não são mais: não-riqueza, não-amor e não-poder, mas riqueza em Deus, amor em Deus e poder em Deus. Tudo depende do fato de encararmos as coisas mais do ponto de vista humano que do super-humano, sentindo na virtude a perda dos bens e alegrias terrenas, às quais a nossa mente continua sempre a volver, em vez de olhar mais no alto, para sentir a posse dos bens e alegrias super-humanas, no espírito. A nossa alma fica sempre na Terra, e nós devemos sair dela. É preciso cuidar de se firmar no mais alto, antes de se mutilar embaixo. Esse comportamento nos tira a vida sem no-la devolver, quando ela deve expandir-se, e não se contrair. Não devemos declarar-nos pobres, olhando sempre para a riqueza do mundo, mas sim ricos, olhando para a riqueza de Deus. É preciso ir ao encontro da vida, e não contra ela; viver em sentido positivo, e não retirar-se em sentido negativo. A verdadeira virtude, antes de ser renuncia, é conquista; se dela fazemos uma renúncia sem conquista, uma privação que empobrece em vez de uma aquisição que enriquece, então a tornamos uma força maléfica antivital. De tudo isso se compreendera o caráter ativo e positivo de quem evolui. A ação negativa da perseguição e destruição do eu inferior lhe interessa muito menos do que a ação positiva da criação do eu superior. Quem evolui, se expande. A renúncia, mais do que virtude como luz, é a sombra da virtude. É certo que o negativo é condição do positivo, que a conquista começa onde acaba a renúncia e a alegria inicia onde termina a dor. Mas, nem por isto, deve-se fazer do meio o fim. 21 Concluamos o exame do nosso caso vivido, observando as sensações do sujeito no período da descida. Quando o estado de graça se prolongou o bastante para permitir um registro orgânico, como a produção de um volume ou parte dele, conforme o trabalho a cumprir e o grau de resistência do indivíduo, então a natureza, econômica e prudente, retrocede para os planos evolutivos inferiores, o potencial desce, a frequência diminui e a vida se reequilibra mais embaixo. Extingue-se então a centelha do pensamento; tudo enlanguesce e se precipita, numa agonia lenta, em um abatimento de morte. A vida se retrai, caminhando para trás. Reaviva-se a obtusa razão, míope e analítica. A base da descida involutiva é dolorosa para o espírito, porque é um regresso ao limite, um novo encarceramento no contingente de que antes tinha se evadido, que volta a ser senhor. É uma descida de todo o ser na dura realidade da matéria. Fibra por fibra, vibrações mais grosseiras, mais desarmônicas e violentas, o penetram, ferem-no, sufocam-no. Se tão alegre foi a sensação da subida, muito dolorosa é aquela de descer. Tais são, no ser, as sensações, os resultados experimentais do movimento vertical ao longo das dimensões dos vários planos evolutivos, seja em direção evolutiva, subindo, seja em direção involutiva, descendo. Domina sempre um sentido de imensa tempestade em que turbilhonam, levantadas desde as profundezas, as forças da vida. Este é o Getsêmani de quem aqui escreve. Na tempestade, subir. Cada volume é um degrau, é uma das séries salientes das visões que parecem querer dar a escalada ao céu, mundo do qual é, depois, dolorosamente necessário precipitar-se na Terra. No fim de cada sondagem no mistério, a personalidade cai e se desfaz, a fim de reconstruir-se para a seguinte, e assim por diante. Andando como as ondas do mar, como quer a Lei; fatalmente, como quer a maturidade, quem sabe há quanto tempo preparada no tempo pelo próprio destino. A personalidade cai e se desfaz. No entanto é preciso saber ficar senhor do fenômeno e não ser arrastado por ele; é necessário não perder-se na queda e permanecer impassível externamente, para que os outros não vejam; é indispensável saber continuar a vida normal de trabalho e de relações sociais com todos, pois que bem se sabe que eles não podem ter piedade para com o que não podem compreender. Tudo isto implica uma força de espírito mais que normal, contudo se está adestrado para bem mais. Ao despertar na Terra, imediatamente é reencontrada a sua infernal e desapiedada realidade e, sem um único conforto em tanto esforço, apresenta-se a dura face do contingente, a preocupação das necessidades materiais, o desprezo de quem reina em seu plano, onde é senhor. É preciso, então, ouvir o apelido de louco e sentir repercutir no coração, em cada pensamento e ato do homem, o grito: ―Não é verdade‖, porque somente a sua suja realidade na matéria, como ele quer, passa por verdadeira. Então, com o olhar invocador, ainda ofuscado pelas visões do espírito, é preciso olhar para as pequenas coisas terrenas, que quereriam para elas toda a alma. Sente-se redobrado o peso da luta pela vida, a sua estupidez para quem, superados os seus fins de seleção, não sente mais o seu significado. Sofre-se, então, cego e mudo, sem a grande compensação do espírito, que antes fugia da Terra, vitorioso na sua evasão. Ele, agora, agoniza sozinho, num mundo que lhe é estranho. As portas do céu estão fechadas. As pontes para o retorno lá em cima parecem cortadas para sempre, sem esperança. O fenômeno está cansado; o ciclo está ligado à sua descida, que agora é sua lei; os impulsos ascensionais estão esgotados. Não há mais força para subir. A hora da graça passou, e o céu ficou lá em cima, no alto, longe, apagado, inatingível. Tudo parece acabado para sempre. No entanto deixou-se lá em cima, no céu, um farrapo sanguinolento de si mesmo e sentiu-se a voz de outros mundos, dos quais, por um pouco, se gozou a cidadania. Isto é uma ponte, um liame, uma chamada. Despontará a ascensão. Tudo será árduo, mas o ser está desesperadamente ligado à batalha em que se tempera e se revela, 22 PROBLEMAS DO FUTURO onde está a vida. Mastiga-se então, com raiva, a glória que o mundo queria dar como compensação. O destino sopra tremendo sobre os cumes, e, entre as tempestades, sente-se a morte. Mas que importa a dor, quando ela é criação e nos leva ao céu? Que importa sofrer? É preciso criar, e a vida vale só enquanto se cria. Urge lançar a semente. A vida dá a cada um o que deve cumprir, e ai de quem trai uma missão! Semear na tempestade, para aqueles que virão! Se a dor bate às nossas portas, é para que o espírito expeça suas centelhas. Este é o drama. Quem chegou lá em cima, no céu, deve dar tudo. Para ele, não há piedade, porque a piedade o faria fraco e vil; não há ajuda, porque esta o tornaria indolente e inepto. Que ele siga para a frente, taciturno, solitário, desesperado. É necessário que ele sofra para que a sua alma cante. O trabalho deve ser o seu único refúgio; a bondade, a sua única vingança; a criação, a sua libertação. V. A ECONOMIA SUPERNORMAL As diversas verdades do autor, sucessivamente apercebidas nas suas oscilações de consciência, não são um produto subjetivo, pois têm uma sua existência própria objetiva, independente dele, que mais não faz senão vê-las segundo suas mutáveis capacidades. Tais realidades pertencem simplesmente a planos evolutivos diversos, e cada um vê aquela que pode, conforme as condições de sua receptividade. Qual é, então, a verdade verdadeira? Cada uma é verdadeira apenas relativamente a cada um. A verdade absoluta é outra coisa e, mais que a soma, deve ser a fusão orgânica de todas as possíveis verdades relativas aos infinitos pontos de vista, dados pelas infinitas posições do ser. Naturalmente, o absoluto está além do concebível humano, onde não podem permanecer senão os fragmentos e aproximações progressivas dados pelo grau relativo da evolução. Que os homens pertençam a verdades diversas, segundo a natureza de cada um, é um fato demonstrado todos os dias pelos seus conflitos, que sucedem todas as vezes que um homem, com a sua verdade, se põe em confronto com o homem de uma outra verdade. E, se há formação de grupos humanos, deve-se isto à identidade e finalidade de verdades, o que significa natureza e plano evolutivo iguais ou afins. Cada um se reagrupa sempre com os seus semelhantes e, dessa maneira, revela o seu tipo biológico. O indivíduo comum não tem de fato as possibilidades dadas pela personalidade oscilante e se mantém, com escassas variantes, mais ou menos na mesma verdade, sem mudar de tipo biológico. Uma boa parte dos homens atuais representa uma verdade que não é aquela humana involuída, inferior e de completa animalidade, nem a do evoluído do porvir. Muitos se encontram numa posição mediana, em que os dois extremos aparecem como que à margem, um embaixo e o outro no alto. Assim, o homem se debate em uma fase de transição, na qual, lentamente, vai sendo realizada por evolução a passagem de um tipo biológico e relativa verdade para outro tipo biológico e verdades superiores, tendendo a modelos mais elevados. A característica da hora atual é encontrar-se a cavaleiro de duas civilizações, uma que morre e outra que nasce. Disto deriva um contraste entre elementos em esfacelamento e outros em formação, efeito da presença de uma verdade que está para submergir no subconsciente e da visão de uma outra verdade, que alvorece no superconsciente e representa a formação da nova consciência do porvir. Hora de grande fervor na obra criadora da vida. As duas posições estão se defrontando e se desafiam. A velha verdade luta para não morrer, forte na posição já conquistada, mas corroída pelos séculos, correspondendo cada vez menos às novas e sempre mais exigentes necessidades do espírito, portanto biologicamente condenada a desaparecer. A jovem verdade luta para conquistar a vida na consciência; é jovem e nua, mas forte e com todos os recursos de sua juventude, fresca e plena de ímpetos, destinada pela lei da vida a vencer, pelo seu direito de existir. Pietro Ubaldi Temos assim, como sempre, mas nunca viva como hoje, a luta entre o novo e o velho: uma quantidade de formas petrificadas, somente explicáveis historicamente, e um contínuo trabalho de desgaste operado, como sempre, pelas ideias novas, constituindo um estado de formação de novas concepções da vida. Observemos o choque entre as duas forças antagônicas em seu campo de batalha, que é a consciência humana em evolução; observemos o dinamismo da sua transformação de uma na outra, esse estranho paralelismo de impulsos ativos e recalcitrantes, que, mesmo lutando, se abraçam, porque uma é filha e a outra é mãe. Quem tem ouvidos ouve o potente martelar da vida, que pulsa para explodir das incrustações do passado que a envolvem, sente o frêmito da gênese na superação. Ainda que uma dada civilização caia em ruínas, a ―civilização‖ nunca morre, porque, como a vida, ela renasce sempre alhures e maior. E, se hoje triunfa a destruição em todo campo material e espiritual, é porque a vida está lançando os fundamentos de mais altas construções. Aos olhos superficiais, tudo parece caos, porque produtos de desfazimento e germes vitais estão materialmente misturados. Mas cada um desses tem a sua lei e a segue, sem que possa haver confusão. Se, na superfície, a maioria, tremendo, enxerga ruína, quem sente profundamente vê ressurreição e regozija-se, pois, em seu coração. A sua psicologia é ―a priori‖, enquanto a comum é ―a posteriori‖ e treme depois, e não antes do desastre. Antes da última guerra poucos temiam, e temem hoje por psicose de consequência. Tremer depois é trabalho inútil. Quem, ao contrário, sente e sabe que esta é a hora decisiva para os futuros milênios, em vez de ensandecer para esquecer ou perder-se no pessimismo, colabora com as forças da vida, que querem a salvação de todos. Ele bem sabe que não se pode parar a vida e que ela sempre venceu todas as guerras. O homem comum, aturdido pela voz de mil verdades diversas, em que tantos exprimem a si mesmos, se confunde. Ele é sensório e, para ele, a verdade é o que faz mais barulho, atingindo principalmente os seus sentidos. O verdadeiro, então, lhe parece inatingível, porque ele percebe somente um redemoinho caótico de contradições e, assim, vive de imitações, sem saber pensar por si mesmo. Mas a substância do vórtice é dada por leis sábias, pelas quais cada um bem sabe alcançar organicamente a sua meta. Que visão titânica representa, ao contrário, o destino humano, assim marcado na evolução das leis da vida! As verdades, que parecem utopia para as consciências ainda não amadurecidas para isso, existem e, amanhã, serão de todos. Para fazer compreender o que hoje parece utopia, isto é, as formas de vida mais elevadas, começamos por descrever sua economia, que aí regula a distribuição dos meios e forças e preside ao abastecimento para a vida material sentida por todos. Confrontaremos essa nova economia, completamente diferente, com a nossa atual. Observando as duas economias, veremos como possa advir a passagem de uma para a outra. Presumimos o conhecimento do capítulo sobre a Divina Providência, desenvolvido no volume precedente, A Nova Civilização do Terceiro Milênio, argumento que aqui retomaremos para levá-lo mais adiante. Subindo evolutivamente, aparece à consciência uma verdade mais alta, na qual a economia se revela completamente diversa da normal. Na Terra, os bens, segundo a verdade inferior, aparecem limitados, de modo a tornar necessária e justificar uma luta contínua, sem piedade, para procurá-los. Subindo, vêse, ao contrário, que, na realidade, a limitação não existe para o homem, senão no ambiente da sua forma mental e modo de agir. No universo, os bens são infinitos e sempre mais livremente acessíveis à medida que o homem progride. Na sabedoria da Lei, que tudo rege, é necessário que, antes, o homem evolua e dê prova, com o conhecimento e sabedoria consequente, de ser capaz de fazer bom uso das coisas e do poder, sem o que ele não é admitido à sua livre disponibilidade, o que poderia não ser-lhe útil, mas sim prejudicá-lo. A um selvagem, uma Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO lei previdente não pode conceder senão os meios mínimos proporcionados à sua inconsciência, se não se quiser que ele, com a sua psicologia, destrua tudo, inclusive a si mesmo. E o perigo da nossa atual fase de transição é justamente este, dado por uma crescente disponibilidade dos meios proporcionados pela ciência, porém colocados nas mãos de um homem que ainda não é sensato o bastante para saber usá-los bem. Quanto mais o homem é involuído, tanto mais todo poder deve permanecer sepultado pela sua ignorância; quanto mais for feroz, tanto mais será pobre de meios. Tudo, saúde ou doença, assim como a miséria, antes que efeito externo, é causa situada dentro de nós. Dessa forma, quanto mais se evolui, tanto menos se faz sentir o perigo do mau uso e maiores podem ser os poderes concedidos. Então a riqueza se faz sempre menos egoísta e exclusivista, mais universal e gratuita. O limite para tão cobiçadas posses, pelas quais o mundo tanto se atormenta hoje, é dado exatamente por nós. Somos nós que, com o nosso egoísmo, fazemos a nossa pobreza. Quem compreendeu isto, compreendeu também a verdade superior, que ao involuído parece um absurdo, isto é, que a riqueza se conquista não fazendo ricos a si mesmos e pobres aos outros, mas fazendo ricos aos outros e pobres a si mesmos. Comportando-nos segundo o primeiro caso, adquirimos para nós, em vez de riqueza, pobreza. Essa nova e estranha economia é bem outra que a comum e resolve de fato o problema econômico. Mas ela pertence a um mundo que o homem atual não pode ainda compreender. Trata-se da mesma lei pela qual quem faz o mal aos outros o faz a si mesmo, e quem faz o bem aos outros o faz a si mesmo. A grande descoberta que a ciência ainda não imagina poder fazer é esta: da presença de uma lei universal que tudo rege. Lei boa e justa. É completamente estúpido e contrário à finalidade de alcançar a nova felicidade o sistema de querer forçar as portas. Essa lei é a alma de todas as coisas, é o divino pensamento que as rege todas em um admirável funcionamento orgânico. É necessária uma quantidade enorme de ignorância para crer que aquele grãozinho de areia, o homem, possa tomar o comando dessa lei. Eis a grande verdade que se descobre, evoluindo-se. Para alcançá-la, não há outro caminho senão a ascensão; o resto não vem ao caso. É necessária uma inteligência muito mais ampla que a racional; uma inteligência equilibrada no ponto de partida, feita não somente de conhecimento, mas de sabedoria, não só de saber, mas da arte de saber usá-la bem; uma inteligência regida pelo senso moral das coisas. O homem atual, que parte do apriorismo dogmático absoluto do eu, que se faz centro do universo, inverteu sua posição já no início e, assim, não pode alcançar senão resultados invertidos. Desse modo, ele não pode compreender o ponto fundamental e elementar, isto é, que para entrar não se deve tentar arrombar as portas, porque então elas se nos fecham sempre mais solidamente, mas é preciso nos tornarmos aptos e conformados, para que possamos entrar. Em outros termos, sendo impossível transformar a Lei, nada mais resta senão nos transformarmos. Então, as portas se abrem e nos convidam a entrar, como é de nosso direito, espontaneamente, e, somente assim, o justo desejo, que não podia cumprir-se por erro de método, pode ser plenamente satisfeito. No entanto, perante um problema de tão simples compreensão e resultado, devemos presenciar o homem moderno partindo a cabeça contra uma muralha, fazendo um inferno da Terra, que poderia ser um paraíso. De tudo isto se deduz a importância do trabalho de dissipar a sua ignorância e de induzi-lo a civilizar-se. Diante do quadro terrificante de tantos seres reduzidos ao desespero pela avidez da disputa de meios e recursos, dos quais a Terra está cheia para todos, que maravilha representa a visão dessa lei, que tudo sabe, que é justa e boa e, como tal, ainda quando tentamos fazer o mal, rebelando-nos, nos protege e nos salva! Para conseguirmos isso, bastaria harmonizar- 23 nos com ela, pois sua vontade nos quer salvos, livres e felizes. Como nos ama Deus, que tudo criou, através dela! Como se atingiria a perfeição, se o homem, com suas inauditas loucuras, retrocedendo ao mal e à dor, embora não consiga substancialmente destruir nada, não fosse constrangido por forças invisíveis a avançar para o bem e a alegria? Que ímpeto sente quem compreendeu a sabedoria e a bondade dessa lei, e que paixão de se harmonizar com os seus ditames. Isto também se pode exprimir na frase: ―Fazer a vontade de Deus!‖. Quantos cuidados maternos nos vêm prodigalizados a cada momento, sem que os vejamos nem os compreendamos! Quantas catástrofes nos são poupadas a cada passo; com que ritmo de compensação, com que harmonia de equilíbrios são musicalmente coordenados para mais altos e alegres fins, todas as dissonâncias e os conflitos da vida! Quantos auxílios não notados, que economia para nós, poupando-nos as forças para trabalho mais útil! Se há um esbanjamento para a reprodução, que chama os seres para o banquete nupcial, ou para a luta, que quer selecionar o melhor, digno do seu mundo animal, é porque isto representa as vias mestras nas quais a vida caminha, onde se atira com uma exuberância de meios, justificada pela importância do fim. Ela bem sabe ser rica, mas nem por isto é loucamente pródiga, a não ser quando o fim a ser atingido o merece e requer. Mas quanta economia, ao contrário, por exemplo, no fato que deixa ao consciente somente a fadiga das novas construções, enquanto confia aos automatismos do subconsciente a função de conservar para cada necessidade, sem a fadiga de conscientes elaborações, em forma de instinto, o resultado do trabalho cumprido e já assimilado! No entanto uma exemplificação nos levaria demasiado longe. Como se vê, a visão de verdades mais elevadas, próprias de mais altos planos de existência, não é coisa que se encontre longe de nossa realidade quotidiana, que, pelo contrário, delas recolhe apoio e salvação. O homem de hoje não compreendeu que ele foi criado para ser senhor, e não servo, e que basta saber ser senhor para o vir a ser. Mas ele, com a sua ignorância, coloca-se, ao contrário, na posição de servo, que pertence ao inconsciente. Não há outro remédio senão fazê-lo compreender como funciona a vida. É preciso mostrar-lhe que o mesmo poder criador que Deus usou na criação do universo e que está no pensamento, está também no homem, que foi feito à Sua imagem e semelhança. Como Deus é a causa perene de tudo, assim o homem é causa do seu pequeno mundo, que ele faz para si, em si e ao redor de si, como inferno ou paraíso, à sua vontade. A habitual inversão de todas as coisas leva, também aqui, a ver a causa onde está o efeito, e ao contrário. É inútil encarniçar-se contra os efeitos quando não se sabe manejar e remover as causas. Isto vemos em nossa medicina, que não consegue curar senão aparente e momentaneamente, pelo que as doenças, quanto mais são tratadas, tanto mais se renovam. A razão está em que se curam os efeitos exteriores do mal e se deixam intactas as causas, que são profundas, dependentes da psicologia, direção e regime de toda uma vida, sobre a qual o médico, encontrando tudo já consumado, ainda que penetrasse naquele campo, bem pouco poderia fazer, sobretudo como resultado estável. A saúde não se improvisa com intervenções imediatas, com guerra antimicrobiana, pois exige uma preparação a longo prazo. O que pode curar a fundo uma medicina materialista que ignora o espírito, quando as causas estão todas exatamente no espírito, isto é, num campo que lhe escapa? Do espírito e da sua estrutura falamos alhures. A causa é ele, que constrói o seu corpo como sua expressão, como Deus construiu o universo como sua expressão. Tudo isto que advém ao corpo é, pois, o efeito do que antes já esteve preparado no espírito, e o saneamento duradouro não se pode obter senão saneando primeiramente aquele. E sanear o espírito significa harmonizá-lo com a ordem da Lei, perante a qual o homem, ao contrário, com o seu 24 PROBLEMAS DO FUTURO egocentrismo rebelde, representa impulso de desordem, origem de todos os males. E estes ele semeia em seu caminho a mãos cheias. Que se pode pretender quando ele, ávido de prazeres, em vez de aderir às sábias leis da vida, procura dobrá-las ao seu desejo? Assim como quem monopoliza os bens semeia miséria para si mesmo e quem, para seu benefício, faz o mal aos outros o faz a si mesmo, também quem vive em desordem de espírito deve arcar com as doenças físicas dela decorrentes, que atormentam igualmente o espírito. A saúde do corpo, assim como tudo, depende de saber harmonizarmo-nos com a sabedoria da Lei, que nos rege e nos guia. A saúde do corpo é dada pela harmonia. Esta é a vontade da Lei. Então, quando nos revoltamos, negamos a nós esta harmonia, isto é, a saúde. Eis uma outra porta fechada por nós contra a alegria de viver, alegria que a natureza bem quereria nos dar como pacto da nossa compreensão e obediência. Rebelião, aquela de Lúcifer, o grande destruidor, é a nossa culpa e a causa de nossas dores. O homem é feito para mandar, e tudo que lhe é inferior é feito para obedecer-lhe. Ao contrário, a nossa grande infelicidade consiste justamente nisto, que as coisas muito raramente correm conforme os nossos desejos. Mas por que acontece assim? É porque desejamos o mal, contra a Lei, que representa o nosso bem. É justo e útil, portanto, que não sejamos atendidos. Para nos salvarmos, constrangendo-nos a compreender nosso erro e como devemos proceder, a Lei nos faz sofrer. E como fazer de outro modo, para um ser que deve permanecer livre? A dor é o único raciocínio que todos compreendem. Então, na perfeição do sistema, é justo e lógico que tudo corra às avessas no mundo de hoje. Qual é hoje a nossa vontade? Que desejos este impulso construtor proveniente do espírito transmite e faz chegar àquele operário, que é o subconsciente? Este é o animal que vive no homem e deve ser usado como uma besta domesticada pela fadiga, qual servo, obediente executor das ordens do espírito iluminado e consciente. Mas é o espírito que, no homem de hoje, dirige com conhecimento e sabedoria, ou é aquele animal que comanda e serviliza o espírito? Também aqui, tudo está invertido, como em qualquer parte. Que capacidade diretriz pode ter a parte animal? Que pode desejar senão coisas materiais, portanto ilusórias, transitórias e mortais? Que pode um tal chefe transmitir ao operário, como motivos construtivos? Somente motivos de ilusão, decadência e morte. Eis as doenças físicas e também as dores morais. Estando isto contra a Lei e, portanto, sendo danoso para nós, ela sabiamente se apressa em destruir e liquidar tudo, negando toda nutrição vital. Para o nosso próprio bem, ela não pode proceder de outro modo. À força de gerarmos o que é mortal, deveremos, sem desfalecimento, suportar as consequências da destruição, até que o espírito imortal compreenda um dia ter errado o caminho e saiba encontrar de novo a melhor e única via do bem. Quando, ao contrário, é o espírito que guia, então os seus impulsos criadores se dirigem todos para as coisas imortais, reais, eternas. Assim, quando àquele operário, que é o subconsciente, forem transmitidos motivos de trabalho desse gênero, a sua construção se dará em correspondência, com um efeito similar à causa. Então a Lei não nos oporá mais obstáculo. Pelo contrário, ela mesma nos tomará sobre suas asas para nos levar ao alto, como é seu desejo. Dessa forma, a morte não será mais o fim do ser, o eu, isto é, de tudo, mas somente o fim de um servo que nos deixa, cansado do serviço cumprido. Assim, não somente desaparecerão doenças, dores, misérias e escravidão, mas também nos encontraremos repletos da alegria de viver, que não consiste na posse, como a louca psicologia hodierna acha, mas sim no equilíbrio de todo o ser em todo aspecto e atividade, no mais pleno acordo com o desejo indestrutível da Lei. Então, tudo nos virá ao encontro festivamente, riqueza, saúde, amor, afetos, conhecimento, êxito. E pensar que Pietro Ubaldi os métodos modernos creem resolver a vida com uma justiça econômica poluída na origem, pelo método da extorsão violenta, com uma total inversão do Evangelho! Mas o que não está invertido hoje, na época de Satanás? Essa é a realidade sólida da vida, a filosofia que exaure e convence, sem abstrusas elucubrações acerca de particularidades e sem intelectualismos inúteis, filosofia feita para viver. É verdadeiramente piedoso o espetáculo desta pobre humanidade, vítima da sua ignorância das mais elementares leis da vida. Não se trata de compreender o funcionamento de um mecanismo. É natural que um primitivo procure abrir as portas, arrombandoas. Porém é um sistema desastroso, sobretudo para ele. Quem viu verdades mais elevadas, isto é, o mecanismo segundo o qual aquelas portas funcionam, com um ligeiro e hábil movimento de dedos, gira a chave, abre e entra. No entanto o homem, tão justamente ávido de domar e dirigir para tornar-se senhor de tudo, em vez de começar a saber comandar a si mesmo, como a Lei impõe, procura comandar os outros, incitando a resistência e a revolta. Ele segue assim o único caminho para não se tornar senhor de nada. Desse modo, com pobre domínio e contrariados, mal seguros e sempre prontos a cair, tiveram de se contentar tristemente todos os imperadores do mundo, porque a quem ignora e viola a Lei nada pode ser concedido, senão o pior. Os impérios duradouros não podem ser senão os do espírito. Diz-se que o espaço esteja fechado, conforme uma transmissão curvilínea da luz, como energia que retorna ciclicamente sobre si mesma. Essa hipótese física nos pode dar a imagem do sistema de retorno das forças lançadas pelo eu, centro genético, à fonte, de modo que cada eu, à semelhança de Deus, constitui centro de um seu universo, em que todo efeito retorna à sua causa. Trata-se do mesmo princípio, repetido do plano físico ao espiritual, por universal lei de analogia. Também em Deus e Seu universo, toda criatura retorna ao Criador, tudo volta para Ele. Assim nós, qual centro irradiante, somos os construtores de nós mesmos e de nosso ambiente, à nossa imagem e semelhança, e fazemos a nossa atmosfera como queremos. Esta, portanto, está ligada a nós como nosso inevitável destino. O pensamento tem verdadeira potência criadora. Todo o universo é baseado sobre esse princípio. Mas potência criadora somente enquanto e até aonde se vai conforme a Lei, e não contra ela. De outro modo, tem-se uma potência destrutiva. O princípio de destruição não representa senão o caminho percorrido por Satanás, inverso do percorrido por Deus. Que o pensamento no bem ou no mal plasma as coisas – o bem, para o belo e a vida, e o mal, para o feio e a morte – vemos em nosso organismo, no qual é evidente a construção ideoplástica, por exemplo nas impressões maternas, que se podem imprimir no feto. Que seja o espírito que modela o seu corpo, o vemos no fato de que uma ideia, fortemente sentida e constantemente vivida, se imprime em nosso rosto, que assim acaba por revelá-la debaixo de qualquer máscara. Deste modo, a ideia dominante se torna um caráter somático. Atrás de um impulso enérgico e tenaz do espírito, também os ossos e os tecidos se plasmam. Eis, em breves traços, o que aparece quando se alcança a visão de verdades mais elevadas. Desponta, então, uma economia universal supernormal, que sabiamente regula a vida em todo campo. De tudo isso, vê-se quanto está fora do caminho o mundo moderno na procura da felicidade, e quanto esteja longe de poder alcançá-la. Assim se compreendem as suas infinitas desgraças, que, como dissemos, constituem fenômeno lógico e justo num organismo universal sempre perfeito, onde quer que seja. Para entrar no reino da felicidade existe apenas uma fórmula, que é dada pelo Evangelho: ―Ama o próximo como a ti mesmo‖. Ela representa a retificação divina da inversão satânica. Mas que pode compreender de tudo isso nosso mundo de hoje, se nada sabe do funcionamento orgânico do universo e não só ignora a estrutura da Lei mas também a sua própria Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO existência? Que podemos pretender quando o homem moderno, com o seu materialismo, nega francamente o espírito e, em lugar de partir deste, que é o princípio genético, causa de tudo, parte inversamente do mundo físico e do corpo, que são simples efeitos? Que conclusão pode tirar uma ciência assim invertida, senão a universal destruição? Entretanto tudo isso já foi dito há tempo pela filosofia hindu, que é a mais antiga e profunda que o homem conhece. A moral está em que nosso século é um período de transição, que tem a função de liquidar, numa destruição geral, a atual pseudocivilização, construída às avessas, isto é, baseada sobre a matéria em vez de sê-lo sobre o espírito, a fim de desembaraçar o campo para uma civilização nova, corrigida, construída sobre o espírito, em vez de o ser sobre a matéria. Perante essa nova grande civilização do terceiro milênio, a atual tem apenas a função de preparar a parte mecânica que possa depois prover automaticamente a execução dos serviços materiais, de modo que o homem se dedique a algo mais importante. Resolvidos os dois maiores problemas que hoje nos atormentam, quais são a paz universal sob um governo único e a justiça econômica e social, problemas que a história nos propõe para uma iminente solução, o novo mundo poderá começar a utilizar os resultados da ciência atual, porém não mais para destruição da guerra, e sim para o próprio bemestar. Então, por estes servido, ele poderá superar a luta pelas necessidades materiais, primeiro problema de hoje, para enfrentar lutas e problemas superiores, próprios de um mais elevado nível biológico, hoje não compreendido, onde domine não a matéria, mas a grande potência do espírito. O mundo de hoje escolheu o caminho na direção descendente, para o relativo e o particular, em vez de escolhê-lo para a unidade. Por essa razão, o saber é divergente, a ciência é analítica, a concepção da vida é materialista e não se exaltam os valores centrais genéticos do ser, mas sim os periféricos da forma, por isto o conhecimento perambula penosamente por entre uma miríade de efeitos, sem ser capaz de penetrar as causas. Assim, tudo se constrói ao reverso, o trabalho se torna contraproducente, a construção vem a ser destruição e tudo se pulveriza nas mãos de pseudoconstrutores. É verdade que, no fundo da obra do homem, está a obra da Lei, preparando a correção salvadora. Mas o mundo caminha de cabeça para baixo. Vive-se em uma atmosfera de esmagamento. O tempo, isto é, o limite, tornou-se o senhor, o tirano. Tudo secciona-se, fraciona-se, subdivide-se. A ideia de superar o tempo com a velocidade é um delírio. Do tempo não se foge; não se pode superá-lo acelerando o passo, mas apenas vivendo fora dele, sem qualquer movimento no espaço. São bem escassos os lucros de tempo dados pela velocidade; trata-se de pequenos deslocamentos de correlações, mas o tempo fica, e com ele o limite; configura um certo alargamento de horizontes, mas o espírito permanece sempre fechado numa prisão, que é somente um pouco mais ampla. Pequenas expansões que não podem saciar a ânsia do infinito que está na alma. Nunca houve tanta falta de tempo como agora, quando se dispõe de tão rápidos meios de comunicação! A nossa ansiosa corrida sem paz, que chamamos dinamismo, não é uma vitória, mas uma derrota; não é a nossa força, mas a nossa fraqueza. Exaltamo-la como uma nossa nova virtude e potência, mas é uma nossa deficiência e inferioridade. Estamos fechados em um sistema virado às avessas, no qual quanto mais se corre tanto menos se chega, que, em vez de nos ajudar, nos esmaga. E o preciosíssimo tempo fica esmagado e pulverizado em mil coisas, sem nada nos trazer de concludente. Que felicidade construiu essa corrida contínua? A nossa era foge das ideias centrais sintéticas, unitárias. Quem se coloca na circunferência está obrigado, pela sua própria posição, a uma afanosa corrida contínua, para dominar apenas uma parte daquilo que é dominado por quem está situado no centro, sem se mover absolutamente. Daí a nossa necessidade de correr. Mas é sempre um correr pe- 25 riférico, que não alcança a meta. Os imóveis sábios orientais, reclusos nos conventos do Tibete, podem bem olhar com piedade para a nossa vertiginosa sociedade, que, em cima do edifício das suas conquistas, vê apresentar-se o suicídio atômico. No entanto a corrida do ―tempo é dinheiro‖ é a sua punição. A presença do nosso erro é revelada pela nossa ansiedade. Quem encontrou não procura. O tormento e a pressa são índices de vácuo interior, de fome de espírito, de ameaçadoras carências. As mais altas verdades satisfazem a fundo, a sua compreensão dá calma, que é índice seguro para reconhecê-las. Encontramonos, ao contrário, num redemoinho de filosofias, de relativas interpretações da vida, entretanto seus princípios fundamentais não mudam e são sempre idênticos na vã procura de soluções. A contínua necessidade de novidades é a primeira característica da nossa posição periférica e relativa. Todavia o homem atual deve viver e percorrer a sua fase biológica. Que outra coisa podemos hoje esperar dele? Chegará no tempo próprio. Cada coisa está sempre perfeitamente em seu lugar. Neste ponto, surge espontânea em nossa mente a pergunta de como seja possível, por evolução, a passagem da nossa mente para uma fase mais elevada, e também a correção do nosso mundo pervertido num mundo melhor, para curá-lo de seus erros. Não é possível negar que mesmo a nossa economia normal não tenha as suas leis e equilíbrios. Como se pode demolir a premissa axiomática do egocentrismo, que, se existe, é porque tem a sua função? Como se pode passar da economia egoísta do ―do ut des‖6 à economia altruísta do ―ama o próximo como a ti mesmo‖? Certo é que, à primeira vista, parece bem estranho, tanto está fora da nossa psicologia, esse sistema de obter as coisas não enfrentando-as para agarrá-las, mas deixando-as vir espontaneamente a nós. O que nos parece muito estranho é, entretanto, uma realidade experimental que se verifica com todos aqueles que se encontram além do limite do nosso plano de evolução, em outros superiores. Como se pode negar uma realidade experimental, fatos aos quais também a ciência se faz escrava, só porque não se chegou até lá, não se vê nada e não se pode compreendê-la? Se posso falar longamente dessa economia supernormal, é porque vou largamente experimentando-a. Limito-me a indicar aos meus semelhantes as observações objetivas, por mim controladas racionalmente, feitas explorando a sua realidade pouco acessível. Mas certo é que, para quem as alcança, elas possuem a potência das coisas mais vizinhas, atuais e concretas, tanto que se pode fazer depender delas também o contingente da própria vida. A passagem da economia normal à supernormal torna-se possível e compreensível quando se chegou a sentir que a essência da vida e do criado é amor. Ele é a maior força do universo, que o rege e, no fim, tudo vence (v. Deus e Universo Cap. 15 e 16). Por isto é lógico que o amor abra todas as portas, e que, ao contrário, o egoísmo as feche. É uma verificação de fato, para quem vê, que essa é a mecânica do sistema. Para poder, pois, atingir as infinitas riquezas das quais o criado extravasa, é necessário passar pelo caminho do amor. Eis que o Evangelho pode ser também o mais seguro método para enriquecer, e com que riquezas! Não se quer com isto dizer que, somente num mundo de justos, todos estariam bem como consequência da honestidade de todos. O fenômeno é pessoal, e os resultados são acessíveis em qualquer mundo. A riqueza não nos vem somente pelos efeitos que o sistema produziria se coletivamente aplicado, mas nos vem porque o indivíduo põe então em movimento algumas recônditas forças da vida, que o compensam e o premiam, porque ele caminha conforme a Lei, que é amor. Em suma, o cálculo econômico não é o resultado de trocas de meios entre homens, mas de forças entre o indivíduo e a vida. O próprio semelhante, aqui, não pode interferir e, quando aparece, é como meio, 6 ―Dou para que dês‖. (N. do T.) 26 PROBLEMAS DO FUTURO frequentemente inconsciente, manobrado pelas referidas forças. A conversa não se faz com o homem, mas com Deus, com base nas próprias ações e no real mérito próprio. Trata-se de uma economia superior, que dista da normal como o cálculo infinitesimal da aritmética elementar. A vida funciona com os princípios das várias economias, conforme os planos de evolução. Quanto mais alto se sobe, tanto mais ela opera segundo a divina lei da criação, que é o amor. Quanto mais se sobe, tanto mais o rudimentar princípio de equilíbrio ―do ut des‖ se torna completo, passando da lei do talião para a lei do altruísmo, dois graus de justiça diversos. O universo está regido por princípios definidos e fixos. Estes representam a estrada sobre a qual os seres podem caminhar como querem, mas a estrada está traçada. Somos livres, porém teremos em proporção do que tivermos dado. Se usarmos com egoísmo quanto nos vem dado pelas fontes da vida, ou seja, contra a lei do amor, que tudo rege, maior será a contração das forças que regulam a distribuição dos bens. Quanto mais egoísta for o indivíduo, tanto mais se restringirá o canal, que tende a se fechar, até que a fonte não flua mais e todo auxilio seja negado. Nesse sistema, os bens vêm a nós, não mais em proporção à nossa capacidade de extorsão, mas na medida dada por aquilo que merecemos. É difícil experimentar isto em nosso mundo apressado, porque o mérito não se conquista em um instante, e sim com longa preparação. Este depende, como a saúde, do tipo biológico e do regime constante de ação. Por essa mesma lei do amor, um trabalho feito somente com a finalidade do pagamento, isto é, egoisticamente, é muito menos criador e vital do que o trabalho fecundado pelo amor, que aumenta a sua potência genética e diminui a fadiga, até que, nos planos mais altos, se torna livre e alegre ato criador, que reflete o divino ato da criação. É a nossa involução que faz do trabalho uma condenação, uma fadiga, uma escravidão. Subindo, tudo se liberta, alivia-se na alegria, torna-se a um só tempo potência e rendimento. E a ascensão se cumpre no amor. A dificuldade para iniciar tal novo método é dada por um agravamento da fadiga, que já é muita em um baixo plano de evolução. Quanto mais se está embaixo, tanto mais se é pobre e onerado, sendo então muito mais necessário e maior o esforço para se tornar livre. Só resta então iniciar o trabalho com paz e tenacidade. A evolução não se força e não se precipita. Ela é uma lenta marcha de resistência. No princípio, teme-se uma nova limitação, e o egoísmo se revolta. Acaso será possível se desatarem os nós, continuando-se a apertá-los, ou, pelo contrário, é necessário afrouxá-los pelo caminho inverso? Somente invertendo-se o caminho da involução é que se pode evoluir. A princípio somos desviados pela ilusão, que nos faz temer uma piora de condições. Mas, se fosse possível ver claramente, saber-se-ia que o egoísmo em nada sofreria, porque a vida é sempre utilitária e quer o nosso bem. O sistema é verdadeiramente vantajoso. Os obtusos responderão que não se deixam lograr por esses especiosos e capciosos raciocínios e permanecerão pobres e cansados servos do que puderam agarrar. Naquele plano, é muito difícil compreender o Evangelho, quando diz: ―Pensai nas coisas do espírito, e o resto vos será acrescentado‖. Entretanto essa coisa que parece tão absurda, posso testemunhar que para mim foi experimentalmente verdadeira. Somos filhos de Deus, Pai amoroso. Ele, infinitamente rico, nos proverá de tudo, se nós estivermos com Ele. Os seus escrínios não têm limites e estão sempre cheios; a chave para abri-los é o amor, e tudo se pode deles tirar em proporção. Quanto mais se ama e se dá, tanto mais os escrínios se abrem e tanto mais recebemos. Quanto menos se ama e se dá, tanto menos eles se abrem e tanto menos recebemos. Com a avidez e a força, ao invés de se abrirem, eles se fecham, e nada mais pode ser tomado, porque a vida, em face do egoísmo e da violência, se contrai, defende e nega. O único caminho para sair de toda limitação é iniciar progressivamente uma série de ações positivas em direção altru- Pietro Ubaldi ísta, isto é, expansionista. É o caminho dos santos. Contudo a maioria se retrai amedrontada. Assim aconteceu ao jovem que perguntou a Cristo o que deveria fazer para tornar-se perfeito. Quando ouviu a resposta: ―Si vis perfectus esse, vade, vende universa‖7, ele se retirou triste, sem aceitar o conselho. E, assim, os caminhos das maiores riquezas se fecham. É bem difícil despedaçar o circuito dos vínculos terrenos em corrente, e é necessária para isso uma energia pouco comum. Estamos embaixo e, somente se tivermos a força de subir por nós mesmos, poderemos ver a luz e provar a felicidade. Estamos embaixo, e o mundo procura o conforto descendo ainda mais para baixo, criando assim nova dor e, desse modo, fechandose sempre mais nos limites da involução e na prisão do egoísmo. Mas a saída está no lado oposto. Para encontrá-la, o homem deve tentar e sofrer muito ainda. É da Lei que não se possa subir para a felicidade senão através do sacrifício e do amor, os grandes princípios sobre os quais se apoia o universo. Infelizmente, isto não se faz ou não se quer fazer. E então, na expectativa de saber subir, ficam na Terra a dor e a miséria, herança própria desse plano de vida. Não há remédio senão em saber e querer fazer o esforço para sair dele. Esta é a estrutura do sistema. Se não quisermos subir, ficaremos na dor e na miséria, como é justo em um universo perfeito. VI. LUTA E SELEÇÃO Já dissemos que as diversas verdades vistas pelo autor através do fenômeno da personalidade oscilante não constituem um produto subjetivo a ele limitado, mas que elas têm uma existência própria objetiva, dele independente, isto é, correspondem aos vários planos evolutivos da vida, representando assim uma universal realidade biológica. O caso pessoal ficou, dessa maneira, dilatado numa significação muito mais vasta, que interessa toda a vida. As diversas verdades nos aparecem como expressões de diversas fases evolutivas ou planos de existência. Destes vimos alguns aspectos gerais no capítulo precedente, descrevendo-lhes as características, as condições do nosso mundo atual e a técnica da passagem para fases superiores. Observemo-los, agora, mais de perto, de um ponto de vista mais particularmente biológico, em referência às teorias que hoje vigoram nesse campo. Em substância, nada mais fazemos do que aprofundar sempre em maior escala o grande problema da ascensão humana, aquele que contém as soluções de todos os problemas. Com isto, já se delineia o ritmo ascensional deste volume, que, partindo do inferno humano e subumano, nos quer levar, fazendo sentir todo o contraste, ao paraíso super-humano e divino. O estudo psicológico particular onde iniciamos nosso movimento não serviu senão de motivo inicial para a descrição dessa ascensão universal. É natural que, para poder falar com conhecimento desse fenômeno, o autor deva antes tê-lo experimentado no seu caso particular, um momento da universal lei da vida, que também é de todos. Vejamos como penetrar o pensamento diretivo que guia a nossa evolução. A interpretação que hoje domina nesse campo nos provêm do materialismo ainda dominante, que viu as coisas a seu modo, de um ponto de vista relativo a um dado plano de evolução. Trata-se, portanto, de uma ideia destinada a ser superada, mas que hoje é aceita na psicologia corrente como verdadeira e definitiva. É bom observar até que ponto ela corresponde ao verdadeiro pensamento diretivo da vida. Comecemos por observar que, enquanto a forma mental dominante continua a mover-se por inércia na direção materialista, proveniente da orientação científica do último século, e isto até suas últimas consequências práticas, o mais recente pensamento diretivo da ciência levou tão além, nas profundezas, a visão da matéria com a nova 7 ―Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens‖ – Mateus, 19:21. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO química atômica e física quântica, que aquela concepção materialista fica sendo primitiva e superficial. Ela foi levada pela ciência mais moderna, segundo as mais recentes orientações, tão perto do espiritualismo, que, no final, aquela concepção quase não pôde mais ser distinguida deste. Mas disto nos ocuparemos mais adiante. Portanto o materialismo representa o tipo de conhecimento científico do nosso tempo e nada mais. Mas a direção, ainda que embaixo, nas massas, continue imperturbável, já se inverteu no alto, no elevado pensamento diretivo. Assim, por lei biológica, é lançado o impulso que, prolongando-se depois, como sempre, inverterá a rota do pensamento moderno, levando-o para uma nova civilização, de tipo oposto. Não se tratará por certo do espiritualismo de hoje, vago e não demonstrado, mas de um espiritualismo que provará e aplicará o que agora é somente fé ou teoria filosófica. Na biologia, o materialismo de Darwin viu a evolução das formas físicas ou efeito, sem imaginar a presença de uma evolução do espírito ou causa das formas. Acima, falamos dessa tendência à inversão de tudo em nossa fase atual. Assim viu-se exatamente às avessas: a causa naquilo que é somente o efeito, isto é, na forma. Segundo essa orientação, a evolução se processa através da técnica da luta pela vida e a seleção do mais forte, tipo que, em filosofia, vemos reaparecer no superhomem de Nietzsche. Tudo isto é verdade, mas somente no plano biológico animal, num mundo inferior, ao qual ninguém pode impedir que o homem pertença. Mas, assim que se haja subido evolutivamente, isto não é mais verdadeiro. Em suma, quando se fala dessa coisa imensa que é a vida, é preciso distinguir e precisar a que biologia nos referimos, porque cada plano evolutivo tem a sua, com leis próprias, que não são as dos outros planos. Ora, a biologia normal humana, se olhada do ponto de vista de uma biologia supernormal, pode aparecer toda como um erro de perspectiva, e ao contrário. E, aqui, podemos aplicar o conceito das verdades relativas, pelo qual as teorias do materialismo servem e valem apenas para a sua biologia, e não além. Não se pode compreender o pensamento diretivo da vida observando-a num só de seus momentos, relativo a uma só fase, tanto mais que aquela, evolutivamente superior, nos aguarda, é o nosso amanhã e nós justamente percorremos a atual para nos preparar à sucessiva. Como se comporta a vida no plano animal e humano? Ela escancara as portas para a reprodução e lança fora indivíduos em grande abundância. Estes, no plano animal, não estão integrados juntos na fase orgânica coletiva e, portanto, não sabem fraternizar-se em organismos coletivos e colaborar em unidades superiores. Isto está muito alto para eles e representa o futuro. Eles se devem preparar através de infinitos contatos recíprocos, que, no princípio, são choques sanguinolentos. Tão logo nascem, eles se tornam rivais e inimigos, e os motivos psicológicos dados por sua forma mental não faltam: o espaço vital, a exuberância de energia, o instinto de invadir e submeter para se expandirem, a natural insaciabilidade do desejo, a conquista dos bens para viver, da mulher para se reproduzir. Eis subitamente a luta. É a mecânica do sistema. Basta olhar em torno para ver funcionar automaticamente, em pequena e em grande escala, como num grupinho de rapazes que, de repente, litigam entre si, como povos sempre em guerra. Esta, antes que no comando dos governos, está no instinto dos homens, sem o que ninguém poderia impô-la. O primeiro passo é a produção dos seres, o segundo é a luta, o terceiro é a seleção. O resultado final é a evolução; a finalidade é a elevação para o bem e a felicidade. É uma sucessão de escopos, de proposições num raciocínio. Eis porque, como título deste capítulo, ligamos as duas palavras: luta e seleção. A primeira é condição da segunda. Sendo pacífico que a vida trabalha sempre com inteligência e com um fim a atingir, ela então oferece a esses seres, para o fim evolutivo a que tende e 27 porque este leva ao bem deles, um trabalho proporcionado à sua capacidade e sensibilidade; gênero de trabalho que seria inútil, absurdo, destruidor e insuportável em planos de vida superiores. Assim, a vida dá imediatamente a esses seres do plano animal e humano uma ocupação digna de si, manobrando-os através de seus instintos, a que eles obedecem, crendo obedecer a si mesmos. A vida nos faz sempre trabalhar para nos fazer subir. A quem está mais alto, aquela seleção animal pode parecer um trabalho bestial. Mas uma atividade mais refinada e complexa o ser daquele plano não saberia cumprir e não seria proporcional à sua capacidade. Trata-se verdadeiramente da seleção do mais forte, como é hoje compreendida, uma seleção animal em que é preciso, todavia, usar e desenvolver os sentidos e a inteligência. Neste plano, o trabalho coletivo orgânico e as conquistas espirituais são inconcebíveis. Porém, em nosso mundo, a luta já se está transformando de muscular e física em nervosa, conquanto esta ainda seja feroz. O progresso já é visível. A forma de luta é índice do próprio plano evolutivo. Dizme como e por que coisa lutas e te direi quem és. A luta, condição de conquista, não se extingue nunca na vida, mas, com o evoluir, mudam sua forma, seus fins e suas realizações. Hoje, em nosso mundo, se começa a compreender, como não acontecia no passado, o disparate desse gênero de luta animal, que não sabe atingir os seus fins senão lançando os homens uns contra os outros, para se matarem e para destruírem tudo o que é mais útil e custoso, e isto, para a seleção. A hodierna impopularidade da guerra demonstra que o homem hoje caminha para a superação da fase animal. Um estado de coisas, de fato, não se pode perceber quando se está fundido nele como num todo homogêneo, mas somente quando se começa a emergir dele, diferenciando-se. Hoje, na realidade, começa-se vagamente a compreender, sem ainda saber atuar, as suas consequências lógicas, o disparate desse perene odiarse uns aos outros, quanto seja antivital esse nunca acabar de punir-se reciprocamente, que é o que faz verdadeiramente da vida uma punição. Esta é criada e imposta pelo homem, e não por um deus vingativo. O homem está hoje bastante sensibilizado para começar a sentir quanto se há tornado inaceitável esse tipo de luta e seleção animal. Formas mais civis de existência fatalmente o esperam. O mais desenvolve-se do menos. Assim como, no começo, a propriedade era filha do furto e a primeira forma de organização social foi dada pelo império do senhor sobre o servo; assim como, para se chegar à sociedade dos estados, deu-se início aos imperialismos escravistas, dominadores dos povos; assim como se chegou ao conhecimento, partindo-se do terror do próprio dano, e à ciência através da necessidade utilitária, não é para se maravilhar que também se possa chegar a um novo tipo de seleção, partindo do atual, embora este seja bestial. Não devemos, pois, nos escandalizar se a vida sabe atingir os seus fins evolutivos mesmo através de todas as velhacarias humanas. Procuremos compreender o verdadeiro significado desse método para nos fazer evoluir, usado pela vida com a luta e a seleção. A que tende verdadeiramente esse triunfo do mais forte? Trata-se aqui de uma lei válida para todas as fases biológicas, ou será ela limitada somente a um dado plano inferior? Quais são os fins da maior biologia universal? Propõe-se ela verdadeiramente a fazer triunfar esse tipo do mais forte, que pode ser ainda o mais prepotente ou injusto, ou será esta uma fase de transição admissível somente em planos inferiores, enquanto a finalidade da vida é criar um tipo biológico completamente diverso? A lei da maior biologia universal é que a luta, em todo plano, é um meio de construção da consciência, uma forma de atividade imposta aos seres pelos seus instintos, pelo ambiente e pela Lei, que domina tudo isso, para chegar, através da experimentação, ao desenvolvimento de qualidades sempre mais espi- 28 PROBLEMAS DO FUTURO rituais. É natural que, nos planos inferiores, o trabalho e as qualidades sejam de caráter inferior. Mas tudo tende a atingir trabalhos e qualidades superiores. Nos animais e no homem inferior, a luta servirá para o refinamento dos sentidos e para o desenvolvimento egoísta da inteligência utilitária. Mas, no homem superior, ela servirá para o triunfo de uma ideia e se transformará numa colaboração qual instrumento consciente da Lei. É ainda lógico que, no plano animal, as experimentações, os contatos e as reações do ambiente devam assumir uma forma brutal e violenta, porque, com modalidades mais refinadas, o ser ainda não sensibilizado por evolução nada perceberia. A luta parece brutal e violenta para quem está mais no alto, mas não para quem está naquele nível. Tudo é proporcionado pela divina sabedoria da Lei. Assim, o animal e o homem inferior não são ferozes senão para o evoluído. Para si mesmo, ele está equilibrado no seu nível; vê somente o fim a atingir, e não a ferocidade do meio, que somente se revela ofensivo de um ponto de vista mais alto, com outras leis, ignoradas no plano inferior. Assim o selvagem não se sente selvagem, do mesmo modo que o verdadeiro delinquente não se considera delinquente. No entanto eles também devem evoluir. Então são necessárias para eles experiências bem duras, que para o evoluído seriam cataclismos mortais. Assim, as grandes dores que dominam na Terra são proporcionais à insensibilidade humana, e isto se prova pelo fato de que a maioria ama esta vida tão miserável. Quem está mais adiante não pode aceitá-la como prazer, mas somente em outro sentido, isto é, como expiação, dever ou missão. A vida, portanto, definitivamente não se propõe, como último desígnio, o triunfo dos mais baixos campeões da raça. Somente o materialismo e a sua filosofia podem pensar assim. A supremacia do mais forte, neste sentido, pode dar-se durante os primeiros degraus da estrada ascensional, mas a via dos triunfos é longa e vai longe. A luta, no alto, assume outras formas e outros fins, isto é, a formação de um ser não mais forte porque dominador e mais violento, porém mais potente porque mais inteligente e sábio, portanto justo e bom. Ele, então, como veremos, penetrará no funcionamento da Lei, como conhecimento e como atividade, pondo em movimento novas forças e podendo atingir riquezas imensas, antes ignoradas. Ele será potente, bem diferente daquele fraco e falido como o julga o homem inferior, que sempre toma a bondade por fraqueza. Sua luta e experimentação assumem um caráter de todo diverso. A forma de luta dos planos inferiores, aquela do tormento da fome, do ataque e da defesa, lhe é poupada, porque é superada. Então a vida se harmoniza e a própria Lei trata de defender o homem que adere a ela, poupando-lhe esse duro trabalho, para ele já inútil, mas que, para os inferiores, ainda é fundamental e necessária ocupação. É lógico que o trabalho útil, imposto a tipos biológicos tão diversos, deva ser diferente. É lógico que, quando se há superado o nível de vida visto pelo materialismo, o campeão visto por Nietzsche no seu super-homem torna-se um delinquente, um selvagem rei de selvagens, um ser antissocial, destruidor da unidade, desagregador e antivital. O Evangelho, que é construtivo, nos indica, ao contrário, bem outro tipo biológico. A sua inversão de valores não significa nada mais que a passagem de um nível biológico inferior a um plano superior. Nisto consiste a grande boa nova, isto é, o anúncio de que hoje, para o mundo, chegou a hora da grande transformação evolutiva, que o levará para uma nova civilização, com um novo tipo humano. O Evangelho enfrentou diretamente a lei do plano animal, contrapondo-lhe uma outra lei, de um plano superior, em que, pela evolução, a primeira deverá fatalmente inverter-se. Afirmou isto com o Sermão da Montanha, que é a inversão dos valores humanos em outros opostos, em que os vencidos aparecem vencedores e os fracos, fortes. Eis a maior biologia que o materialismo não viu. Assim, da fase onde o arbítrio da absoluta vontade do vencedor, que pode Pietro Ubaldi permitir-se tudo porque é vencedor e, como tal, lhe cabe fazer a lei, chega-se lá onde isto, ao contrário, é injustiça condenada pela Lei, única senhora, em cuja harmonia somente, viver é lícito. No primeiro caso, o ser é deixado apenas às suas forças, para sofrer os erros que perpetrará e, dessa forma, chegar a compreender e aprender. Mas, conquistada com esse trabalho a consciência, ele percebe que vive em um todo orgânico, bom e sábio, e que a violência não serve para mais nada, somente para perder, e não para vencer. Então, a vida, harmonizada na ordem divina, torna-se de inferno em paraíso. Interroguemos ainda o pensamento diretivo da vida, como ele funciona na realidade biológica. É fato que a natureza não se opõe à geração dos fracos e doentes. Procura remediar os seus defeitos para salvá-los, reforçando-os como pode, mas não se opõe ao seu nascimento. Deixa assim vir ao mundo uma quantidade de infelizes, doentes da mente e do corpo. Ela os deixa lutar e sofrer. Por que? Nesses casos, se a finalidade principal da vida fosse a seleção do mais forte, aquele desígnio seria completamente frustrado e a natureza seria a própria contradição. Entretanto vemos quanto ela é sábia e benévola protetora. Por que os deixa, então, se debaterem na dor? Se a vida se comporta assim, dado que nunca age loucamente e não está acostumada a errar, isto significa que o seu objetivo é bem outro, e não a seleção do mais forte, com o abandono dos outros. A natureza não é partidária e nunca abandona alguém. A finalidade é a formação da consciência, enriquecendo-a de todas as possíveis qualidades, através de todas as possíveis experiências. O insucesso do fraco e do doente, dos vencidos na vida, não pode então ser interpretado como uma derrota, mas sim como uma útil posição de trabalho para a aquisição de preciosas qualidades novas, das quais o vencedor, ao contrário, dada a sua diversa posição, está excluído. A finalidade da vida não é, pois, senão em casos particulares, a formação de um mais forte e prepotente. Nas grandes linhas, a vida quer criar um ser sempre mais ativo, mais complexo, mais orgânico, mais sábio, e tudo isto mesmo através da fraqueza, da derrota e da dor. Eles não constituem, por isto, uma falência e uma perda da vida, como crê o materialismo, mas uma das tantas vias de experimentação e um meio de conquista. Se não fosse assim, a vida, que é mesmo tão forte, sábia e boa, seria vencida, estulta e cruel ao permitir a geração dos fracassados. Ela, ao contrário, absolutamente não se opõe a isto, e são muitos os que deixa nascer. Portanto não é a natureza que não alcança os seus fins, mas somos nós que não compreendemos a natureza. Quanto mais formos capazes de compreender, tanto mais encontraremos no universo um organismo perfeito. Dizer o contrário significa nada haver compreendido. Todo plano de existência tem as suas leis. Não se pode compreender e julgar o plano superior permanecendo no inferior, enquanto, nos planos mais altos, é possível compreender os mais baixos, julgados ferozes e selvagens. Temos assim uma série de níveis evolutivos, dos quais cada um possui uma sua verdade relativa, que com eles evolui sempre mais para o alto. Planos, pois, e verdades em evolução. Esse é o movimento das formas e do concebível no relativo para ascender, sempre mais se acercando do absoluto. O mais pode compreender e julgar o menos, mas não é possível a recíproca. Sobre todos os planos, impera a Lei, única, através dos infinitos aspectos da verdade, relativa a cada determinado grau de desenvolvimento ou fase evolutiva, em contínua transformação progressiva. Todos os meios são usados sempre em proporção à natureza do ser. O método da seleção do mais forte não representa senão um caso, um grau, uma lei, uma verdade relativa. Depois, a fase é superada, passando-se a uma ordem de formações e aquisições diversas, com outros métodos mais evoluídos, com característica diferente, proporcionais a um diverso tipo de vida. Os experimentos são de variações incontáveis. A natureza não tem limi- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO tes de meios e de ambientes, e a aquisição de qualidades no desenvolvimento da consciência deve ser infinitamente múltipla. Desse modo, o ser, guiado pela Lei, move-se ao longo de canais assinalados por uma rede de princípios em todos os níveis; ele encontra sempre, a cada passo, o trabalho que lhe é adaptado. Como poderia orientar-se e guiar-se no universo, ignorante de tudo? Ele nunca está só, nem abandonado. Sem essa imanência de Deus, o ser estaria perdido. Também os golpes adversos têm um significado útil e construtivo; há sempre a proteção, mesmo no total abandono aparente, como há salvação no fundo de qualquer derrota. Em cada ser há a vida, que nele se defende a si mesma. Tudo, também o mal e a dor, é nas suas mãos instrumento para a ascensão. A vida é força positiva, sempre construtiva, ainda que através da destruição. Ela nos quer educar sempre, para nos fazer subir, embora através do fracasso. Tudo é salutar, proveitoso; tudo é sempre perfeito e tende ao melhor pelo caminho do mínimo meio, obtendo máximo resultado com o mínimo esforço. O nosso ponto de vista humano é muito limitado para nos permitir compreender e julgar. A vida sabe salvar-nos também através da morte. Queríamos impor-lhe os nossos pequenos fins imediatos, e ela trabalha para fins longínquos, que não vemos, com uma sábia hierarquia de finalidades, das quais nós, míopes, não enxergamos senão as próximas. Mas ela é justa. Cada dor é paga, cada esforço é compensado, cada experiência nos enriquece, cada fadiga é premiada. Se somos alguma coisa hoje, é porque a vida nos impôs primeiro o trabalho de ganhá-la. Ela quer e deve formar o ser. E, ainda quando açoita, o faz para o nosso bem. Com isto, Deus está presente em cada coisa e em nós. A profunda consciência da Sua constante presença em cada coisa e em nós será o nosso conforto e a nossa força. A palavra vida não exprime um conceito genérico e abstrato, mas uma realidade que vive, goza e sofre através de nós. Toda nossa vibração nos transcende e pertence a alguma coisa maior do que nós, com a qual estamos em contínua comunicação e que é um organismo imenso e perfeito, complexo e sábio. A vida, autopunindo-se, corrige-se através de nós e, assim, nos protege. Suas também são as nossas alegrias e as nossas dores. Em nosso plano e ambiente, nós somos a vida, como todo ser também o é em seu nível: um caso particular, do infinito existir. Somos a sua expressão particular, concretizada em uma dada forma, expressão de princípios e forças universais. Que profundas raízes, pois, tem cada ser no infinito! Somos a expressão exterior de uma fonte inexaurível que está no íntimo e que tudo alimenta e rege. Se, na periferia, onde estamos como forma, há caducidade e morte, no íntimo do ser os poderes genéticos de renovação são infinitos e inexauríveis. Evoluindo, ele se avizinha sempre mais da riqueza dessa fonte e dela pode gozar. Assim se explica como a economia supernormal seja muito mais rica que a normal, como vimos. O segredo para enriquecer é, pois, saber tornar-se sempre mais vivo em profundidade, sempre mais perto da fonte, Deus. Eis que potente significado vital pode assumir esta palavra para quem está mais avançado no caminho da evolução. É nessas profundezas que, com estes escritos, aqui procuramos despertar a vida É por isto que aqui sempre se insiste sobre o evoluir, sobre a ascensão para Deus, e com tanta paixão dela se fala, pois que, verdadeiramente, é este o problema dos problemas e com ele tudo se resolve. Entretanto, para eliminar a dor, conquistar conhecimento e sabedoria, riqueza e potência, existe um meio: caminhar para Deus. Se o mundo compreendesse o significado dessas palavras e as soubesse aproveitar! No entanto ele passa perto de tudo sem compreender nada, agindo como um selvagem que, ao olhar um precioso instrumento científico sem conhecer-lhe o valor, não saberia o que fazer dele e terminaria por destruí-lo. A ignorância é a muralha mais difícil de superar para se alcançar a felicidade. 29 Dessa maneira, a vida funciona por impulsos interiores, lançando as suas forças do íntimo do ser. Deus não age do exterior, mas de dentro do ser, através dele, que é o instrumento da Sua manifestação. Assim, a vida não nos defende externamente, mas do interior, partindo do centro e atingindo a periferia através de nós, não modificando o ambiente, mas munindo-nos com recursos interiores, fazendo-nos adquirir qualidades e defendendo-nos com a outorga de poderes de resistência. A nossa vida devemos conhecê-la, e as nossas forças, conquistá-las. As fontes são inesgotáveis, mas devemos atingi-las com meios que devemos conquistar. Com isto, a Lei nos quer instruir. Ela exige a nossa colaboração, ainda que seja fadiga, mas nos ajuda, orientando-nos, reagindo contra o nosso erro por meio da dor, indicando-nos a verdadeira estrada. A Lei não nos arrasta gratuitamente, mas nos obriga a fortalecer as pernas para não ficarmos preguiçosos e tornarmo-nos inábeis com a supressão dos obstáculos, que estão ali justamente para que aprendamos a superá-los. Eis a razão da dura luta pela vida, eis porque o vencedor é premiado. Mais no alto do plano animal-humano, diversa será a luta, mas o tipo vencedor é sempre premiado, seja ele o conquistador com o domínio terreno, o gênio com o domínio do pensamento, ou o santo com o amor de Deus. VII. O MAIS FORTE Se mais no alto há leis superiores, isto não impede que a luta pela seleção do mais forte seja a verdadeira lei vigente no plano animal-humano. Limitada a esse campo inferior e relativamente a ele, a formação desse tipo biológico pode representar aí a finalidade da vida, porque nada de melhor se pode pretender de um ser que está imaturo para mais altas expressões. Para melhor poder examinar depois a ascensão para planos mais elevados, procuramos pôr em foco a nossa observação sobre o animal-humano, que está mais perto de nós. Podemos assim delinear o fenômeno da ascensão espiritual também de um ponto de vista biológico e ver a que tipo diversamente forte a vida quer chegar nos níveis mais altos. Todo plano evolutivo produz o seu modelo ou obra-prima. O reino mineral produz os cristais geometricamente perfeitos, o reino vegetal produz a flor maravilhosa e a árvore soberba, o reino animal produz a besta ágil e forte, o reino humano produz o herói condutor de povos, o reino super-humano produz o gênio e o santo. Assim, cada fase alcança a sua finalidade, para depois ingressar na fase sucessiva e alcançar outra meta, ainda mais elevada, subindo assim, aos poucos, os degraus da evolução, que não representa senão a gradual exterior manifestação de Deus, a progressiva realização do Seu pensamento no Seu universo. Todo novo impulso ascensional só pode ser tomado sobre uma base anteriormente alcançada e consolidada. Toda forma é o resultado do passado e das conquistas precedentes que resume, e não se pode subir para a sucessiva sem haver cumprido, elaborado e assimilado as precedentes. Dessa maneira, a construção continua além do gênio e do santo, limites máximos da nossa atual concepção e perfeição. É sempre a vida que se enriquece através de miríades de experiências nas individuações que a personificam. O que é da vida é nosso, e somos feitos de tudo aquilo que vivemos. Como de outro modo se pode conquistar consciência, senão através das próprias experiências? Que imensa dilatação de horizontes viver nesta maior vida, sem limites de tempo e de formas! Que profundo sentido lhe dá esse conceito de um desenvolvimento guiado por uma lei sábia, para uma meta radiosa, ainda que ela esteja além do nosso concebível! Que conquistas faz assim conosco a vida; que indestrutível patrimônio ela constrói! Que alegria é pensar que, em qualquer posição, de vitória ou de derrota, cada um de nós nunca perde nada, mas trabalha sempre utilmente para a construção de si mesmo! Que gigantesco edifício é uma alma! Nada mais 30 PROBLEMAS DO FUTURO de inútil acontece; tudo fica indestrutível, tem o seu peso, as suas consequências, é sempre útil para alguma coisa; cada dor nos enriquece de uma consciência maior. À medida que subimos, mudamos e a vida muda para nós. Que nos pode roubar a velhice e a morte, quando somos uma alma imortal em ascensão? Que importa a crucificação lacerante, se depois a ascensão nos torna gloriosos? Muitos deliram acerca do fim da humanidade. A Terra poderá ser o féretro do seu corpo, mas não do seu espírito. Apagando-se o Sol, o nosso planeta não poderá mais hospedar a nossa vida de hoje. Mas esta não terá mais necessidade daquele suporte físico, porque a humanidade terá alcançado uma outra vida, mais elevada, fruto da presente, e viverá em um novo ambiente, mais adaptado. Então, todos os restos terrenos da nossa civilização humana serão somente produtos de refugo, deixados para mundos inferiores, para que eles os utilizem no seu plano, como acontece com todo cadáver em desfazimento. E a nossa humanidade será sempre viva e jovem, expressa em formas mais elevadas e mais felizes. Como fica, diante de uma visão assim tão vasta, a nossa pequena biologia, com os seus fins limitados à sua fase e relativos modelos? Como fica na biologia universal o nosso ―mais forte‖, obtido por luta e seleção? Nessa biologia maior, o mais forte adquire um sentido completamente diferente, formandose através de uma luta e uma seleção bem diversas. A grande luta não é para submeter o semelhante à servidão, numa pobre emersão de um bruto entre brutos, mas é para conquistar qualidades superiores de sabedoria, numa decisiva emersão fora da animalidade e da ignorância. O mais forte nessa biologia universal é o mais evoluído, que é verdadeiramente melhor dotado, porque é mais rico em qualidades para vencer as batalhas da luta pela vida. Ele vence sempre melhor que o involuído, de mente obtusa, embora materialmente forte. Os grandes monstros paleontológicos, quais os brontossauros etc., bem gigantescos, pereceram por sua estupidez, enquanto sobreviveram animais menores e menos fortes, porém mais inteligentes. O homem os está chefiando. É lógico que a vida dê a vitória ao mais evoluído, que representa o seu melhor produto. E ele merece, porque há mais tempo provou o seu valor e sofreu, sendo assim o mais rico de experiências e qualidades. A vida é sempre econômica e justa. Mais no alto vence não o homem de corpo mais forte, mas aquele de espírito mais potente. Defronte ao seu dinamismo de alto potencial, a brutalidade é somente estúpida destruição. Que pode a ferocidade contra um explosivo? É belo observar a luta apocalíptica entre o anjo e o bruto. Ela não é senão um momento da maior luta entre a luz e a treva, entre Deus e Satanás. E Deus e a luz vencem. Em qualquer nível, a vida exalta e faz triunfar aquele que é o melhor em relação ao seu ambiente. Assim ela obedece ao seu campeão, vencedor do próprio plano. Dessa maneira, dentro destes limites e relativamente às próprias capacidades, ele é admitido à colaboração com a Lei na direção de fenômenos, porque, como campeão, ele merece confiança; o tipo físico domina só a matéria, o dinâmico domina a energia, e o tipo espiritual domina o espírito. Hierarquia de potencialidade e de domínio, pois que, no fundo, o mais forte é quem está mais no alto na evolução, porque é aquele que mais manda. Ele opera nas causas profundas, de onde tudo deriva depois; opera com o espírito, que dirige a energia, e, através desta, atinge a matéria, atuando sobre ela. O primitivo, crendo somente na força, não pode compreender que a justiça, se vence mais tarde, vence mais profundamente do que a astúcia; não consegue entender que a inteligência e a bondade vencem afinal toda violência e que uma ideia, quando responde a uma função biológica, é mais potente do que um explosivo. O mais forte, no sentido materialista, deve compreender que somente pode sêlo no seu campo animal-humano, fora do qual ele se torna um fraco e inepto. Passando de um plano a outro, as posições se Pietro Ubaldi invertem. O Evangelho demonstra ser também uma escola de fortes, mas de uma força diversa. Por isto os vencedores pela violência a esta se apegam desesperadamente, porque sabem que, despojados desse meio, estão perdidos. Subindo, os vencedores tornam-se vencidos, como se tornam sempre os juízes perante os mártires por eles condenados. Em um plano mais alto, os inferiores tremem ao aventurar-se, porque se sentem desarmados. E, então, desafogam-se sobre os mais evoluídos, golpeando-os pelo lado material. Mas estes são invulneráveis no seu plano espiritual, onde triunfam. Esta é a história de todos os mártires, até ao maior: Cristo. Tudo isto obedece leis que permanecem iguais à distância de milênios e de uma ponta a outra do mundo. Elas tornam a aplicar-se todas as vezes que o ser se encontra em um dado grau de evolução. A ascensão apresenta-se livre para todos, mas, quando se quer percorrê-la, a rota é inalterável. Toda nossa atitude, seja ela qual for, nos prende sempre a um sistema, do qual precisa, depois, exaurir e absorver todos os elementos componentes, até à ultima consequência. Desse modo, quem se empenha no plano da força, tem no começo, de fato, a vantagem de ver tudo permitido: o lícito e o ilícito, o justo e o injusto. Assim, ele pode escarnecer de todas as leis morais do plano evolutivo superior. E tudo vai bem enquanto ele tem na força seu único apoio. Porém, uma vez colocado sobre este terreno, quando perde este seu único apoio, para ele não pode existir piedade. Então, a justiça, que ele violou, fará que ele pague tudo aquilo que injustamente tomou com a força. A queda de tantos grandes da Terra nos mostra quão seja perigoso usar esse método, que está sempre pronto a nos trair. A astúcia é força de caráter psíquico e, igualmente, tenta subjugar, por isto está sujeita às mesmas leis. Quando, após muito tempo, a mentira aparece, não há mais piedade para o astuto e, então, ele paga por tudo. Cada um está ligado ao seu sistema. Porém o mais sólido é o da sinceridade e da bondade, único para construir estavelmente, sem antecipações e débitos, que depois se hão de pagar. Então suporta-se a violência e a astúcia, deixando simplesmente que o mundo saiba. Este, então, vê no justo condenado o mártir, pois a Lei está escrita na alma humana, que, queiram ou não, tem o senso do bem e do mal. Princípios verdadeiros em ponto pequeno ou grande, do indivíduo mais humilde aos povos e nações. Há uma invisível hierarquia de seres e valores, uma ordem que ninguém pode subverter. Conquanto inerme e condenado ao martírio possa parecer o evoluído na Terra, ele pertence sempre a um plano de vida superior, do qual nenhuma condenação terrena poderá jamais arrancá-lo. Cada um é ligado às leis do seu sistema, e também o evoluído, que por ele finalmente é exaltado. A hierarquia é inviolável. Os vários reinos, mineral, vegetal, animal, humano, super-humano, estão sobrepostos como os planos de um edifício, e cada um se eleva sobre o outro, dominando-o. Este é o equilíbrio da imensa construção do universo. Direito, pois, à obediência dos inferiores, assim como dever de obediência aos superiores. Ao comando estão ligados os pesos e a responsabilidade da direção; nele, pois, nunca arbítrio e abuso, mas sempre função e missão. A Lei é um regime de justiça. Cada um gravita segundo o próprio peso específico, no próprio plano evolutivo, isto é, encontra-se a viver na posição que merece, conforme as próprias qualidades e real valor, permanecendo, enfim, no sistema de força proporcionado e adaptado a ele como vantagem e dever. Para ascender a um plano biológico superior, é necessário haver antes percorrido e assimilado as experiências dos planos inferiores, ter resolvido os problemas que neles nos atormentam. A este propósito, muitos economistas afirmam que não é possível educar os povos para um mais evoluído nível de vida sem antes ter resolvido o problema das necessidades materiais. Afirma-se, como acima já indicamos (Introdução), que, com essas preocupações, não se pode pensar no espírito. O fato de o Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO homem moderno haver situado a questão nesses termos, revela a sua miopia, isto é, significa não ter compreendido qual é o fim da vida, ou seja, a evolução. O erro está em exagerar a importância do problema econômico e crer que a sua solução signifique resolver todo o problema da vida, que é bem mais amplo que o do estômago. E, então, perguntamos a nós mesmos: que saberá fazer do seu bem-estar um homem que, havendo resolvido o problema econômico e achando-se satisfeito em todas as necessidades materiais, por haver pensado sempre e somente nisto, sem saber pensar em outra coisa, não possui nenhuma preparação para um gênero de vida superior? Eis, então, o perigo já alhures notado. Não é lícito ignorar os fins da vida e limitar-se aos do estômago. A vida não pode parar ali e, se aceita essa meta, isto só se dá para subordiná-la a um fim mais alto. O nosso mundo materialista se detém nessa etapa, ignorando o resto, sacrificando tudo por ela. Ai de quem trair os grandes fins evolutivos da vida! Esta quer ascender, não quer por nada criar um gordo involuído, mas sim um evoluído, não importa se magro. Em suma, para a vida, o problema do nosso bem-estar é secundário frente à nossa ascensão, enquanto o homem inverteu os termos, tornando principal o secundário e secundário o principal. Assim acontecerá que, se o homem não for preventivamente educado a saber fazer bom uso, para atividades mais elevadas, da abundância dos bens, do tempo livre e das energias disponíveis, dadas pela reduzida necessidade de trabalho, então o mais alto nível de vida se reduzirá somente a multiplicar os seus defeitos, excitando a cobiça de gozar, a avidez de possuir, o ócio fatal. O novo poder do bemestar, se obtido por um tipo não preparado, em vez de ser uma vantagem, pode resultar em prejuízo. Não é pueril crer que se possa satisfazer à insaciabilidade humana somente com uma mais equitativa distribuição de bens? No fundo da alma de quem mais grita hoje contra a injustiça social não está o desejo de alcançar uma equidade, mas sim de substituir aos atuais ricos, para lhes imitar os feitos e de maneira mais desastrada. Há, porém, um outro perigo. O bem-estar material adormece o espírito, amortece a luta, o que faz parar a evolução e nos distancia da salutar fadiga, que é o meio para alcançar os mais elevados fins da vida. Que fizeram, historicamente, todas as classes sociais que asseguraram para si o bem-estar, senão apodrecerem até à ruína? Para evoluir, portanto, não basta por si só a solução do problema econômico, como sustentam as modernas teorias igualitárias. Ninguém lhes nega a importância, mas é necessário compreender que isto ―por si só‖ alcança uma bem pobre solução, se ela não se faz acompanhar por uma paralela educação e preparação espiritual para saber viver em condições melhores, fazendo de tudo bom uso. Que venha, pois, também a justiça social e a elevação econômica das classes menos abastadas, mas tome-se em conta que, se tal crescimento não for compensado por um paralelo progresso moral e intelectual, tudo isto pode levar a uma ruína maior que a miséria atual, quando tantas coisas que se podem perdoar agora, seriam depois, em condições melhores, imperdoáveis. E, hoje, é exatamente esta sabedoria que falta, quando os bens não são meios para fins mais altos, mas somente fins em si mesmos e, com isto, motivo de ódios e destruições. Que real vantagem evolutiva o bemestar econômico pode levar a esse tipo humano? De que serve melhorar economicamente, quando se é imaturo para fazer disto um meio de progresso para planos de vida mais elevados? As finalidades da vida estão acima das teorias humanas. Elas querem levar a humanidade para o espírito, onde há maior poder e felicidade, e não fazer dela um rebanho de animais que pastam. Todas as leis humanas, em qualquer campo, devem existir somente em função dos escopos da vida. É preciso compreender os seus planos e segui-los, se não se quer ficar derrotado. Enquanto, na Terra, os homens lutam para monopolizar egoisticamente tudo, a vida é sempre universal. Nenhuma clas- 31 se ou indivíduo pode vencer isoladamente. A vida já é coletivista há muito tempo. Se os mais evoluídos podem tirar da fonte, é porque devem irradiar para os outros. A justiça social que hoje tanto se procura, já existe na vida. Tudo nela está proporcionado: fadiga, méritos, poderes. Quem não é digno, usurpa ou abusa, recai nos planos inferiores, onde mais se serve, e é excluído dos planos superiores, onde mais se comanda. O vencedor deve pagar a sua vitória em favor do vencido, que deve ser pago pela sua derrota. Depois de ter cumprido, naquele plano, a justiça de fazer triunfar o mais forte, a vida cumpre a justiça de ajudar o mais fraco. Tudo é harmonia no conjunto, tudo é equilibrado com justiça. As derrotas são compensadas e as vitórias são utilizadas, a força é estrangulada e a fraqueza é fortalecida; cada um é exposto conforme a posição dada pela sua natureza, pois que é esta que estabelece e atrai os assaltos. A natureza, nunca madrasta, compensará o servo à custa do dono e o débil à custa do forte. Este, mais dotado, crendo dominar, prestará ao outro o serviço de guiá-lo; o fraco servirá o senhor, mas este será o educador do servo. As barreiras sociais são artifícios humanos passageiros, já que a vida tende à unidade e, além dos antagonismos, propende à simbiose. Na realidade, o senhor não comanda e o servo não se sujeita senão formalmente, eles convivem, influenciando-se reciprocamente e adaptando-se um ao outro; vencedor e vencido nada mais fazem do que executar funções complementares, das quais cada uma tem a sua compensação. O dominador, com o bem-estar, se desfaz, e o servo, na sua dura posição, torna-se astuto e aprende a traí-lo. Assim, alguns povos são mais inteligentes porque se tornaram astutos em milênios de servidão. Dessa maneira, em qualquer posição em que estejamos, a vida nos faz mestres e alunos um do outro. No fundo de todas as dissensões e competições sociais, a vida já estabeleceu as suas harmonias e as faz funcionar, colocandoas em atividade. Cada elemento tira do outro e cada um acaba por dar o que tem. Quem crê comandar serve aos servos, e quem crê servir se faz servir pelos senhores. O mais forte não pode deixar de irradiar e se expandir nos outros; o mais fraco, porque é mais pobre, absorve. Assim o mais forte, ligando-se ao mais fraco, lhe permite viver. Tudo se reduz a uma universal convivência, na qual cada um, conforme sua natureza, atende a fins diversos, com objetivos complementares, formando a única grande orquestração da vida. Não há posição que não se compense de alguma forma do peso que a grava. Assim, o explorado explora como pode o explorador, numa rede de desforras, e tudo se reduz a trocas fraternais. A vida utiliza todas as suas células, e, quer queiramos ou não, a convivência no mesmo ambiente torna irmãos todos os seres. Qual é a sorte e a função dos fracos na sua economia? O número é a sua força. Assim, a natureza os protege. Por isto eles se reúnem em grupos para se apoiarem uns aos outros. Sentem-se seguros somente entre as filas dos iguais; isolados, estão perdidos. Não sabem pensar e agir sozinhos, mas pensam e agem coletivamente, como se fossem construídos em série, vibrando em paralelo. Desprovidos de qualquer autonomia, eles não sabem funcionar senão por imitação. Para saber pensar e agir por si próprio, é preciso ter uma personalidade. As massas vão assim, como rebanhos, à procura de pastores. E a sociedade já tem os seus homens-guias e normas-guias: instituição e chefes, leis e costumes, civis e religiosos, em todo campo. O forte não vive na grei; ele emerge e se isola. A massa dos fracos é necessária para fornecer ao forte o material com que trabalhar, mas um trabalho que serve para todos cumprirem os fins da vida. Tudo se reduz a uma distribuição de funções. Deste modo, o povo tem necessidade de chefes, assim como os chefes precisam do povo; os inteligentes têm necessidade dos ignorantes para ensiná-los, e estes precisam daqueles para que possam aprender; os bons têm necessidade dos malvados para ajudálos, e estes precisam daqueles para evoluir. 32 PROBLEMAS DO FUTURO Esses seres se combatem, no entanto não podem viver sozinhos; lutam para se conhecerem, chocam-se para se combinarem, para encontrar a fórmula de sua simbiose. Se não é possível encontrá-la, então a adaptação sabe em geral alcançar a solução: o mais forte destrói o mais fraco e o substitui na vida. Se isto parece cruel e desapiedado, é a esse sistema que a natureza deve a sua força nos planos inferiores. Assim cada ser tem o seu natural inimigo, segundo sua natureza e, nele, o seu continuo exame de prova. ―Diz-me com quem lutas e te direi quem és‖. Os grandes são solitários. Eles não aceitam a luta pelas pequenas coisas terrenas e não é com esta que se ligam aos seus semelhantes, mas somente por missão de bem. Eles não agridem os fracos, mas deles sentem piedade. O fraco tem sempre a vantagem de ser menos odiado, pois não se odeia o inferior, que obedece sem oferecer obstáculos e pode, assim, ser dominado. Odeia-se, ao contrário, quem, sendo mais forte, representa uma ameaça e, por isto, é temido. Cada assalto, na natureza, é no fundo uma defesa. Todo ser é levado a agredir quem para ele representa um perigo. Quando a simbiose não é possível, então um dos dois deve perecer: o menos dotado. Dessa maneira, a vida alcança os seus fins seletivos no plano animal-humano. Ela elimina os ineptos. Se isto parece ferocidade nos planos mais altos, não o é em relação ao próprio nível onde se verifica e à sensibilidade dos seres que toca. O que justifica a vida é a função. Se esta cai, aquela é inútil. As células imperfeitas dos grandes organismos são sacrificadas para vantagem e perfeição das outras. Esta é a condição do triunfo final. Assim é a sabedoria da vida. O que é destrutivo, no fundo, é criador, e o que é negativo assume um valor positivo. E a harmonia do conjunto, no caso particular do indivíduo inepto, não é destruída senão na forma, pois ele é eliminado do ambiente que lhe é menos profícuo, enquanto o princípio espiritual reencontra a vida em uma forma mais adaptada. A vida segue aqui um método geral e lógico para a eliminação dos valores fictícios e das passividades, permitindo que, na desordem das revoluções, na decomposição dos enquadramentos sociais, aflorem os extratos inferiores. Assim, a história, momento da biologia social, entra em crise. Então, a vida procura superá-la, para dela sair mais forte e imunizada, como acontece nas doenças. São esses os momentos em que os micróbios patogênicos – compostos, tanto na patologia orgânica como na social, pelos involuídos dos planos inferiores – prosperam, só porque encontram o ambiente adaptado para demolição. Micróbios sociais, que não afloram senão nas horas patológicas das revoluções. Depois, eles são repelidos para os planos biológicos inferiores, seu ambiente natural, porque cada ser acaba sempre recaindo no próprio plano de vida, por peso especifico, equilíbrio e sintonia. Assim, os filhos da desordem são depois retomados no ciclo de forças do seu mundo, pois que ninguém pode resistir longamente fora do seu elemento. As posições fictícias, não correspondentes aos valores reais, logo caem. Desse modo, os vencedores das revoluções raramente são os que as fizeram, e depois se restabelece uma ordem diversa, da qual eles são expulsos. Inicialmente, as revoluções são destrutivas e a vida, então, mobiliza a ralé incumbida dessa destruição. Porém depois, quando esses elementos exauriram sua função, tornando-se inúteis, a vida se desembaraça deles, para chamar à ação os mais evoluídos. Dá-se, assim, como que um processo de decantação ou depósito, pelo qual as unidades mais grosseiras e de maior peso específico, gravitando para baixo, aí retornam para se encarregarem de funções inferiores. Semelhantemente, a guerra é o grande catalisador, isto é, representa a ação decisiva na química dos povos. Tudo isto a vida faz para voltar aos valores reais e, assim, garantir a eficiência da função de cada um. Exame periódico de tudo, indivíduos, castas, povos, leis, instituições, para reformar, desfolhar, liquidar, deixando somente o útil e o bom. Com esses meios, a vida trabalha Pietro Ubaldi para se livrar das escórias, das incrustações, das superestruturas, que lhe impedem o caminho. Poda-se a árvore social, obra essa em que todos colaboram a seu turno. O pensador lança a ideia, o homem de ação a apanha e a aplica, as massas a fixam. Elas não sentem analítica e racionalmente, mas intuem por instinto, no fundo do qual é a vida que fala; são guiadas pela psique de seu núcleo vital. Os fracos, reunidos em grupo, sentem qual é a verdade que pode executar a função biológica de ajudar e salvar e a ela se apegam. Tal é, por exemplo, a materna e protetora função biológica das religiões, a que se agarram, mais do que todos, os fracos, os deserdados, os vencidos, à procura de ajuda para superar a dor, esperando e crendo. Eis o rebanho reunido e sectário. Poucos são os fortes capazes de dar, em vez de pedir. Os demais procuram apoio, uma defesa da vida, e os meios que os auxiliam cumprem uma função biológica. O que observamos numa rápida visão não é senão um dos aspectos da infinita sabedoria da vida. Dilatar os princípios acima expostos em ulteriores consequências nos levaria agora muito longe no caminho até aqui trilhado das ascensões humanas. VIII. A METAMORFOSE Depois de examinada a seleção no plano animal humano, observemo-la nos planos mais altos. Defrontamos agora o problema que mais de perto interessa ao nascente tipo biológico do futuro, isto é, o problema daquela profunda transformação que leva o ser humano do seu atual nível biológico para um evolutivamente superior. Procuremos observar o fenômeno da metamorfose do involuído em evoluído, explorando os desusados caminhos da futura biologia supernormal. Daremos assim um novo passo para diante, sempre mais progredindo no caminho da ascensão do ser. Poderemos então, paralelamente, ascender para verdades sempre mais vastas e profundas. Aqui, a particular experiência de um caso vivido, já exposta, torna-se visão das leis gerais do fenômeno. Completaremos, então, as normas que regulam o desenvolvimento do ser nessa nova fase da sua evolução, distanciando-nos sempre mais do plano humano atual. Mundo supernormal, que não se pode explorar experimentalmente com o método objetivo, mas somente por visão interior, com o método da intuição. É necessário apegar-se a esta, já que o campo é inacessível à investigação racional. O mundo do espírito não se pode explorar com instrumentos materiais, mas somente com meios espirituais. Para o ser não sensibilizado, incapaz de conceber os conceitos que seguem, bem como de obter sua visão por intuição, não podemos senão expor-lhe o resultado racional, sem outra possibilidade de controle. Como prova, podemos oferecer a concordância de todos os fenômenos observados nestes volumes e que convergem para as conclusões neles expostas. Quando tudo se enquadra e, logicamente, tudo se explica, a razão pode ficar satisfeita. O problema da evolução do ser humano nos leva para fora do campo dominado pela biologia normal, ao seio de uma outra biologia, que domina um campo mais elevado. Temos dito que ela muda com o ascender evolutivo de grau em grau. Não é de se admirar, então, que, em um universo em contínua ascensão, a utopia de hoje representa a realidade do amanhã. O fato é comum na história da vida. Vejamos se compreendemos a estrutura do tipo humano do futuro e as leis da nova biologia supernormal na qual ele se move. Enquanto o homem atual é, com prevalência, assinalado pelos seus caracteres físicos, o biótipo do futuro o será por caracteres psíquicos. Confrontando as duas biologias, que evolutivamente são contíguas e comunicantes, podemos dizer que aquilo que, hoje, é psíquico tomará amanhã o valor e a precisão anatômica do que, hoje, é somático. Enquanto, hoje, o homem é considerado pela ciência como organismo prevalentemente animal, amanhã ele será considerado como organismo espiritual. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Como se dá a criação de novas formas de vida? A existência se deve a uma contínua restituição por trocas, isto é, a um movimento que, tendo uma direção natural, significa caminho evolutivo. No íntimo de cada forma, está a perene imanência do pensamento de Deus, que impele o ser a percorrer aquele caminho. A forma define precisamente toda sua posição sucessiva e, para não se imobilizar, torna-se destrutível, portanto suscetível de contínua renovação. Esse perpétuo morrer e renascer de todas as coisas é o que torna possível o transformismo evolutivo, de outro modo impossível. Assim, o existir é um tornar-se, mas ascensional; um relativo, mas sempre em evolução. O pensamento de Deus, ao movimentar-se progressivamente, faz pressão do interior para se manifestar na forma, sua expressão. É evidente, e a vida assim nos diz, que a expressão que dá forma a nós e a tudo que existe vai do material ao espiritual e além. De modo que, com a evolução, aquela forma se faz sempre menos concreta e mais abstrata, tornando-se assim expressão sempre mais clara do íntimo pensamento criador, portanto mais semelhante a ele. Temos visto, nos precedentes escritos, como se dá o desenvolvimento da personalidade por expansão de consciência, por força da contínua experimentação que é o fruto da vida. Esta é a parte expressa pela colaboração humana, que segue com a sua fadiga o íntimo divino impulso criador. A ciência pergunta se a função cria o órgão ou o órgão cria a função. Recordemos que o órgão é forma transitória, formada, sustentada e transformada continuamente pela função, que é a atividade na qual, gradativamente, se exprime o íntimo pensamento criador. O que é real na vida não é a forma, mas a trajetória do seu tornar-se. É neste tornar-se que se manifesta o íntimo impulso do pensamento criador, em que o ser, com o desejo, repete em ponto menor o gesto de Deus, tentando o primeiro esboço do órgão. Cada ato, expressão daquele pensamento, vem logo experimentado pelas resistências do ambiente; é repetido se houver êxito e, com isto, fixado e desenvolvido no crescimento do órgão, seu meio. Toda formação atual da vida não é senão repetição de atos iniciais bem sucedidos, confirmados na prática, consolidados em órgãos estabilizados, que permanecem até que haja evolução ulterior para a formação de novos. Se, assim, é a função que cria o órgão, não se pode negar que seja depois o órgão que permite à função fixar-se e agir sobre ele para o transformar, aperfeiçoar e desenvolver até ao ponto de conseguir um meio superior àquela expressão, utilizando seu funcionamento para fazer uma nova forma para si. Então é de novo a função que cria um órgão sempre mais perfeito, e assim por diante. Mas a este ponto ela não pôde chegar senão porque pôde primeiro manifestar-se e agir por meio do órgão já formado. Dessa maneira, tudo está concatenado em continuação, num lento transformismo, e os dois meios de expressão, o órgão e a função, se escoram reciprocamente para chegar ao mesmo fim de evoluir. Pois que toda função tende a formar um órgão sempre mais complexo e perfeito e todo órgão permite que haja expressão de uma função sempre mais complexa e perfeita. Reciprocamente, causa e efeito, órgão e função, são como duas pernas sobre as quais caminha a evolução. Se esta, agora, se encaminha para o espírito (que sabemos representar um grau maior de liberdade, conhecimento, potência e expansão), é lógico que o íntimo impulso criador tenda, através da mencionada mecânica evolutiva, a transformar o organismo físico em organismo espiritual, através de um funcionamento que, de físico, expresso por órgãos materiais, tende a fazer-se sempre mais espiritual, expresso por órgãos imateriais. Já no atual grau de evolução, o homem começa a representar um funcionamento que se faz sempre mais nervoso e psíquico. Eis a fase de transformação do velho organismo físico, com a formação de um novo organismo espiritual, e isto 33 por graus, até que este último, fixado em novas formas, terá construído os meios e os órgãos para uma atividade superior. A palavra alma é genérica, e o espírito não é uma quantidade constante, mas um edifício em construção. O tipo biológico do porvir pode representar, em face do atual, uma hipertrofia psíquica, uma elefantíase espiritual, uma hipersensibilidade, uma dilatação de consciência e de conhecimento hoje inconcebíveis. Se confrontarmos o crescido funcionamento cerebral e intelectual moderno com o do homem pré-histórico, podemos bem imaginar o que ele poderá vir a ser no futuro, continuando esse caminho. Ninguém pode negar as novas condições de vida do homem moderno em um ambiente de velocidade e de máquina. E ninguém poderá impedir que essas condições de vida, que são um desenvolvimento do passado, continuem a se desenvolver no futuro e a influir sempre mais sobre o gênero de experiências e, pois, de funções que completarão a nossa vida de amanhã. Essas funções, tenazmente aplicadas por longa repetição ao organismo atual, só podem resultar na transformação desse gênero, para criar um organismo novo, mais adaptado à sua atuação. Com a mecânica evolutiva, dada pela oscilação entre órgão e função, chegar-se-á ao novo tipo biológico, com características predominantemente espirituais, e não mais físicas. Aqui nos propomos observar esse fenômeno, concebendo-o não pelo lado ideal, mas biologicamente. Queremos ver o espírito não como vaga aspiração, mas enquadrado na biologia supernormal do futuro. Trata-se de uma nova biologia do espírito, com suas respectivas leis, na qual o homem se prepara para ingressar. Já dissemos alhures que a humanidade atual, em face desse novo plano evolutivo, se encontra psiquicamente na sua fase paleontológica de incertas formações e precipitados esboços. É a fase dos ensaios e das tentativas. Construções espiritualmente monstruosas, que aguardam, para fixar-se, a verificação na experiência. Elas representam um primeiro funcionamento desordenado, que está plasmando o seu órgão, a consciência, hoje rudimentar. O fenômeno é originado pelo íntimo impulso criador, amadurecido por todas as construções precedentemente completadas, potenciado por todas as conquistas já feitas. As experiências de hoje, sociais, artísticas, bélicas, intelectuais etc., representam também um exercício de novas funções psíquicas, que tendem a formar órgãos espirituais novos, derivando-os daqueles rudimentares hoje existentes. Trata-se de uma verdadeira grande volta da evolução, que quer levar a humanidade para um mais elevado plano de vida, deslocando assim o seu centro de gravidade. Nenhum período histórico foi mais intenso e ativo nesta transformação, o que explica assim a destruição dominante e o universal dinamismo do nosso tempo. A maioria tem somente o sentido da ruína, mas no fundo dela, por lei da vida, está sempre a ressurreição. Se a civilização europeia está morrendo, ela deixa no entanto, como tudo que morre, uma semente, e cada filiação repete a vida precedente em um grau mais elevado. A cada novo rebento seu, há um imperceptível deslocamento para um ciclo maior. Tal como o fruto cai da árvore quando está maduro e o filho se solta da mãe tão logo esteja crescido – processo em que o novo se destaca do velho, abandonando-o – assim também, apenas a função esteja amadurecida e fixada, a nova civilização do espírito se destacará da velha civilização materialista, que cairá abandonada como inútil. Toda vida é um ciclo que se renova e se dilata no ciclo seguinte. E, assim como a vida percorreu e superou o ciclo mineral, vegetal, depois animal e, enfim, humano, agora, pela mesma lei que a lançou por esse caminho, ela deve percorrer o ciclo sucessivo, o superhumano do espírito. Assim como, no desenvolvimento, o ciclo mineral está para o vegetal, o vegetal para o animal e este para o humano, o humano está para o super-humano, que dele se distancia em um ciclo mais alto, progredindo com o mesmo 34 PROBLEMAS DO FUTURO ritmo de ascensão e desenvolvimento. O espírito, fruto da experimentação por meio do organismo material, tenderá a destacar-se sempre mais da matéria, em cujo seio é elaborado, para formar órgãos de expressão mais adaptados à sua nova estrutura, mais refinados para suas novas funções. Esta é a grande metamorfose dos futuros milênios. Sendo tal metamorfose uma revolução biológica, é natural que ela se verifique numa atmosfera de destruição e de renovação. À sua testa estão os ideais e quem os professa; na sua cauda estão os instintos animais e os involuídos, que os vivem. Tais são as forças biológicas em contraste. As atividades que fazem a nossa vida representam as várias funções formadoras de órgãos. A matéria, forte na sua formação do passado, resiste, mas o espírito já está em ação, e isto significa que está em ato o processo de formação dos novos órgãos de sua expressão. A permuta da vida e a assimilação dos frutos da sua contínua experimentação não pode parar. O mineral chegou à construção do seu edifício geometricamente orientado, a planta conquistou a sensibilidade e a permuta, o animal alcançou o movimento e o instinto, o homem atingiu a inteligência e o domínio. Assim, o super-homem alcançará, com a intuição, o conhecimento e a sabedoria. A progressão em potência e libertação é evidente, e o futuro não pode ser senão a continuação do passado na mesma linha de desenvolvimento. Na metamorfose evolutiva, o novo homem espiritual deve substituir o atual homem animal. As experiências da sua vida se tornam sempre mais psíquicas e sempre menos físicas. A nova função já está começada, e as suas experiências no novo campo não podem deixar de desenvolver o meio apto que as exprima e as fixe. Esse novo gênero de atividade se faz sempre mais difundido e profundo na raça humana; resulta disto que se destilam sempre novas qualidades no imponderável, que assim, amanhã, tornar-se-á de pleno domínio humano. Dessa forma, os novos organismos imateriais se desenvolvem e se potenciam até se elevar à forma autônoma e, através de sua coordenação, constituir um organismo para o qual, do plano material, será transferido o centro do sistema de forças da vida humana. Assim, a função psíquica, derivada da atividade gerada pelo funcionamento orgânico animal através da luta pela vida, torna-se dominante e determinante de um diverso organismo dele derivado. De modo que o organismo físico, antes principal, em função do qual existia a psique, torna-se secundário e acaba por viver em função do psíquico, tornado dominante. Enquanto hoje, para a maioria, o espírito é uma antecipação rudimentar da evolução e o corpo é toda a sua vida, amanhã a vida estará toda no espírito e o corpo não representará senão um apêndice abandonado na cauda pela evolução, resíduo do passado, em processo de lenta atrofia. Um dia, como hoje se dá com alguns órgãos, todo o atual organismo será uma sobrevivência atávica, um resíduo de formas vividas e superadas, que o ser se prepara para abandonar definitivamente nos mais baixos degraus da evolução. Então, o homem viverá em plena biologia supernormal. A esta conclusão nos leva toda a lógica do sistema. No estado atual, o homem está em fase de transição entre as duas biologias: a animal e a espiritual. Isto corresponde ao universal transformismo físico-dinâmico-psíquico. Em um primeiro tempo, a psique, produto do funcionamento orgânico, está a serviço deste; em um segundo tempo, quando aquele produto elaborado pela vida orgânica se tornou adulto, o equilíbrio do sistema de forças constitutivas do ser se desloca e tudo começa a gravitar para outra extremidade. Então, o corpo torna-se de senhor em servo, de fim em meio, e a sua atividade, em vez de subordinar a si o espírito, como no tipo corrente, subordina-se ao espírito, como nos mais evoluídos. Isto desloca todos os valores da saúde e da doença, do bem-estar, da vida e da morte. As velhas formas de vida ficam esvaziadas do conteúdo normal e com significado de todo diverso. Então, elas devem ceder o Pietro Ubaldi passo a novas formas; daí um contraste penoso, mas criador. Devem dar-se, então, profundas transformações na íntima estrutura cinética da substância orgânica, para registrar e fixar os resultados de um metabolismo diversamente orientado, para novas formas biológicas: as espirituais. Todas as energias e os recursos da vida física devem ser cedidos à outra forma que surge; todas as qualidades já adquiridas devem ser postas a serviço e orientadas para o seu crescimento, pois que, sem morte, não pode existir ressurreição; sem renúncia não há conquista. É uma estranha sensação sentir-se renascer em outro plano de vida, com recursos e poderes diversos. Cai então o conceito da pequena e breve vida humana, e nos sentimos viver em uma imensa vida eterna. O senso fundamental de alegre expansão, próprio de todo desenvolvimento, nos diz que estamos no caminho mestre da evolução. O senso de felicidade crescente nos diz que não erramos. O novo senso de orientação, que nos dá consciência e sabedoria, nos diz que sempre mais nos avizinhamos de Deus. É estranho e maravilhoso sentir-se mudar, morrer para reviver em novas dimensões, além do espaço e do tempo, sentir que a própria vida física se atrofia, se contrai, para ceder a sua potência a qualquer outra parte do eu, que ainda não se conhece e que foge no imponderável. Parece que a vida física se esvai, absorvida pela voracidade do espírito. Se o corpo passa para segundo plano e parece agonizar, ele é todavia sustentado, porém não mais por fontes orgânicas, e sim espirituais. Profundas alterações devem advir na permuta e na assimilação, para passar da normal, do alimento, à da energia cósmica, devendo a íntima estrutura do metabolismo celular transformar-se toda. Mas as leis da vida sabem conduzir-nos a bom termo. Então, começa-se a ver o mundo com olhos diversos, tornando-se de natureza diversa o contato com o ambiente; aparecem, então, novos aspectos, mais psíquicos do que físicos. Assim, os contatos e as experimentações se espiritualizam, as trocas e abastecimentos dinâmicos seguem novos caminhos radiantes, que não são mais os do alimento. A sensibilidade, que exprime o grau de expansão vital e fornece os seus meios, iniciada com o ingresso do reino mineral no vegetal e acentuada no mundo animal e humano, se desenvolve até transformar o organismo em uma unidade vibrante. O evoluído é um sensibilizado. Nele abrem-se novas portas, com a queda de diafragmas, permitindo comunicar e receber. Então, além do limite do espaço e do tempo, o mundo se torna imenso. Entra-se, depois, no domínio de novas leis, com um funcionamento orgânico e uma química cujos elementos componentes são forçaspensamentos, um mundo dócil e plástico, em que a concepção tem potência criadora. É, por certo, uma grande revolução passar da biologia normal à supernormal. A química do metabolismo de alta potencialidade, própria do extremo superior, dito espírito, deve gradativamente introduzir-se, substituindo a química do metabolismo de baixa potencialidade, própria do extremo evolutivo inferior, dado pelo organismo físico, que é, assim, como queimado pela lenta combustão de uma potência e um ritmo de vida demasiado fortes para os seus meios e estrutura. O corpo, assim, emagrece, torna-se em feixe de nervos, mas com um dinamismo e resistência ao trabalho e doenças superiores ao normal. Parece que a vida trata agora o organismo físico como uma inútil sobrevivência atávica, produto de refugo a ser eliminado em cinzas. Certamente a química do espírito não só deverá basear-se em leis análogas às da química inorgânica e orgânica, mas também, assim como a química atômica recorda a dinâmica astronômica, deverá lembrar a estrutura dos sistemas de forças segundo os quais a energia se organiza por frequências. Um primeiro contato entre o extremo psíquico e aquele físico humano, o encontramos na influência que tem na assimilação e permuta um estado psíquico do sujeito, tanto que, se prolongado, ele pode incidir na estrutura orgâ- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO nica e alterá-la. Isto prova que é possível, por parte da psique, uma influência transformadora na estrutura da célula. Como se vê, a catarse espiritual não é somente fenômeno da alma, mas, para ser completa, deve conter todo o ser humano até o seu outro polo, o físico, com que se comunica. As duas biologias estão em contato, representam dois planos evolutivos contíguos e trocam entre si os seus produtos. Na prática, podemos ter metamorfoses muito diversas, seja pelo grau de evolução, seja pelo particular tipo biológico que as vive e, portanto, pelas respectivas qualidades a serem adquiridas. Que diverso conteúdo pode, pois, adquirir para os vários indivíduos a metamorfose! Em todo caso, porém, como velocidade, o transformismo é sempre gradual, diluído no tempo, de modo a permitir os íntimos deslocamentos cinéticos necessários para a substituição das velhas trajetórias pelas novas. Mas tudo é sempre proporcionado aos recursos disponíveis e à maturidade atingida. Tudo se realiza com ordem, de modo que os equilíbrios são deslocados, e não destruídos. Trata-se de instituir novos circuitos de forças, lançar pontes e suprimir outras, abrir ou fechar passagens, dissecando ou alimentando, atrofiando ou desenvolvendo este ou aquele ponto, ou vibração, ou corrente. Trabalho complexo, onde nada mais há senão confiar-se à sábia direção da Lei. A vida, que sabe, protege nesses profundos trabalhos evolutivos a criatura que, inexperiente, se aventura no inexplorado. Velocidade de transformismo significa intensidade de elaboração, que não pode superar um dado limite relativo. A evolução tem um ritmo que não se pode forçar. Pode, assim, haver necessidade também de pausas e repousos, ainda de momentâneos retrocessos, para que a evolução não se torne destruição. Problema vasto e complexo o da ascensão espiritual, porque diz respeito a uma biologia na qual o imponderável psicológico e moral se torna força dominante. Certas concepções absolutistas de um ascetismo não iluminado podem, em vez de ajudar, causar dano ao processo evolutivo. Este representa uma maturação de todo o ser, por isto também do corpo, que não deve ser inutilmente perseguido e esmagado como um inimigo, mas tratado como um aliado colaborador na árdua obra construtiva. Os dois polos são comunicantes, e cada impulso desconsiderado pode gerar reações prejudiciais. Nenhum dos dois extremos pode trabalhar sozinho, mas sempre em função do outro. Trata-se de uma sábia distribuição de trabalho. É necessário haver proporção e equilíbrio a cada passo, porque o desequilíbrio que o transformismo implica deve ser enquadrado no equilíbrio geral do sistema. É necessário saber dosar o esforço evolutivo em relação aos recursos que a vida dispõe no caso particular. Que a ascensão seja uma metódica e consciente conquista, e não uma louca aventura. Evoluir significa revolucionar os equilíbrios da vida, o que, se mal feito, pode resultar, em vez de progresso, em retrocesso. Para se fixar na alma é necessário haver mais perseverança e disciplina do que ímpetos precipitados e desordenados. É preciso ter em conta que a evolução espiritual é um fenômeno que se desenvolve entre duas biologias, portanto não é somente um fato moral, mas penetra todo o organismo, também o físico, com o qual precisa fazer as contas. É muito difícil formar um conceito exato e são de virtude, especialmente no caso particular das aplicações práticas. De toda maneira, ela deve ser sempre um auxílio, e não uma ofensa à vida, uma atividade positiva e construtiva, e não de prevalência negativa e destrutiva. Lembremos que Deus é sempre construtivo, e que o trabalho de destruição foi deixado a Satanás, que o executa. Tudo o que é destruidor não pode, pois, vir de Deus e exprime o princípio satânico do mal. Não façamos da virtude, na luta pela vida, um meio para oprimir e vencer o próximo. Por outro lado, ministrar ideais muito elevados e absolutos significaria oferecer um alimento não assimilável. Desta desproporção entre ideal e homem é que nascem as degradações dos princípios por adaptação, como observamos tão frequentemen- 35 te. Então, em vez de elevar o homem ao nível do espírito, abaixa-se o espírito ao nível do homem. Em vez de efetiva colaboração entre os dois, nasce luta e atrito, destruição e deformação. É da forçosa imposição da virtude que nasceram em tantos imaturos os arranjos e as mentiras. A evolução é mudança profunda, que requer infinitas experiências, mesmo do mal, do erro e da dor, operadas tanto no espírito como no corpo. Para que a vida, que deve viver, não se rebele com razão, é preciso, antes de destruí-la embaixo, desenvolvê-la no alto. Antes de ser sufocamento no corpo, a ascensão espiritual deve ser expansão no espírito. Somente então a vida se lançará deste lado, e o resto, tornado inútil, cairá por si. Ai de nós se dermos à prática da virtude um conteúdo negativo, em vez de positivo. A vida não pode destruir-se, o que seria contra a lei de Deus, além de ser um suicídio. Então, se quisermos tirar antes de dar, ela reagirá, reforçando-se embaixo para não morrer, e obteremos por reação o efeito contrário, isto é, a involução. É preciso sempre ter em conta a que tipo biológico um ideal é aplicado. Assim é que se explica como, na prática, todo ideal representa uma afirmação teórica que pede cem, sabendo que recolherá apenas um. É a natureza das massas que estabelece a dosagem para a assimilação dos princípios pregados, aos quais, por isto, não se pode lançar a culpa de uma aplicação falha, porque esta depende do terreno no qual a semente cai. É preciso recordar que a evolução é uma grande transformação e que a vida sabe o esforço e o risco que isto representa para ela. Ela caminha lenta e prudentemente, explorando o ignoto futuro com desconfiança; das energias acumuladas, não arrisca o necessário à vida, mas somente o supérfluo; expõe aos perigos do novo somente alguns pioneiros da evolução, deixando o grosso atrás, em mais segurança, para aprovar ou seguir os pioneiros somente quando eles tiverem experimentado sozinhos, com risco e dor própria, a forma futura. Então, esta pode ser seguida pelos outros, porque somente aí ela dá segurança. Assim, os pioneiros ficam glorificados, porque utilizáveis para a vida. Podemos, pois, encontrar-nos com diversíssima velocidade de transformismo evolutivo: desde a rapidíssima do superhomem, que já se lançou e percorre a grandes passos o seu caminho, até às mais limitadas e lentas dos normais, que funcionam em série, como massas. A vida não pode ingressar nos planos superiores da evolução sem ter antes percorrido os precedentes e haver se consolidado neles. É a vida, e com ela o pensamento de Deus, que aperfeiçoa a sua manifestação, dando evolução à forma pela qual se manifesta. Mas também as massas conhecem as crises evolutivas, as quedas e as reconstruções; também para elas a história tem voltas e metamorfoses. Eis como tudo isto acontece. A fecundidade da vida é tal que produz em exuberância, além das necessidades para sua continuação. Logo que, nos períodos de paz, há trégua na luta viril, destruidora e construtora, o elemento negativo ou feminino, produtor, protetor e conservador da vida, trabalha e produz no seu campo, que é o da acumulação de material. Então se verifica, assim, uma superprodução que não somente repara todas as perdas passadas, mas também acumula material biológico em abundância. Logo que se haja formado uma suficiente reserva, elaborada até um dado grau de evolução, então a vida, tal como já fez no mundo mineral para chegar ao vegetal, em seguida no vegetal para chegar ao animal e depois no animal para alcançar o plano humano, pode arriscar em sua economia o sacrifício desse material excedente ao necessário, para fins não mais de conservação, mas de evolução. Então, a vida queima esse seu combustível e o consome em revoluções, usando-o para alimentar um esforço excepcional de ascensão, destruindo com as revoluções as suas construções biológicas menos eleitas e, ao mesmo tempo, deixando sobreviver das cinzas do incêndio os mais selecionados tipos 36 PROBLEMAS DO FUTURO biológicos, aptos para mais altas formas de vida. Completado o ciclo da paz com a construção dos seus produtos, entra em campo o princípio positivo, másculo, destruidor e criador, cuja função é utilizar o combustível acumulado, queimando-o para renovar e fazer evoluir as formas da vida. Assim, nas revoluções, cumprem-se as metamorfoses dos povos. Mas essas não podem vir senão depois de períodos de preparação, de paz, e requerem outro tanto depois para elaborar e fixar os resultados atingidos com as revoluções. No entanto se acumula novo material de reserva ou combustível para as queimas, para novos deslocamentos evolutivos, e assim por diante! Dessarte, de metamorfose em metamorfose, também os povos progridem. Esse processo faz parte do sistema criador, em que Deus perpetuamente está presente e opera, manifestando-se na forma. Assim, a produção exuberante como quantidade, mas de qualidades inferiores, destila-se no seu equivalente, menor como quantidade, mas de qualidade superior, em um plano biológico mais elevado. Dessa maneira, aumenta a potencialidade da expressão, porque o valor passa de um grande número de exemplares de escasso valor, a um mais exíguo, mas de maior potência e mais elevado grau evolutivo. Esse é o ritmo da ascensão dos povos e civilizações. Primeiro paz, trabalho, desenvolvimento demográfico, construção material e espiritual, isto é, expansão em sentido horizontal sobre a superfície do próprio plano evolutivo, depois aquela formação horizontal é utilizada para o único fim possível, isto é, para crescer na vertical. Então, a primeira se desfaz e, do que resta, porque é mais resistente e vital, faz-se um edifício em altura, isto é, em direção evolutiva, em potência. Utilizando os resultados do ciclo precedente, toma-se o impulso para um novo, podendo assim chegar bem mais alto, ao utilizar somente o valor intrínseco e a potência das conquistas feitas, sem trazer consigo o peso dos particulares elementos determinantes. Assim, de revolução em revolução, caminha a história e evolui a vida. Dessa maneira, por alternada vicissitude entre paz e guerra, entre períodos de legalidade, representando a fase de estabilização e assimilação, e períodos de ilegalidade, representando a transformação, caminham os povos. Estas fases, ambas necessárias e complementares, são como uma respiração a dois tempos, a respiração da história. Elas não são senão duas posições inversas, uma no positivo e outra no negativo, da mesma perene atividade criadora de Deus na humanidade. No seio desses movimentos de massa, os indivíduos seguem ciclos pessoais. Aquele para, aquele caminha, aquele retrocede, aquele procede lentamente, cada um segundo sua natureza e condição. Mas é sempre por revoluções ou metamorfoses que se ingressa em formas de vida mais altas, é sempre pelo mesmo incêndio que se ascende, tanto para o indivíduo como para as massas. Quando, num plano, experimentou-se suficientemente, tendo absorvido todos os recursos, então o ser, saturado daquela ordem de forças, transforma-se e aporta a um plano mais elevado, para experimentar outras formas de vida e, dessa forma, poder continuar, com novos elementos, a sua construção, e assim por diante. Observando o processo das metamorfoses do humano ao super-humano, temos delineado a trajetória dos grandes ritmos da evolução, isto é, das oscilações periódicas dessa grande respiração criadora de Deus. Podemos, assim, ver um aspecto da técnica da criação, que é contínua. Parece que estamos contemplando uma ascensão ao longo de uma escada, da qual todo degrau é um plano de evolução. O pé do ser que sobe pousa sobre um deles, ajeita-se e, somente depois de consolidada a sua posição, pode tomar impulso para subir ao degrau seguinte. A ascensão de um degrau representa uma revolução, a formação de uma nova civilização para os povos, a metamorfose para o indivíduo. Mas assim como, feito o esforço e realizada a ascensão, os povos se acomodam nas novas posições para fixá-las, também o indivíduo repousa nelas, para retomar de- Pietro Ubaldi pois, tal como faz o pé ao subir, um novo impulso para um degrau mais alto. Os superados são abandonados embaixo, como formas de vida já inúteis, mas os superiores, pelo fato de dominá-los, resumem em síntese e contêm todo valor já adquirido. Assim, nada se perde e a conquista continua. Nesse movimento vivem dois processos paralelos: um de destruição na cauda e outro de construção na cabeça, à semelhança de vermes que caminham desintegrando-se de um lado para reintegrar-se no outro. Assim este, mesmo enquanto se transforma ao progredir, fica inteiro, pois que readquire em nova forma aquilo que perde. Na substância nada se cria e nada se destrói, mas tudo se elabora. No homem que ascende, há sempre qualquer coisa que se deixa e qualquer coisa que se adquire, em um movimento paralelo e proporcional que o desloca para o alto. Essa técnica é igual para todos, em todo nível, relativa ao passo de cada um, seja ele involuído ou evoluído, caminhe inconscientemente, somente como célula em função de uma massa, ou como autônomo e consciente, autodirigindo-se. Evoluir é o motivo dominante neste e nos outros volumes, observado em todos as aspectos e níveis do nosso concebível. Vimos isto alhures, como fenômeno inspirativo, psicológico, místico e filosófico. Aqui, quisemos observar como fenômeno biológico. Quando um primitivo resolveu o problema da fome e da reprodução, está satisfeito com suas conquistas. Outros querem alguma coisa a mais: honras, poder, riquezas. Outros ainda mais: a cultura e o bem coletivo. Outros, enfim, um pouco mais: a visão do universo e o amor de Deus. Mas todos apressam o passo para alcançar qualquer coisa, e nisto cada um se revela quem é, pois que não se sabe desejar e não se conquista senão conforme a própria natureza. Assim, há trabalhos e conquistas fundamentais para alguns, que para outros estão no inconcebível. Há coisas tremendas, para as quais o inferior não tem a mínima ressonância. Há necessidades espirituais, como as do conhecimento, que para uns são fundamentais, mas que para o primitivo não têm sentido, pois fundamentais para ele são as do corpo. Ele é surdo e cego em face das grandes alegrias, tempestades e criações do espírito. Cada um está fechado no próprio concebível, nas dimensões do próprio plano evolutivo, limitado pela própria forma mental, que lhe define a natureza. O que está além do próprio nível, latente, ainda não desenvolvido, representa o nada. É a estrutura da nossa consciência que estabelece os confins do eu. A verdadeira servidão é dada por esses limites, a verdadeira liberdade consiste somente em superá-los. Todo ser está fechado nos limites constituídos por seu próprio tipo biológico. É inútil indicar-lhe portas: se não está amadurecido, não sabe passar por elas. É inútil mostrar-lhe novos mundos: não tem olhos para vê-los. É inútil oferecer-lhe novo alimento: não sabe nutrir-se dele. É inútil dizer-lhe tudo nos livros: não o sabe ler neles. Ele está integralmente preso às experiências do seu plano. Até que tenha percorrido toda a estrada necessária, um passo depois do outro, não poderá chegar àquele dado grau de evolução, de liberdade e de potência. Na atual fase evolutiva humana, hora histórica de grandes transformações, os dois tipos biológicos pertencentes às duas biologias, normal e supernormal, estão-se defrontando. O segundo, se bem que raro, já existe para se multiplicar e se afirmar, e eles se podem medir na luta pela vida. À primeira vista, pode parecer que o primitivo, mais simples e menos sensibilizado, seja o menos vulnerável, o que tem maiores probabilidades de salvação. Mas não é assim. Ele se move por tentativas, nas trevas da sua ignorância e, fora dos imediatos problemas, nada mais sabe resolver. O evoluído é autônomo, autodirigindo-se em relação ao funcionamento orgânico do universo, que ele conhece. Suas previsões e defesas alcançam muito mais longe. A inteligência é uma grande força na luta pela vida, a sabedoria é uma força ainda maior. O primitivo é Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO estúpido. A sua violência pode triunfar no momento, mas perde no jogo mais longo e complexo que a vida constitui. Ele deve suportar as reações de leis que não conhece e que, loucamente, viola em seu dano, coisa que o evoluído, que sabe, nem pensa fazer. Quem sabe proceder em harmonia com o todo arrisca-se muito menos a errar e a sofrer. As vitórias do primitivo são imediatas, mas efêmeras. Afirmações, defesas e conquistas, nada pode superar os limites do próprio plano, que são sempre tanto mais acanhados quanto mais em baixo se desce, e sempre tanto mais vastos quanto mais se sobe. As mãos do ser evoluído alcançam muito mais longe. Está-se inexoravelmente ligado à própria natureza, resultado do nosso passado, e se recai sempre no prejuízo dos próprio limites. Nenhuma liberdade humana pode dar a verdadeira liberdade, que não se pode conquistar senão através da própria transformação. As verdadeiras prisões que encarceram os homens, as cadeias que os mantêm escravos, ligados a dados pontos fixos, são os seus instintos, que os prendem aí. Os verdadeiros muros de contorno que limitam a cidade do eu são imponderáveis e, no entanto, invioláveis; todos estão inexoravelmente fechados dentro deles e não os veem. Não suspeitam sequer que deles se possa sair e vão gritando liberdade, uma liberdade que quer dizer direito de obedecer aos próprios instintos, isto é, de ficar nas cadeias da própria escravidão. Assim todos obedecem, mesmo quem crê ser um rebelde à Lei, que mantém todos, não importa que o saibam ou não, enquadrados na sua ordem. Para se moverem livres e autônomos basta conhecê-la e, depois, segui-la. Para se tornar sempre mais livre e autônomo, para derrubar os invisíveis muros que cingem a cidade do eu e arrombar as portas que os fecham, mais não há que apenas compreender a Lei e harmonizar-se com o seu funcionamento, vivendo-a; mais não há senão subir evolutivamente, operando a própria metamorfose. IX. A TÉCNICA DA EVOLUÇÃO Iniciamos este volume partindo da psicologia do involuído Desse ponto é que se iniciou a nossa ascensão, estudada anteriormente em um simples caso vivido, experimentalmente observado. Depois, para tomar o impulso a uma ascensão mais vasta, dilatamos a observação a todo o plano inferior da animalidade, para ver suas leis de luta e seleção para a produção do seu tipo mais forte, de acordo com a biologia daquele plano. Enfim, no precedente capítulo, para passar ao plano mais alto e à sua biologia, pusemos em foco a observação do fenômeno da metamorfose do humano em super-humano, porém não mais como antes, numa particularidade, mas estendendo o estudo até à visão das leis gerais do fenômeno, que o regulam para todos. Alcançado esse ponto, podemos estender o nosso exame à íntima técnica do mais vasto fenômeno de toda a evolução. É maravilhoso observar o método pelo qual ele funciona e se cumpre, pois que exprime a técnica do processo da criação, sistema com o qual se realiza a perene ação criadora de Deus. Este, pois, além de transcendente, é também imanente e presente, qual pensamento que sempre mais perfeitamente se exprime na forma evolvente, em que ele se manifesta. Também este fato é aqui relatado por meio de visões percebidas por intuição. Elas, assim, fazem-se sempre mais vastas e profundas à medida que o argumento se desenvolve, fazendonos ascender de plano em plano, o que nos levará a compreender o espírito e a sua estrutura. Do fato de tais concepções serem obtidas não por análise, através do método racional objetivo, mas sim por síntese, com o método da intuição, deriva a sua potência, com a qual elas são aqui apresentadas. Enquanto a mente moderna se demora na investigação do particular e na infinita casuística, aqui se concebe por grandes linhas de orientação, indo, assim, diretamente às soluções dos 37 problemas e às raízes dos fenômenos, mostrando seu funcionamento substancial. Assim sendo, a nossa exposição não pode assumir, conforme a hodierna mentalidade objetiva, a forma periférica aderente aos efeitos, pois é central, aderente às causas. As deduções, as aplicações ao caso particular, o íntimo e incomunicável controle experimental que o autor fez por si mesmo, qualquer um poderá depois fazê-lo em si e por si. O precedente exame da metamorfose humana ou catarse físico-espiritual nos tem levado plenamente ao fenômeno da evolução, de cuja técnica nos propomos agora aprofundar a observação. Devemos aqui presumir o conhecimento do problema da personalidade humana, tratado no precedente volume: A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Trata-se aqui de desenvolver aqueles conceitos, especialmente com relação à evolução. Vimos que espírito e corpo são os dois extremos de um mesmo organismo, os polos inversos de uma mesma unidade. As características do corpo são físicas; as do espírito, psíquicas. De um lado, qualidades materiais sensorialmente ponderáveis; de outro lado, qualidades imateriais, imponderáveis. Assim é pelo princípio universal de dualidade e por lei geral de equilíbrio, simetria e complementaridade, segundo o que toda individualidade é uma unidade equilibrada e simétrica, feita de duas unidades inversas complementares. Essas duas partes do organismo único dividem entre si, conforme sua natureza, o trabalho e a função da vida, sendo opostas e ambas necessárias. Assim, o dinamismo biológico, base da evolução, se divide em dois. O corpo trabalha no exterior, em uma forma de atividade periférica e sensória; ocupa-se, pois, do registro das experiências e da transmissão ao centro, que está no outro polo do ser. O espírito, que é íntimo, central e sensitivo, é o ponto de chegada daquela atividade. Ele trabalha no interior, em forma inversa, complementar da primeira, que, sozinha, não teria finalidade. Ele elabora e fixa os registros que lhe são transmitidos, assimila-os e os transforma assim em material construtivo da personalidade. Somente dessa maneira, a vida física assume um significado e uma meta; e esta meta é a evolução, que significa contínua conquista da vida. Os dois termos são necessários um ao outro; o corpo como instrumento do espírito, e o espírito enquanto dá significado, valor e direção à vida do corpo. A colaboração é possível, porquanto os dois termos e os seus trabalhos são opostos e, ainda que rivais, não valem senão enquanto ficam ligados para se completarem. Esses princípios gerais definem logo a estrutura do complexo humano, no seio da qual já podemos ver assim como funciona o dinamismo biológico de onde se desprende a ascensão evolutiva. Temos então dois campos de força opostos que, assim como no amor e no ódio (o negativo do amor), se abraçam para se sobrepujarem, logo que um dos dois seja menos forte. Também, como nos dois sexos, nenhum pode operar isolado. O espírito, sozinho, não teria expressão e contatos no plano físico, que, embora sendo ilusório, tem de transmitir à consciência, através da ilusão dos sentidos, experiências que, no seu campo, lhe são bem reais e necessárias para a sua formação. Sem o espírito, faltaria o dinamismo animador ao corpo, que então seria apenas um cadáver. Como sempre, todo trabalho genético não se pode verificar senão por junção dos dois termos contrários. Qual é a relação entre os dois termos? Na correlação de causa e efeito, eles, se bem que contrários, estão em íntima colaboração. O motor, o princípio centralizador, o eu sempre uno ao longo das suas contínuas transformações, é o espírito, intuitivo e sintético. O seu meio e expressão é o corpo, sensorialmente analítico, imerso no múltiplo, relativo e contingente, constrangido a uma contínua troca e renovação para suprir a sua caducidade, feito de um contínuo tornar-se. É justamente essa contradição que os obriga a se unirem e se completarem. É erro, pois, considerar o homem somente como espírito, igno- 38 PROBLEMAS DO FUTURO rando e desprezando o corpo, como fazem alguns espiritualistas e místicos, ou considerar o homem só como corpo, ignorando e desprezando o espírito, como fazem os materialistas. A vida nunca é unilateral, desequilibrada, assimétrica. E, se há contraste entre os dois termos, assim é para um escopo construtivo, uma luta que se deve resolver com a evolução. Se, para o normal, vigora a norma áurea da ―mens sana in corpore sano‖, para quem vive a metamorfose biológica é necessária a luta entre espírito e corpo, a fim de chegar à vitória do primeiro e passar além da vida do segundo. A atual biologia se detém no corpo, isto é, no efeito, deixando de penetrar as causas, que estão em outra biologia, de tipo transcendental, ou seja, espiritual. Desta, então, a ciência vê somente a sua expressão no mundo físico, que é a forma material. Todavia, sendo o corpo uma projeção do espírito, a ciência, adiantando-se sempre mais na observação da íntima estrutura das coisas, não poderá encontrar outra coisa senão o espírito. O corpo existe enquanto há uma causa em si, que ele exprime e revela, como o universo físico exprime e revela o divino pensamento que o anima. O corpo é manifestação do espírito, como o criado é a manifestação de Deus. Ora, se, no homem, o espírito, que é causa, precede a forma, que é efeito, plasmando-a à sua imagem e semelhança, por sua vez o efeito reage e se torna causa, cujos efeitos, depois, estarão no espírito, tornando-se então uma nova causa e assim por diante. Já vimos isto a propósito do órgão e da função. A vida do corpo é um meio de experimentação que elabora o espírito, mas podemos também dizer que a potência do espírito elabora para si o seu corpo. Se é verdade que o espírito serve-se do corpo para armazenar os resultados experimentais de um exterior feito de tenazes resistências, ele também os transcende, transformando-os dentro de si em qualidades do eu e em valores espirituais. Estes modificam, então, a estrutura do campo de forças da personalidade e do dinamismo causal, que lançará correntes sempre diversamente plasmadoras da forma, fazendo assim evoluir também esta como consequência da sua própria evolução. Desse modo, passando-se da causa ao efeito, este depois, como nova causa, volta à origem, que, assim modificada, passa de novo ao efeito, para modificá-lo ainda mais, como acontece por ação e reação entre órgão e função e ao contrário, processo pelo qual, lentamente, opera-se a transformação evolutiva. Os dois impulsos contrários continuam assim a se moverem um para o outro, invertendo as suas posições a cada passo, porém sempre enlaçados numa corrente contínua, que forma um mesmo caminho evolutivo. Se, no seu íntimo, a estrutura do fenômeno oscila entre dois polos opostos, num constante vaivém, no seu conjunto representa uma ascensão contínua, em que o ritmo interior desaparece. Assim, o dinamismo da vida parte do polo positivo, que é o espírito, princípio ativo, e vai, como corrente positiva, para o polo negativo, que é o corpo, de natureza passiva. Daqui, aquela corrente animadora retorna em forma negativa ao polo positivo, fechando o circuito e prosseguindo assim. A carne quer conservar-se e engordar. É fêmea e quer a gênese na carne. O espírito quer renovar e subir. É macho e quer a gênese no espírito. A primeira representa uma expansão horizontal, a segunda, uma vertical. No topo da escada, à testa do caminho evolutivo, está sempre o espírito, enquanto no fundo da escada, na cauda do caminho, está a massa indolente dos corpos. O mundo físico está subordinado ao espiritual e, como inferior, deve ser o servo, arrastado por aquele e seguindo por último na sua ascensão. Sozinho, apodreceria na abundância. Desse modo, a iniciativa de todo movimento está no espírito, no entanto ele é uma consequência da resposta que o corpo deu à sua precedente ação, consolidada pelo meio físico, sendo assim formado por este contato com o ambiente. Já vimos como órgão e função colaboram sem que se possa dizer qual Pietro Ubaldi dos dois precede o outro no respectivo desenvolvimento. O órgão está no corpo, a função está no espírito, e eles cooperam para o mesmo fim de fazer o homem. Através dessa alternada vicissitude, dão-se as mutações, as variações tanto do indivíduo como da espécie, fixando-se, primeiro, no imponderável e, depois, na forma física que o exprime. A adaptação é psíquica e orgânica a um tempo, sendo as duas formas conexas. Iniciando-se a evolução no espírito, o corpo depois deve segui-la, ainda que ele esteja sempre no final desse caminho. Esta é a técnica da evolução. Ela resulta de dois movimentos em duas direções opostas. O dinamismo do espírito gravita para o interior, abre caminho para a substância, o infinito, o eterno, o absoluto, a essência de Deus; a atividade do corpo dirige-se para o exterior e explora a forma, o finito, o transitório, o relativo, a manifestação de Deus. Quem compreendeu qual é a estrutura do universo sabe que este é constituído por um esquema único, repetido em todas alturas e em todas as dimensões da evolução, portanto acha lógico que, no complexo humano espírito-corpo, seja repetido o modelo do complexo universal, onde a unidade é dada por uma dupla de opostos complementares, em que Deus e universo, transcendência e imanência, equilibram-se. A vida e a sua elaboração evolutiva são dadas pela contínua troca dinâmica entre os dois campos de forças. Cada uma das duas é por sua vez agente e reagente. O dinamismo circulante entre eles inverte o seu sinal a cada passagem. Assim, fecha-se o ciclo, e o dualismo reencontra a unidade em um único circuito. Por períodos inversos, o trabalho é contínuo, porque, quando ele é ativo na sua forma positiva, de vida exterior diurna, então está inativo na sua forma negativa, de vida interior noturna, condições que se invertem no período oposto. Positivo e negativo são duas posições relativas, que se invertem, tornando-se negativo e positivo, de modo que há sempre um positivo em ação. Assim, trabalhando alternativamente e exercendo funções inversas, espírito e corpo realizam uma atividade contínua. Um primeiro estímulo, provindo do campo oposto, desloca os equilíbrios no outro campo, com todas as suas consequências. Os choques do ambiente, através dos meios sensórios, continuamente bombardeiam o espírito, isto significa que os impulsos do ambiente tentam penetrar e se unir ao sistema dinâmico do espírito, que, mesmo oferecendo resistência às deformações, registra e se adapta e, assim, fixa na sua estrutura cinética novas trajetórias, isto é, assimila novas qualidades. Por sua vez, o sistema dinâmico que constitui o espírito bombardeia, com o seu feixe de forças, o sistema atômico-molecularcelular que constitui o corpo, o qual, resistindo às deformações, registra e se adapta e, assim, fixa na sua estrutura cinética novas trajetórias e assume, no mundo da ilusão sensória, novas formas orgânicas. Veremos mais adiante, no Capítulo XVII, ―As últimas orientações da ciência‖, que a matéria se reduz a uma onda sem substrato material, isto é, àquele mesmo dinamismo a que se pode reduzir também o espírito. Encontrado esse denominador comum entre espírito e matéria, esta interação entre espírito e corpo é também cientificamente possível e aceitável. Assim, trabalhando em dois campos diversos, o espírito constrói o corpo e o corpo serve para construir o espírito. Ora, como podem os impulsos provenientes do sistema dinâmico-espírito agir sobre as forças do sistema dinâmicocorpo? Para que os dois campos se possam comunicar, é necessário que eles possam estar em contato, o que, no mundo dinâmico, significa vibração em uníssono, sintonia. Se as forças devem unir-se uma à outra e se fundirem, isto não pode acontecer senão onde elas encontrem a mesma frequência, um igual número de períodos, à semelhança de duas centrais elétricas que se quisessem pôr em paralelo. Ora, a escala evolutiva se poderia exprimir dinamicamente com uma passagem da onda longa à curta, da baixa à alta frequência e potencialida- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO de. Então os dois sistemas dinâmicos espírito e corpo não podem comunicar-se senão onde estejam contíguos na escala evolutiva, possuindo a mesma frequência, a mesma potencialidade, períodos e comprimento de onda, ou seja, no limiar entre as mais baixas zonas do espírito, seus extratos mais involuídos, e as máximas alturas do organismo físico, seus extratos mais evoluídos. Isto significa que o contato não pode darse senão no sistema nervoso e cerebral, que representa as células mais evoluídas, ou seja, a zona organicamente mais elevada e, ao mesmo tempo, espiritualmente mais baixa, porquanto ela é a primeira materialização daquele organismo imponderável radiante e receptor, que é o espírito. Tudo isto é possível quando se sabe que o universo, tal como aparece aos nossos meios sensórios com a sua solidez física, não é senão uma aparência. Tudo que acima expusemos torna-se concebível quando se sabe que a substância da matéria não é representada por algum substrato em sentido físico concreto, mas somente por trajetórias e relações reduzíveis a energia, e que esta se resume a conceitos abstratos. Desse modo, fica demonstrável a equivalência matéria-energia-espírito, afirmada nestes escritos. Assim como a matéria pode reduzirse a energia e a pensamento, é lógico que, inversamente, o pensamento possa reduzir-se a energia e matéria e que ele seja criador de todas as formas, primeiro dinâmicas e depois físicas. Dessa maneira, compreende-se como o pensamento de Deus unicamente tenha podido construir um universo cuja verdadeira solidez não está na matéria, mas está toda na constância e inviolabilidade das leis que o governam, isso é, em princípios abstratos. Se a ciência já pode fornecer muitos elementos para demonstrar a equivalência do mundo físico, dinâmico e psíquico, em direção ascendente, quem conhece os grandes esquemas do universo concorda certamente que o ciclo deve cumprir-se, equilibrando-se na sua segunda metade, e que, portanto, o caminho oposto, em direção descendente, também deve ser percorrido. Este é dado pela equivalência inversa, isto é, pensamento, energia e matéria, movimento trifásico que sintetiza a técnica construtiva do nosso universo. Tudo o que existe é, como forma, a resultante de uma dada disposição cinética, redutível a um movimento puro, denominador comum de todas as coisas, dado pela energia, que é pensamento em ação. Certo é que, para compreender-lhe a substância, é preciso penetrar além da ilusão sensória. Somente assim, reduzindo o fenômeno do ser ao seu funcionamento cinético, é possível compreender como as experiências obtidas no ambiente por meio dos canais sensórios podem modificar e enriquecer de qualidades o espírito, modificando e enriquecendo as trajetórias do seu sistema cinético; só assim também é possível conceber como essas qualidades, ou íntimas trajetórias, podem depois modificar o sistema cinético que constitui a substância da qual o organismo corpóreo não é senão a resultante perceptível aos nossos meios sensórios. A mecânica da evolução se baseia sobre essa troca e assimilação de forças, isto é, no registro e conservação de trajetórias na estrutura dos dois sistemas dinâmicos que são o corpo e o espírito. Na escala evolutiva, eles representam os dois extremos, o mínimo e o máximo, da zona ocupada pelo homem, que se comunica com todas as vibrações de tudo o que existe nesta zona, entrando em contato com a zona superior através do extremo máximo e com a zona inferior através do extremo mínimo. No circuito de forças entram, portanto, as experiências e registros provenientes do contato tanto com o mundo inferior como com o mundo superior. Assim, conforme a sua capacidade, o ser pode representar os mundos inferiores da matéria ou antecipar os superiores planos do espírito. Para poder fazer a análise do fenômeno evolutivo em cada caso particular, seria preciso conhecer a trajetória de todas forças que, entre as tantas em movimento no ambiente, vêm 39 penetrar e juntar-se ao sistema dinâmico do espírito. Seria preciso, depois, conhecer de que trajetórias é constituído esse sistema, a resistência que suas forças opõem, a afinidade que apresentam com os novos impulsos sobrevindos, as reações que oferecem, para chegar, assim, a calcular qual será a resultante de tal encontro, o último termo residual da batalha, que representará o novo impulso assimilado no eu, isto é, a nova qualidade por este adquirida. Certo é que a nossa personalidade representa um organismo dinâmico já constituído, que resulta do mencionado trabalho de experimentação e assimilação levado a termo no passado e exprime a sua atual fase de maturação e grau evolutivo. Ela constitui a atual natureza do ser, efeito de tudo o que por ele foi vivido e já está fixado no sistema de forças, que tendem fatalmente, por inércia, a continuar o caminho na direção estabelecida pela trajetória já iniciada. Ela também representa o destino do indivíduo, como uma sua vontade de se realizar da forma que ele quis. Estamos na fase em que as precedentes causas se coagularam em efeitos e estes, por sua vez, tornaram-se causas tendentes a novos efeitos. Tudo isto forma as qualidades fixadas no eu, constitui a estrutura do seu sistema de forças, resultado de todas as trajetórias transmitidas e assimiladas no passado. O circuito, porém, está sempre aberto, e cada nova experiência ou contato, por meio do corpo e dos sentidos, com o mundo exterior, representa a possibilidade de imissão e assimilação de impulsos e trajetórias novas. Estamos aqui em uma outra fase, de livre escolha e de formação do eu, com que se pode corrigir o passado, iniciando novas direções. É preciso, porém, ligar tudo isto ao passado, às velhas causas tornadas efeitos fatais e, como tais, agentes de novas causas. Em outros termos, na imissão de novos impulsos e trajetórias, é preciso ter em conta a natureza dos precedentes impulsos e a resistência das trajetórias já estabelecidas no eu, aos quais se devem sobrepor aqueles, para se fundirem. Podese, em suma, semear no próprio ser o que se quiser, mas é preciso atentar-se para a natureza do terreno em que se semeia, à estrutura completa, porque disto, e não tão-só da semente, dependerá o que há de nascer depois. Assim, a evolução é gradual, ao mesmo tempo livre e ligada, num jogo de forças reguladas a cada passo por reações e equilíbrios, segundo princípios estabelecidos pela Lei. Aqui, não é possível dizer mais além destes princípios gerais, suficientes, porém, para orientar o problema e as pesquisas neste campo. A questão está em saber conhecer a estrutura desses sistemas. Eles podem ser considerados como dinâmicos, por isto falamos de forças; ou como cinéticos, daí termos falado de trajetórias. Aprofundar demais o argumento nos faria perder o fio da exposição, além disso o método da intuição aqui usado não é apto para a investigação analítica, que qualquer um pode racionalmente realizar com base nesta orientação. Postos esses princípios gerais, é fácil tirar deles muitas consequências e controlar a sua aderência à realidade. É muito provável que, por analogia, o organismo físicoespiritual do homem seja constituído, à semelhança do sistema atômico ou do sistema solar planetário, por um campo central de forças, positivo e ativo, em torno do qual funciona em dependência um campo de forças periférico, negativo e passivo, isto é, de natureza, posição e sinal oposto. Os dois campos se influenciam reciprocamente. É inegável que o ser esteja em contínuo contato com o ambiente, do qual recebe infinitas impressões, que tendem a penetrar na consciência e a formá-la com a experiência das coisas. A nossa mente se satisfaz ao pensar que, assim, nada de quanto se vive é perdido, mas tudo se registra em nós e sobrevive à ruína do contingente na forma de nossas qualidades, adquiridas como nós quisemos. Somente assim a vida tem, em cada caso, um significado e um valor útil, num quadro em que tudo, também a dor e as 40 PROBLEMAS DO FUTURO derrotas, tem o seu significado e rendimento. Está satisfeito desse modo o nosso instinto e o da vida, que é de sempre crescer e se expandir, porque o espírito se torna uma unidade em contínuo desenvolvimento, sem limites. Tudo então, e somente então, torna-se satisfatório, lógico e justo, porque sabemos que é efeito do que fizemos e pode ser remediado no futuro. Então compreende-se que é necessária a prova da vida terrena na matéria, para que o espírito possa evoluir. Essa transformação de forças e trajetórias no espírito deve produzir um aceleramento de frequência e uma proporcional diminuição de comprimento de onda e, com isto, uma elevação de potencial, o que significa uma potenciação do espírito, uma harmonização que leva a um rendimento maior. Isto se alcança por uma troca e luta, que são sempre elementos genéticos. Parece que o espírito possa, assim, armazenar em síntese os resultados da experimentação, os valores, os totais das operações feitas por análise, no particular, pelo seu organismo exterior. Parece que esse sistema periférico, com a função de tentáculo, deve alcançar, a um certo ponto, uma saturação de vibrações que o força a extravasar tudo que ele não pode mais conter para o sistema complementar de forças interiores, que teria justamente a função de transportar a um plano evolutivo mais alto, sem sensíveis embaraços de forma, somente a substância destilada do que se adquiriu. Parece que o sistema de forças de mais baixa potencialidade constituído pelo corpo, conquanto mais adaptado para dominar as forças do ambiente e estar em contato com o mundo inferior externo, eleva aquele potencial até ao ponto em que o seu sistema, não podendo suportá-lo mais, transmite-o ao sistema superior do espírito. Isto é bem admissível, quando se compreendeu a íntima substância cinética de todas as formas e, portanto, sabe-se que nenhuma delas pode isolar-se das outras, pois, num universo dinâmico que irradia e recebe em qualquer ponto, todas as partes são comunicantes. Assim, também o corpo é necessário, porquanto funciona como transformador de potencial entre o externo e o interno, que diretamente, sem este intermédio, não poderia comunicar-se. O organismo físico é, pois, uma ponte entre o espírito e o mundo, para que os dois possam ficar em contato, e os seus meios sensórios são os canais de comunicação. Sem esses canais, nenhuma relação poderia haver. Somente assim as variações e choques de ambiente podem chegar da periferia ao centro. A que se reduz, enfim, a evolução? A uma diversa disposição cinética da mesma substância, que, em última análise, não é senão o pensamento de Deus. É essa diversa disposição cinética que constrói todas as formas, que são realidades como substância feita de pensamento, mas ilusões como forma sensorialmente concebida. Há somente uma verdadeira realidade, à qual tudo no universo se reduz por último: o pensamento de Deus. Espírito e corpo são simplesmente pensamento mais ou menos evoluído, isto é, mais ou menos puro e livre das formas! A evolução consiste justamente na purificação desse pensamento, isto é, no retorno de todas as mutáveis formasefeitos à imutável causa de todas as coisas. Isto significa a gradual libertação de todas as formas, vestes do pensamento, para que fique somente o puro pensamento de Deus, e não é possível para o espírito livrar-se delas, senão através da elaboração da forma corpórea em que ele existe. A ele compete o esforço de fazer evoluir consigo aquela matéria que ele desposou. O universo é unitariamente compacto, e nada se pode destruir nele, portanto não é possível livrar-se da forma destruindo-a, mas somente fazendo-a progredir para o alto. O grande respiro do universo, assim, é composto de dois tempos: 1o) criação, fase de ida, na qual o puro pensamento divino se manifesta, vestindo-se de forma e quebrando a sua unidade no transitório, múltiplo e relativo, isto é, involução; 2o) evolução, fase de retorno, em que aquele pensamento se livra da forma e reconstitui a sua unidade no eterno e no absoluto. Pietro Ubaldi X. O PENSAMENTO CRIADOR Quanto dissemos até agora não representa senão uma fenda que em minha mente se vai abrindo para o infinito em forma de visões progressivas, que vou registrando por escrito, para que elas não fiquem somente para mim. Dou-me conta que, perante o nosso tempo racionalista, este é um modo estranho de enfrentar o ignoto, com um tão desusado método de investigação: a intuição. Questionei a mim mesmo se ele seria pura fantasia, perguntei a que ignorado mistério da personalidade humana ele poderia corresponder. Contudo, por mais que tenha procurado analisá-lo com a crítica mais demolidora, esse método permanece como um fato, seja pelos seus produtos racionalmente orgânicos, seja pela progressiva profundidade das visões que dele resultam. Sem que eu conheça ciência, elas correspondem aos seus últimos resultados. Por falta de pontos de referência pelos quais se pudesse enquadrar esse caso, ele foi entendido como ―ultrafania‖ (V. ―Introdução‖, neste volume, e o livro As Noúres). Mas vê-se o quanto estamos longe da habitual mensagem de conteúdo moral, que nunca até agora, mesmo nos melhores casos, assumiu o encargo, tanto em vastidão como em profundidade, de produzir um trabalho orgânico que abranja e oriente todo o saber humano. A atual geração se tornou muito audaz ao enfrentar o ignoto, que se vê assediado de todos os lados e com todos os meios. Entretanto a ignorância não ficou destruída, somente foi impelida mais para trás. Porém deu-se algum passo para a unificação de todas as ciências, para uma só lei e um só pensamento: o pensamento de Deus. Esse ataque cerrado deve levar à grande descoberta do terceiro milênio: os poderes do espírito, poderes verdadeiramente criadores. Agora me pergunto porque, ao lado do assalto movido ao ignoto pelos cientistas, armados de ultramicroscópios, câmaras de condensação de Wilson e tubos de bombardeamentos eletrônicos de alta potência, não deva ser admissível um paralelo ataque movido por outra via, superracional e supersensória, utilizando indivíduos sensibilizados, nos quais parece que a misteriosa personalidade humana haja encontrado meios de percepções ainda mais penetrantes e de ordem diversa? Por que se deve recusar a priori esse novo método de investigação? Os seus resultados são aqui oferecidos ao público, fixados em volumes; não são de caráter analítico, mas sintético; parecem complementares daqueles racionais da ciência, uma vez que, muito mais do que para aprofundar um singular e particular argumento, servem para a orientação de conjunto; parecem feitos para oferecer um produto paralelo ao oferecido pela ciência e apto a completá-lo. Se a análise sensória da física mecânica de uma época passada está se tornando hoje, através da teoria da relatividade e da mecânica quântica, ondulatória e estatística, sempre mais abstrata, a ponto de se fundir com o transcendental, quem poderá dizer que a ciência de amanhã não se tornará atingível senão por meio de uma matemática transcendental intuitiva? Tudo se espiritualiza hoje, sem que disso nos apercebamos, enquanto o materialismo, em ruínas, parece triunfante porque nos aturde com o fragor de sua queda. Não nos apercebemos que, no fundo de tudo, mesmo da matéria, há o espírito, e é inevitável que, com o progredir da ciência, chegue-se à descoberta dele. Se o progresso é fatal e se a estrutura da matéria é em substância espiritual, então não é possível impedir que a ciência alcance a conjunção entre os campos da matéria e do espírito, que é a unidade fundamental de tudo que existe e tem de ser finalmente compreendido pelo homem. Já vimos outros níveis evolutivos de existência e sabemos que a cada um deles corresponde uma lei diversa, uma diversa expressão da única lei universal. O universo está, assim, construído hierarquicamente, como um edifício em que cada plano de existência se apoia sobre o inferior, dominando-o. E, de um plano ao outro, o ser passa por aquela metamorfose ou catarse evolutiva, cuja mecânica temos observado. A cada plano cor- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO responde uma verdade diversa, que é a sua lei, e o ser, evoluindo, sobe de uma verdade inferior para uma superior, adquirindo conceitos e valores mais elevados. Assim, vimos que da biologia animal se passa à biologia transcendental do espírito, e da economia da justiça mecânica do ―do ut des‖ se passa à economia supernormal baseada no princípio evangélico do ―ama o próximo como a ti mesmo‖, segundo o qual rouba a si mesmo quem rouba, e a si mesmo dá quem dá aos outros. É assim que a ciência, penetrando agora no mundo submicroscópico, passa da mecânica clássica gravitacional para uma mecânica atômica, em que as leis da primeira não valem mais e são ultrapassadas por uma diversa ordem de leis, supergravitacionais. Que maravilha será então se, por evolução da personalidade humana, primeiro instrumento de observação, passarmos do método sensório racional, experimentalmente indutivo, a uma técnica transcendental do pensamento, em que funciona o superconsciente, com resultados não mais de análise, e sim de síntese? Não significa isso, assim como acontece para a ciência, uma penetração mais profunda no mundo das causas determinantes dos efeitos ilusórios, um maior avizinhamento do plano da realidade e da substância? E não será possível, assim, resolver problemas insolúveis com outros métodos e alcançar conceitos de outro modo inatingíveis? Assim como hoje, evoluindo, vai-se ao encontro de novas verdades, de uma nova biologia e economia, de novas concepções sociais e formas de organização coletiva, a novas formas mentais em todo campo, é lógico que também se vá ao encontro de novos métodos de investigação, filhos da diversa estrutura psicológica do novo tipo biológico que a evolução, hoje, se apresta a produzir. Estes são os grandiosos resultados daquele fenômeno de elevação humana que aqui estamos estudando. Pode-se, assim, compreender a sua importância e verificar o quanto ele interessa hoje à vida do mundo. Somente poucos começam hoje a se dar conta da grande revolução incruenta e silenciosa que está sendo realizada no mundo, por obra dos vigorosos impulsos da evolução criadora, que hoje impele a vida para um plano mais alto. As revoluções políticas, demográficas e econômicas estão na superfície, muito rumorosas e visíveis, mas de mínimas consequências em face dessa outra revolução, cujos efeitos serão bem maiores, porque ela é muito mais profunda. A ciência, tendo chegado ao elétron, ao próton e ao nêutron, pergunta se eles são corpúsculos ou pura vibração. A um certo ponto, não se sabe mais se o que observamos é matéria ou energia. Amanhã, nos encontraremos diante do caso em que não mais saberemos se aquilo que observamos é energia ou pensamento, e este será individualizável por seu comprimento de onda e sua frequência. Então acharemos que, no fundo, há uma equivalência de substância, em que matéria, energia e espírito podem fundir-se e comunicar-se. E compreenderemos como tudo pode ser formado pela potência criadora do pensamento: o pensamento de Deus. ―No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por seu intermédio, e sem Ele nada foi feito de tudo o que existe‖8. Assim, ao zero absoluto, isto é, a 2730C abaixo da temperatura do gelo, todos os movimentos da molécula cessariam e a própria matéria, com isto, perderia todo o volume e seria reduzida a nada. Deste nada, somente um estado cinético seu a teria tirado, um dinamismo que tem pontes de comunicação com o mundo do espírito. Eis, então, que é concebível, neste sentido, uma criação partindo do nada, derivada de um puro pensamento. O método da intuição nos avizinha da solução dos maiores mistérios. Assim, através de rasgos progressivos, vou percorrendo, junto com o leitor que me segue, a descrição da estrutura do universo. Eu mesmo, sem investigação racional, assisto à visão que se abre diante de mim. Vejo-me suspenso entre os planos de existências superiores, que irradiam bondade, poder e co8 João, 1:1 e 3. (N. do T.) 41 nhecimento, e os planos inferiores, em que tudo vai involuindo, precipitando-se no negativo: a bondade em maldade, a potência em impotência, o conhecimento em ignorância. Existe em mim, como nos meus semelhantes, um sistema de organismos conexos em cadeia, que vão do reino mineral (sistema ósseo), ao reino vegetal (sistema vegetativo), ao reino animal (sistema muscular-nervoso), ao reino humano (sistema cérebropsíquico), ao reino super-humano (sistema imponderável do espírito, em dimensões hiperespaciais). Cada um desses organismos emite a voz do seu reino, e isto me dá o sentido da hierarquia vigente nos planos do ser, dentro de limites além dos quais tudo se perde no inconcebível. Com o fenômeno da personalidade oscilante, o eu pode perceber, desde o extremo-matéria até ao extremo-espírito, as verdades relativas a cada plano. Delas se deduz, pelo sentido estabelecido na hierarquia, o domínio de cada plano sobre o inferior e, portanto, o poder criador do pensamento e das grandes consequências do próprio tipo de atividade espiritual em cada plano. No ―Satapathabrahama‖ está dito: ―Do desejo depende a natureza do homem. Conforme o seu desejo, tal será a sua vontade, tal será a sua obra; conforme a sua obra, tal será a sua existência que lhe diz respeito‖. O pensamento é criador no homem e em todos os planos inferiores ao espírito, como o foi o pensamento de Deus ao criar o universo. É com este pensamento, em princípio livre e fluido, que definimos em nós a matéria, isto é, as formas orgânicas e depois, mais no alto, o nosso fatal destino. No pensamento está a causa de tudo, saúde ou doença, riqueza ou pobreza, alegria ou dor. Sempre somos herdeiros somente de nós mesmos, isto é, daquilo que fomos, quisemos ou fizemos. O micróbio não nos assalta senão quando encontra debilidade e, pois, vulnerabilidade orgânica; a pobreza se estabelece quando encontra incapacidade e preguiça, porque os capazes e ativos nunca são pobres; a dor nos assalta quando encontra erros morais a sanar. Qualquer pensamento nosso é escrito na estrutura do sistema de nossos organismos, conexos em corrente, gerando assim, em cada plano, posições munidas e potentes ou pontos fracos e, com isto, predisposição a todo ataque. Eles são o ponto vulnerável onde a vida sempre ataca. Quem se tornou tarado deve pagar, não porque a Lei se vingue, mas sim porque ela cura e fortalece. Tudo é espiritual antes de ser material. E o universal princípio de causa e efeito nos diz que tudo aparece por derivação e filiação. Compreende-se assim porque Cristo, depois de ter curado um doente, disse a ele: ―Vai e não peques mais‖. Isto significa que não devemos mais violar a Lei, se não quisermos mais sentir suas consequências no físico. Matéria e espírito são mundos comunicantes e conexos, e tudo se escreve nos arquivos da alma, mas o que nela está escrito deve, cedo ou tarde, alcançar o corpo e aí manifestar-se. Assim, tudo se paga e tudo se recolhe. Ensinou Buda aos seus discípulos: ―Assim como as árvores são diversas segundo a variedade das suas sementes, também o destino dos homens é diverso segundo a diversidade das obras de que suportam os efeitos‖. E ainda: ―O que somos é a consequência do que havemos pensado‖. Mais tarde São Paulo dizia: ―O que o homem semeou, isto mesmo ceifará‖. E Jó disse: ―Deus dá ao homem segundo a sua obra e faz encontrar a cada um conforme o seu caminho‖. XI. LIVRE-ARBÍTRIO E DETERMINISMO Quem chega-se a penetrar no mundo das causas e nele se descobre a substância das coisas, fica-se atordoado pela maravilhosa perfeição com a qual tudo harmonicamente funciona, do plano da matéria (equilíbrio) ao do espírito (justiça). Todavia o homem comum pode levantar muitas dúvidas a respeito da liberdade da semeadura por parte do espírito, da qual tudo depende depois, até à última consequência. A filosofia se debate 42 PROBLEMAS DO FUTURO entre os dois pontos, determinismo e livre-arbítrio, sem saber se decidir exclusivamente por nenhum dos dois. O problema é solúvel somente tendo-se em conta que a evolução desloca a vida ao longo de vários planos de existência, e que há leis imperantes em cada um deles, segundo as quais o determinismo, próprio da matéria, evolui para a liberdade, própria do espírito, ou ao contrário no caso de involução. A liberdade é concedida ao conhecimento, à consciência e à sabedoria; o caminho forçado é imposto à ignorância e à inconsciência, capazes de abuso. Determinismo e livre-arbítrio não representam senão os dois extremos do caminho que o homem percorre na escala evolutiva, que parte da matéria e atinge o espírito. Já vimos no Cap. XXIII, ―Problemas Últimos‖, do volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, que, evoluindo, vaise sempre mais para a liberdade, própria do espírito, aumentando com isto também o conhecimento, e que essa liberdade cada vez maior se resolve em uma sempre maior aderência à Lei. E vimos também que, involuindo, vai-se sempre mais para o determinismo, próprio da matéria, perdendo-se assim liberdade e conhecimento. A tendência em ambos os lados, seja na subida, seja na descida, é que a liberdade se resolva em determinismo. Isto parece uma característica da fase experimental da evolução, quase um parêntese no universal determinismo da Lei. Porém os dois determinismos, tanto o positivo, do ser consciente, que abdica espontaneamente de sua liberdade para se fundir na vontade da lei de Deus, quanto o negativo, do ser inconsciente, que perde compulsoriamente a liberdade, porque aniquilado qual rebelde à lei de Deus, estão nos antípodas: duas fases extremas, igualmente resolutivas, mas em posições opostas. De modo que, como se estivesse suspenso entre esses dois extremos determinísticos do universo, o ser oscila dentro de um campo de relativa liberdade, limitado às necessidades da experimentação formadora da sua personalidade. Acima dele, evolutivamente mais no alto, há o determinismo do evoluído, que, tendo compreendido toda a sabedoria da Lei, não pode, devido ao princípio do mínimo meio e maior rendimento, fazer outra coisa senão uniformizar-se com ela. Abaixo dela, evolutivamente mais embaixo, o determinismo da matéria domina o ser, que, nada sabendo da Lei, mais não pode fazer senão obedecer-lhe cegamente, arrastado por ela. É assim que o homem, não obstante seu ilimitado desejo de liberdade, encontra limites a cada passo. O primeiro limite ao livre-arbítrio é a nossa ignorância. Voltamos à dúvida inicial. Como escolher quando não se conhece? Tudo é sempre limitado ao pequeno campo do conhecimento humano. Se conheço o princípio de causalidade, não posso saber qual será o efeito preciso de uma determinada motivação minha. Embora eu preveja e calcule, nunca poderei saber com exatidão aonde, partindo daquele meu primeiro impulso, irei acabar, já que tantos outros impulsos desconhecidos agem sempre na determinação dos efeitos. Um segundo limite é dado pelo desenvolvimento determinístico imposto pelo princípio de causalidade. Todo estado precedente, amadurecendo, tende fatalmente a produzir um efeito consequente. O que é conhecido e existe há de se desenvolver na forma em que foi gerado, à qual está ligado. Uma força, uma vez lançada, não pode parar senão quando chegar à sua exaustão. Desse fato nenhum livre-arbítrio pode fugir. Todo o passado, pois, nos liga ao que fomos e ao que fizemos. O que semeamos devemos colher. Forma-se assim a base determinística e fatal da vida: o destino, que nós mesmos, no passado, deixamos como nosso legado e que hoje reaparece ligado a nós, qual férrea necessidade. Um terceiro limite é dado pelo determinismo da lei própria das coisas materiais. O ambiente representa para o eu agente um feixe de impulsos exteriores e estranhos, que surgem inexoravelmente em sua estrada, atravessando a sua trajetória, e muitas vezes lhe barram o caminho, impondo-lhe desvio. Pietro Ubaldi O que permanece livre dessas amarras constitui o livrearbítrio. É, todavia, certo que o eu representa um impulso autônomo, ainda que ele, no seu manifestar-se, deva sofrer tantas limitações. Mas que pode fazer uma força agindo entre tantas outras forças em ação, senão agir, ressentir-se e reagir com elas, combinando-se? Ninguém, porém, pode impedir que o originário livre impulso humano imprima na ação um cunho próprio, qualquer que seja depois a modalidade em que se deva desenvolver ou a distorção imposta pelos limites que assediam o seu livre desenvolvimento. Todo ato nosso fica sem dúvida individualizado com características fundamentais pelo primeiro livre impulso, que continuará assim a acompanhá-lo até ao fim, desde que outro fato, depois, não venha desviá-lo da rota. Qualquer coisa de semelhante acontece na formação dos cristais, que mantêm o seu tipo, ainda que obstruídos pelo ambiente. Assim, das características originais de todo ato nosso dependerá também a natureza das forças atraídas e das reações estimuladas, de modo que daquelas características nada se perde, ainda que devam depois ser alteradas. Em suma, há uma luta de forças, e a mais forte vence. Se a nossa vontade fosse verdadeiramente potente e iluminada, então o livre-arbítrio poderia vencer tudo. Como se vê, esta não é questão abstrata de liberdade, mas também de poder. Se refletirmos, veremos que esses limites são providenciais, desejados por uma lei sábia que tudo guia para o bem. Se o primeiro impulso do livre-arbítrio humano for lançado conforme a ordem das coisas, ele será enquadrado nessa ordem como um seu natural elemento e, com isto, encontrará todos os caminhos abertos para o seu desenvolvimento. Se, ao contrário, aquele primeiro impulso houver sido contrário à ordem das coisas, ele será contrariado por forças que o procurarão corrigir, forçando-o e levando-o àquela ordem. Isto significa um processo de correção do erro; poderá constituir dor, mas é uma vantagem e uma salvação para o caminho do bem, que deve fatalmente triunfar, conforme estabelecido pela Lei. É preciso compreender que tudo está sabiamente dirigido por uma lei sábia e que ser reconduzido a ela, embora pelo caminho da dor, significa salvação. Aquela central genética, que é a nossa livre vontade, não pode e não deve, para o nosso bem, produzir impulsos de desordem na ordem universal e, se os produz pela sua ignorância, eles devem ser corrigidos e reconduzidos para a ordem. Não pode ser permitido que eles invertam a ordem universal. Se o homem, nesta sua livre gênese de atos, repete o gesto criador de Deus, esse gesto deve ser disciplinado para colaborar no plano da criação e não tender a invertê-lo. Eis por que esses limites e liames do livre-arbítrio são salutares. Ele, pois, há de ser sempre entendido em função da ordem universal, que não é possível violar, e jamais como arbítrio desordenado e absoluto. Como se vê, o problema está conexo com outros, como o timbre e a potência do nosso querer (impulso originário), a inflexibilidade da ordem da Lei e o que disto deriva como responsabilidade e consequências. Certo é que o gesto criador do homem, que repete em ponto pequeno o princípio da criação, pode também assumir na sua liberdade a forma de rebelião, de anti-Lei e anti-Deus. Se o poder do querer da criatura é grande, então também se torna grande o conflito com a inflexibilidade da Lei e surge uma luta na qual esta vence e o rebelde, se não se modifica, fica autodestruído. E, aqui, o problema se coliga ao do bem e do mal, com a supremacia final do bem, conforme já temos tratado alhures. Agora, postos os dois termos, livre vontade humana e universal lei inflexível, diante da possibilidade de um conflito entre elas, dessa realidade deriva a responsabilidade humana, pela qual, se a liberdade ofende a Lei, esta a corrige com suas consequências. Essa responsabilidade nasce do princípio de ordem e da reação da Lei à desordem, o que conduz às sanções. A responsabilidade é proporcional à li- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO berdade, isto é, à possibilidade de violação, mas, se a liberdade for bem usada, seguindo a Lei em vez de contrariá-la, então a responsabilidade jamais conduz a reações dolorosas. Não pode ser de outro modo na lógica do sistema. Um exemplo. O primeiro momento da ação é o desejo e a motivação. Aquele é dado pelo meu temperamento, e esta é limitada pelo meu conhecimento. Todavia, dentro dos limites estabelecidos pelo determinismo do meu passado, do qual derivo, e pelo meu conhecimento, sou livre. Escolherei naquele âmbito um determinado tipo de força e a lançarei em uma determinada direção. Se esta escolha deriva dos meus precedentes, dela por sua vez dependem todas as consequências. Minha responsabilidade cobrirá o campo de todo esse interesse composto. E isto é justo porque, se tudo hoje se origina como consequência de precedentes aos quais está ligado o efeito por princípio de causalidade, aqueles precedentes, no seu início, foram sempre livremente desejados. Com isto, determinamos os limites da responsabilidade, os quais, mesmo sendo na forma do interesse composto, jamais vão além do que foi livremente desejado. Intervém, então, o determinismo do ambiente com a influência dos seus impulsos. A resultante deste encontro será dada pela natureza e potência do meu impulso e pela natureza e potência dos impulsos do ambiente, tudo combinado juntamente. Toda força tende a seguir o desenvolvimento da sua trajetória conforme sua potência e natureza, mas todas interferem entre si e combinam-se, não permanecendo senão a resultante de todos os seus encontros. O desenvolvimento é sempre e em todo lugar disciplinado pela Lei, que ferreamente enquadra no determinismo universal toda oscilação do caso individual, admitida somente pela necessidade da experimentação indispensável à formação da consciência. Assim a ignorância de quem lança o primeiro impulso é prevista no sistema e, se leva para a desordem e o mal, é logo corrigida com a dor, que ensina, educa e restabelece a ordem. É assim que se elimina a ignorância do ser que caminhou para o seu mal, sem o saber. Desse modo, ele escolherá depois caminhos melhores, sempre mais para o bem, à medida que, através desta escola, cresce o conhecimento. É assim que o ser, evoluindo, aumenta a sua possibilidade de agir livremente sem dano, isto é, conforme a Lei. Aumentando com a ascensão a potência e o conhecimento, também aumenta a liberdade, que de fato sentimos ser uma qualidade do espírito, e não da matéria. Mas trata-se de uma liberdade consciente, por isto espontaneamente aderente à Lei, segundo a qual a evolução consiste na passagem do determinismo físico dos mundos inferiores ao determinismo espiritual dos mundos superiores através de uma oscilação, chamada livre-arbítrio, permitida com fim educativo. Se o ser involui, está retrocedendo para um determinismo sempre mais férreo, de reações sempre mais enérgicas, mais adequadas à ignorância e insensibilidade do involuído, que, dessa forma, começa a ser abalado por golpes proporcionalmente mais violentos, pois somente por estes pode ser induzido a evoluir. De fato, se o homem atual encarna na matéria, é porque aí ele encontra as resistências que lhe são adaptadas, duras o bastante para que nelas se possa exercitar e temperar. Disto decorre o quotidiano contraste, bem conhecido de todos, entre aspirações e ilusões em um ambiente que dificilmente se deixa vencer. De tudo isto se compreende a enorme vantagem que representa, para alcançar a alegria e evitar a dor, adquirir consciência da Lei, para saber depois movimentá-la, vivendo-a. É por isto que nestes escritos se repete tanto este ponto, que é o problema fundamental da vida e o único remédio para todos os males. Quem compreendeu não pratica mais o mal e, assim, livra-se da dor. Eis a solução de todos os problemas. O homem é destinado ao domínio, mas é preciso que aprenda antes a mandar. 43 Compreende-se então por que, com o conhecimento, aumenta a responsabilidade e, com o poder, a potência dos efeitos do erro. Mas igualmente aumenta a ilogicidade da prática do mal, o seu absurdo, que o torna sempre menos possível, porque, quanto mais se sobe, tanto mais se sabe que ele leva à dor, e o instinto da alegria está escrito no ser. De modo que esse aumento de responsabilidade, que poderia produzir efeitos desastrosos para o involuído, que se entrega ao mal, na prática, não é perigoso, porque é equilibrado pelo conhecimento, que tudo guia e ilumina. Com este, o homem compreende a bondade da Lei e o próprio interesse em segui-la; torna-se desse modo, ao invés de antagonista de Deus, cada vez mais Seu colaborador. Esse é o sistema da Lei, que, assim, tudo atrai a Deus. Dada esta estrutura, isto se torna fatal. É assim que o ser passa do determinismo coagido e inconsciente da matéria ao determinismo livre e consciente da lei de Deus, que impera e triunfa em qualquer parte. No fundo, reina sempre o absoluto, e o determinismo que o exprime não faz senão mudar de forma. O ser que evolui em conhecimento tende automaticamente a limitar a maior liberdade que dele resulta e, em vez de servir-se dela para cair na anarquia, reorganiza os seus livres atos de acordo com a Lei. É assim que o maior poder e liberdade conexos ao conhecimento não se resolvem em desordem, mas em uma ordem sempre mais elevada. Tudo, pois, se reduz à passagem de um determinismo coagido e inconsciente, como convém a quem não sabe, a um determinismo livre e consciente, como convém a quem sabe. Então o ser faz para si a vontade de Deus, seguindo-a livremente. O sistema é tão perfeito, que a liberdade não pode nunca trazer desordem, pois que ela nasce sempre em proporção ao conhecimento. Porém, logo que a liberdade seja usada em sentido contrário a ele, nasce o erro e, portanto, a dor, que reconduz o indivíduo para a Lei. Assim, automática e fatalmente, toda liberdade de que se haja abusado fica mutilada e reconduzida aos mais restritos limites precedentes. Mas, por esta experiência de dor, o conhecimento se dilatará, permitindo uma ampliação da liberdade, que se expandirá se dela não se fizer mau uso, renegando o conhecimento adquirido. O sistema de forças, com suas sábias reações, constitui o trilho e contém a escala automática da evolução. A liberdade, da forma que é usualmente entendida, como arbítrio, sem conhecimento, não pode levar senão ao erro e à dor, resultando na sua perda automática. Muitos procuram a liberdade no abuso e na licença, mas sua ignorância os faz cair na cilada. A lei de Deus os espera no caminho, e o que os aguarda é o erro, a dor e a perda de liberdade. O melhoramento esperado torna-se ilusão. Dentro da Lei não se sobe com a força, mas somente com o mérito. É inútil impor-se, quando não se sabe agir. A Lei se esquiva ao ignorante, que não a vê, mas não pode fraudá-la. O rebelde, pois, é destinado a recair na dor para aprender, sendo assim repelido de volta ao seu plano, para o seu bem, como quer a Lei na sua bondade. A ordem sempre vence. Qualquer que sejam a força e a maldade humana, a justiça triunfa; Satanás, o rebelde, está confinado no seu inferno. Qualquer liberdade desproporcional, perigosa para o ser, pois superior ao seu conhecimento, lhe é imediatamente retirada. Satanás tem poder apenas até onde Deus quer; é escravo do bem e ignorante diante do céu. Logo que o ser abusa da liberdade, é levado de novo pelo seu próprio erro ao esforço da experimentação, porque assim, através dessa única via, ele pode subir pelo caminho do conhecimento e da liberdade. De quantas dores se poderiam libertar os involuídos, se conhecessem esse simples mecanismo da Lei! E quanta bondade e sabedoria demonstra ela ao constranger o homem, sob o seu látego, a ascender em direção ao seu bem e à sua felicidade! Quanta sabedoria ao tirar dos inferiores uma liberdade que, sem conhecimento, seria para eles um perigo! 44 PROBLEMAS DO FUTURO É salutar para quem vai em oposição à Lei, mesmo quando domine, não encerrar em seu punho senão ilusões. Negar liberdade aos inconscientes significa salvá-los do perigo de um mais grave abuso, portanto de um desastrado erro e de uma terrível dor. Há nisto, também, uma admirável economia dinâmica. Nova liberdade é concedida somente quando o ser, por exuberância de forças, suporta esse risco e pode, portanto, após um período de bem-estar, enfrentar novas dores construtivas (guerras e revoluções), quando então possui ao menos uma margem de forças suficientes para submeter-se ao duro trabalho da experiência para conquistar nova consciência. Esta nova concepção do livre-arbítrio, entendido como limitada oscilação da atividade do ser num universo absolutamente determinista, nos permite compreender os últimos resultados da ciência. A estrutura unitária e analógica do universo nos permite situar o problema do livre-arbítrio e determinismo também na mais moderna física estatística e quântica. Estabelecido o paralelo entre o mundo espiritual e material, poderemos dizer que a liberdade de ação do homem no seio das leis que governam seu plano corresponde à liberdade de movimentos dos elementos componentes do mundo da física atômica. Em ambos os casos, trata-se de uma oscilação em campo limitado, de uma liberdade relativa, que desaparece no determinismo tão logo a observação seja levada do caso particular (observação ultramicroscópica) ao plano da unidade coletiva de que ele faz parte (observação macroscópica). Eis que, seja qual for o caso, o livre-arbítrio, propriedade de cada elemento, está fechado em um determinismo macroscópico, que aparece imediatamente assim que se sobe das pequenas diferenças individuais o bastante para colher as características comuns que reúnem em uma só lei todos os elementos componentes. Ela é a lei dos grandes números, revelada estatisticamente, própria da massa, e não do indivíduo. Assim, explica-se como, sob o determinismo da velha física mecanicista clássica, se esconda uma aparente livre desordem. O ser, deixado livremente à sua experimentação, é retomado na ordem do determinismo em um plano mais alto. Assim, por exemplo, cada um come a seu modo, mas todos comem. Das folhas de uma árvore, não há duas idênticas, mas todas são do mesmo tipo, modelo e princípio. A oscilação individual não pode alterar o determinismo da Lei, em que fica sempre enquadrada toda liberdade do indivíduo. Tudo isto significa que, se em cada natureza individual estão escritas pequenas diferenças na aplicação e formulação da lei geral, que é determinista, também está escrita no indivíduo, porém muito mais a fundo, a substância da Lei, que, dessa forma, reconduz todos a ela através das características dominantes que a exprimem. Ora, pelo princípio das unidades coletivas, sendo as individualizações do ser ordenadas hierarquicamente segundo os grupos, também hierarquicamente estabelecidas são as respectivas leis de cada plano de existência, de modo que o campo de livre oscilação de cada caso é sempre relativo à unidade individual. Entende-se que, em qualquer nível, a unidade é individual diante da unidade coletiva do plano superior, enquanto é coletiva diante da unidade individual do plano inferior. Assim, a liberdade está sempre enquadrada no determinismo da unidade acima, e o indivíduo somente é livre como elemento componente de uma coletividade superior, que, em relação à unidade individual, é sempre determinista. Tal é a lei do grupo, enquanto permanece livre o indivíduo. Assim, em toda unificação, verifica-se uma reordenação determinista, e cada ascensão para Deus constitui uma adesão mais firme à Sua vontade absoluta. Tem-se, assim, aos poucos, o tecido que forma esse grande organismo que é o universo. Como o elétron é o elemento componente do átomo, este da molécula, esta da célula, esta dos tecidos e estes do organismo, assim o pensamento de um indivíduo na sociedade humana é o elemento de um mais vasto Pietro Ubaldi pensamento coletivo, no qual se somam as características psicológicas dominantes nos componentes. Teremos, então, uma massa humana que sente com um pensamento e uma única psique, e de forma muito mais determinista que no caso do indivíduo singular. Uma observação macroscópica não nos daria senão os resultados deterministas da psicologia coletiva, enquanto um exame microscópica nos daria as oscilações da psicologia individual. Pode-se, portanto, observar com diversa amplitude visual não somente a matéria, mas qualquer outra unidade coletiva, obtendo-se os mesmos resultados, quer dizer: livre mas limitada oscilação no caso singular da unidade componente e determinismo no caso coletivo da unidade superior. Isto em qualquer nível evolutivo, para todas as unidades, conforme a sua estrutura hierárquica. Compreendidos esses princípios, cada um os poderá controlar nos fatos e deles tirar consequências. Aplicando os conceitos sobre o livre-arbítrio à estrutura da matéria, pudemos conciliar, como acima mencionado, o determinismo da velha física mecanicista clássica com a indisciplinada irregularidade de ação que nos aparece no fundo da matéria, segundo a moderna física estatística e quântica. Pudemos compreender, outrossim, como se pode passar de um campo de forças regulado conforme o princípio do livre-arbítrio a um regulado pelo determinismo. Com isto, desenvolvemos estes dois conceitos já assinalados em A Grande Síntese, no Cap. LXVI, ―Rumo às supremas ascensões biológicas‖ e em A Nova Civilização do Terceiro Milênio, no Cap. XXIV, ―O nosso livre destino‖. Uma última consequência ainda, que nos toca de perto. Tínhamos dito que um dos limites do nosso livre-arbítrio é o princípio de causalidade, segundo o qual nosso passado está ligado a nós, e, assim, o que semeamos devemos colher (segundo limite). Dado que todo momento é o efeito do precedente, bem como causa do seguinte, não nos encontramos apenas livres como causa, mas também estamos ligados ainda como efeito. Esta é, em nossa vida, uma zona de determinismo. Ora, tal condição se manifesta através dos instintos, que representam as qualidades adquiridas no passado, no bem ou no mal, com a própria experimentação. O período da vida mais sujeito a funcionar por instinto, o menos reflexivo, é o primeiro, isto é, a juventude. Então pode-se dizer que, na primeira metade da vida, o homem apenas obedece fatalmente às consequências do passado, não se encontrando em condições de iniciar lançamentos de novos impulsos. De modo que na juventude, espontânea e irrefletida, age-se impulsivamente, como efeito do passado, aplicando-se somente os resultados ou os totais do fechamento do balanço da vida precedente, enquanto na maturidade, que é mais consciente e reflexa, age-se mais no sentido de lançar novas causas, semeando-se para o próprio futuro, e dessa forma, mais que suportar as consequências do passado, age-se corrigindo as trajetórias e iniciando o lançamento de novos impulsos causais. As ações dessa segunda metade da vida, portanto, enquadram-se mais ao livre-arbítrio, enquanto as da primeira metade obedecem mais ao determinismo. Quase como uma confirmação de tudo isso, encontramos uma confirmação em formas analógicas correspondentes no plano físico. O indivíduo recebe por hereditariedade e desenvolve um organismo para o qual a sua personalidade espiritual foi atraída por afinidade, mas que é o resultado da evolução biológica. Isto já constitui uma espécie determinismo orgânico hereditário, ou seja, um organismo físico já fixado em uma forma, assim como, em outro plano, também está fixado o destino que exprime o seu passado. Então, tal como no caso exposto anteriormente, o indivíduo também suporta aqui essa forma física hereditária na primeira parte de sua vida, para transformá-la com a contínua pressão do seu espírito, pelo que as suas ideias dominantes acabam por se imprimir na carne, exprimindo-se em características somáticas. Assim como é Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO corrigido, conforme a nova vida quer, o precedente resultado espiritual que se fixou no destino, também é corrigido o precedente resultado material fixado no organismo físico. Sempre, em qualquer parte, paralelismos e analogias. De modo que a vontade, assim como pode corrigir na vida um destino adverso, pode corrigir também uma fisionomia triste, fazendo nela transparecer finalmente a interior beleza, se esta verdadeiramente existir, e ao contrário. Assim, a nova vida, seja espiritual ou seja física, implanta-se diretamente nas consequências da precedente, e é lógico que ela seja a continuação direta da anterior, segundo um mesmo e contínuo desenvolvimento de forças. Deste modo, a maturidade, mesmo colhendo as consequências da existência precedente, fixadas no período atual, pode, na plenitude das suas forças e da consciência adquirida, melhor corrigi-las, seja guiando-as, seja sobrepondo-lhes iniciativas novas. Poder-se-ia, assim, chegar ao conceito de que a massa biológica, isto é, dos corpos ou formas da vida, seja um material biológico comum que evolui, porque progressivamente elaborado por todos os eus que, sucessivamente, vestindo-se com ele em suas vidas, assumem a forma da sua manifestação. E isto exprimiria a ação evolutiva do espírito sobre a matéria e a razão da necessidade de esposá-la na vida física, porque o espírito está à testa e tudo ele deve fazer subir consigo para Deus. Quando se compreende a estrutura do sistema universal, tudo parece justo e lógico, e a limitada concepção de uma vida curta, fechada entre o nascimento e a morte, é substituída por outra, vasta, de uma vida eterna. Concluindo esta visão, antes de passar a outras, o livrearbítrio nos aparece, pois, como uma pequena irregularidade, que não viola o determinismo universal. É no seu seio e enquadrada no seu âmbito que é admitida esta limitada anomalia, própria da imperfeição, que deve ainda atingir a perfeição e que, através da incerteza da experimentação, a vai procurando. Existem dois mundos: o absoluto e o relativo, o perfeito e o imperfeito. Parece que o determinismo, próprio do primeiro, fragmenta-se no segundo para escopos contingentes e transitórios, superados os quais, ele volta a unificar-se no próprio determinismo. O livre-arbítrio domina a zona das formações e depois cessa; corresponde à zona da consciência, contida no inconsciente humano, subconsciente embaixo e superconsciente no alto, mas sempre inconsciente, isto é, abandonado à sabedoria da Lei. É neste intervalo que o infinito, verdadeira dimensão universal, avizinha-se da nossa mente, deixa-se perceber e medir, tornando-se nosso domínio no breve trecho limitado do finito, para depois fugir-nos de novo como infinito, do lado oposto de onde veio. Assim como a consciência humana, no fundo, é inconsciência diante da sabedoria de Deus, também o finito e o livre-arbítrio são apenas dimensões nossas relativas e transitórias diante da verdadeira, fechadas dentro desta, na qual tudo recai e se completa. Eles não representam senão a dimensão-limite diante da dimensão sem limite, que é o infinito, a consciência da Lei ou sabedoria de Deus, o determinismo. De um lado o limite, do outro o sem-limite. A nossa perspectiva parte do limite, e o lado oposto nos aparece negativo, um sem-limite. Não sabemos conceber o infinito senão pelo lado negativo, senão como um não-finito. Assim, a consciência humana não pode conceber senão no limite. Ela representa um ponto de conhecimento que, diante de uma infinita sabedoria divina, é ignorância, assim como o finito é sempre inadequado diante do infinito. O verdadeiro, à semelhança dos aspectos observados, provindo do infinito da intuição, fecha-se diante de nós, em uma seção sua, em nosso pequeno campo racional, que lhe analisa os particulares, sem capacidade de síntese. Abaixo e acima do racional há a intuição; embaixo, aquela axiomática das premissas; no alto, aquela sintéticoconclusiva do gênio. Ela pertence ao mundo do infinito, da consciência da Lei, do determinismo, do absoluto, de Deus. 45 XII. EQUILÍBRIOS ―A glória d'Aquele que tudo movimenta no universo penetra e resplende, numa parte mais, noutra menos‖. Em nossa ascensão, tentamos agora, por outra via, avizinhar-nos sempre mais da concepção de Deus e do universo, que em breve teremos de enfrentar; concepção que sinto chegar e que vamos preparando e amadurecendo em nosso pensamento. Estamos bem longe daquela verdade do 1o Capítulo. O homem normal não forma a ideia do universo de maravilhosos equilíbrios onde ele vive. Acredita que as harmonias da ordem divina se encontrem somente no alto, no chamado paraíso. Não. Aquela ordem, expressão de Deus, está em qualquer lugar, também no inferno terrestre. O homem a tem, pois, toda à sua volta, nas pequenas coisas do seu mundo, em meio às duras necessidades do contingente. É verdade que a maioria humana é involuída, nada sabe dessa ordem divina, da sua beleza, da riqueza que ela representa, da potência que advém de conhecê-la e saber harmonizar-se com ela. A maioria involuída está, pois, mais atenta em violar continuamente essa ordem, o que redunda em seu prejuízo, e não da ordem, que, na sua perfeição, possui a característica de saber tornar automaticamente a reconstituir-se, não obstante toda violação. Assim, o homem está ativamente ocupado em procurar, sem descanso, somente o próprio dano e a própria dor. Mas isto é necessário para que ele, mesmo ficando livre, aprenda. E, assim, na sabedoria divina, a desordem voluntária da inconsciência humana se transforma em mais elevada ordem no futuro, e a dor, que deriva daquela desordem, se torna um meio de ascensão para uma felicidade mais completa. De certo, o homem atual não imagina que haja no universo, ao alcance de sua mão, uma riqueza, poder e felicidade imensas. Delas se acha afastado pela sua involução, que é ignorância; e, para conhecer, é preciso evoluir, isto é, lutar e sofrer. A mente que, no aparente caos humano, sabe recolocar cada coisa em seu lugar, verá um desenho maravilhoso de que ela faz parte; verá que tudo é lógico e ordenado para o bem, por mais tristes que possam ser as condições do indivíduo e do momento. O evoluído vê as metas de tudo e a íntima e tenaz reconstituição da ordem, a despeito da desordem vitoriosa, que está somente no exterior, na superfície, relativa e transitória. Otimismo, pois, um otimismo de ferro, de bases graníticas, dadas por um profundo conhecimento científico da vida e de suas leis; otimismo em todo caso, ainda quando as coisas vão mal, ainda diante da triste verificação de que toda descoberta científica e todo progresso no conhecimento venham a ser usados pelo homem em primeiro lugar para praticar o mal. A Lei quer que quem pratica o mal involua, tenda a aprofundar-se em sempre maior ignorância e dor, até à autodestruição. E quer que quem faz o bem evolua, tenda a subir para uma sempre maior sabedoria e felicidade, até à fusão em Deus. Não obstante as aparências infernais de alguns mundos como a Terra, tudo é ordem, é bem, é feito para a felicidade dos bons e o triunfo da justiça. Quem quer, esteja onde estiver, pode sempre salvar-se. Quem compreende, eleva um cântico de amor e gratidão a Deus e bendiz sempre a vida. É desta ordem que agora queremos ocupar-nos aqui, que se refere não aos longínquos planos celestes, considerados de pouca utilidade, porque longínquos, mas aos seus reflexos terrenos, no seu funcionamento entre nós, humanos, nas suas consequências e aplicações práticas. Somente assim poderemos ser compreendidos. É lei geral no universo o princípio de dualidade, pelo qual toda unidade ou individualização do ser é dúplice, isto é, separada, porém soldada em seu íntimo, em duas metades contrárias, inversas e complementares, que se combatem e se procuram, que se anulam e se completam, constituindo assim, na oposição de dois termos opostos e contrastantes, um sistema 46 PROBLEMAS DO FUTURO equilibrado, ou seja, a unidade ou indivíduo. Lei esta já demonstrada em outros escritos meus. Mas há mais. Os dois elementos do dualismo, constituintes de toda individualização, não assumem somente a forma estática, de equilíbrio estável, mas também a forma dinâmica de um sistema de forças, pelo qual os dois termos não são simplesmente contrapostos em equilíbrio, mas um deles, de valor positivo, se põe no centro do sistema e um ou mais elementos de sinal oposto ou valor negativo passam a girar ao seu redor, dispondo-se na periferia. O número deles é variável em relação ao seu potencial dinâmico e ao do elemento central. Quanto mais esse núcleo é potente, maior é a sua capacidade de irradiar e, portanto, o poder de reger um maior número de elementos satélites. Paralelamente, quanto menor é a amplitude ou capacidade negativa de receber carga positiva do núcleo por parte dos elementos satélites, tanto maior é o número destes que o sistema pode suportar. Isto porque cada um dos dois termos se põe no sistema em relação ao outro e, para a estabilidade e equilíbrio deste, devem harmonizar-se. Observemos a influência que esse princípio tem, sobretudo em nossa realidade. Comecemos pelo caso máximo. O universo todo é dúplice. Deus, princípio espiritual, positivo, está no centro; a forma material, negativa, está na periferia. De um lado o motor: ativo, criador; do outro a manifestação: passiva, criada, efeito daquela causa. Os dois termos têm caracteres opostos. Deus é o espírito, o absoluto, o imóvel, o imutável, o pensamento diretor, o comando. O universo que vemos é a forma, o relativo, o móvel, o transitório, a expressão, a obediência à Lei. Transcendência e imanência não são senão os dois termos opostos de um par em que eles se unem em estreita unidade, ligados no mesmo sistema em inseparável monismo. Esse esquema único ecoa e se repete em todo o universo, até à sua última pulverização. Todo fenômeno é um tornar-se que se liga ao par causa-efeito. Portanto todo pensamento ou ato contém em si, conforme a sua natureza, as suas consequências. Assim, o efeito gira em torno de sua causa até que esta se exaure nele. Casos menores. O Sol, núcleo do Sistema Solar, tem, como verdadeiro macho no harém, nove esposas nos seus planetas. Elas o seguem obedientes em todo o seu curso através da galáxia. O mundo atômico é regulado pelos mesmos princípios. Em torno do elemento central do átomo (núcleo), de carga eletropositiva, rodam tantos elétrons de carga eletronegativa quantos o elemento central possa reger. Temos assim, no microcosmo atômico, um verdadeiro sistema planetário, em que o núcleo representa o sol. E todo sistema planetário não é senão o átomo de uma química astronômica do macrocosmo. Na Terra, temos 92 elementos, ou corpos simples, que vão do hidrogênio (H) ao urânio (U); unidades atômicas em que o número dos elétrons que giram em torno do núcleo sobe de 1 no H a 92 no U. Isto quer dizer que o núcleo de U apresenta um potencial capaz de reger 92 planetas, enquanto o do H admite apenas 1. No mundo orgânico, a distinção sexual, antes de chegar às suas manifestações somáticas e psíquicas, já existe na célula e exatamente conforme os mencionados princípios. A célula é um microcosmo formado como um sistema planetário, cujo centro é constituído pelo núcleo, elemento positivo, masculino, e a periferia, ou séquito, ou harém eletrônico, é constituída pelo protoplasma, elemento negativo, feminino. Os dois dinamismos são inversos e complementares, reciprocamente contrários e equilibrados. Eis que chegamos então às aplicações práticas, que mais interessam ao leitor. A saúde e a resistência orgânica, que representam uma significativa parcela da luta pela vida, dependem em grande parte do equilíbrio entre núcleo e protoplasma. Estes, pelo mencionado princípio e dado o seu dinamismo inverso, representam funções inversas e complementares. O núcleo é ativo, portanto dinamizante, a ponto de, se não encontrar no par o elemento contrário, como função compensadora e de equilíbrio, tornar- Pietro Ubaldi se destrutivo. Ele tende a transformar tudo em energia e, por isto, a queimar o material orgânico. É o verdadeiro motor da vida e agente da evolução, o catalisador, o princípio do vir-aser e da transformação. Ele tende a dissolver, a consumir e, quando não freado, a queimar e destruir. A sua ação é oxidante e dissolvente da matéria nutritiva acumulada no protoplasma, para reduzi-la a energia. Ele é, em suma, o Deus animador da célula e, portanto, da vida; representa a função da combustão e da troca, a função de governo e de comando. Assim como o Sol rege, guia e faz avançar os seus planetas, ao núcleo pertence a tarefa da direção e da ascensão. Essa função, toda masculina e divinamente criadora, recorda e repete, num plano mais elevado, o motivo da gênese de energia que se verifica por desintegração atômica nas mais complexas formas da individualização química. Como o Sol, o núcleo arde, aquece, arrasta consigo e comanda todo o sistema; entrega-se, irradia e sustém. Ele representa e reproduz, em proporção à sua potência, o esquema geral do universo – esquema que é único em qualquer lugar. Assim, o núcleo reflete e repete no seu plano as funções diretoras do princípio geral do cosmo, que, conforme a mesma e única lei (monismo), retorna em todos os menores sistemas componentes, até à infinitesimal ramificação. Este sistemas, por sua vez, segundo a lei das unidades coletivas múltiplas, reencontram-se e recompõem-se em uma nova unidade, irmanando-se por reagrupamentos graduais e progressivos, que se estendem do centro à periferia. Que faz o protoplasma, pelo seu lado? Logicamente, as suas características e funções devem ser opostas. Ah se o princípio da inovação não fosse equilibrado por aquele da conservação! Não nos surpreendamos então por reencontrar na estrutura da célula os princípios contrastantes do misoneísmo e do progresso, próprios da vida social. Para quem compreendeu a unidade do universo, são lógicas e verdadeiras essas relações entre a estrutura da célula e os movimentos coletivos e acontecimentos históricos, que também derivam da íntima constituição do ser humano. De fato, somente assim é que se pode verdadeiramente compreender a história. O poder do protoplasma é todo ele para a construção de material orgânico, reposição das perdas e fornecimento do combustível a ser queimado. Ele tende à economia, à conservação, ao acúmulo das substâncias orgânicas, ao armazenamento de reservas nutritivas; em suma, à engorda. O protoplasma é a fêmea, e esta serve o macho para que ele, com o material recolhido por ela, possa, através do poder óxido-redutivo do núcleo, isto é, das oxidações operadas por ele como núcleo, criar a energia vital. Reencontramos aqui um momento do físio-dínamo-psiquismo universal. O núcleo está incumbido de criar energia, destruindo matéria; é, no seu plano e sistema, o agente do transformismo, fenômeno universal, em que a substância assume formas diversas. Em paralelo a essa função, o protoplasma é inteiramente substância a ser plasmada, na expectativa de receber impressões, para conservá-las (misoneísmo); diante do agente, é o material da vida, portanto é todo feito para a construção e reintegração deste material, para preencher todas as perdas nele verificadas por força do incêndio produzido pelo núcleo. Esta é a base do metabolismo orgânico. A vida se apoia nesses equilíbrios. A própria agricultura está sujeita a essas leis. A semente é o núcleo, princípio ativo. A terra representa o protoplasma, princípio passivo, acumulador de materiais que a semente toma ao redor do seu sistema. Há uma troca no terreno, regulada pelas plantas que nele vivem. A cultura intensiva, com base na adubação química, alterou essa permuta, destruindo a flora bacteriana, em razão disto, hoje, ou se torna a fornecê-la à terra ou se deixa esta descansar, para ter tempo de reconstituir a flora e recuperar assim os materiais nutritivos dos quais a exploração intensiva a depauperou, caso contrário teremos uma produção agrícola progressivamente menor. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO No metabolismo orgânico, o protoplasma trabalha para o núcleo, mas dele recebe a energia para trabalhar para ele. A fêmea é a serva do macho, mas dele recebe guia e defesa. Se os dois impulsos contrários não se compensarem e equilibrarem e, lutando um contra o outro, não se penetrarem e combinarem, extinguindo a colaboração, então é o fim. O núcleo, sozinho, queima todo o material em energia. O protoplasma, sozinho, cristaliza a célula, pois sufoca as reservas do núcleo e paralisa assim a sua obra dissolvente e redutora, deixando tudo apodrecer, insensivelmente, na mais indolente das inércias. No primeiro caso, haverá uma troca demasiado violenta e, com isto, um rápido esgotamento dos capitais da célula, das reservas do protoplasma, resultando enfim na ruína do sistema orgânico e na morte por consumição. No segundo caso, teremos uma redução do potencial vital da célula e, portanto, um afrouxamento das trocas e uma atividade celular orgânica reduzida. Isto produz excessivas e insuportáveis escórias na troca, autointoxicações, e prepara o terreno orgânico onde medram e prosperam os micróbios, ensejando o desenvolvimento de doenças infecciosas, a disfunção dos órgãos, ou até mesmo a morte. Vê-se, pois, como temos em casa, em nosso próprio corpo, aqueles longínquos equilíbrios cósmicos pelos quais não nos interessamos, porque nos parecem muito afastados. Temos então em nós e em nós revelamos, como tudo revela, o mesmo esquema do universo. A ordem está em nós e em todas as coisas, e a essa ordem devemos nós, e tudo deve, a existência. Na admirável distribuição de funções da economia da natureza, é ao princípio masculino que cabe a ação de precipitar, neutralizar e expelir tóxicos, toxinas, qualquer inimigo, todo resíduo da troca. A ele é confiada a luta para a defesa orgânica. Daí, a maior resistência orgânica dos temperamentos fortes, de mais alto potencial nervoso. Mas ai se a sua função não fosse freada e equilibrada pelo princípio oposto! Vimos o que sucede logo que os dois processos celulares de síntese e redução não se equilibram. Também o nosso metabolismo orgânico é uma luta, mas uma luta equilibrada. O princípio de dualidade e o esquema desse sistema de forças centrais e periféricas são uma lei universal. É esta universalidade que dá a toda manifestação do ser a forma de luta. Compreende-se assim como o próprio homem não possa fazer nada senão em forma de luta e como toda atividade assuma e não possa assumir senão essa forma. Ela nos indica não só a impossibilidade e o absurdo de querer eximir-se do esforço de medir-se com o próprio antagonista, mas também que todo ser, conforme seu tipo, tem naturalmente o seu próprio oponente. Assim explica-se como, sem luta, a vida se extingue. A gênese das defesas e da força que nos robustece está na luta. Cada um, conforme o que é, tem o seu paralelo e proporcionado antagonista, é por este atraído e deve medir-se com ele, para que se forme logo a hierarquia de quem manda e de quem obedece, segundo o seu valor, porque, sempre e em qualquer parte, as forças se dispõem, naturalmente, segundo o mencionado esquema sideral atômico. Essa é a lei do cosmo. Não há, portanto, outro recurso, senão sermos fortes e premunidos, como nos quer a própria luta. Ou lutar e, lutando, ficar forte e vencer; ou servir e, suportando, adaptar-se e, no caso extremo, morrer. Esse diálogo entre núcleo e protoplasma não é senão o diálogo do sexo, isto é, do macho e da fêmea. E também esse é um equilíbrio cósmico que está em nós. Não é por acaso, mas sim em harmonia e obediência a esse sistema universal, que o macho e a fêmea possuem determinadas características, distribuindo-se-lhes diversas funções. Não é por acaso, mas sim conforme a lógica e a sábia economia da vida, que o macho está apto para a guerra e a fêmea para a reprodução; que o primeiro mata para criar, e a segunda gera e acumula para que ele possa matar e destruir para criar. Isto demonstra que a vida não é um fim em si mesma, mas meio para evoluir. E, se o primeiro é inovador até à destruição e a segunda é conservadora até à extinção por 47 inércia, a divina sabedoria os colocou juntos de propósito para se compensarem. Uma humanidade toda de homens matar-se-ia na luta; uma humanidade toda de mulheres acabar-se-ia na estagnação. Nenhum dos dois princípios saberia viver e poderia sobreviver sozinho. E eis-nos entre as paredes domésticas. O homem trabalha fora e leva para casa o fruto do seu trabalho, a mulher trabalha em casa e elabora aquele fruto, nos alimentos, cuidados e criação dos filhos. Este é o modelo, segundo o esquema da vida. A mulher operária, empregada, política, que luta contra o homem, é um aborto moderno, contra a natureza. Que o planeta se torne sol, o elétron vá ao centro do átomo, que o protoplasma se faça núcleo, isto é patológico, é subversão. Mas há compensação também aqui, e o equilíbrio é salvo. O século atual, em que as mulheres são machos, deve compensar o século de Setecentos, em que os machos de perucas e empoados eram fêmeas. Mas isto passará, e retornar-se-á ao romantismo, então rir-se-á da atual mulher-macho, como hoje se ri do macho-mulher do século dezoito. Tudo se equilibra. A coletividade tem a sua forma de vida masculina e feminina. Nos períodos de grande esforço inovador e evolutivo, tudo se dinamiza e se torna macho, também a fêmea. Nos períodos de estagnação no bem-estar, em que se colhe o fruto do esforço precedente e os resultados são assimilados e fixados, tudo se harmoniza, embeleza, refina e se torna fêmea, também o macho. Enquanto, antes, tudo era forte mas rude, depois tudo se aperfeiçoa, torna-se delicado, mas também se debilita. Primeiro a guerra e as revoluções, a vontade e a conquista; depois, na paz, as artes, a beleza e o amor. Alternações como o dia e a noite, fadiga e repouso, criação e assimilação, processo pelo qual, com trabalho alternado, cada um repousando enquanto o outro se cansa, espírito e matéria avançam. O contínuo alternar-se dos dois períodos históricos, clássico e romântico, responde precisamente à lei do dualismo universal, que reencontramos nos dois sexos. Trata-se de desequilíbrios sucessivos, necessários para o movimento evolutivo, mas que, compensando-se, sempre se equilibram. O mundo está hoje dividido neste sentido. De um lado, um totalitarismo tirânico, revolucionário, guerreiro, pobre e conquistador; do outro lado, as livres democracias, pacificas, fartas e acumuladoras. De um lado, o princípio comunista, para tomar; de outro, o princípio capitalista, para conservar. Ora, considerada em posição de equilíbrio, e não como fase de transição, a vida da mulher, por sua natureza reflexa, procura todos os seus motivos no macho, em função do qual, como verdadeiro satélite, vive e funciona. Essa é a sua posição natural, o seu equilíbrio, a que ela, naturalmente, sempre tem tendência para retornar. Somente ao macho a natureza dá a iniciativa. Ao satélite-fêmea cabe a obediência. E, se, transitoriamente, arrastado pela prevalência do impulso oposto, o macho se adapta a funcionar como fêmea e ao contrário, isto sempre se dá por substituição. O deslocamento é acidental e transitório. A verdadeira mulher ama, e o verdadeiro homem conquista. Na evolução, à frente está o macho e, atrás, seguem os satélites. Na ponta do trem está a máquina, e não os vagões, que, ao contrário, se deixam arrastar. Já que há tantas formas de evolução e tantas diversas altitudes, o progresso depende do que esse macho compreende. Se ele for ainda involuído, fará a luta do animal para a seleção de um mais forte tipo animal. Se ele for evoluído, fará uma luta mais inteligente e civil, para a seleção de um tipo biológico mais elevado. Mas, em todo caso, a mulher não pode senão inserir-se no sistema do macho, seguindo passivamente o elemento ativo. Quando quer se tornar ativa, fica naturalmente fora de fase e, não sendo munida pela natureza para essa função de luta, vem a encontrar-se em condições de inferioridade e, naturalmente, sofre. Se é mulher, não pode funcionar como núcleo. Isto é inato nela até nas profundezas celulares do seu organismo. O fato de ser escasso o poder oxidante da sua célula e, pois, reduzido o volume de ener- 48 PROBLEMAS DO FUTURO gia que dela brota, constitui uma carência natural insuprimível, até às suas últimas consequências, também nos planos superiores da psique. Por isto a mulher, essencialmente protoplásmica, tem necessidade de se completar, pedindo o poder dinamizante ao princípio nuclear masculino. Eis-nos diante de novas e mais próximas aplicações do princípio de equilíbrio universal. Como compensa a mulher as suas reduzidas capacidades metabólicas; como vivifica a sua troca, que é toda poupança; como age a sua célula acumuladora, para tornar a se carregar de energia? Como pode comunicar-se com o princípio oposto, para se recarregar? E ao contrário, como pode aquele princípio oposto se descarregar nela? Qual o princípio regulador dessas trocas de recursos e cargas opostos? É evidente que os dois princípios contrários, o positivo e o negativo, para poderem reciprocamente se compensar e, com isto, formar o equilíbrio, devem ser comunicantes. Vejamos como isto se dá. No mundo orgânico, são os hormônios que, mais ou menos, excitam e, portanto, regulam o metabolismo e a atividade funcional de todo órgão. Eles são produtos das várias glândulas de secreção interna, mas sobretudo dos ovários e dos testículos. Os primeiros produzem os hormônios ovarianos, aptos a excitar a função de reintegração e construção orgânica; os segundos produzem hormônios de grande potência oxidante, dinamizante. A atração sexual é dada, de um lado, pela carência e, de outro, pela abundância desses hormônios, e ao contrário para as de tipo oposto. Para atingir através da compensação o equilíbrio, eles tendem naturalmente para a troca. Reencontramos aqui também, nas leis do amor, aquele universal princípio de equilíbrio que tudo rege. Nele reencontramos até o equilíbrio da procura e da oferta, que é a base das nossas trocas e da ciência econômica. Para cada um, conforme o seu sexo e tipo, tratase de adquirir de quem os possua em excesso os elementos necessários que lhe faltam, e de ceder os que possui em abundância a quem deles tem carência. Somente assim, cada um pode atingir um bom reajustamento da própria troca e de todas as consequentes funções vitais. Somente assim os dois desequilíbrios se reequilibram e as recíprocas carências se suprem e se saciam. Entre iguais (mesmo sexo) ou semelhantes (mesma família) não há atração, mas repulsão ou indiferença. É a troca que, através do ato sexual, em que se dá a absorção, permite a cada um dos dois sexos descarregar o próprio tipo de hormônios supérfluos e se carregar dos hormônios de tipo e ação oposta. É através da troca sexual que a célula consegue pôr água no vinho e vinho na água, conforme sua natureza e necessidades, e, assim, regular o seu metabolismo, a sua vitalidade e seu funcionamento orgânico. Aqui não há espaço para expor em particular a modalidade dessa troca. Basta notar aqui as relações entre um não sábio uso do sexo e as alterações da troca, e como se possa, por excesso ou por defeito, chegar a acumulações de escórias, a autointoxicações e, enfim, à debilidade e vulnerabilidade orgânicas, que, somando-se com a hereditariedade, vêm a constituir grande parte daquelas carências e predisposições ao assalto microbiano, que representam a hodierna delícia do mundo. Todo fato, logo uma doença infecciosa também, é sempre conexo às suas mais longínquas raízes. Os erros e abusos, em qualquer campo, justamente por essa lei de equilíbrio, é natural que se paguem. De qualquer natureza que sejam, exatamente porque são desequilíbrios, devem reequilibrar-se. E reequilibram-se laboriosamente, saneando a própria desarmonia com esforço. Aquela é dor, este é fadiga e dor. Esta a grande mestra da vida, que tudo sana e nos faz compreender. Essa é a medicina na ordem divina. Ela é amarga, mas é justa e cura. E nenhuma coisa é mais criadora do que uma dor compreendida. Onde quer que lancemos o olhar, encontraremos o bem e o equilíbrio. Nestes exemplos, tomados ao acaso, temos visto atuar sempre o esquema universal de forças antagônicas e complementares, desde o problema máximo, que parece Pietro Ubaldi ser o mais longínquo, ao sexual, que está mais perto de nós. Somente assim, enquadrados nos esquemas universais, é possível compreender os problemas particulares. Façamos uma última aplicação no campo espiritual. Todo chefe, em qualquer campo em que opere, é sempre um núcleo em torno do qual gravitam discípulos, súditos, exércitos, imitadores, clientes. Em toda manifestação coletiva, social, política, religiosa, econômica, intelectual, também as forças espirituais se distribuem metodicamente, segundo o esquema habitual de núcleo central e elementos periféricos, rodando em torno, à guisa de sistema planetário. O chefe, à semelhança do sol, sempre arrasta atrás de si a sua corte de satélites. O esquema de distribuição de forças no átomo, na célula, bem como no sistema solar, é o mesmo e também se aplica aos sistemas políticos nos quais se ordena a sociedade humana. Os povos giram em torno de seu governo. Os dois são opostos e complementares no âmbito da nação; eles lutam entre si, mas formam uma unidade, que é a nação. Para que o sistema de forças possa formar-se, é necessário que os dois termos sejam reciprocamente proporcionais e qualitativamente afins, de outro modo o equilíbrio e a simbiose não se formam ou se desmancham. Por isso os povos têm os governos que merecem, e ao contrário. No grande organismo coletivo, nova unidade biológica do porvir, hoje em formação, o povo representa o protoplasma, a massa demográfica acumuladora de carne e de bens; o chefe é o núcleo que tudo move e dinamiza, mas que também, para progredir, está disposto a queimar tudo nas guerras e revoluções. Dessa forma, os dois termos se condicionam, freando-se e equilibrando-se reciprocamente. Depois de um esforço bélico ou revolucionário, os povos se recusam ao movimento inovador e se concentram, exaurido o esforço expansionista, na função de acumular. Chefes e massas funcionam subordinados, e, tal como macho e fêmea, não se sabe quem comanda mais. Algumas vezes, os povos mandam e os chefes obedecem. Quem guia a história não são, pois, nem uns nem outros, mas as leis da vida, que guiam todos. Não há vontade humana que nos possa fazer sair desses equilíbrios e ordem. No interior de cada unidade há sempre luta e contraste; cada eu (núcleo) está abraçado à sua contradição e, quanto mais forte ele é, tanto maior é a sua atração e tanto mais numerosa é a corte dos seus satélites, que são seus sequazes e também inimigos. Ao vencedor todos rendem o obséquio da fêmea ao macho. É a homenagem da vida ao seu mais válido princípio, positivo e dinamizante, aquele a quem é confiada a evolução. Quem vence é rei. Esta é a lei em todo campo. Como vimos, tudo gira em torno de um centro: Deus, centro máximo, que se reflete em infinitos centros menores para baixo, até ao infinitesimal. Assim, toda individualização reflete a Sua imagem e Ele é verdadeiramente presente em qualquer parte, até à última poeira do universo. O mais absoluto monismo é expresso na repetição do mesmo esquema em todas as gradações e planos do ser, em todas as alturas da evolução. Assim, o homem é feito à imagem e semelhança de Deus, e, em Deus, o universo diz: ―Eu‖, embora espedaçado em infinitas formas. Mas é no próprio eu que está em tudo o que existe, que o ser encontra o seu centro absoluto e eterno, a sua divindade, momento e reflexo da Divindade suprema, não importa quais e quantas formas transitórias ele possa assumir no tempo. Dizer que a forma está na periferia e o princípio animador no centro, significa que a forma gira em torno da substância, a criação em torno do criador, a matéria em torno do espírito, a manifestação em torno do ser, o efeito em torno da causa, o relativo em torno do absoluto, o móvel em torno do imóvel, o transitório em torno do eterno, a obediência em torno do comando da lei de Deus. É tão universal esse esquema do ser, que Deus mesmo o representa e, nessa forma, se nos manifesta. Assim, Ele tem o seu termo oposto e complementar em Satanás, que o combate, no entanto gira em torno de Deus e por Deus, único motor, é ar- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO rastado. Satanás é o mal, a negação, que não pode existir senão em função do bem, a afirmação. Assim, o mal gira em torno do bem e o erro em torno da verdade. Eles se condicionam reciprocamente. O mal é a condição da afirmação do bem, enquanto este é a condição da negação e destruição do mal. O bem, a verdade, está no centro, na substância, em Deus; o mal, o erro, está na periferia, na forma, em Satanás. O dualismo, que traz cisão e luta, está na base do universo. Ele é dor, mas é também possibilidade de movimento e de ascensão. Ele nos aparece como uma fratura, mas o universo, com a evolução, que vai de Satanás a Deus, tende ao próprio saneamento. Veremos, assim, que Deus, dolorosamente, despedaçou-se para dar vida, em supremo ato de amor, a uma infinidade de seres que, por sua natureza, não podem, como verdadeiros satélites, fazer mais do que rodeá-lo, sempre atraídos e desejosos de se fundirem nele, de cair sobre seu próprio sol. O próprio Satanás, no extremo periférico oposto, não pode existir senão em função de Deus. Tirai Deus de Satanás: e o que este negaria? Tirai o bem ao mal: e o que este destruiria? Satanás está atado a Deus pela sua própria existência e não pode existir senão como executor da lei de Deus. É ela que confiou a Satanás a tarefa negativa da resistência, é ela que manda nele, o enquadra na sua ordem, o constrange para os seus fins. No fundo, Satanás é o servo de Deus, como o mal é o servo do bem. Ainda que ao avesso, em forma de ódio e de revolta, Satanás é sempre um satélite ligado ao seu sol, que é a sua razão de existir. Um último esclarecimento antes de concluir. Se o sistema de forças é equilibrado segundo o esquema mencionado, como pode ele permitir o transformismo da evolução? Na realidade, os dois impulsos opostos nunca se compensam exatamente e o equilíbrio jamais é perfeito. Neste caso, ter-se-ia a estagnação. O equilíbrio, ao contrário, é oscilante, de onde nasce o movimento. Entre os dois princípios, não há compensação perfeita mas sempre uma carência, que jamais se completa e, permanecendo insatisfeita, busca o seu termo complementar, perseguindo-o sempre, sem nunca alcançá-lo. O que poderá parecer uma dor e uma condenação é, ao contrário, a base do movimento e da evolução. O que parece um mal é um bem, porque representa uma infinita possibilidade de saneamento. A congênita insatisfação humana, essa dose de descontentamento que fica no fundo de cada prazer, está ali para nos indicar que ele nunca é o último termo da satisfação, que há outro mais adiante e que é preciso subir para uma felicidade sempre maior. Se houvesse a felicidade com que se sonha e a saciedade completa como se desejaria, então tudo pararia. No momento em que os dois opostos se fundissem plenamente, as carências e lacunas estariam preenchidas e tudo cessaria: o movimento, a vida, a ascensão. Um pequeno desequilíbrio é necessário no sistema, mas também este é dosado para atingir os fins em razão dos quais existe. Se o sistema de forças existe e se rege enquanto é equilíbrio (unidade estática), ele também se move e pode transformar-se enquanto é, numa dada proporção, desequilíbrio (unidade dinâmica). Proporção regulada pela unidade, dada por resíduo dosado em relação aos impulsos do sistema. Uma consequência, como conclusão. Em nosso mundo, tudo é carecente, incompleto, mas ao mesmo tempo há tudo quanto basta para suprir a carência e completar o incompleto. Basta procurá-lo. A lacuna é feita para ser satisfeita em sua grande parte, exceto por um resíduo de carência, sempre não preenchido, que forma aquele desequilíbrio e movimento necessário para evolver. Do completamento surgiria a felicidade, que é a resultante da harmonia. Esta, porém, uma vez que nunca é completamente alcançada, está sempre em formação, sendo assim também para a felicidade. Se tudo existe e basta encontrá-lo, o caminho para suprir, senão todas, ao menos grande parte de nossas carências está aberto. Este é a via das permutas 49 na vida. Daí, a sua necessidade e utilidade. Todos têm necessidade de receber alguma coisa, mas têm também algo a dar. Procurar é achar. A permuta corresponde aos princípios de equilíbrio e harmonia que regem o universo. Trocas de todo gênero, agrícolas, econômicas, intelectuais, orgânicas. O isolamento egoísta mata. A permuta é genética. É através dela que a vida se recupera e reconstitui suas perdas. O princípio utilitário corresponde, nesse caso, a um princípio de fraternidade e de solidariedade. O método evangélico corresponde à grande lei do equilíbrio universal e exprime uma insuprimível necessidade biológica. Sinergismo cósmico, divino monismo do todo. Cada um necessita do próximo, e quem não o ama dele se afasta. Para receber, é preciso dar, e ilimitadamente receberá quem ilimitadamente tiver dado. De um modo ou de outro, todos se procuram para se fundir. Quando se odeiam e se combatem, é porque eles se procuram sem ainda se conhecer. E não se conhecendo ainda, não sabem fundir-se, porque não acharam a sintonia, a nota comum da simbiose. Também os dois sexos lutam para conseguir a fusão. A vida é regida pelo amor, e o ódio não é senão amor malogrado. Na luta corpo a corpo, como no amor, termina-se igualmente abraçados num espasmo. A lei do ódio é a mesma lei do amor, embora seja do lado negativo; a corrente é invertida, mas o princípio é uno. Tudo gira, no direito e no avesso, em torno de um mesmo centro e, qualquer que seja a direção do seu giro, tende e quer, por lei divina, seja pelo caminho do amor positivo, seja pelo negativo, unificar-se em Deus. XIII. EVASÕES Sigamos ainda por outros caminhos a ascensão da matéria ao espírito, que nos leva para Deus. Que o nosso mundo de hoje se faça sempre mais infernal, é coisa que todos compreendem. Sabemo-lo pela nossa dura experiência. Se os poucos que se encontram bem repousam satisfeitos, quem se acha incomodado se mexe na procura de uma posição melhor que o livre do seu sofrimento. Os inculcadores de remédios pululam por aí, pela lei da procura e da oferta, já que os remédios são um produto solicitado. Floresce assim, nos tempos difíceis, a indústria do remédio, e isto tanto mais, pois os males são muitos, e, quanto mais estes aumentam, tanto maior número de clientes e tanto mais a indústria é lucrativa. Sabe-se que os medicamentos não curam, o que não impede que as farmácias estejam apinhadas. Para qualquer parte que nos voltemos, um oceano de ais para todos. Os vencedores e os ricos não escapam, porque, se os pobres sofrem, eles tremem. E os remédios se reduzem a falatórios. O mal fica, e fugir da dor parece impossível. Estaremos, pois, fechados sem salvação em nossa prisão? E, como o pássaro na gaiola, o homem sempre mais se debate à procura da evasão. Onde está a saída, a via de fuga? Os anunciadores de remédios indicam numerosos caminhos e dizem: Ele está aqui, ou está lá. Mas a gaiola fica, e nós dentro dela a debater nossas asas contra as barras da dor, até à desesperação. Evadir! Ânsia irrefreável de liberdade, sonho supremo de quem sofre, palavra de ordem de hoje, espasmo do homem fechado no inferno terrestre. Cada um, segundo a sua filosofia, em que, de acordo com a sua natureza, exprime a si mesmo, tenta a sua forma de evasão. Tentemos nós também a nossa. Ela será muito diversa da outra, parecerá utopia, mas ao menos, por alguns minutos, teremos, em vez do contínuo acusar e agredir, até em nome de Cristo, uma palavra de paz e de amor; ouviremos, em vez do caótico e infernal concerto humano, as harmonias da música divina; veremos aplacar o ódio em um amor superior, dirigido a todas as criaturas. Para nós, trata-se de realidades cientificamente possíveis. Porém, mesmo para quem não pode compreender e as considera utopias, não será também doce evadir-se em sonho tão belo? 50 PROBLEMAS DO FUTURO Há dois modos de fugir do próprio plano de vida e condições inerentes: ou descendo, ou ascendendo. O primeiro é caminho fácil, mas traidor; oferece antes o doce e deixa depois o amargo, parece presente, e não oferece senão uma antecipação, que é preciso pagar depois. O mundo atual é néscio e prefere esta via, que é o caminho do prazer. Quem é tolo, é justo que sofra até que aprenda. Assim quer a Lei, para que ele se eleve. No entanto há um outro caminho, mais difícil, que oferece antes o amargo, mas, logo após, deixa o doce, um caminho em que antes se paga e depois se obtém. Experimentemos esse segundo caminho de evasão. Ele nos leva ao paraíso. Em vez de romper nossas asas contra as paredes do inferno terrestre, dirijamo-las para o alto. Desta parte, a gaiola está aberta e a fuga é possível. Fujamos por esta parte e observemos o que acontece lá no alto, no paraíso dos mais evoluídos, que superaram as formas de vida humana terrestre. A porta está aberta e é inacessível somente para quem não sabe subir. As suas barras invisíveis são dadas pelas forças de que se compõe aquele organismo dinâmico que constitui a personalidade humana. Estamos limitados e fechados somente pelas forças de que somos constituídos. Bastaria modificá-las, e todo um universo de maravilhas apareceria. Saber mudarmos! E este é um problema absolutamente individual, em que somos independentes do ambiente humano. Independentes! Mas não somos independentes daquilo que somos. Eis o problema. A gaiola não é a Terra ou a vida, somos nós, é a nossa natureza que estabelece a nossa forma de vida. Bastaria que soubéssemos mudar-nos e a evasão estaria pronta e garantida. Problema individual, de destino, que cada um fabrica por si com as próprias obras. Imaginemos, então, fugir da Terra, embora isto pareça um sonho. Para nós é realidade vivida, por isto podemos explicá-la. Como se foge? Para onde? Para Deus, que é o centro da felicidade e do amor. Mas onde está Deus? Deus está em toda parte, mas é tanto mais manifesto e perceptível quanto mais se ande para o centro. A evasão da dor para a felicidade se realiza caminhando-se para o centro. E como se vai para o centro? Evoluindo. O centro está no íntimo das coisas, no íntimo de nós. A evolução se cumpre transferindo da periferia para o centro a zona consciente e ativa da nossa vida, caminhando da forma à substância, da matéria ao espírito, indo do extremo do todo que se chama imanência, ao extremo que se chama transcendência. No precedente capítulo, ―Equilíbrios‖, vimos como o criado gira em torno do Criador e como esse sistema, de esquema rotativo, seja o esquema geral do universo, do átomo aos sistemas solares, da célula aos sexos e aos fenômenos de psicologia coletiva. Deus está no centro. Tudo gira em torno d'Ele, seja como matéria, como energia ou como espírito, e conforme se é mais ou menos evoluído, estando mais ou menos perto d'Ele, também se é mais ou menos vivo, consciente, feliz. A fragmentação no relativo, o egoísmo, o transitório, o ódio, a dor, estão na periferia e diminuem à medida que nos acercamos do centro. Indo nesta direção, faz-se sempre mais manifesta a unidade, a fraternidade, a incorruptibilidade, o amor, a felicidade. Tornemos mais preciso. Transcendência e imanência são percebidos pelo homem atual como contraposições. Assim, delas se faz duas teses inimigas. Em geral, quando os homens lutam em torno de um conceito, é porque se colocam em posições diferentes, cada um num extremo diverso da mesma unidade, de modo que não percebem senão a própria posição. Isto acontece porque estão na periferia, e, quanto mais periférica for a posição, tanto mais o todo lhes aparece separado, porque tanto mais eles estão imersos no relativo. É assim que a intuição, que leva para a síntese, está mais perto do centro-Deus do que a razão analítica. A nossa ciência da matéria é periférica, divergente por sua natureza, e tende, como hoje acontece, a especializarse, isto é, a fragmentar-se e dispersar-se sempre mais no relativo. Por essa razão ela foi considerada pelos homens do espírito Pietro Ubaldi como luciferina, isto é, portadora de luz satânica. E, de fato, ela demonstrou uma ação pseudoconstrutiva, resolvendo-se, na realidade, em destruição. Eis por que ela foi entendida como uma pseudoluz, com tendência a obscurecer e confundir, como está bem expresso no conto bíblico da torre de Babel. Quem, pois, vê Deus como manifestação periférica sustenta a imanência; quem o vê como causa central sustenta a transcendência. Na realidade, causa e efeito estão uma na outra e ao contrário. Ambos os juízes têm razão, no entanto, em nome da mesma verdade, eles se acusam e se contrastam. É a relatividade de sua posição periférica involuída que lhes faz perceber a unidade como dúplice e separada. Ascendendo-se evolutivamente, vê-se mais profundo, de modo que a relatividade e a separação, próprias do nosso plano de vida, pouco a pouco se esvaem. Então, transcendência e imanência se revelam como os dois polos do mesmo binômio; observa-se e compreende-se o universal princípio de dualidade, e a contradição desaparece. A ascensão leva a uma contínua pacificação de contrários, a uma progressiva unificação dos fragmentos do nosso relativo. O todo parece um, mas só no seu íntimo, se bem que dividido em duas partes inversas e complementares, que se contrapõem só para formar uma unidade. Contraposição não para cindir-se como antes, mas para se equilibrar e, então, juntar-se. Eis um primeiro passo para a unificação. Mas, à medida em que se ascende, isto é, vai-se para o centro, Deus, vê-se ainda mais profundamente. O binômio Deusuniverso não se mostra somente como um par unido em inseparável monismo, mas se torna um único sistema de forças, em que a imanência gira em torno da transcendência e ambas são parte integrante no esquema da mesma unidade, não importando que tudo possa parecer imanência quando as coisas são observadas do centro. Então, a criação não aparece mais no aspecto exclusivo de elemento complementar do Criador, mas sim como o próprio Criador, visto em uma sua posição e de um ponto de vista diverso, periférico em vez de central. Tudo gira em torno do centro, Deus, para Ele gravita e é a Sua manifestação, sem a qual Deus não possuiria no universo forma ou corpo. Assim, também no homem, feito à imagem e semelhança de Deus, a matéria é a veste do espírito e o corpo é transitório, sempre mutável, constituindo forma, expressão e manifestação periférica. No centro está a fonte da vida, de toda energia e riqueza, fonte que, como a alma ou o sol, irradia e, assim, tudo nutre e sustém, pulverizando-se e dispersando-se na periferia. O corpo é de fato um metabolismo, um tornar-se contínuo, enquanto nós sentimos que o eu permanece constante no meio dessa constante transformação de sua veste. O eu é central no sistema, o corpo é periférico, e cada um dos dois tem em si as características da sua posição, como no universo. As diversas formas com que nos revestimos giram em torno do nosso espírito. Este é, no pequeno sistema da personalidade humana, o que Deus é no universo, isto é, o centro, a substância, o motor. Isto corresponde ao princípio monístico do esquema do universo, de tipo único, coincide com a conhecida afirmação de que o homem é feito à imagem de Deus, confirma a ideia de que Deus se reflete em todas as coisas, de modo que, em todas as coisas, nós o reencontramos. E no homem, à semelhança de Deus no universo, o eu também está no centro e em todo ponto do seu sistema, em todo lugar do seu ser, até às últimas propagações da sua forma periférica. O eu, trate-se de Deus ou do homem, está, segundo o mesmo esquema, presente e ativo em todo momento da sua manifestação, que, como sua emanação, é toda ele próprio. Centro e periferia, assim, são ligados e entremeados um no outro, tanto que o primeiro está todo no outro e ao contrário. Neste sentido, pôde-se dizer alhures (A Grande Síntese) que ―Deus é a criação‖, que ―tudo deve reentrar na divindade‖, que ―Deus é também o universo físico‖. Assim como Deus fica imutável no centro do Seu universo, que muda sempre de forma, o Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO eu humano também fica constante no centro do seu ser físico, que muda e se renova através de suas formas diversas. Este é o esquema do sistema central periférico único de nosso universo, que encontramos repetido em todas as alturas e grandezas. A evolução torna-se possível em razão da estrutura do sistema, pela qual a um contínuo girar ou metabolismo periférico corresponde um paralelo poder central. Do fato que o eu humano pode continuamente trocar de veste, utilizando novos corpos, nasce a possibilidade da elaboração através das suas experiências. O incessante martelar das experiências da vida, através dos contínuos choques e dores, essa investida sem tréguas sobre nossa casca corpórea, têm o poder de despertar a divina centelha que jaz adormecida em nós. Acontece, assim, que nosso ponto consciente e ativo na vida se transfere sempre mais da periferia para o centro, progredindo para o íntimo, no profundo do ser, distanciando-se assim, pouco a pouco, do relativo periférico da manifestação ou forma, e subindo para Deus, em direção ao centro, que está na profundidade. Eis em que consiste o processo evolutivo. Pode-se descrevê-lo como um subir para o alto, enquanto se ascende para a perfeição e a potência, ou como um descer em profundidade, enquanto a vida se distancia da forma para o seu íntimo, ou como um progressivo acordar do latente que está em nós, ou ainda como um movimento da vida da matéria para o espírito, isto é, um desmaterializar-se, um evaporar da sua forma. Mas compreende-se que esses não são mais do que alguns modos de ver e descrever o mesmo fenômeno sob diversos aspectos. Está justamente neste evaporar da forma a chave da nossa evasão, para nos libertarmos da dor, da ignorância e do erro, filho dela. Este é o segredo para nos distanciarmos deste imenso oceano de ais que é justamente a característica das zonas periféricas, em que nós, humanos, vivemos. Como se vê, trata-se de problemas vitais também para os que, em tudo isto, não veem senão utopia. Problemas que aqui são apresentados e resolvidos com plena lógica e em harmonia com o funcionamento orgânico do universo. As soluções isoladas do todo não são jamais verdadeiras soluções. Precisemos ainda mais. Nós, humanos, como criaturas, giramos, segundo o mencionado esquema dinâmico, em torno do Criador, portanto não estamos fechados em um dado raio de rotação, mas sim evoluindo, isto é, potenciando o nosso eu em proporção à desmaterialização de nossa veste corpórea, enriquecendo a nossa personalidade de conhecimento e sabedoria, qualidade e sensibilidade, através de nossas experiências no corpo. Podemos assim, transformando-nos em bem, passar a girar cada vez mais próximo do centro divino, fato que implica na abertura de infinitas novas possibilidades. É com essa transformação evolutiva que poderemos deixar embaixo, nos planos inferiores de vida, sempre mais infernais quanto mais se desce, toda a desordem, o mal e a dor que os caracterizam. Pois que há infernos ainda piores do que o terrestre, lugar de pena onde só seres inferiores podem encontrar uma felicidade a eles proporcionada. Evoluindo, podemos emigrar para corpos sempre mais livres dos pesos e dores próprios da matéria, corpos menos transitórios e imperfeitos, em formas de consciência menos encarceradas no relativo, menos segregadas do todo pelo egoísmo, em formas de vidas menos esmagadas pelo ódio e menos sufocadas pelas trevas da ignorância. Girar sempre mais perto de Deus significa sensibilizar-se e potenciar-se, enriquecer-se e satisfazer-se; significa tornar-se sempre mais vidente, vibrante, dinâmico, resistente, luminoso e feliz. Por esse caminho, a evolução nos leva sempre mais para perto de Deus. O ser passa gradativamente de um plano a outro de vida. Os vários níveis biológicos que conhecemos, que vão do mineral ao gênio, não são senão círculos concêntricos de rotação em torno de Deus, formando degraus que o ser, evoluindo pouco a pouco, ascende. Não se trata de movimentos no espaço, mas de íntima transformação do ser, de movimento interno do todo, pelo qual se opera a progressiva reabsorção em Deus de sua manifestação. O sol que lançou à sua volta, por impulsos cen- 51 trífugos, os seus planetas, os torna a atrair por impulso centrípeto. Deus é o sol que, no centro do universo, atrai todo o universo e, assim, o rege. E o universo, como os planetas, tende a recair sobre Ele, continuamente restringindo, em obediência à força de atração, as suas órbitas de rotação. Um mesmo princípio rege tudo. Eis a evolução. Assim o ser vai do corpo ao eu, do exterior, onde reina Satanás, ao interior, onde reina Deus; da formamatéria ao espírito-Deus. Por essa razão foi dito que o Reino de Deus está dentro de nós, o que pode ser definido como um despertar, porque nada se cria e nada se destrói. Fundamentalmente, a evolução não é senão um despertar do que em nós é latente, daquele divino que está em nós, mas dormindo no fundo do obscuro cárcere do corpo fechado nos sentidos. Tudo deve desabrochar, abrir-se, florir na vida, também essa centelha que está em todos os seres e coisas e que anima todo o universo. O homem atual deve somente à sua natureza involuída a sua ligação às tormentosas condições do seu mundo. Ele está preso no fundo de um cárcere obscuro e não suspeita das infinitas possibilidades da vida, do extraordinário reino que ele compõe como cidadão do infinito, do maravilhoso organismo de forças que ele faz parte, do concerto de perfeições que é o universo em que vive. E cego, faltam-lhe os sentidos para ver tudo isto; a sua miopia e a sua relatividade o fazem extraviar-se no labirinto das análises, e, quando tudo isto lhe é relatado e explicado, ele não compreende e torna a olhar as pequenas e tristes coisas vizinhas, das quais faz todo o seu mundo. Incapaz de se evadir, dobra a cerviz sob o peso da sua vida atormentada ou se rebela e maldiz, lançando nova lenha nas chamas do seu inferno de ódios. Ah! Se imaginasse a riqueza, o poder e a felicidade que alcança quem, conseguindo despertar no profundo, descobre e encontra a sua natureza divina! Que apocalíptico espetáculo ver os muros desabarem em torno do cárcere, que arrebatadora sensação de expansão no infinito; que grandioso triunfo evadir-se da Terra, livrar-se da dor e da morte, conquistar a consciência da própria eternidade! As tão alardeadas liberdades terrenas são apenas falatórios e ilusões. Eis como aparece a visão do paraíso. Continuemos a observar. Ainda que o corpo fique no inferno terrestre, o espírito pode evadir-se. Sente-se, então, arrebatado em êxtase, na contemplação das maravilhas da ordem divina. O infernal estridor de dentes, o caótico lutar e odiar-se, os choques de todos contra todos e a imensa dor que disto resulta, tudo permanece lá embaixo, longe, na Terra, assim como o fragor e o cheiro nauseabundo das grandes cidades ficam longe do cimo do monte. Quanta pureza lá em cima, que harmonia, que concerto de vibrações, que música de divinos equilíbrios, que compreensão e quanto amor entre os seres! Então, enquanto o corpo ainda sofre na Terra, o espírito, quase se destacando, regozija-se num mundo mais elevado. Miríades de criaturas, de corpos sutis e resplandecentes, organismos espirituais formados por um dinamismo de infinitas vibrações, ignorados por nós, que, através de uma sensibilidade ilimitada, transbordando além das estreitas portas dos sentidos terrestres, recebem e refletem, absorvem e emanam, como centros radiantes, toda emanação que lhes chega de Deus. Todas as criaturas se harmonizam por ressonância e sintonia em um concerto grandioso, onde tudo é vida e movimento e todo movimento se coordena e harmoniza na luz de Deus, em gáudio intensíssimo. Na imensa sinfonia, esses seres se dispõem em círculos concêntricos em torno de Deus, mais ou menos vizinhos e resplendentes conforme a sua maior ou menor perfeição e a sua capacidade de absorver e reemitir a luz divina. E esses círculos giram vertiginosamente em uma ordem imutável, vibrando e brilhando em infinitas radiações no divino oceano vibrante. As suas trajetórias são doces harmonias, a sua vibração é amor. Essas criaturas se inflamam na ânsia de evoluir, de estreitar as órbitas e avizinhar-se sempre mais de Deus, ansiosas de precipitar-se e fundir-se naquele Centro. E Deus, do centro, atrai e irradia, chama e estreita a Si com as suas radiações de amor as suas criaturas, e as criaturas respondem. O 52 PROBLEMAS DO FUTURO colóquio é um amplexo que se faz sempre mais apertado, e o canto é uma música sempre mais potente e perfeita. Todo ser conhece a Lei e não pensa senão em segui-la. Tudo é harmônico. Nenhuma rebelião ou violação. Eis a grande beleza. Todo ser sabe o seu caminho na Lei, porque tem consciência de tudo, de sua posição no todo, do que é e deverá ser. A violação, o erro, a culpa estão longe. E, sabendo o seu caminho, todo ser sabe mover-se ordenadamente, conforme a Lei, em harmonia com os outros, unificando-se a eles em fraternal ajuda e amor. Tudo isto, aqui, é natural, lógico, espontâneo. Os caóticos ímpetos da vida, aqui, estão finalmente coordenados. A vida se torna sempre mais infernal quanto mais o ser é impelido pela sua imperfeição à periferia, pois que, quanto mais nos destacamos de Deus, tanto mais aumentam a desordem, o embate e a dor. A Lei e as suas forças estão em qualquer parte, e, em qualquer parte, Deus está presente. Mas é a coordenação dos seres, a reordenação na harmonia divina, que forma o paraíso, onde eles se tornam um canto divino, uma música universal que tudo satura de alegria sobre-humana. Por isto o paraíso é descrito com expressões musicais. Trata-se, efetivamente, de uma progressiva harmonização no dinamismo universal, de uma musicalidade que se faz sempre mais completa, profunda e perfeita à medida que nos avizinhamos do centro. As nossas criações artísticas e musicais não são senão as primeiras aproximações dessa harmonização. Tão pobre coisa são, mas já nos arrebatam para o alto, dandonos apenas uma ideia da divina contemplação dos anjos! Quanto mais a alma é evoluída, tanto mais compreende e goza dessas harmonias, perto das quais o involuído passa sem compreender e sem alegrar-se. Assim, a produção musical de um século é o primeiro índice do seu grau de evolução, e nenhuma coisa como a selvagem música moderna exprime tão bem a tremenda descida involutiva do nosso tempo. O pensamento dominante em cada período histórico lhe dá a cor em todas suas manifestações, social, artística, filosófica, moral e também material. Enquanto no inferno terrestre, ódio, suspeita, incerteza e dor são a atmosfera natural, lá em cima, naqueles elevados planos de vida, amor, confiança e segurança representam a dominante vibração do ambiente. Lá, os seres não se chocam, não se ferem reciprocamente como demônios, causando um a dor do outro. Todo ser, pois, que é consciente do funcionamento do todo, espontaneamente se põe, conforme sua natureza, na sua justa posição, que naturalmente, sem luta, é a melhor e de maior rendimento em bem e felicidade para ele e para os outros. A criatura vê os olhos de Deus, que a olha; sente a presença d'Ele, que tudo guia; conhece a vontade d'Ele, que tudo move; sabe que esta é perfeita e que a sua alegria está em querer aquilo que Deus quer. Não há mais a distância que desarranja a ordem no caos, ofuscando e tornando opaca essa compreensão e comunhão de vontades entre a criatura e o Criador. A ignorância, a inconsciência, o erro e a culpa, aqueles diafragmas que cindem a unidade e são a causa de todo o nosso mal, caíram. Eis, apenas assinalado, um clarão do paraíso. Há ainda mais, muitíssimo mais. Porém a palavra humana não o sabe exprimir. O resto permanece fechado em si, como um tesouro, e não deve ser dito ao mundo de hoje. Esta, em breve, é a visão. Depois de surgir em todo seu esplendor, ela se extingue, e a alma, arrebatada, precipita-se para baixo no corpo, na Terra, neste mundo opaco tão distante do centro, onde a luz de Deus apenas ilumina as trevas profundas. Precipita-se para baixo, mas lembra, todavia, que é possível evadir-se e que a Terra, que temos observado, é o caminho para fugir do inferno terrestre. Precipita-se para baixo na Terra, onde, até em nome de Deus, os homens estão divididos pelo ódio e se combatem; onde, também em nome da Sua mesma justiça, eles roubam e se matam; na Terra, onde tudo está prostituído pela matéria, onde arde o inferno desejado pelo homem, onde tudo é falseado e o próprio santo nome de Deus torna-se mentira. Pietro Ubaldi XIV. INFERNO E PARAISO Parece este um argumento para sermões quaresmais Mas pode ser, ao contrário, um argumento científico, se por ciência entendermos um conhecimento mais vasto e profundo que o aceito pela ciência moderna. Se a concepção dantesca arrastou por séculos tantas gerações, enchendo-as de admiração, se, em correspondência com aquela concepção, existe no mundo um consenso expresso de vários modos nas diversas religiões, se essas coisas que parecem sonhos tiveram a força de convencer tantos povos por tantos séculos, isto significa que elas devem representar alguma coisa de biologicamente verdadeiro e real, ainda que não visível e não provado com os métodos da ciência atual. Não se trata evidentemente da biologia atual, que é limitada apenas às espécies que viveram ou vivem no planeta, mas sim de uma mais ampla biologia, não só subanimal e superhumana mas também espiritual e transcendental, ainda desconhecida pela ciência. A existência de mundos, seres e condições de vida inferiores ou superiores ao nosso ambiente conhecido, é coisa instintivamente sentida por todos os povos e em todos os tempos. A universalidade dessa intuição não pode deixar de ter um significado. Quem são esses outros cidadãos do universo, de cuja presença, quem sabe onde e como, nós, vagamente, temos a intuição? Quais são as suas formas de vida? A hipótese astronômica da pluralidade dos mundos habitados, se é extremamente lógica e provável, não é suficiente para exaurir a questão, porque uma biologia completa deve compreender não somente as formas materialmente organizadas no plano físico, mas também aquelas imaterialmente organizadas no plano dinâmico e psíquico-espiritual. No sistema do universo, é lógico que a vida continue do lado de cima e do lado de baixo do plano que conhecemos e em que vivemos. O mesmo princípio da evolução nos indica que devem existir no universo seres mais involuídos e outros mais evoluídos do que nós. E que esse princípio seja universal, não há dúvida. Nós o reencontramos em qualquer parte em nosso mundo fenomênico e, uma vez que, como já verificamos, tudo é analógico e funciona monisticamente, por esquemas únicos e simples, repetidos em inumeráveis alturas e combinações, devemos concluir pela universalidade do princípio de evolução, que deve atuar, portanto, mesmo onde não podemos experimentalmente obter uma comprovação. O conceito de marcha ascensional indica que devem existir não só formas de vida e indivíduos que estão mais adiante de nós no caminho evolutivo, isto é, mais no alto, mas também formas de vida e indivíduos que estão atrás de nós, mais embaixo. A evolução, sinônimo de progresso, exceto para os desorientados, presas do pessimismo, é um fato evidente. Em toda raça, seja vegetal, animal ou humana, verificamos existirem indivíduos de tipo biológico mais avançado e outros de tipo mais atrasado. Mas, aqui, trata-se de descobrir com o método da intuição, já que o objeto foge à observação sensória experimental, quais são essas formas de vida sub e super-humana. Não é possível observar a estrutura de organismos cuja constituição celular e permuta se baseiam em uma química atômica dada por outras relações, diferentes das nossas, nem é possível definir a anatomia desses organismos de forças, receptores e radiantes, que chamamos espíritos, organismos vibrantes, cujo funcionamento vital e permutas se dão em um plano com prevalência dinâmica, sujeitos a uma física diversa da nossa. Teremos aqui de nos contentar com algumas observações gerais de orientação. O homem sempre chamou de paraíso àquele estado biológico em que existem os seres mais elevados e de inferno àquele menos elevado. Em termos modernos, poder-se-ia dizer: paraíso é o mundo dos evoluídos, e inferno é o mundo dos involuídos. Certamente, a escala é infinita, e as posições não são absolutas, mas sim relativas a cada um, de modo que o paraíso é Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO aquele ambiente de vida mais ampla e feliz que está biologicamente mais no alto, e inferno é aquele mundo mais áspero e atormentado que está relativamente mais embaixo. Qualquer coisa de semelhante vemos, em escala mais reduzida, na Terra, com o enobrecimento dos costumes logo que se pode elevar o teor da vida por força de condições econômicas melhores. Assim também se passa na domesticação dos animais e no cultivo das plantas, onde verificamos a perda daqueles caracteres de ferocidade e instrumentos de agressão que prevalecem no estado selvagem. Mas, também aqui, tudo é relativo e se reduz a uma questão de relação entre a posição no ambiente e o próprio grau evolutivo, com referência ao sentido entre ponto de partida e de chegada ao longo da escala evolutiva. A nossa ciência ignora o que há, biologicamente, acima e abaixo do nosso plano de vida. Este ideia de diferentes planos de vida é uma consequência direta do conceito de evolução. Admitindo-se este, deve-se admitir também aquele. Ora, é evidente que, para a solução desses problemas transcendentais, o conhecimento oferecido pela nossa ciência, baseado em um único plano de vida, não pode ser suficiente. Nem pode sê-lo, se quisermos satisfazer à racional forma mental moderna, o conhecimento empírico da filosofia, ou o instintivo e intuitivo das religiões. Dado que as revelações das religiões não são precisas, nada mais resta para a exploração científica do transcendental senão a investigação por intuição, que, em alguns sujeitos tornados sensíveis por evolução e ao mesmo tempo racionalmente disciplinados, pode adquirir valor de método científico. Somente assim o transcendental pode ser submetido à observação, tornando-se possível entrar e penetrar no mundo do espírito com métodos objetivos. O homem de amanhã compreenderá certamente estas afirmações, mas dificilmente as entenderá o homem médio de hoje, que não encontra em si nada que as consolide, pois ainda não alcançou por evolução o grau de sensibilidade necessário. Neste sentido, falar de inferno e paraíso não significa falar de coisas longínquas que não nos dizem respeito, ou de argumentos de fé em que não se pode crer. Trata-se do nosso futuro biológico, individual e coletivo, que não é quimera; trata-se da escolha do caminho da ascensão ou da descida, que conduzem à alegria ou à nossa dor. Trata-se de preparar o amanhã que nos aguarda e de compreender como prepará-lo no bem, e não no mal, para a nossa utilidade, e não para o nosso dano. E, para compreender, é preciso resolver também este particular problema no seio da fenomenologia universal, em relação e em função da qual eles se desenvolvem. É necessário nos darmos conta de que as leis sobre as quais baseamos a nossa vida são relativas ao nosso ambiente terrestre, devem, pois, ser tidas como válidas somente nele e em relação a ele, portanto não são necessariamente verdadeiras em outros ambientes, onde podem vigorar outras. Logicamente, sendo tudo conexo e os planos de vida contíguos, devem existir também afinidades e analogias que sirvam de pontos de passagens que possam permitir o transformismo da evolução e a comunicação de um plano a outro, seja em ascensão, seja em decida, característica que também verificamos, em ponto menor, no plano biológico terrestre, isto é, uma passagem das formas inferiores às superiores e ao contrário. Os seres nunca estão fechados em um único plano de vida, em um dado nível evolutivo, pois, para que ocorra a grande marcha evolutiva do universo, é necessário que eles possam deslocar-se para cima ou para baixo, a fim de sempre possibilitar a emigração para novas pátrias, gradualmente, em correspondência com as experiências adquiridas, os valores conquistados e o peso específico atingido pela destilação espiritual, conforme a responsabilidade, a consciência, o mérito e a perfeição amadurecida, para colher, segundo a justiça, o fruto do que tenham semeado. Estabelecida a relatividade da nossa biologia, mesmo admitindo que, por analogia, ela esteja conexa com a biologia uni- 53 versal, devemos admitir que as suas leis dizem respeito somente e particularmente ao nosso ambiente terrestre. É neste sentido que devemos entender a lei que aqui vigora, da luta pela seleção do mais forte, no entanto não devemos dar a este princípio um valor universal, mas somente relativo ao ambiente humano, que ainda é de prevalência animal. Se, aqui, esta lei pode ter função evolutiva, e isto em proporção ao baixo grau do ser ao qual ela se aplica, em planos superiores, tudo isto pode parecer, ao contrário, uma atividade destrutiva e infernal, ilógica e bestial, tendente ao retrocesso, e não ao progresso. Assim também para todas as expressões da nossa vida, como as formas de amor, de reprodução, de nutrição e toda atividade regida não pelo conhecimento, mas pelos instintos. Mas é possível verificar uma diferença de desenvolvimento evolutivo em nosso próprio mundo humano. Se bem que o grosso das massas sociais seja formado por indivíduos da mesma conformação psíquica, mais ou menos com os mesmos instintos e necessidades, tanto que resultam praticamente quase iguais no conjunto, como as ovelhas, e construídos em série como as bicicletas, todavia, acima e abaixo dessa zona média e medíocre, em que a vida, pouco a pouco, estabelece os seus equilíbrios, emerge ou aprofunda um número de casos fora de série, que se faz sempre mais exíguo quanto mais subimos para o alto ou descemos para baixo. Se bem que a maioria venha a funcionar por imitação e a marchar em bando (bem o sabem os governantes), em suas margens há um número restrito de evoluídos e involuídos, afastados da média, incapazes, uns e outros, de se enquadrarem nela, seja por excesso, seja por defeito. Embaixo da média há o bruto, o delinquente; mais no alto há o gênio e o santo. O primeiro tipo representa formas de vida inferiores, às quais ainda pertence, e encontra na Terra um ambiente a ele superior, paraíso para ele, lugar de alegria. O segundo representa formas superiores de vida, das quais desceu à Terra, um inferno para ele, lugar de dor. O primeiro se encontra bem e se lança a gozar, mas representa um peso a ser arrastado pelos demais, uma resistência sobre o caminho da evolução. Os outros devem tomar a seu cargo a fadiga da sua educação e as repercussões dos seus erros. O segundo, ao contrário, encontra-se mal e é constrangido a sofrer, mas representa um motor que arrasta os demais, um impulso no caminho da evolução. Ele toma a seu cargo a fadiga da educação dos outros e as repercussões dos seus erros. A vida, que sente tudo isso, exprime-se através do sentimento popular, tornando o involuído detestável, odioso e arredio, e o evoluído, admirado, amado e procurado. A veneração das massas pelos santos não é resultado imposto por alguma autoridade, mas sim expressão de leis biológicas, que falam através do instinto e falam alto, porque nenhuma autoridade poderia criar tão universais consensos; falam claro, porque elas bem sabem o quão necessário é este tipo biológico aos fins da evolução, para onde converge todo o dinamismo da vida. Bem sabendo a que suprema função esse tipo corresponde, ela o fustiga na incompreensão e na dor, assim o robustece e o experimenta; e se ele vence, o exalta depois, sem restrições. Que triste sorte aguarda na Terra esses pobres caídos de mundos superiores ao nosso, mas que grande função biológica eles representam, que missão desempenham! Eles são verdadeiramente o sal da vida. Como seres pertencentes a formas de vida mais avançadas, representam um organismo prevalentemente espiritual com funções físicas secundárias, que servem o espírito, enquanto os assim ditos seus semelhantes representam um organismo prevalentemente físico com funções espirituais secundárias, que servem o corpo. No tipo normal domina o corpo, no evoluído domina o espírito. Enquanto os demais tendem a ficar indolentes nas funções animais da carne, aquele se inflama e se entrega. Se as forças da vida não o protegessem, ele, explorado por todos, empobreceria até à 54 PROBLEMAS DO FUTURO morte ou ficaria queimado no seu incêndio. Somente Deus protege o evoluído, não os homens. A notória pobreza dos gênios nos prova que, na Terra, os serviços materiais são muito mais prezados e compensados do que os serviços espirituais. Está provado que o tipo dominante não é o evoluído, mas sim o semievoluído ou involuído. O super-homem é um anjo que desceu à Terra para trabalhar, lutar e sofrer. Os demais se fazem arrastar pelos seus esforços, exploram-lhes as obras, espremem o seu sangue e dele se nutrem. Mas, para a vida, a exploração é também absorção, e ambas se fazem mais intensas depois da sua morte, quando ele não é mais um rival humano e, já morto, não pode mais defender-se. Então, a vida bebe avidamente o sangue dos seus mártires e a dor dos seus gênios. Os homens se apoderam dele com a glorificação, nutrem-se com a narração daqueles tormentos que eles causaram, gozam o patético romance daqueles dramas e, não saciados ainda, têm até a desfaçatez de chorar sobre suas desventuras, de que jamais se ocuparam em vida, e de lhes elevar monumentos para sustentar a bandeira das próprias ambições. Eis que, também na Terra, anjos e demônios, paraíso e inferno, estão frente a frente. Esses exemplares, próximos de nós o suficiente para que ainda lhes seja possível viver e trabalhar na Terra, nos indicam a existência e as características dos planos evolutivos mais distantes de nós, que não nos podem oferecer representantes suscetíveis à nossa observação na Terra, pois esta não lhes proporciona condições de ambiente adequadas. O involuído representa a primeira propagação para baixo do nosso plano; o evoluído, a primeira para o alto. Mas ambos os lados se prolongam e representam, respectivamente, o nosso passado e futuro biológico. Inferno e paraíso constituem a nossa própria história. Baseando-nos na observação das formas somáticas e psíquicas dos tipos evolutivos, em excesso ou defeito, que encontramos na Terra, e acentuando os seus caracteres, podemos chegar a uma aproximada representação das notas dominantes nos tipos biológicos verdadeiramente inferiores e superiores, das criaturas demoníacas dos ambientes denominados inferno e das criaturas angélicas dos ambientes chamados paraíso. De um lado o bruto, todo potência física. Rico dos atributos animais e das características somáticas e psíquicas da besta, ele nos aparece como o demônio maciço na estrutura material, fornido de pelos, de artelhos, cauda, chifres, caninos desenvolvidos na queixada devoradora e todos os meios de agressão. A tudo isto, psiquicamente, correspondem os instintos mais sanguinários, egoístas e ferozes, paralelos a uma proporcional obtusidade mental, definindo uma alma ainda fechada para os grandes problemas do conhecimento e surda para as vibrações do infinito. Do outro lado, o tipo biológico do super-homem se apresenta com caracteres somáticos e psíquicos opostos. De uma potência toda espiritual, rico dos atributos imateriais e psíquicos do anjo, ele nos aparece como um organismo dinâmico sensibilizado e radiante, receptor e transmissor, vibrante no oceano infinito das radiações da vida mais elevada do universo. A tudo isto, psiquicamente, correspondem os sentimentos mais harmônicos, altruístas e refinados, paralelos a uma proporcionada luminosidade de intelecto, inerentes a uma alma que se abriu aos grandes problemas do conhecimento e despertou para as vibrações do infinito. Os caracteres são naturalmente opostos, justamente porque correspondem a posições opostas ao longo da direção em que a vida se move. A arte, as religiões, a fé, o instinto humano já intuíram a realidade dessas formas, inacessíveis à observação direta de nossa ciência, e no-las descrevem assim. Nessas descrições, de um lado, ecoa o terror deixado impresso em nosso subconsciente pelo contato espantoso com seres ferozes, inferiores, semeadores de dores; de outro, vibra em nosso superconsciente o pressentimento de avizinhar-se de formas de vida superiores e da presença invisível mas real, junto de nós, de seres elevados e Pietro Ubaldi bons, semeadores do bem. Assim, a escala da evolução continua no alto e em baixo, acentuando sempre mais, nessas duas direções opostas, os respectivos caracteres, até e além dos limites do imaginável. Certo é que uma biologia, para ser completa, deveria se estender do demônio ao anjo, mas isto não se pode pretender de nossa ciência atual, dados os seus meios de investigação e orientação. Ela não conhece senão a biologia animal do involuído terrestre e do semievoluído. Poderia, contudo, começar a ocupar-se da biologia do evoluído, que por vezes, sob a forma de gênio ou de santo, aparece entre os homens. Compreender cientificamente o super-homem, em vez de relegá-lo aos anormais e enquadrá-lo no patológico, somente porque está fora de série, significaria começar a penetrar naquela biologia transcendental, que é a biologia do futuro. Na Terra, por necessidade de recíproca elaboração, vivem materialmente vizinhos, mas espiritualmente distantes, seres relativamente involuídos e evoluídos. Com o homem, a evolução entra em um plano de diferenciação espiritual, que não é mais organicamente expressa por formas físicas e, por isto, não se manifesta materialmente visível. Como tal, ela foge à avaliação sensória, mesmo havendo fortes diferenças naquele novo organismo espiritual dinâmico-radiante, acima referido, que, no homem médio, começa a sua construção com a formação da psique. Portanto, em nosso próprio plano humano, começa a existir essa biologia transcendental, embora ainda escondida no íntimo do ser, em estado de maturação subterrânea, mas nem por isto menos pronta a explodir tão logo haja amadurecido. O que notamos em nosso mundo não corresponde a essa realidade espiritual mais profunda. A estrutura orgânica ou a posição social nada nos diz dela. A riqueza, o verniz da educação e da cultura, a máscara civil ou forma de mentira sob a qual o indivíduo se esconde para a luta pela vida, não pesam na balança. Debaixo de todas essas aparências que os homens amam, dadas a entender como verdadeiras, há uma realidade natural interior, definida pelo grau de evolução que o indivíduo alcançou ao longo da escala biológica. Ora, aquilo que revela o homem e permite conhecê-lo não é o que ele diz, mas o que ele faz. É observando a sua verdadeira conduta que poderemos olhar atrás das cenas da comédia que ele representa na vida e ver a realidade. Não interessa, pois, escutar quais são as ideias professadas, mas observar o método com que elas são praticadas. Então veremos que, independentemente de todos os programas, teorias e profissões de fé, a nota característica que revela o involuído é o espírito de agressão e de mentira, enquanto o evoluído revela-se pelo espírito de altruísmo e de sinceridade. Nos fatos, eles estão nos antípodas. Também o primeiro sustenta os mais altos princípios de justiça e de bondade, mas ele começa sempre pelos seus próprios direitos e pelos deveres dos outros; não pensa, absolutamente, que se possa corrigir o vizinho antes de tudo com o próprio exemplo e sacrifício, e é levado, por isto, a aplicar o bem movendo guerra ao próximo, pelas vias da luta até ao ódio, e não pelo caminho do exemplo, do sacrifício e do amor. Quando encontramos esses métodos debaixo de qualquer credo, seja ele qual for, podemos seguramente dizer que se trata de involuídos, tanto para os indivíduos quanto para as nações. Saltar ao pescoço do vizinho para despedaçá-lo, crer somente nos exércitos e na bomba atômica, este é hoje o real modo de agir no mundo, esta é a hodierna psicologia dominante, que revela quão involuída é a nossa humanidade. As teorias são palavras e não entram em ação. Nos fatos, os imperialismos são todos iguais, todos usam o mesmo método, estão no mesmo nível biológico. Involuído quer dizer inferior, infernal. Ora, o problema atual do mundo não é de continuar o milenário jogo de vencer e perder, de invadir e servilizar, de mandar e obedecer, mas sim de evoluir do atual plano do involuído para o nível do evoluído, que vive com métodos diversos. Hoje, es- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO tamos no reino da besta. É bem natural que o mal e a dor formem a atmosfera desse reino. Em face do que o homem é, não pode ser de outro modo. Essa é a expressão do seu real grau evolutivo. Quando se concebe a autoridade não como função e missão, mas como vantagem pessoal ou meio de exploração, quando se usa a riqueza egoisticamente, e não como serviço social, quando toda classe e todo povo baseia a sua posição sobre a conquista e o abuso, e não sobre o equilíbrio, então tudo se torna agressão e depois destruição, e o universal grito de justiça, por culpa do homem, torna-se uma vã invocação. Que adianta fazer distinção entre chefes e súditos, se uns são dignos dos outros; entre vencedores e vencidos, quando a corrente é única e arrasta todos? Os chefes, que mais acreditam mandar, estão mais que todos encarcerados no sistema e são obrigados a segui-lo sem possibilidade de evasão, até ao fundo. Há na vida uma lógica desapiedada, dada por um férreo concatenamento causal, que, uma vez iniciado, de qualquer ordem que ele seja, não deixa evasão possível, até às suas últimas consequências. E, no fim da concatenação do atual sistema do involuído, há uma proposição terrível também para ele: a destruição universal. Não se trata hoje de querer aparentemente redimir-se de uma série de erros e abusos que são de todos. Assim, as contas nunca são quitadas. Trata-se, isto sim, de mudar radicalmente o sistema e todos desse sistema. Essa é a lei da nossa hora histórica. Quem não compreender perecerá. Como se vê, não precisamos ir muito longe para procurar os motivos dominantes no ambiente infernal, visto que eles nos são postos sob as vistas pelo reino humano do involuído. A dor é a nota dominante desses mundos inferiores. Ela está em relação direta com o grau involutivo, periférico e caótico do ambiente. Se observarmos bem, no inferno, a dor é causada pelos próprios sofredores. Nesses mundos distanciados do centro, a divina potência central não intervém enviando agentes próprios. A Sua ação, nesses ambientes de treva e tristeza, é de todo negativa e consiste em retrair-se, em negar-se, deixando o ser na atmosfera que ele próprio faz. Para subir ao paraíso, é necessário que o ser, evolvendo, crie uma atmosfera melhor para si. Deixai os involuídos sozinhos e eles farão logo um inferno. Deixai os evoluídos sozinhos e eles logo farão um paraíso. Nos primeiros, a distância do centro faz com que a unidade do todo se despedace no egoísmo, a ordem se decomponha na desordem, de modo que as relações coletivas são, sobretudo, de agressão e de ódio. Lá, onde Deus está longe como está o Sol do planeta Netuno, é natural que a Sua luz chegue apenas imperceptível, e Sua luz significa inteligência, consciência, amor, ordem, harmonia, felicidade. Então, todo ser torna-se um demônio. Longe de sua fonte, a vida se contrai. Em vez de se expandir fértil, ela se faz magra, hostil, feroz, qual é a dos abrolhos na rocha. Estes não produzem senão espinhos. Toda doçura e beleza desaparece. O mal triunfa e é conduzido pela Lei à sua autopunição, é levado a infligir na própria carne os aguilhões da ofensa, para sua redenção. A tendência periférica do universo é, no mal, uma dor sempre mais intensa, até à autodestruição. Eis a gênese e o significado daquilo que em nosso planeta se chama luta pela vida e seleção do mais forte. Este conceito, desenvolvido ainda em direção involutiva, nos leva ao super-homem de Nietzsche, que é o verdadeiro tipo biológico do superbruto, o rei campeão de um mundo de demônios. É assim que a rainha Isabel da Inglaterra, ligada ao sistema do seu mundo é ―obrigada‖ a fazer matar a sua real irmã Maria Stuart, e exclama: ―Aut fer aut feri; ne feriare feri‖ (É preciso ferir para não ser ferido; se não ferires, serás ferido). Toda vida e posição é dominada pelo seu próprio sistema. Todo jogo tem as suas regras e com elas é preciso jogar até o fim. Eis, pois, o que acontece na periferia. À medida que o ser se distancia do centro-Deus, da gravitação pela qual o universo é mantido compacto em um organismo unitário, começa e se 55 acentua sempre mais a dispersão pela fragmentação no particular. Sempre mais debilmente sustentadas pelo poder central, as células do organismo não funcionam mais juntas, organicamente e coordenadas em harmonia, mas começam a lutar uma contra a outra. Então, no lugar do único centro-Deus, formam-se infinitos centros infinitesimais, que tentam suplantá-lo. Eis a rebelião luciferina. Começa a degradação. Toda célula não é mais a companheira que colabora com a companheira, mas a rival que agride a rival. Tudo vai para a decomposição, para a destruição. O ser é livre de seguir um ou outro caminho: ou a grande marcha ascensional dos seres, representada pela evolução, segundo a tendência centrípeta do universo, que segue para Deus, ou o caminho da descida, representada pela involução, segundo a oposta tendência centrífuga, que se distancia de Deus. Então, Deus se nega a quem o nega, e isto significa morte. Cortados da fonte que tudo alimenta, os seres, tornados inimigos, sem nada receberem e gastos por uma luta contínua, devem perecer. Com esse processo automático de autodestruição, Deus alcança, longe de si, a eliminação do mal na periferia, isto é, na parte do universo que segue o caminho negativo que se distancia d'Ele. Reencontramos, ainda aqui, a íntima estrutura dualista do sistema monístico do universo. No caso limite, o mal absoluto coincide com o nada e o bem absoluto coincide com Deus. Satanás nega e destrói o que toca. Ele, que vive de destruição, não se pode alimentar senão consumindo. Ele é ávido, porque é paupérrimo. Deus é generoso, porque é riquíssimo. Assim também para as criaturas, que tendem para um lado ou para outro. A plenitude de Deus é o ser, a plenitude de Satanás é o não-ser. Podemos observar essa desagregação periférica também em nosso mundo, logo que um poder político central perde a sua potência, com a qual rege um povo compacto. Multiplicam-se então os partidos, isto é, as separações e as lutas interiores. Mas, em todo caso, a divina justiça fica perfeita em qualquer parte, porque o ser, conquanto queira distanciar-se do centro e perder-se, tem sempre o que merece, em qualquer posição em que ele queira estar. Quem desce segue para a ignorância, o erro e, portanto, a dor. A própria verdade só é alcançada e possuída em relação à unidade; ela está conexa com a harmonização, é um produto da evolução e se encontra caminhando para o centro. É harmonizando-se com a ordem divina que se descobre a verdade, muito mais que através da observação experimental. Eis toda a nossa história. Quem sobe e quem desce – cada um colhe o que semeia. Fazendo o bem, nos enquadramos na ordem divina e avançamos para mundos mais harmoniosos e mais felizes; fazendo o mal, distanciamo-nos da ordem divina, retrocedemos para mundos inferiores e ficamos mais longe de Deus, onde a luta é mais feroz e a dor mais aguda. Depende de nós o nosso estado de tormento ou de alegria: se descermos embaixo, teremos demônios por companheiros, se subirmos ao alto, teremos por companheiros os anjos. Todavia, conquanto queiramos estar longe de Deus, Ele nos chamará sempre, através das mil vozes da vida, sempre um Seu raio de luz nos alcançará, qual convite para a nossa ascensão, porque livre e nosso deve ser o esforço, como nosso será o resultado. Há quem aceite e há quem se rebele. Tudo o que pensamos e fazemos permanece indelevelmente escrito, e, assim, nos construímos e ao nosso destino. O que está escrito, poder-se-á corrigir com acréscimos ou retificações em direção contrária, mas não se cancela. O presente, uma vez tornado passado, não pode ser mudado nem mesmo por Deus. Ele é Lei, e não capricho, como o homem pode crer. Todo homem tem nas mãos esse material fluido do presente, que sempre escorre como um fio e, pouco a pouco, vai solidificando-se. Assim, ele pode construir-se para o alto ou destruir-se para baixo. Todo homem traça com as mãos, no livro da sua vida, o seu caminho, que vai para o inferno ou para o paraíso. Observemos, para concluir, como se irradia a luz divina do centro para a periferia, quais os caminhos que ela, num estu- 56 PROBLEMAS DO FUTURO pendo milagre de amor, segue, para atingir também esses mundos inferiores, que parecem abandonados por Deus, mas não o são. Qual é o canal que o centro segue para fazer chegar o seu raio vital até aos mundos inferiores; quais os operários, colaboradores da sua potência, que, levando-a longe, freiam o desagregar-se periférico, retomam o ser que se perde na fuga e mantém assim, não obstante tudo, o universo compacto? Esses operários, emissários de Deus, são os evoluídos. Em cada mundo há uma contínua descida de seres superiores, que baixam de esferas mais altas e sacrificam-se numa vida de martírio entre seres para eles demoníacos, suportando infinitas dores, para ensinar, educar, revelar e dar testemunho de Deus. De Cristo para baixo, quantos profetas, gênios, heróis, mártires, têm trazido à Terra a voz dos céus! Muitos se escandalizam diante de um inútil martírio. Mas como se pode, sem martírio, proclamar na Terra uma verdade? Não são a agressão e a ferocidade as características dos mundos involuídos? Mas o estupendo milagre do amor é justamente este: enquanto os involuídos assaltam por cego egoísmo, os evoluídos se sacrificam por iluminado amor. A vida nos diz que a troca é genética, e isto porque ela deriva do amor, e Deus é amor. Mas, se a fecundação da carne se dá pelo caminho da carne, a fecundação do espírito se da pelas sendas do espírito. Quanto mais se desce para baixo, tanto mais a vida se contrai em uma dura casca de egoísmo, que fecha as portas ao amor. Quanto mais se sobe para o alto, tanto mais a vida se oferece, abrindo as portas ao amor. Embaixo, o eu se fecha em si mesmo e fica aí encarcerado. No alto, o eu se abre e se expande. O primeiro recebe sempre menos da nascente central; o segundo recebe sempre mais. Ai dos que seguem uma virtude negativa, entendida apenas para sufocar o amor, e não para elevá-lo! Virtude significa sobretudo afirmação, muito mais que negação. Esta pertence a Satanás, aquela a Deus. A vida tem necessidade não somente da fecundação da carne, mas também do espírito. Aquela forma a massa, este lhe dá a alma. Corpo e espírito, involuído e evoluído são, como a fêmea e o macho, complementares. Por isso se atraem. No caminho da evolução, o crescimento da carne não é senão um meio para crescer no espírito. A carne tem os seus limites, e somente o espírito pode ajudá-la a superá-los. O espírito é o seu raio vivificante. A carne é fraca, o espírito é potente. Assim, a fecundação espiritual se sobrepõe por outros caminhos à fecundação orgânica, elevando-a e completando-a. Os dois termos da fecundação espiritual não são macho e fêmea, mas involuído e evoluído. Este é o fecundador, de sinal positivo; aquele é o fecundado, de sinal negativo. Como a semente e a terra, eles têm necessidade um do outro. Um é rico, porque está mais perto de Deus e então dá; o outro é pobre, porque está mais distante, e recebe, seja embora massacrando o seu benfeitor. Esta é a sua forma de achegar-se ao próximo. Ele recebe, com reserva, assimila para tornar a brotar conforme a semente fecundadora. Explicam-se assim tantas frases do Evangelho. Eis um outro elemento de biologia transcendental. Os dois termos opostos se atraem. Os inferiores são atraídos pelos superiores e aproximam-se, naturalmente, com a própria forma negativa de destruição. O involuído mata os seus profetas, para venerá-los depois. Por outro lado, os superiores são atraídos pelos inferiores e aproximam-se, naturalmente, com a própria forma positiva de construção. O evoluído sacrifica-se pelos homens para melhorá-los. Uns e outros se exprimem em formas de bem ou de mal, quais eles são. Eis o mistério do amor que mantém coeso o universo por infinitos liames entre os seres, seja quando ele se manifesta pelo lado positivo, como amor, seja quando pelo lado negativo, como ódio. Assim, o martírio é lei de amor para os mais evoluídos, cuja superioridade, na divina economia do universo, não é ociosa, mas sim, por justiça, repleta de deveres. Somente assim se pode compreender Cristo. Abre-se diante dos nossos olhos a visão da ordem divina, que se torna hino de amor e de bondade também nos extremos inferio- Pietro Ubaldi res da treva e do mal. Eis a procura afanosa da ovelhinha desgarrada, a procura do pecador em vez da dos justos, que já estão salvos. Que orquestração de amplexos para o universo em todas as direções e alturas! Que real fraternização opera o amor de Deus, mesmo lá onde parece não reinar senão ódio! Que contínua descida de anjos para os mundos inferiores, em procura das obscuras criaturas irmãs a serem iluminadas. E que alegria no desempenho dessas missões e também no martírio; que regozijo para os anjos de Deus o se tornarem mensageiros do Seu amor! Em nosso baixo mundo, admira-se e exalta-se o dinamismo do macho atual, dinamismo involuído, cego e destruidor, semeador de dores. Saberá ele quanto sacrifício de seres mais evoluídos será necessário para educar e elevar este seu dinamismo, para torná-lo construtivo, isto é, semeador de alegria? Que encontro angustioso, mas que centelhas emanam dele! O inferior goza como de uma vitória a dor dos outros, e neles a procura com indiferença. O superior toma a seu cargo a dor dos outros como coisa própria e a sofre. Que importa? Ele sofre na luz do amor divino. Quão diversas são a dor do mártir, que vê o seu fruto e é confortado na comunhão atingida com Deus através desse martírio, e a dor cega e desesperada que nasce do afastamento das fontes da vida! Quanta distância entre uma dor bendita, carregada de amor, e uma maldita, carregada de ódio! O homem mais evoluído de amanhã compreenderá que inferno o homem involuído de hoje faz da Terra. É necessário avizinhar-se do paraíso. Estamos no limiar de uma nova civilização. A luta é apocalíptica, mas raios potentes se projetam sobre nós. Dos mundos superiores, infinitos seres nos olham. XV. DEUS E UNIVERSO (I PARTE) Depois das precedentes visões parciais, seguidas por nós para nos aproximarmos mais do problema máximo, enfrentamos agora a visão do mistério central: Deus e o universo. Para chegar a uma definição de Deus é necessário partir de alguns conceitos que, pela sua evidência e comum aceitação, podem ser tomados como axiomas. Aceitamos, então, como demonstrado que o homem é um ser inteligente, capaz de compreender alguns conceitos; que o universo é um funcionamento orgânico dirigido por um ―quid‖ inteligente; que tudo se desenvolve segundo o princípio de causalidade, pelo qual o efeito é proporcional e da mesma natureza da causa que nele se manifesta; que, em correspondência ao princípio de causa e efeito, existe um dualismo universal, pelo qual se pode contrapor relativo e absoluto, finito e infinito, e semelhantes. Querer chegar a uma definição de Deus significa reconhecer que, no universo, o homem percebe e concebe um princípio causal único que tudo rege harmonicamente. Não podendo remontar à causa invisível senão pelos efeitos perceptíveis, devemos primeiro verificar que o efeito exprime não um estado caótico, mas sim uma ordem em que tudo depende de um centro, em razão do que o evidente vir-a-ser de todas as coisas tem um significado e uma meta lógica. Assim dizendo, chegar a uma compreensão do conceito de Deus significa atingir, do polo relativo ou finito, onde está o homem, o polo infinito ou absoluto, onde está Deus. O homem, com o universo que o circunda, é efeito. Ora, para poder, partindo do efeito, reconstruir a causa, seria preciso poder observálo todo, isto é, no infinito do espaço e do tempo. Entretanto o homem não possui os meios para, usando o método indutivo, poder conceber a natureza da causa partindo da observação dos efeitos. O homem não pode, portanto, definir Deus. Não o pode porque o próprio conceito de definição pertence ao seu mundo finito, que não é o infinito. Assim, querer definir Deus, isto é, o infinito, torna-se uma contradição e um absurdo. O infinito não se pode limitar a atributos particulares sem mutilar-se. Qualquer definição de Deus não pode ser senão uma mutilação. E Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO que pode saber de Deus um ser como o homem, cujas concepções, mesmo as mais abstratas, foram alcançadas através de generalizações de conhecimentos adquiridos por necessidades materiais, que não passam de um produto destilado de percepções, um resultado sensório, um derivado mais ou menos próximo do modo de conceber que resulta dos meios de observação e de juízo, dados pela natureza e pelo organismo humano? Que representam então as tantas definições de Deus, dadas pelo homem? Elas não exprimem o inexprimível Deus, o indefinível infinito, mas sim o conceito relativo de Deus que o homem faz segundo ele próprio, nos revelando a sua natureza, o seu tipo biológico, a maturação espiritual alcançada, a sua potência de concepção. Nas suas definições, o homem não define Deus, mas a si mesmo em relação a um infinito do qual nos mostra as várias aproximações realizadas no seu concebível. Daí segue que toda definição de Deus é relativa a cada um e é mutável e progressiva com o devir de cada um. Na Terra, encontramos infinitas definições de Deus, e nenhuma satisfatória e definitiva, evolvendo todas no relativo sem fim. A estrutura do relativo é tal que ele não pode existir senão no movimento. A vida em forma imóvel poderá de certo estar no polo oposto do dualismo, no absoluto. Mas, em nosso finito de criaturas, a parada, ainda que conceptual, é morte. E morte não significa senão fatal destruição da imobilidade para reentrar no movimento da vida. Quando, pois, um homem se põe a definir Deus, ele não define Deus, mas estabelece e exprime a sua posição em face do ponto de referência, Deus. Logo o seu conceito será relativo e mais ou menos avançado conforme é a sua evolução. Com isto, cada um, colocando-se diante de todos os outros conceitos relativos ou definições de Deus, dadas por outros homens, pode ter com eles consenso ou dissensão, segundo a respectiva posição psicológica. Coincidirão somente as perspectivas tomadas da mesma posição. Logicamente, se do infinito podem ser tomadas visões de infinitos pontos de vista, então as definições de Deus podem ser infinitas. As disputas sobre esse argumento não dizem, pois, respeito a Deus, mas somente aos homens, segundo o conceito que de Deus cada um consegue formar. Essas definições se fazem com atributos humanos ao superlativo, o que exprime antes uma ingênua tentativa por parte do homem de criar uma ideia de Deus, uma representação segundo o próprio concebível, feita à própria imagem e semelhança. E que mais se pode pedir ao homem, além dos elementos de julgamento que ele possui no seu concebível? É lógico e justo que assim seja. O erro está somente em querer dar um valor absoluto a essas definições. E isto é verdadeiro para os indivíduos, para as religiões e para os povos, porque tudo caminha fatalmente. Chegar ao conceito de Deus significa haver resolvido o problema do conhecimento, dominar a visão do universo. Como o conhecimento é incompleto, progressivo e inatingível, então o conceito de Deus é progressivo e inatingível. Assim, a concordância de visão em muitos casos entre os homens é antes intuitiva e, portanto, axiomática, do que racional e demonstrável. É por uma universal tendência intuitiva que sentimos a necessidade de pensar em Deus como perfeição, como poder, harmonia, justiça e bondade. Temos uma intuitiva necessidade de encontrar em Deus a causa última que tudo explica, o imutável em que possa encontrar razão e repouso a incessante instabilidade de todas as coisas, o elemento complementar do nosso relativo, que lhe complete a deficiência que sentimos. Deus é sentido, assim, mais como aspiração e tendência para uma meta infinitamente distante, em cuja estrada se está sempre a caminho, do que como uma racional precisão em termos qualitativos. Aplicando os conceitos acima expostos à minha presente tentativa de dar uma definição de Deus, deverei tê-la como relativa a mim, expressão do grau de evolução espiritual por mim alcançado hoje, progredindo no amanhã para sempre melhores aproximações. Toda expressão humana é manifestação da pró- 57 pria alma em relação ao grau de conhecimento conquistado. Assim, podem coexistir muitas definições de Deus e, reconduzida àqueles limites, creio que a minha não poderá ofender as dos outros, que não pretendo impugnar, reconhecendo-as relativamente verdadeiras, em relação a cada um, como expressão da sua alma. Mesmo assim, não posso impedir, porém, que os espíritos evolutivamente situados no meu plano de evolução deixem de corresponder por sintonia ao meu pensamento e, portanto, lhe adiram. Entro agora no assunto, expondo os vários aspectos em que me apareceu a divindade. Mais que diante de uma definição, sinto que me encontro diante de uma visão. Acerco-me, pois, de Deus, não como de um ignoto que minha razão queira conhecer e conquistar, mas como de uma visão que me aparece e se me entrega, que me conquista, que me chega por intuição e me alcança vindo do alto. Tenho a sensação de uma gradual e progressiva revelação, como de um desvendar de mistério. Não concebo mais conforme os conhecidos sistemas racionais de definição de Deus e suas consequências. Percebo essa visão somente com os sentidos da alma, agarro a sua estrutura enquanto lhe sinto a logicidade; aí repousa o instinto satisfeito e a alma saciada por alcançar essa sua verdade, além da qual hoje não vê e que é a última de hoje, à espera de avançar mais no amanhã. A potência dessas sensações, para mim, é prova que a minha visão, ao menos do meu ponto de vista, relativamente à minha forma mental e grau evolutivo no momento atual, é verdadeira. Para chegar à minha aproximação do conceito de Deus, parto de alguns dados de fato e me sirvo, como de uma escada para subir, do princípio analógico que observei ser sempre verdadeiro em todo campo (aquele que permitia a Cristo exprimir-se por parábolas). Esse princípio me diz que o universo é um organismo de estrutura harmônica, constituído conforme um esquema unitário, segundo o qual o modelo fundamental que o individualiza no seu conjunto é repetido em todo particular, que assim é individualizado à semelhança do todo. Quando houvermos compreendido a estrutura de uma individualização qualquer particular, nela veremos refletido o universal e encontraremos a chave para resolvê-lo. Aplicaremos agora, por várias vezes, esse método. Verifiquei, assim, que tudo é bipolar no universo. Essa lei de bipolaridade é afirmada em A Grande Síntese e desenvolvida no fim do volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Pude verificar que esta é uma lei universal, ao menos até aonde a minha observação pôde chegar, sem encontrar desmentido. Cada individualização particular nos diz que ela existe enquanto é formada por duas metades inversas e complementares, antagônicas, que se regem enquanto equilibradas no seu recíproco contraste, formando e fechando, assim, um circuito de duas forças de sinal e valor oposto. Pelo princípio da unidade dos esquemas repetidos por semelhança, derivados de um único central, e pela lei de analogia, pode-se bem verificar quanto acima foi exposto, confirmando, nos casos menores observados, a repetição do caso máximo do universo. Isto me guia para uma primeira aproximação do conceito de Deus. Ele me aparece, pois, como o polo que é centro, potência, conceito diretivo, causa motriz, substância, absoluto, polo que está nos antípodas do outro, que é, ao contrário, periferia, extremo não irradiante, dinamicamente irradiado, conceptualmente guiado e desse modo plasmado na forma, polo em que o todo é feito organismo que funciona e evolui para fins precisos, polo dos efeitos e do relativo, no qual vivemos. Ora, o esquema da estrutura de cada individualização do ser, observado em infinitos casos, não me autoriza a separar esses dois momentos opostos. Ao contrário, mostra-me que o antagonismo não é senão complemento, contraste que traz equilíbrio, portanto não divide, mas sim une as duas partes em um mesmo ciclo. Se assim são todos os menores casos observáveis, também deve sê-lo, por analogia e harmonia, que são leis do universo, este caso máximo. O prin- 58 PROBLEMAS DO FUTURO cípio do dualismo me conduz, pois, inevitavelmente a essa concepção de equilíbrio, porque ele está em todas as coisas e mostra que transcendência e imanência não se podem elidir até ao absurdo de um universo cindido contra si mesmo, mas devem, ao contrário, completar-se automaticamente, equilibrando-se. A observação dos fatos me diz claramente que os dois extremos não podem ser senão opostos e complementares, para formar, em estreito monismo, uma mesma unidade. Este monismo nasce, pois, do dualismo. Assim, o universo aparece, como toda individualização, estreitamente unitário, se bem que, no seu íntimo, de estrutura dualista. Desse modo, o monismo abraça, a um tempo, o aspecto de Deus transcendente, eu distinto da sua criação ou manifestação, e o aspecto de Deus imanente, pulverizado em infinitos eus menores e fundidos na sua manifestação, em que está sempre presente. Vejamos agora as relações entre causa e efeito, entre Deus e universo. Segundo o primeiro aspecto, a criação é instantânea, operada fora de si, e fica separada da sua causa, que é de natureza completamente diversa. Segundo o outro aspecto, a criação é íntima, progressiva, é evolução, uma manifestação de Deus, em que a causa permanece sempre presente e operante no seu efeito e nele permanece fundida com igual natureza, assim como a alma humana se funde com o seu corpo. Desse fato decorrem duas concepções opostas, que parecem elidir-se, mas, ao contrário, se completam. Procuremos compreender as relações entre Deus e universo, tomando para exame, pelo método mencionado do princípio de analogia, um exemplo que cada um encontra em si mesmo no caso semelhante do homem, já reconhecido como feito à imagem e semelhança de Deus. O homem, assim como o nosso universo, é formado de três elementos: matéria, energia e espírito; nele reencontramos também uma trindade que é dualismo nos seus dois extremos, matéria e espírito, os dois termos inversos complementares em luta no composto humano. A analogia, que é universal, nos diz que as relações entre Deus e universo devem ser semelhantes àquelas que correm entre alma e corpo, entre espírito e matéria. A alma é independente do corpo e pode assumir diversos corpos, segundo o seu grau evolutivo. Aqui temos o aspecto transcendência, em que o princípio é uma individualização separável da sua manifestação relativa. Porém, ainda assim, a alma não só é estreitamente fundida e conatural ao corpo – este, sem ela, torna-se um cadáver – como também dirige sua formação, troca e evolução (a evolução orgânica não é senão a expressão externa da evolução do espírito). Aqui temos o aspecto imanência, em que a causa está sempre presente e ativa no seu efeito. Transferimos o esquema unitário dualístico que rege a vida do homem para a dimensão máxima do esquema semelhante que rege a vida do universo. Deus é distinto do seu atual universo e pode separar-se desta sua manifestação, para assumir inumeráveis outras. Deus é, ainda, a alma que rege o atual universo, fundida nele, sempre aí presente e ativa através de uma criação contínua, que chamamos evolução. O princípio da imanência nos diz que, se do universo tirarmos Deus, resta um cadáver. Mas o princípio da transcendência nos diz que, se Deus se desliga do seu universo, isto é, da sua atual forma de manifestação, Ele pode, todavia, expressar-se em infinitos outros universos. O universo atual não é senão uma das infinitas formas que o absoluto quis dar a si mesmo no relativo; Ele pode libertar-se sempre desta sua expressão no espaço e no tempo; o infinito é sempre senhor de romper os limites do finito em que ele quis fechar-se. No entanto ele se impôs esses limites; é causa do relativo do universo atual, sua expressão; nesta, Deus é necessariamente imanente e, como tal, Ele vive neste seu aspecto, isto é, luta, sofre, goza, evolui conosco e com todos os seres. Ele é motor universal, impulso que faz pressão para levar o universo à plena expressão d'Ele, à gradual e completa conquista da Sua perfeição. Pietro Ubaldi Se, na concepção de Deus, nos limitarmos a um só dos seus aspectos, seja de imanência, seja de transcendência, d'Ele teremos um conceito mutilado, incompleto. Devemos, por certo, venerar o Deus transcendente, o absoluto, para nós inconcebível, que exorbita de todos os possíveis limites do nosso universo; o Deus na Sua verdadeira essência, muito distante, o incognoscível, o inacessível. Mas devemos também sentir com amor o Deus imanente, que se deu ao ser, fundindo-se no relativo; o Deus vizinho, compreensível, que se encerrou no limite da criatura; o Deus que sabe humanizar a vertigem do seu infinito, para se tornar acessível a quem não tem a potência de alcançá-Lo; o Deus pai e amigo, que assiste e socorre as suas criaturas. Digam o que disserem a revelação e a teologia, sem esse segundo aspecto o universo se resseca, separado da sua fonte divina, e a vida, não mais alimentada em cada instante pelo Deus imanente, morre. Nenhuma filosofia pode mudar essas leis, que são as leis da vida. Era necessário, para obter uma primeira aproximação do conceito de Deus, começar no sensível do nosso universo, para remontar depois à sua causa, que está além do sensível. Para escalar o inacessível, era necessário começar do acessível, estabelecendo as relações entre universo e Deus, entre o efeito e a desconhecida causa que está além dele. Se bem que hoje se duvide de tudo, inclusive do princípio de causalidade, é evidente, contudo, que as características do efeito refletem a natureza da causa. Então, dado que o universo dos efeitos é assim incomensuravelmente vasto e complexo, assim maravilhosamente ordenado e perfeito, é lógico ter de se deduzir que semelhantes qualidades superlativas se devem reencontrar também na causa, que é Deus. É assim que se formou a maior parte das definições de Deus, com um processo de multiplicação dos melhores atributos concebíveis pelo homem. Não repetiremos essas definições. Deixemos que Ele permaneça definido pela descrição das suas atividades, em que estão implícitos os seus atributos. Algumas referências antes de ir além. Tudo que havemos desenvolvido neste capítulo está de acordo com quanto já foi sumariamente dito em A Grande Síntese e é desenvolvido aqui para esclarecimento do pensamento lá contido. E isto, a fim de expor o seu verdadeiro significado, uma vez que uma inexata interpretação dele e da terminologia usada em sentido especial, provocou sua condenação, sob a acusação de erros teológicos como a afirmação do panteísmo, da exclusiva imanência de Deus e afins. O referido volume, no Cap. VI, diz: ―Podereis denominar isto de Monismo; todavia deveis cuidar mais dos conceitos do que das palavras‖; ―Monismo, isto é, conceito de um Deus que ‗é‘ a criação‖; ―Lede mais uma vez antes de julgardes‖. No Cap. VIII, lê-se: ―A Lei é Deus‖ – ―O princípio e as suas manifestações‖. Isto quer dizer que o conceito de Deus não se pode isolar em nenhum dos seus aspectos, seja o transcendente de princípio, seja o imanente de manifestação. Monismo significa justamente o seu equilíbrio e fusão em unidade. Separá-los significa mutilar o conceito de Deus em um dos seus aspectos fundamentais. A Grande Síntese, no Cap. LXIII, ―Conceito de criação‖, diz: ―Podeis denominar criação um período de vir-a-ser e, só então, falar de princípio e de fim‖; ―Tudo deve se reintegrar na Divindade, pois, se tal não sucedesse, esta seria ‗parte‘ e, portanto, incompleta; se existem forças antagônicas, estas não podem estar senão em seu seio, no âmbito de sua vontade, como parte do mecanismo do seu querer, do esquema do todo‖ (...), ―uma cisão, uma duplicidade absoluta entre Divindade e criado. Isto não pode ter cabimento neste meu monismo‖. E ainda: ―Não tenhais receio de diminuir-lhe a grandeza dizendo que Deus é também universo físico, pois este nada mais é do que um átimo do seu eterno vir-a-ser, do seu tornar-se, em que Ele se manifesta‖ (...), ―a minha mente tende a manter compacto o todo, numa visão unitária, e a fazer com que os Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO profundos vínculos que unem princípio e forma ressaltem‖ (...), ―Deus é o princípio e a sua manifestação, fundidos numa unidade indissolúvel; é o absoluto, o infinito, o eterno que vedes pulverizado no relativo, no finito, no progressivo. Deus é conceito e matéria, princípio e forma, causa e efeito, conjugados inseparáveis, como dois momentos e como dois extremos entre os quais o universo se agita‖. Este é o monismo que agora aqui explicamos. Deus é causa que se funde no seu efeito. Mas este é sempre um relativo, que tem assim princípio e fim, ao contrário do absoluto-causa que, como extremo oposto, tem características opostas, ou seja, é imóvel, eterno, além de todo limite e medida. É assim que o atual universo tem princípio e fim. Porém as criações do mesmo Deus infinito podem ser infinitas no finito, propondo-se cada uma alcançar algum fim seu, criações progressivas que se ultimam somente na sua conclusão (v. A Grande Síntese, Cap. XXII, fig. 2, criação a, b, c, d, etc.). A esses conceitos é que se refere o desenvolvimento deste capítulo. Para compreendê-lo, é necessário seguir toda a orientação geral de A Grande Síntese; haver antes estabelecido a solução do problema da dor e do amor, ali desenvolvida do Cap. LXXX ao LXXXII; ter compreendido a função do bem e do mal e da solução final do seu contraste (cfr. o volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap. XIII, ―Problemas Últimos‖); ter enfim compreendido os capítulos: ―Evasões‖, ―Inferno e Paraíso‖, ―O Princípio de Unidade‖, ―O Erro de Satanás e as Causas da Dor‖ e ―Porque Amor é Alegria‖, que se desenvolvem nos volumes Problemas do Futuro e Ascensões Humanas. Não se poderia chegar ao atual grau de profundidade no conhecimento do argumento senão por graus, preparando todos os elementos das conclusões atuais com a solução de vários problemas concomitantes. Retomemos agora o nosso argumento. Estabelecidas, pois, as relações entre Deus e universo, perguntamo-nos por que Deus quis exprimir-se nessa sua manifestação e os seus significados e finalidades (admitido o universal princípio de causalidade). Encontramo-nos, aqui, em face de uma primeira, mas só aparente, contradição. Por um lado, somente o conceito de um Deus perfeito, absolutamente justo e bom, sacia o instinto de nossa alma, que não pode admitir outra coisa, porém o vemos na realidade dos fatos, em nosso mundo, como imperfeito, muitas vezes injusto e mau. Por que haverá este efeito, tão dissemelhante da sua causa? Repugna totalmente à nossa alma transferir para a causa essas qualidades dos seus efeitos. E então, como é que uma tão maravilhosa fonte se há depois corrompido na dor e no mal, na sua manifestação? O espírito humano se encontrou desde os primórdios da civilização em face desse problema e tentou resolvê-lo com o mito da queda dos anjos e, pois, do pecado original. Conforme essas soluções, o nosso atual universo não seria senão uma degeneração de um outro universo perfeito, arruinado por obra da criatura, que quis trair o criador. O ser seria um decaído em poder da dor e capitaneado por Satanás, um anti-Deus, rei supremo do mal. Diante de Deus, ter-se-ia assim formado, na sua própria manifestação, um universo inimigo. Daqui nasce um dualismo antagônico, irresolúvel, em guerra, bem diverso do dualismo harmônico e unitário que acima havemos descrito. As duas partes formam uma cisão, uma insanável fratura dissolvente, e não um equilíbrio compensado, que contrapõe os opostos tão-só para unificá-los construtivamente. Aqui, ao contrário, estamos defronte ao naufrágio da obra de Deus. Como podia Ele, com as qualidades que lhe devemos atribuir, falir tão miseravelmente; como podia não haver sabido prever e, enfim, ficar vencido e subjugado pela vontade da sua criatura? Isto implica algum grave defeito de origem para chegar a tão desastrosos efeitos; e como podia tudo isto estar em Deus? E eis que a criatura superou o criador, substituindo-o na direção, e justamente em sentido contrário, como um segundo deus 59 invertido. Então, o primeiro Deus deve modificar os seus planos imperfeitos e mal executados, tomando diretrizes diferentes, e socorrer o ser caído, com a Sua redenção. Disto resulta uma série de consequências bem conhecidas. Dado o conceito que o instinto da alma e a sua intuição nos indicam de Deus, ela se rebela diante da ideia de um desdobramento da potência criadora, em que a divindade se rompe, contradizendo-se na imersão de uma parte da sua manifestação, para acabar em uma luta dolorosa e estéril entre dois chefes que contendem nas diretrizes do criado. Então, o mal nos aparece verdadeiramente como uma força negativa, o antagonista que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um Seu imperdoável erro, que Ele, em determinado ponto, encontra na Sua obra e que se apressa em remediar. Deus não é tudo, mas há fora d'Ele um outro Deus, seja embora ao contrário, que o limita e o agride. É o bastante para fazer ruir o conceito do Deus absoluto e perfeito, que o instinto da nossa alma tem a intuição. Permanece daquele Deus uma ruína, mutilada e vencida, um Deus relativo e finito. Tudo cai no absurdo. Para o homem ficaria uma herança de dor, sem finalidade construtiva, punição de um Deus que se torna vingativo, dor que Ele em vão procura sanar. Essa dor é devida à grave culpa do primeiro rebelde que, seja Adão, seja Lúcifer, de certo não poderia ter consciência completa do bem e do mal, por ser um primitivo (Adão) ou porque, se a tivesse tido (Lúcifer), não seria jamais induzido a tamanha revolta em seu prejuízo, expulsando-se, por si mesmo, para o reino da dor, por ele mesmo criado, e não, de certo, por Deus. Como pode um inconsciente ser responsável, quando não sabe o que acontecerá e lança-se a uma tentativa, crendo ganhar o próprio bem e, sem saber, erra? E, em nome de qual justiça, Deus, que sabe tudo e tinha a presciência de tudo, portanto também desse erro, pode condenar esse ser, que errou por ignorância, a pagar duramente na dor? Quando uma criança inexperiente cai, a culpa é do progenitor que, sabendo mais, devia prever o que o inexperiente não podia; é o pai que tem o dever de educar, antes mesmo de ter o direito de punir, e somente em proporção da experiência adquirida pelo filho. Quando o filho não tem conhecimento, o progenitor não pode punir. Se Adão e Eva creram na serpente, foi porque eram ingênuos, inocentes e não conheciam as consequências, pois que, ainda hoje, o mal é sempre fruto da ignorância e da ilusão que dela decorre. Ninguém também hoje faz o mal pelo mal; se o faz, é porque o reputa, na sua ignorância, uma vantagem, uma utilidade, um bem. E, então, que deveremos pensar de um Deus que, contrariamente aos seus princípios de lógica e justiça, se comporta dessa forma para com a sua criatura? Na visão que vejo aparecer diante de mim, tudo se esboça bem diversamente. O dualismo, que é uma evidente e indiscutível verificação de fato, permanece. Contudo, assim, não aparece mais antagônico e destruidor como no precedente sistema, e sim com um mais profundo e satisfatório significado, revelando-se, ao contrário, unitário e construtor. O universo me aparece em seu monismo, isto é, estreitamente unitário também neste caso. Em A Grande Síntese está dito que, como o pensamento humano passou da ideia politeísta à monoteísta, agora passa da monoteísta, isto é, a de um Deus só, mas distinto do Seu universo, à monista, em que Deus, sendo tudo, é também o universo. O homem subiu evolutivamente, e Deus, hoje, avizinha-se, torna-se mais acessível à nossa nova maturidade. No caso agora observado, o monismo do todo, a unidade universal, que não permanece cindida entre o Deus transcendente e o Deus imanente, fica unidade inseparável também no seu dualismo bem-mal, Deus-Satanás. Nesta visão, o universo me aparece absolutamente unitário, porque qualquer cisão sua seria insanável fratura, ruindo a sua perfeição. Não interessa, aqui, se a palavra monismo teve outros significados e fez parte de diversas escolas humanas. Este é o sentido que aqui damos a esta palavra e prescindimos dos ou- 60 PROBLEMAS DO FUTURO tros. E, neste conceito, é fundamental que, no universo, haja um só centro dominador, uma só força diretriz, e não duas. Não há um anti-Deus; não existem atritos ou erros a sanar. Deus não tem inimigos. Satanás é o Seu servo e, neste sentido, lhe está sujeito, logo é seu instrumento para os fins do bem, que é a única lei de um Deus só, senhor de tudo, verdadeiramente bom, justo e perfeito, como o instinto da alma nos diz e exige. Há assim funcionamento orgânico unitário, e não uma cisão entre o bem e o mal. Mas a dor e o mal não desaparecem por esse motivo. Por que, pois, existem e os quis Deus, único senhor de tudo? Esta visão não destrói o fato inegável que dor e mal existem; dálhes apenas uma explicação lógica, a única que não ofende o conceito de Deus, que a nossa alma exige e não ofende a Sua perfeição. Tínhamos já, no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, tratado do problema do mal, da sua função construtiva a serviço do bem, da sua destruição final, implícita na estrutura negativa do seu próprio sistema. Mas, aqui, não é da natureza do mal e de sua sorte que nos queremos ocupar, e sim da sua posição na estrutura unitária do universo, a fim de compreender que ele não só absolutamente não o ofende como, ao contrário, representa uma função positiva e construtora, solidária com a do bem. Vemos, assim, o mal e a dor nos aparecerem com um significado mais profundo, bem diverso do precedente, surgindo como partes do mecanismo criador, como elementos negativos somente na aparência, mas em substância positivos, não maléficos e sim benéficos. Somente assim eles podem estar na divindade, e não contra ela, que é afirmação criadora, benéfica, e nunca maléfica. No atual novo impulso para Deus, Satanás, de um tremendo inimigo de Deus e nosso, torna-se um ignorante que faz o mal porque não sabe e, justamente por isto, acaba por fazer o bem no seio da infinita sabedoria de Deus, que tudo abarca, inclusive a obra de Satanás. Então, a nossa vida não é mais condenação, exílio, punição de culpa originária, mas alegria em ascensão para o bem; mesmo nas quedas e na dor, é sempre uma bênção de um Deus, verdadeiro Pai amoroso; é, a todo momento, ascensão e conquista para a nossa felicidade. Nesta visão, vejo Deus abrir sempre os braços para atrair todos, alegria suprema. Vejo, acima da negatividade do temor dominante em nossa anterior concepção de Deus, uma exaltação dos valores positivos da vida, em que, além do antagonismo do bem contra o mal e ao contrário, aparece a lei de absorção do mal no bem, de modo que a vida não é uma falência, mas sim contínuo triunfo de Deus. A Sua obra já é substancialmente perfeita e se, na sua expressão, ainda não o é toda, vai sempre mais se aperfeiçoando, justamente para sempre mais exprimir exatamente a íntima perfeição. No sistema do universo, a vitória cabe ao bem, ainda que, para atingi-lo, seja necessária a luta contra o mal. A evolução nos leva para Deus, isto é, para a alegria, se bem que, para subir, seja necessária a dor. Esta, assim, deve aparecer em cada caso na existência, que, se não é felicidade, está sempre caminhando para ela, mau grado todo o cansaço e sofrimento. Este conceito da grande unidade do todo vivificará a nova era do mundo, porque a unidade é a meta da vida e a unificação é o processo evolutivo para chegar a ela, pois a felicidade está na superação em Deus de todo antagonismo e cisão. Eis o significado da ideia do monismo, sustentada em A Grande Síntese. Não mais um universo cindido entre dois senhores, representando a falência de Deus na Sua criação, mas um universo unitário, triunfo absoluto de Deus. A sombra da dor e do mal aí fica, mas somente como sombra que, em vez de lesar, valoriza a luz. Esta visão me parece exprimir uma boa nova ao mundo por parte de Deus, que, numa grande curva da história, realiza um novo gesto para tudo atrair a Ele. Estes conceitos, então, animam-se, vivificam-se e iluminamse num magnífico incêndio de paixões. Pietro Ubaldi Observemos, porém, sempre mais de perto, esta visão monística do universo. Se Deus, pois, aparece perfeito, absolutamente bom e justo, por que existem na sua obra essas sombras que são o mal e a dor e qual é a sua função? Como podem essas forças negativas funcionar afirmativamente, esses ímpetos destruidores fazer parte do mecanismo criador? A perfeição de Deus não implica que Ele haja criado um universo já perfeito como é Ele próprio. Ele pode ter construído um universo perfectível, isto é, que evolui sempre mais para a Sua perfeição, um universo que, no tornar-se, é ascensão para esta, mas que, nesse progressivo caminho de conquista, exprime uma perfeição de meios e de método. Isto corresponde à observação da realidade e explica o dualismo transcendência-imanência, bemmal, Deus-Satanás, porque o universo é uma projeção de Deus para o polo oposto a Ele, do imóvel para o tornar-se, do absoluto para o relativo, do perfeito para o imperfeito. E aqui surge a grande pergunta: por que essa projeção? Eis o nó da questão. Deus era perfeito, completo em si, causa sem causas. E eis que Ele se lança na concatenação sem trégua da causa e efeito, no laborioso trabalho de um tornar-se evolutivo, lança-se na imperfeição, para criar fora de si uma perfeição semelhante a Ele. Por que isto? Há aqui, verdadeiramente, uma ruptura em dois da unidade divina, pela qual Deus se projeta e vem a existir não mais somente na substância, mas também na forma; assim encerra-se na limitação, submete-se ao esforço de uma ascensão, pulveriza-se no particular e se sujeita a atravessar os oceanos do mal e da dor. Que há no fundo desse caminho, no fim de todo o processo? Há um universo de seres que conquistaram a consciência, isto é, a verdadeira existência, retornando a Deus, por quem foram gerados. A cisão, assim, no fim se anula e a unidade é reconstituída. Cisão, pois, transitória e puro meio, condição de uma unidade nova e mais ampla, na qual Deus terá realizado uma criação nova, de inumeráveis falanges de humanidade que n'Ele reencontram a sua unificação. A causa motora de tão imensa obra? O Amor. A criação é uma autodoação de Deus. Daí, além da transcendência, a necessidade da imanência, que exprime, por si só, a divindade no ato de se dar. Mas este dar-se é expressão na forma, isto é, limitação e, por isto, sacrifício. É Deus mesmo que, em primeiro lugar, por amor para com as suas criaturas, cinde-se em sacrifício, dando-se a elas. Assim, o Uno se rompe, fragmenta-se no dualismo para recompor-se depois em unidade, porém enriquecida num grande amplexo em que Ele atraiu a si todas as criaturas. Eis em que consiste e a que tende essa criação contínua que é a evolução. Antes da criação, Deus era o todo e perfeito, mas lhe faltava a aplicação do amor. Ele estava sozinho. Para poder amar, Ele cria Suas criaturas e nelas se transfunde, animando-as; com elas trabalha para livrá-las da forma; não as quer como autômatos, mesmo que perfeitos, mas sim semelhantes a Ele, livres e conscientes, senhores do bem e do mal, portanto os assiste na longa experimentação que, através do erro e da dor, conduz a essa grande sabedoria, a única que pode tornar a criatura semelhante ao criador. Adão, primeiro homem, não podia possuí-la e errou. Possui-la-á o último ser da última humanidade, que não pecará mais, porque terá compreendido e, portanto, estará livre do mal. E eis que aparece a dor, sábio instrutor, instrumento de Deus; dor feita somente para ser superada na alegria, que é a essência de Deus. Desse modo, dor e mal são progressivamente eliminados até serem completamente reabsorvidos em Deus, que os quis como meios de Sua construção. Assim, a criação é contínua, presume a constante presença da causa operante, é ato ininterrupto de um Deus sempre criador que, através dos contrastes necessários para uma conquista livre, fica infalível e alcança sempre os seus fins, dirigidos, conforme Sua natureza perfeita, unicamente para o bem. Eis o universo, ordem perfeita, não obstante a sua desordem transitória e a sua imperfeição Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO de superfície; eis um Deus que se serve da falência no particular para triunfar no conjunto, em uma obra de amor que termina com a criação progressiva de criaturas que o compensam do seu imenso sacrifício, retribuindo o amplexo no fim do caminho evolutivo. Eis a ordem e a lógica conforme as quais me aparece esta visão, satisfazendo sem contradições tanto as leis da economia da natureza, quais as vemos em ato, quanto o instinto da alma, que tudo quer harmonicamente resolvido, seja para a inteligência, seja para o coração. Eis o verdadeiro Deus, Pai e Amigo, sempre benéfico, perto de nós, o Pai anunciado por Cristo, o Deus do amor que dominará a nova era do espírito. À medida que vamos observando esta visão, aparece-nos mais claro o conceito de Deus. Se, no Seu aspecto transcendente, Ele é separável, independente da criação, imensamente distante de nós, está, contudo, no seu aspecto imanente, fundido e presente na criação, imensamente perto de nós. Então se compreende como cada fragmento do criado possa refletir a estrutura do todo. É esta repetição do universal esquema único nos infinitos esquemas menores, todos do mesmo tipo, que justifica o princípio da analogia, que usamos. Podemos muito bem, pois, ver Deus refletido em todas as coisas. O absoluto se repete ao infinito, no relativo. Deus nos aparece como a atmosfera em que o universo está imerso; tudo nos fala d'Ele, nos faz sentir a Sua presença. Mas não é só. A manifestação de Deus é progressiva, proporcionada ao grau de evolução alcançado. E, a toda nova aproximação do ser no Seu conhecimento, Deus se manifesta sempre melhor, mais justo e mais perfeito. Assim compreende-se o conceito de evolução como o retorno do ser à fonte que o gerou, como lei de ascensão contínua e fatal para esse divino centro que tudo atrai. Vemos fechar-se o circuito do movimento dualístico, antes centrífugo, de projeção da causa para a periferia na forma, sua expressão, e depois, na atual fase, centrípeto, de reabsorção na causa do centro-Deus, quando a forma se adelgaça, ficando sempre mais visível o espírito animador. Eis o significado da ascensão moral, da elaboração e formação progressiva da consciência, da catarse, dos conceitos de dever e de virtude. Eis como, com a evolução, a forma deixa mais transparente a animadora presença de Deus. Assim, tudo se esclarece e se explica. Então, Deus se torna mais logicamente compreensível e o conceito que d'Ele alcançamos mais satisfatório; caem, assim, as contradições, de imperfeito tudo se torna perfeito, embora fique a condição da imperfeição do nosso mundo atual. A nossa consciência nos diz que Deus não pode errar, e nos desagradava a hipótese de que a realidade nos mostrasse que Ele houvesse errado. A nossa alma não pode deixar de sentir-se elevada e satisfeita por essa salvação da ideia de Deus, qual ela a sente, satisfeita de poder finalmente afirmar que, não obstante tudo, Deus e a sua obra são perfeitos. Ele jamais errou e, agora, não recorre absolutamente a retoques do seu plano para sanar faltas imprevistas, que acusariam a sua ignorância e no-lo mostrariam como um ser zangado e arrependido, embaraçado diante da sua criatura, que não obedeceu a Ele. O nosso universo não é feito com as escórias de uma catástrofe não prevista. Foi desejado, assim como ele é, porque assim ele é perfeito; não no sentido que a perfeição já esteja atingida, mas no sentido que Deus quis um universo que atingisse pouco a pouco, por evolução, a sua perfeição. Neste sentido, como foi desejado, tudo é perfeito, isto é, não no sentido de uma criação completa no instante da origem, que naquele momento tivesse já alcançado os seus escopos, como verificamos que não é, mas no sentido de uma criação que os vai atingindo progressivamente, através daquela elaboração, vir-a-ser inegável, de que é feita a vida do ser e que é a íntima substância do existir. Daqui, a necessidade também do Deus imanente, qual inteligência diretriz deste tornar-se. É imensamente maior do que a anterior esta ideia de Deus perenemente ativo e presente, é mais justa, melhor, mais humana, mais confortante. A 61 vida não é mais alguma coisa de negativo, uma punição, um derivado de erro, mas é ato positivo de conquista, guiada por leis perfeitas. Deus está verdadeiramente conosco, é nosso amigo, quer a nossa felicidade e de tudo faz para nos dá-la. Mas quer também que aprendamos, procurando-a, fatalmente destinados a encontrá-la no fim. Deus, assim, vive conosco, em amor, o nosso duro esforço de ascensão. Que mais evidente exemplo disto do que a descida de Cristo à Terra? Assim, Deus se manifesta sempre mais em todo nosso progredir, estimulando-nos a superar as deficiências; não arrastando-nos gratuitamente, mas sim atraindo-nos e ajudando-nos, para que, depois, a vitória seja justamente nossa. A sabedoria divina atinge assim dois escopos que parecem opostos: a criatura, mesmo guiada e ajudada por quem sabe mais do que ela, tem pleno direito à sua felicidade, porque a ganhou com a sua fadiga; e o Criador tem direito ao amor daquela criatura, porque lhe esteve sempre vizinho e a socorreu, deu-lhe o máximo que a necessidade de não torná-la preguiçosa permitia, tendo sofrido com ela. Somente assim poderia ser alcançada a criação de um ser consciente e perfeito, mesmo através de uma cansativa ascensão, com direito ao eterno amor de Deus. Se, pois, a lei suprema parece nos marcar duramente hoje, não nos rouba em nada, pois nos compensará com tantas alegrias, que, então, todos poderão compreender a verdade do ditado de São Francisco: ―Tanto é o bem que espero, que toda pena me é muito amada‖. Não posso deixar de me inebriar com a beleza desta visão resplandecente de justiça e de bondade. Que alegria poder restituir a Deus os seus atributos de perfeição e de amor, que paz existe em sentir a alegria além da dor, o bem além do mal, uma ordem perfeita quando superado o caos humano! Que sabedoria, uma imperfeição como um meio de perfeição, uma dissonância feita para reordenar-se em harmonia! A dura luta pela vida não é senão uma elaboração para conduzir à fraternidade. O esforço criador de Deus está sempre presente e faz parte do sistema. Deus é perfeito. O Seu plano é perfeito; é somente a sua manifestação que parece imperfeita, porque, partindo do imperfeito, tende ao perfeito, e partindo do caos, chegará à ordem. O caos originário não foi erro, mas sim o ponto de início desejado. A obra da criação consiste na progressiva elaboração da desordem, na reordenação do caos na ordem. É este processo de harmonização gradual que forma a sinfonia da vida, conquistar através da prova a felicidade, que constitui o seu escopo. O Deus transcendente, não obstante Ele operar como imanente em meio às suas criaturas, não cessa de resplandecer no centro, tudo atraindo ao seu seio. A sua imanência consiste justamente nessa irradiação que tudo penetra, satura e arrasta para Ele. O Sol, como sistema semelhante (o esquema é sempre único em tudo), arde no centro do seu cortejo planetário, mas também está em todo ponto aonde chega irradiando, para e fecunda. Transcendência e imanência não são, pois, senão duas posições, duas metades do circuito de uma mesma unidade. Então, todas as formas de existência tendem para Deus e todas devem, cedo ou tarde, sublimar-se para chegar a Ele, a fim de restituir-lhe o amor que as criou e encontrar n'Ele a salvação final. A vida não pode ter outros escopos. De outro modo, ela perde todo o sentido e valor, é caos e mal, e a criação de tal dor sem salvação torna-se maldade. Uma infinita sabedoria, que tem presciência do erro da criatura e conhece a possibilidade de terríveis consequências, se é boa como deve ser, não a pode haver criado desta forma. Criando, Deus não pode haver desejado senão uma coisa: a salvação da criatura, salvação final; não importa se para alcançá-la são necessárias gravíssimas provas, justamente proporcionais às insensibilidades de cada um, se são necessárias penas que se devam sentir também como eternas, sem ter jamais esperança, se são necessários estes abalos para fazer subir enfim e chegar a Deus. Na realidade, Ele está mais ansioso de nos dar liberdade e felicidade que nós de as alcan- 62 PROBLEMAS DO FUTURO çarmos. Mas seria muito perigoso para o homem que Deus desse liberdade a um ser que ainda não é sábio e consciente, nem seria justo dar a felicidade senão como merecido prêmio por um trabalho ultimado. Como tudo pode ser nosso se não for ganho? Tudo isto negaria as qualidades de bondade e justiça de Deus, que Lhe sentimos necessárias. O dar gratuito não é justo em benefício de quem não pode dele usufruir. O homem deve colaborar. É guiado e sustentado por Deus, mas o esforço deve ser seu. Eis por que, como em outra parte havemos examinado, a Divina Providência não socorre senão em caso extremo, mas nos salva sempre. Trata-se, não de uma redenção gratuita, mas de uma colaboração entre Deus e o homem, onde cada um dos dois termos complementares põe a sua parte. Mais do que os resultados, são levados em conta o esforço e a boa vontade. Logo que tenha sido feito todo o possível, acontece milagrosamente a realização. Deus dá todos os meios, mas nós devemos trabalhar e aprender com esses instrumentos. Deus resplende sempre sobre nós, como o sol irradia sem descanso. Cabe-nos saber tomar o mais que possamos deste sol. Quanto mais aprendemos a usar a liberdade, tanto mais ela nos é concedida. Mas sempre somos, em proporção, responsáveis por ela, que, se nos vergasta ou premia, se de nós se oculta ou a nós se mostra, será sempre para nos atrair a Ele, para nos fazer alcançar, por Seu intermédio, a nossa salvação. A lei soberana que rege o universo, não obstante as aparências contrárias e as condições relativas e transitórias, é o amor. O dualismo Deus-Satanás não é separação senão no tempo, com fins criadores, desejada para o bem, por um só senhor de tudo, que não admite inimigos senão como servos, e destinada a ser sanada no fim. De outro modo, ou a obra de Deus seria maldosa ou então falida. XVI. DEUS E UNIVERSO (II PARTE) A visão do universo nos guia para a visão de Deus, em que vemos, na criação, o Criador e, no Criador, a criação. Torna-se indiscutível uma estreita relação entre os dois, que devem formar uma só unidade, porque, qualquer cisão anularia essa unidade do todo. Deus nos aparece como o aspecto ou polo transcendência do todo; o universo, como seu aspecto ou polo imanência. Examinemos agora, separadamente, a natureza e a atividade desses dois polos. Dado que a criação está no limite do finito, observemos o ponto de partida e o caminho por eles seguido para voltar a conjugar-se ao completar-se o processo. Comecemos pelo polo transcendência. Aqui, nos encontramos diante do mistério dessa limitação que o infinito se impõe para se exprimir no finito, que o absoluto se submete para se manifestar no relativo. É uma inversão de valores de natureza involutiva, é a fragmentação do uno no múltiplo, é o equilíbrio desfeito num movimento sem trégua, um desequilíbrio que procura, através de um incessante vir-aser, reencontrar o equilíbrio, é o início do transformismo no relativo, é um fechar-se em outra ordem de leis, não mais aquelas do absoluto, um fechar-se no limite, mas com a ânsia de sair dele, com o instinto de transpor o limite, um fechar-se no ciclo vida-morte, mas para alcançar a imortalidade, um cingir-se no esforço e na dor, mas para subir até à felicidade. Mas por que o absoluto Deus perfeito quis descer assim na imperfeição? Por que quem tudo tinha e de nada precisava quis livremente submeter-se a esse trabalho? Para criar, através dele, uma criatura semelhante a si e, assim, para amá-la e ser amado, fazendo-a participe da sua felicidade. Ao criar, então, há no pensamento de Deus dois conceitos fundamentais, que depois reencontraremos em todo o universo, como base da gênese em todos campos e níveis: esses conceitos são amor e dor. Eles sintetizam-se num só: sacrifício. Ora este dar-se em sofrimento não é estéril, mas sim um meio para alcançar uma multiplicação de alegria. O sofrer, então, é logicamente justificado, porque é criador des- Pietro Ubaldi sa alegria, primeiro em outros seres, para os quais ela é irradiada, e depois, pelo que dela resplandece e irradia em retorno, para quem sofreu para gerá-la, que vê então seu sacrifício resolver-se, no fim, em multiplicação de felicidade. Assim, a dor se torna genética, terminando num aumento de alegria, e é aceitável por ser geradora de alegria. O universo corresponde, do caso máximo ao mínimo, a esse conceito. É por haver verificado em todos os casos o princípio de analogia, que nos sentimos autorizados a ver presente no pensamento de Deus, ao criar, a mesma lei de amor e dor que preside a qualquer menor ato de gênese no universo. A lei do sacrifício está na base da gênese da vida, sacrifício em que se fundem no mesmo tormento criador a alegria do amor e o espasmo da dor. Olhemos para o mundo que nos é acessível e encontraremos como raiz de toda a criação, seja na carne, seja no espírito, o sacrifício; somente dele, que é juntamente amor e dor, nasce alguma coisa, a criatura nova, seja filho, seja obra do trabalho, seja conquista heroica, seja intuição de gênio. É o esquema geral do universo, que vemos repetir-se e reproduzir-se em todos os seus momentos e pontos. O caso particular nos fala do universal, pois que ele é ligado pela lei única que rege o todo, que é uno. A lei que todos aplicamos, porque é inerente à vida, nos indica qual foi o primeiro, máximo ato da gênese, que, depois, todos os seres vão repetindo à imagem e semelhança do primeiro: o sacrifício. Esta é a voz de todo o criado, que continua a gerar e não pode gerar senão no amor e na dor, único caminho, seguindo o primeiro impulso semelhante e máximo exemplo. Se a criação é o resultado do ilimitado sacrifício do criador infinito, que se limita na forma para se manifestar na gênese de outros seres, a criatura não pode continuar a ser senão a expressão daquele primeiro ato, repetindo-o ao infinito. Mas é sempre Deus que, na criatura, repete o Seu ato originário, continuando assim a gênese. A Sua criação não é devida a um só sacrifício inicial, mas à perene renovação desse sacrifício. Uma vez que a criação não se sustenta senão por uma gênese contínua, porque manter é criar, também aquele sacrifício é continuo. Toda forma de existência é devida a esse imolar-se com um ato de amor. Se essa irradiação suspendesse, por um só instante que fosse, o seu fluir, a vida ficaria parada e a criação pereceria. Tudo, em todo movimento, é regido pelo centro que, irradiando, encontra-se presente e age em todo ponto do criado. É essa fonte que alimenta tudo, e quem dela se separa vai ao encontro da morte. A nossa vida, como a de todo ser, é devida a essa presença de Deus. Senti-la, comunicar-se com essa fonte, é a vida. Ignorar, negar, repelir essa imanência de Deus, é a morte. Nenhuma filosofia pode mudar essa realidade biológica. Deus é a atmosfera vital do espírito, de onde, depois, tudo nasce. O universo é um organismo em funcionamento, dirigido na sua infinita multiplicidade por esse centro que tudo mantém unitariamente compacto, como a alma rege o corpo humano. Assim como toda célula do nosso organismo possui uma pequena consciência sua, dirigida, nutrida e coordenada por um eu central superior a ela, e só pode viver em função desse eu, do mesmo modo os seres também estão em contínua comunicação com o eu do universo, Deus. O universo é regido por essa radiação de amor que os seres recebem, que os mantém em vida, os atrai e incita a subir. No centro há o pensamento, que, vemo-lo mesmo em nossas pequenas coisas, é a máxima potência criadora, essa potência que, irradiando, cria continuamente. A Lei não é palavra escrita e morta, mas sim a presença viva do pensamento divino em ação. É essa irradiação que torna imanente entre nós o Deus transcendente, unindo-nos a Ele. O universo é dirigido, isto é, continuamente criado, por essa irradiação que resulta de amor e dor e não se pode cumprir senão em sacrifício. Então o ser deve, analogamente, repetir, pelo princípio da unidade em esquema único, o próprio ato do Criador, e a gênese deve continuar atra- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO vés do sacrifício da criatura transformada em operário de Deus e instrumento de criação. Assim, a evolução nos leva a Deus, mas através de provas e lutas, erros e dores; assim, no esforço fadigoso se opera o desenvolvimento da consciência. O universo transborda de alegria, mas ela há de ser conquistada; há entre o ser e ela o diafragma da dor, que é preciso saber superar. Salutar diafragma, que nos impõe aprender para subir. É assim que a alegria chega escassa, porque escasso é o esforço que se realiza para se conquistá-la e, dessa maneira se vai, tristemente, bebendo aos goles o oceano. É assim que o ser, conquanto lento e preguiçoso, deve responder por conta própria ao sacrifício de Deus. Essa é a atmosfera necessária para toda ascensão. Tratase de romper as formas, o egoísmo que as sustenta; trata-se de se expandir do finito para o infinito, de superar o limite em que Deus se fechou, mas de onde Ele nos chama para chegarmos até Ele. Dar, não tomar, crescer da pequena vida individual separada para a grande vida universal. Tudo isto se opera com o sacrifício. Ele é dor, mas é também amor e conquista de felicidade. Quem toma e não dá, fecha as portas da vida, limita-a, perde-a. O dar é sacrifício, mas sacrifício que cria. Assim, a lei da dor torna-se a lei do amor e da ascensão. É difícil caminharse por essa estrada; os primeiros passos são penosos; difícil é compreender esse íntimo mecanismo da vida. E, no entanto, é assim: somente o sacrifício abre as portas da vida, os caminhos de Deus, de onde flui toda a riqueza. Devemos, para obter, possuir a força de renunciar, porém renunciar não para nos sufocar e nos destruir, mas para superar o menos, porque podemos além alcançar o mais. Eis o valor da renúncia: conquistar no alto. Eis o significado da inversão evangélica dos valores humanos. A dor não se elimina fugindo-se dela loucamente, sem compreendê-la, como faz o mundo de hoje, mas domesticando-a, utilizando-a como um instrumento de ascensão, aprendendo a lição que a dor tem por qualidade ensinar-nos. Estas são as leis da vida, nem se pode subir de outro modo a escada da evolução. Não se pode criar senão com o sacrifício. Reencontramos continuamente, nas religiões, esse princípio do sacrifício nas relações entre o homem e Deus, de ambas as partes. Sacrifício que o homem faz para Deus e que Deus faz pelo homem. Esse princípio, lentamente, evolui nas religiões, até tornar-se base do conceito da redenção, que significa sacrifício de Deus para o retorno da criatura a Ele. E eis que, de um golpe, vejo esta visão lampejar diante de mim o significado profundo da Eucaristia, instituída por Cristo. Vejo a cena da última ceia: ―Accepit panem in sanctas manus suas et elevatis oculis in coelum, benedixit, panem in fregit, deditque discipulis suis dicens: Accepite et manducate ex hoc ombes: hoc est enim corpus meum‖9. Eis que o Cristo parte o pão, ―fregit‖, entendendo que com ―hoc est enim corpus meum‖, Ele partia a sua vida e a dava aos homens, como dava aquele pão aos seus discípulos. E é com este sinal, o partir do pão, que Cristo se faz reconhecer pelos discípulos de Emaús, como por um gesto seu próprio. E qual pode ser a significação desse ato, senão a de nos querer exprimir e repetir a gênese através do sacrifício, o gesto de Deus do qual nasceu a criação? Naquele tempo, o mundo espiritual caía, mas surge então novo impulso criador, que não podia ser dado senão através da dor. Aí está a necessidade da paixão. E assim como Cristo expressa na Eucaristia o princípio genético do ser, vivido por Ele em Sua dor, e aquele sacrifício eucarístico ainda se repete agora, continuamente, na Terra, o próprio Cristo também, no Evangelho, indicou ao homem que quer subir o caminho criador da ascensão, conforme o mesmo princípio por Ele vivido: ―Se alguém quer vir após mim, neguese a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois o que quiser 9 ―Tomou um pão em suas santas mãos e, levantando os olhos para o céu, deu graças, abençoou-o, partiu-o e disse aos seus discípulos: Tomai-o e comei dele todos – isto é o meu corpo‖. 63 salvar a sua vida, perdê-la-á, e o que perder a sua vida por minha causa, achá-la-á‖ (Mateus, XVI – 24, 25). É assim que o sacrifício e a paixão devem ser bilaterais, não somente em Cristo, mas também no homem, que repete continuamente o sacrifício da Eucaristia não para ser gratuitamente redimido, mas para se lembrar que, por sua vez, deve na dor e paixão abraçar a sua redenção, repetindo, de sua parte, para com Deus, o que Deus fez para com ele! É evidente que o ciclo não pode fechar-se nem as duas correntes reunirem-se se, para completar a corrente do sacrifício que desce do Criador para criatura, não houver outra que suba da criatura para Ele. É sempre o mesmo princípio que deve atuar nas duas direções, as duas metades inversas e complementares do dualismo. A atividade do homem deve refletir a atividade de Deus, conforme a mesma e única lei pela qual, para ambos, é sempre o sacrifício que dá e multiplica a vida. O que significaria, de outro modo, a encarnação de Cristo na Terra como condição da redenção, e como poderia cumprir os desígnios do Pai, se tudo isto não correspondesse à suprema lei da vida, desejada pelo Pai? Cristo desceu à Terra para pô-la em atividade, formando assim o anel de conjunção entre o Pai e o homem. A descida de Cristo se deu nos planos densos da matéria, no limite dos sentidos; é um entregar-se em dor para viver em contato com seres involuídos, entrando na mesma vida, submetendo-se às suas leis ferozes até ao calvário, e isto para elevá-los, mostrando que existe uma lei superior à da luta, porque existe uma outra vida que não é a do corpo. A descida de Cristo à Terra está conexa ao ato da criação. Ele sacrificou-se para dar a vida; a cruz tornou-se o centro de atração da humanidade, como o Pai o é do universo por Ele criado, segundo o mesmo princípio. Cristo é a tangível expressão da imanência de Deus no criado, da Sua intervenção e presença no desenvolvimento da vida. Assim, do extremo transcendente do universo ao seu outro extremo, na forma, atua a mesma lei, sempre e em qualquer parte, demonstrando a realidade do monismo do todo. O homem, para subir, deve romper (como foi rompido o pão da Eucaristia para ser dado a outros) o seu egoísmo em favor do próximo: ―Ama o teu próximo como a ti mesmo‖. Não há senão essa dura via de renúncia de si mesmo para subir. Somente assim Cristo parte o pão, dizendo: ―Este é o meu corpo partido para vós‖. É a gênese. O sacrifício do Gólgota nos revela a lei da criação, o princípio do universo. É a gênese que se opera numa atmosfera de destruição, mas que é destruição somente da forma, condição necessária à renovação de um universo em que Deus, no seu aspecto imanente, opera uma criação contínua. Dissemos acima que o todo resulta constituído de dois polos: o extremo-transcendência e o extremo-imanência. Deus é o universo. Não podemos separá-los sem quebrar o todo-uno num dualismo insanável. Agora, vimos que os dois polos não são estáticos e inertes, postos um diante do outro, mas sim que, dado o princípio do amor, eles se movem um para o outro, isto é, tendem para o amplexo: transcendência para imanência e imanência para transcendência. Então, não vemos somente Deus projetar-se na sua manifestação-universo, penetrando-a inteiramente, mas vemos também o processo inverso e complementar, segundo a conhecida lei do dualismo constitutivo de toda unidade e de todo circuito que a determina. Até aqui, temos observado, sobretudo, aquela metade do circuito que forma o todo e vai do transcendente, ou Deus, ou causa, ou Pai, para o imanente, o universo, o efeito, o filho. Observamos agora o movimento oposto, que vai do imanente ao transcendente, por onde o universo volta a Deus. Somente assim, o sistema podia equilibrar-se e o circuito fechar-se, formando a unidade do todo. Isto nos diz que Deus não criou um universo estranho a Ele, mas um universo no qual Ele se transfere e vive, exprimindo a si mesmo. Sem universo, Deus era perfeito, mas era sem manifestação e também sem amor, porque, sozinho, conquanto perfeito, 64 PROBLEMAS DO FUTURO não se pode amar. E tudo isto nos mostra ainda que o universo não pode viver sem Deus e nos explica aquele seu grande movimento que é a evolução, isto é, que o escopo de tudo o que existe é fechar o circuito e retornar a Deus, de quem o ser descende e foi gerado. Os dois movimentos: criação, que significa involução (primeira metade do circuito) e evolução (segunda metade do circuito) se condicionam e se completam um no outro. Nenhum dos dois é concebível e pode existir desacompanhado. Eles são estreitados, presos um ao outro, como dois movimentos de um mesmo único processo, num sistema absolutamente unitário. Somente assim se salva a unidade do todo. Eis o significado do monismo Deus-universo. Observamos o completar-se de um no outro, dos dois inversos e inseparáveis movimentos. Em um primeiro momento, o Deus transcendente deu-se, através do seu sacrifício, na veste exterior da forma, pulverizando a sua unidade no multíplice e o seu absoluto no relativo; deu-se pelo amor que quer criar uma nova criatura, para amar e ser por ela amado, transmudando-se da transcendência na imanência. Em um segundo momento, o processo se completa, continuando na sua inversão, que pode reequilibrá-lo e fechá-lo. Então a forma, ou criatura, expressão do transcendente no imanente, o segundo modo de ser do todo, deve cumprir o mesmo sacrifício, isto é, a mesma dação de amor, que, tornando a subir em direção inversa, restitui ao Criador, por amor, o que Ele por amor deu, porque amor é o princípio unitário do todo, que rege ambas as fases, a de ida e a de retorno, descida e subida, involução e evolução, que formam as duas posições opostas do mesmo único respiro do todo. É nesse segundo momento que o aspecto imanente deve voltar transcendente; que o universo descido de Deus, para Ele torna a subir, evoluindo. É evidente a correspondência das posições, movimentos e atos inversos. O sacrifício do Criador, dando-se na descida, é compensado, para se equilibrar e se completar, por um paralelo sacrifício da criatura, e é da Lei que este se deva dar na ascensão. O mesmo princípio deve repetir-se em posição invertida, harmonizando assim a mais férrea e exata justiça, que está na ordem da Lei, com o princípio próprio do amor, de doação gratuita. O ser, para retornar a Deus, deve restituir-lhe o Seu sacrifício, a que deve sua vida, e somente assim pode alcançá-Lo para reencontrá-la. Dessa maneira, a destruição tornase um meio de realização; da morte renasce a vida. Torna-se, pois, lógico o absurdo que a dor crie e que a conquista se alcance rompendo o próprio egoísmo centralizador num altruísmo que, dispersando o eu, parece antivital. É assim porque não fomos criados para viver sós, cada um por si, mas sim uns para os outros, porque o escopo é unificar-se e, somente quando todo o universo voltar a ser uno, ele terá reencontrado Deus, o efeito terá voltado à causa, fechando o circuito. Somente então, Deus se sentirá todo realizado com o Seu universo, e a criação, hoje em marcha, estará completa. Com esta visão de conjunto, tudo se compreende e justifica. Na fase involutiva, é a dor de um Deus que opera a gênese; na fase evolutiva, é a dor do ser que a continua e conclui. É assim que a dor do homem é criadora. O sacrifício de todas as criaturas, em todo o universo, deve compensar e equilibrar o sacrifício do Criador. Mas a esse seu sacrifício elas devem a existência, dom supremo de amor. Para que ele seja completo no todo, porque recíproco, é fatal que o sacrifício seja restituído por amor da criatura ao Criador, é necessário que ela rompa a sua forma em gênese e se dê dolorosamente em amor, como Ele se dividiu e sacrificou, dando-se em amor para gerá-la. Eis por que evolução é dor. É duro, mas o resultado compensa tudo. À dor do ser estão confiadas funções construtivas; é nessa fadiga da ascensão que ele se torna colaborador de Deus. O sistema é equilibrado, e a lei de justiça aí reina soberana. A nós, situados em um ponto particular do ciclo, ele não oferece senão uma visão parcial. Julgamos, portanto, conforme perspectivas relativas Pietro Ubaldi e incompletas. Assim, a dor pode nos aparecer como uma condenação, e não como um instrumento de felicidade, nos levando a crer que o mal é um inimigo do bem e Satanás é um antiDeus. Mas quem possui a visão completa encontra neste monismo tudo lógico e perfeito. No seu conjunto, o todo permanece, também na sua expressão de imanência, idêntico à sua substância transcendente. Porém, se olharmos profundamente, no absoluto, ele não nos aparecerá mais cindido, e sim na sua imutável unidade, o que constitui uma visão ainda mais avançada de Deus, que aqui não é possível expor. Tornemos, pois, para o relativo da nossa fase e observemos com olhar relativo, especialmente do lado humano, a segunda metade do movimento do todo, a parte evolutiva. Aqui, há a reabsorção em Deus da Sua irradiação. Vimos porque toda criação, mesmo humana, não pode ser separada da dor e fadiga. Assim é para a mãe como para o gênio, para Cristo como para o homem. Mas que maravilha se olharmos o produto dessa dor e fadiga! O mundo não pode progredir senão por esse caminho. Esse é o esquema único que reencontramos em nossas pequenas conquistas quotidianas, assim como na ascensão do todo para Deus. Mas, junto à força negativa da dor constitutiva do esquema da evolução, há ainda uma outra: a força positiva do amor. Se a primeira repele, a segunda atrai. E a conquista está além da nossa fadiga, de modo que a evolução necessariamente implica que do encontro e casamento destas duas forças nasce um contínuo ato de sobrepujamento de limites. Eis então o terceiro termo: a criação. Daí a luta pela vida, o princípio da seleção, a ascensão biológica ao longo de planos evolutivos. Se, em toda parte, encontramos em formas diversas, segundo o grau do ser, a luta e a fadiga do ato de superar, encontramos também o amor, seja ele invertido ao negativo como ódio, nos planos involuídos, seja elevado ao positivo como sempre maior amor, nos planos evoluídos. Força que é sempre amor, o princípio que une e prende um ser ao outro, seja no ódio, numa ligação que mata, seja no amor, num amplexo que gera. Ninguém pode viver só no todo, mas somente ligado ao outro, do extremo involutivo, inferno, ao extremo evolutivo, paraíso, seja por vínculos de ódio, feitos de dor e destruição, seja por vínculos de amor, feitos de alegria e criação. Na unidade da vida, nenhum ser pode ficar indiferente ao outro, devendo ligar-se ao longo da via positiva, por atração, ou ao longo da via negativa, por repulsão. Amor é a grande lei universal, é o ímpeto animador do todo. Não se trata do amor a si mesmo, que pode ser culpa. Esta não está no amor, mas na involução do amor, na sua limitação egoísta, porque o egoísmo representa verdadeiramente o limite em que o eu se fecha na descida involutiva. A virtude não está na supressão do amor, mas na sua elevação, na sua expansão altruísta, pois que o altruísmo representa a abertura do eu na sua ascensão para Deus. Portanto este divino impulso unitário do universo nunca deve ser destruído, mas sim apenas dirigido para a sua elevada meta, que é a reunificação, fazendo que ele se liberte das suas formas inferiores, egoístas, para alcançar as superiores, altruístas. A culpa para o homem está na animalidade do amor, e o progresso está na sua espiritualização. Quanto mais o amor é involuído, tanto mais está longe da unidade; quanto mais é fragmento disperso encarcerado no egoísmo, tanto mais se distancia de Deus e da alegria. No plano animal, o amor, aí somente pequena laceração de egoísmo, não gera senão os corpos, porém, mais no alto, ele possui funções criadoras imensas. Assim se explica como, dado o egoísmo separatista humano e a relativa dominante psicologia do ―do ut des‖, seja necessário um prazer imediato para induzir o ser, ainda inconsciente, a um início de unificação para a gênese física, um gozo que lhe pague logo o sacrifício de dar parte vital de si mesmo no ato sexual, porque, nesse nível, o egoísmo prevalecente nada faria sem uma compensação. Mas também aqui há sacrifícios pessoais, pois, ainda que acredite tomar, o ser dá. O pai dá à mãe, a Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO mãe dá aos filhos. Sacrifício que evolui e se completa na educação deles, dando-lhes alimento e defesa, instrução e elevação moral. Desta forma, a família, com os seus deveres, representa um amor mais evoluído que o do animal e também uma criação muito mais profunda, que alcança o espírito e compõe uma primeira célula para a unificação. Assim, de plano em plano, o amor guia o ser para a unidade. Quanto mais o amor é involuído, tanto mais é isolado e tanto menos é criador; quanto mais ele é evoluído, tanto mais criaturas ele abraça, tanto maior é a sua potência criadora. Esse é o caminho que nos conduz sempre mais para perto de Deus. É grave erro combater para aniquilar as formas involuídas de amor; todo amor é força motriz indestrutível da evolução. Uma virtude assim entendida, em forma destrutiva, representa a negação, o mal. Jamais destruir por destruir, sem primeiro haver edificado. Caso contrário, geram-se as piores contorções desse insuprimível impulso da vida. O amor que desce em vez de subir, nos distancia ao invés de nos conduzir para a alegria, porque, então, o egoísmo o inverte, levando-o para o ódio e a dor. Quanto mais se reduz o amor em prazer, tanto mais ele se torna traição; quanto mais lhe tiramos o elemento sacrifício, tanto menos ele é criador de vida para os outros e, portanto, de felicidade. Por essa razão também, não se deve conceber a virtude como ódio a si mesmo, mas sim como amor pelos outros num campo sempre mais vasto, pois que o amor nunca deve ser invertido em ódio. Essas são as leis da vida. O amor que somente quer tomar sem dar, não pode gerar alegria. O universo é sabiamente equilibrado, e a vida se dá em alegria a quem se lhe dá em sacrifício, mas se nega a quem egoisticamente nega dar-se. Muitas vezes, o amor é desviado para falsos objetivos pelo homem. Amar a criatura antes que o Criador, as coisas mais que o espírito, os fragmentos em vez do todo, agarrar-se avaramente à posse, fechando em seu benefício o fluir dos bens para todos, amontoar e adorar o tesouro, amar assim, em forma contorcida e invertida, não pode gerar alegria, mas somente dor. Por isto a vida nos oferece ilusões e traições. A verdadeira realidade da vida é outra. Tudo nasce de uma forma que se rompe. O rebento se abre na flor perfumada, que perece gerando o fruto saboroso, que morre dando a semente que encerra. E esta cai na terra e brota novamente, rompendo a sua forma de semente, em uma nova vergôntea. Toda forma se dá e, ao se dar, caminha para a morte. No entanto, se há morte na vida, também há vida na morte. Assim, a beleza da virgem floresce na maternidade, finalidade da beleza, que, deste modo, deve romper-se para gerar seres novos. Na sociedade, os melhores indivíduos são perseguidos ou abandonados, porém eles devem dar-se, criando na solidão e no tormento. O homem mata os seus profetas, para se apressar depois a exaltá-los e colher, como preciosas relíquias, o que não conseguiu destruir. Então, o que resta se torna sagrado pelo sacrifício do grande que se imolou. Este é venerado pelo mesmo involuído que não pode deixar de sentir nele um pioneiro da evolução de todos. Também os involuídos, agressores dos mestres, são necessários para que estes possam criar, sacrificando-se. Assim, toda civilização desabrocha, floresce, frutifica e, depois, cai, deixando sobre o terreno humano as suas sementes. Desse modo, através do amor e da dor, desenvolve-se a grande sinfonia criadora do universo. O romper da forma, expresso na Eucaristia pelo partir do pão, representa o doloroso rompimento do eu e a reabsorção do egoísmo separatista no altruísmo ascendente para a universal unificação em Deus; significa a reconstituição em unidade, por parte de um universo egocêntrico em Deus. E, de fato, toda criatura, no seu egoísmo, repete em escala menor, em toda altura, o mesmo esquema. Mas egoísmo e altruísmo não são mais que posições diversas, uma questão de amplitude. Também Deus é egoísta no Seu universo. Mas o Seu egoísmo é tão altruisticamente amplo, que compreende todas as criaturas. O egoísmo destas, ao contrário, não compreende senão o seu eu isolado, 65 além do qual não há compreensão e harmonia, mas somente estridor e luta. Quanto mais se sobe, tanto mais o egoísmo é abrangente e unificador. O eu involuído ignora o vizinho, é desorganizado e belicoso, desagregante e destruidor. Elevando-se, esse egoísmo rompe-se, pouco a pouco, de círculo em círculo, e isto é dor, amor e conquista. Sobe, sobe, e em Deus o egoísmo alcança a sua infinita dilatação, que a tudo e a todos abraça, coincidindo assim com o absoluto altruísmo. Em Deus, egoísmo e altruísmo se fundem, sendo uma coisa só. O universo, subindo para Deus, vai de um egoísmo separatista a um egoísmo sempre mais unitário e altruísta, para reencontrar assim, em Deus, a sua unidade. Dessa forma, conforme o princípio das unidades coletivas, desenvolvido em A Grande Síntese, os seres se unem em organismos sempre mais complexos e completos; do núcleo, que rege no átomo os seus elétrons, aos agregados de miríades de átomos que formam a matéria, ao núcleo do protoplasma, à sociedade de células, ao organismo animal, humano, à família, à classe social, à nação ou povo, à humanidade, à organização progressiva de todas as humanidades do universo. Tudo, da química atômica às estruturas orgânicas, dos sistemas solares e galácticos às coletividades animais e humanas, tudo nos fala de associação. Nela, o egoísmo se expande em amor para o semelhante, porque nele vê a si mesmo. Neste sentido, a hodierna psicologia coletiva de classe já é um progresso, porque é uma tentativa de nova unificação, antes não sentida. Quando o homem chegar a sentir em toda criatura o seu semelhante, a ponto de aí ver a si mesmo, como fazia São Francisco, então ele terá compreendido e sentido Deus. Assim, o egoísmo torna-se amor, e, no egocentrismo absoluto de Deus, encontramos o absoluto altruísmo e o absoluto amor. Nele, estão compreendidos todos os seres. Por isto nenhuma criatura pode viver senão em Deus. Para ela, só existe um mal e prejuízo: involução, que significa distanciar-se de Deus, e só existe um bem: a evolução, que significa aproximar-se de Deus. O homem que, na sua ignorância, acredita que o rompimento da forma seja perda de vida, engana-se. Essa destruição não é morte, mas sim condição de vida. Essa é a técnica da evolução, pois que, sem o fim da vida velha, a nova não pode nascer. O egoísmo que avaramente se agarra à forma para conservar-se, não vai para a vida, mas procura deter o seu fluir. O homem procede assim porque ignora a infinita, inexaurível, riqueza da fonte divina. A destruição da forma não é perda, e sim libertação. O homem não sabe que é eterno, indestrutível centelha de Deus, destinado a subir sempre mais para Ele em alegria e potência. A forma não é a vida, mas somente o invólucro que, embora exprima, também aprisiona a vida. Evoluindo, não temos mais necessidade do corpo para nos exprimir, nem dos seus limitados sentidos, feitos para um meio denso. O porvir está no ato de superar a forma, o que significa expansão de vida. É justamente através da sua espiritualização que ela adquire um dinamismo sempre mais intenso, uma agilidade e uma potência, um conhecimento e uma liberdade antes ignorados. Cristo, com a Sua ressurreição, veio ensinar-nos essa indestrutibilidade da vida. Assim, o homem que se sacrifica pelo bem dos outros não se danifica ou se mata, mas conquista uma vida maior. O altruísmo absoluto, destruidor do eu, não compensado por uma correspondente conquista, não existe no universo. O que é antivital é absurdo no seu sistema. O sacrifício é admitido na economia da vida porque, quando se deve verificar, ele representa uma real vantagem, uma conquista, uma ascensão. O homem atual está fechado num utilitarismo restrito e imediato; não compreende esses outros utilitarismos amplos e de realização remota. Muitos dos seus erros e, portanto, dores são devidos à sua ignorância. É inerente ao seu estado involuído não saber viver senão as suas pequenas verdades parciais, de superfície. Todavia, enquanto não houver amadurecido para uma verdade mais ampla e completa, a verdade precedente, inferior, é sempre útil para 66 PROBLEMAS DO FUTURO percorrer o precedente trecho de evolução. Percorrido este, a velha verdade cai por si só e a nova desponta na compreensão humana. O mundo avança desse modo. Hoje, o homem crê enriquecer agindo egoisticamente, mas, ao contrário, ele empobrece, porque se fecha no egoísmo, como em uma gaiola de ferro que o sufoca, impedindo sua expansão e isolando-o das fontes da vida. Amanhã, ele compreenderá mais e entenderá o mais amplo utilitarismo do altruísmo. O homem, fundindo-se no próximo, amando-o como recomenda o Evangelho, realiza o processo da reunificação, que reconduz o ser a Deus. Enquanto o movimento centrífugo, que distancia o ser de Deus e tende a reforçar o egoísmo, faz do eu um centro independente em torno ao qual ele tende a atrair e ligar todas criaturas e coisas que possa, levantando-se contra Deus, o movimento centrípeto, que conduz o ser a Deus, tende a romper o egoísmo, reconhecendo cada vez mais Deus como centro universal e fazendo convergir para Ele tudo e toda criatura. O egoísmo representa a rebelião de Satanás, o princípio separatista e antiunitário do anti-Deus. Gerada pela separação do Uno, que se deu em sacrifício por ela, a criatura, em vez de reencontrar a plenitude dada pela unidade, a Ele retornando em sacrifício pelo mesmo amor que a gerou, procura reencontrá-la naquele reflexo da unidade que tem em si e, para não querer enfrentar a fadiga de tornar a subir, detém a vida na limitação, pretendendo conseguir, com um só fragmento, reconstituir o todo. É assim que nasce o mundo luciferino, a paródia, uma unidade partida, um mundo às avessas como todo fragmento, negativo, contraditório, inquinado nas próprias raízes por essa subversão central, pelo que o amor se transforma em ódio; o sacrifício, em prazer efêmero e traidor; a construção, em destruição; a ascensão para a unidade, em descida para uma sempre maior separação. Essa é a mecânica do sistema, o que explica como tantos que se aliam no mal acabam em guerra entre si e por que as suas construções são feitas para ruir, pois quem opera nessa direção está de tal modo embebido pela própria atmosfera de negação, que não pode construir senão às avessas, isto é, destruir tudo e, no fim, a si mesmo. Assim o egoísmo, que parecia a mais segura das conquistas, fica sendo, ao contrário, a via da perda, e o altruísmo, em que aquele egoísmo se rompe e que parecia uma perda, torna-se uma conquista. Tal é a estrutura do nosso universo. Essas realidades estão presentes em qualquer parte, esses princípios funcionam em qualquer lugar. Em nosso mundo involuído, portanto ignaro e inconsciente dessas verdades, predomina o segundo aspecto da verdade, luciferiano, invertido, consequentemente prevalecem nele a cegueira, a ilusão, a traição em tudo. Não há senão uma salvação, seja para o indivíduo, seja para a sociedade: inverter a direção, reencontrar o caminho da ascensão, desfazer a ilusão que nos faz parecer utópico o Evangelho, ver e aplicar a sua suprema sabedoria. Quem compreende tem a sensação clara que ao mundo de hoje ficou cortada a via das fontes da vida. Ele se faz sempre mais desapiedadamente egoísta e ávido, todavia está sempre menos satisfeito de tudo; para se fazer mais rico, ele se torna sempre mais pobre; não aspira senão a possuir, no entanto isto se torna sempre maior mal; quer gozar a todo custo e, com isto, não consegue senão ligar-se a um tormento sempre maior. No entanto esse tormento é a única salvação do mundo, porque o obrigará a mudar de rumo, em direção oposta. O instinto de expansão, que é próprio da vida, nunca poderá saciar-se assim, invertido no domínio material, que, ao contrário, é uma servidão. Aquela necessidade não pode ser satisfeita senão no espírito, indo para Deus, e não para as coisas. Assim, por pouco, para nos enriquecermos, matamo-nos em grande escala; os imperialismos, que deveriam conquistar, resolvem-se em guerras de destruição para todos, especialmente para os chefes que as quiseram. E também a nossa ciência, maravilhosa conquista, Pietro Ubaldi arrisca fazer naufragar o mundo que queria elevar, e isto justamente por essa fundamental direção invertida. Como se vê, as leis do universo são tão onipresentes, que penetram a nossa tangível realidade quotidiana. Os meios de que o homem dispõe hoje, o seu domínio sobre a natureza, são infinitamente maiores do que os dos velhos tempos. No entanto jamais ele foi tão inquieto como é hoje; a celeridade para poder satisfazer-se não faz senão com que aumente essa inquietude. O homem sente que, do outro lado das suas conquistas, há para ele o vácuo, falta a meta para onde dirigi-las, e percebe que a direção atual o leva para a destruição. Aquelas conquistas não são positivas, mas negativas; avançam em descida, não em ascensão; levam para a separação, e não para a unificação. Com a nova hodierna potência construtiva alcançada pela ciência, tudo se despedaça nas mãos do homem. Ele, ao contrário, tem fome de unidade, sempre mais. A vida quer ir para sempre maiores unidades. Essa é a ideia que fascina as almas, embora oneradas pela nostalgia, de poderem se realizar conforme os planos do universo. Mas somos divergentes em tudo; não sabemos nos exprimir senão em forma de luta; procuramos dominar, impondo-nos em vez de compreender e conhecer; a ciência tende a pulverizar-se na especialização e o conhecimento se torna instrumento de guerra. A conquista, ao contrário, não se pode exercer senão por vias convergentes para a unidade, em todo campo, unidade política, religiosa, filosófica, científica, social. A grande lei do progresso é: unificar-se. A vida não pode ascender senão por essa via. Um potente chamado para a unidade grita em nós. É Deus uno que nos impele a fraternizarmonos e compreendermo-nos. É a vida una a nos dizer que somos, cada um, parte de um mesmo organismo e que o separatismo egoísta o mata. É o princípio uno do todo querendo que a célula-indivíduo funcione na humanidade e esta no universo, harmonicamente. Tudo isto clama da profundidade, fala de dentro de nós; a todo passo, a realidade inimiga nos adverte que estamos no falso caminho, mas o mundo continua impávido. Então o poder de Deus nos mandará golpes tais, que quem sobreviver será obrigado a render-se à sabedoria, única salvação. Pois que o amor é lei suprema e deve triunfar custe o que custar. O mal, e quem o segue, é destinado à autodestruição. De fato, tal é o desespero de quem o personifica, que ele muitas vezes tende a se matar, coisa que não acontece em quem, mesmo sofrendo igualmente, representa o bem. Quem compreendeu o funcionamento do universo sabe que Deus não pode ser vencido e que ao bem cabe o triunfo final. E Deus sempre nos incitará a alcançar a nossa felicidade na harmonia. O método do separatismo é antivital, obstrui o caminho da fonte de Deus, portanto não se pode reger senão por desgaste do ser, que fica limitado apenas às suas reservas e cedo ou tarde deve exauri-las, não podendo existir senão por um sempre maior esforço seu, tendendo à agonia. Quem segue esse método, se não inverter o caminho, vem a ser destruído por esgotamento. Suicídio ou colapso, esse é, para quem não quer emendar-se, o fim do mal no sistema do universo. Assim, vemos que, no sistema desejado por Deus, já está assegurada a vitória final do bem. Tudo, pois, no fundo, é perfeito, mesmo o mundo de hoje, que não pode impedir absolutamente a Deus de alcançar os seus fins. O indivíduo é livre para buscar a plenitude do ser em Deus ou encontrar a anulação na direção oposta. O fim do mal, por sua natureza, como negação de tudo, está no nada, isto, porém, não significa que a substância se possa anular, mas sim que ele, por esta via, involuindo, despe-se da vida em favor de quem, seguindo para o outro lado, dela se enriquece sempre mais. O ser é livre de seguir o mal, mas, seguindo essa via, é sempre mais despojado em prol do bem. Dessa maneira, o mal é destinado, pela sua própria negação e, portanto, falência, a alimentar o bem e, assim, a desenvolvê-lo. Os malvados, ou se redimem, subindo e voltando para Deus, ou, precipitando-se em uma dor Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO crescente e sempre mais desesperada, se anulam, de acordo com a liberdade e a justiça. Assim, o dualismo, temporânea cisão com escopo criador, será reabsorvido na unidade através da expansão da vida na ascensão, e da sua anulação no sentido oposto, em favor daquela. Uma dor e punição eternas, num eterno reino de Satanás, seria a vitória deste e a derrota de Deus. A dor é a escola que provê a salvação. Mas, se a criatura, livre como é, não quiser senão o mal, este, através de uma intensificação da autodemolição, a levará à perda da liberdade e consciência, numa catarse invertida ou dissolução, cujos produtos, transformados de negativos em positivos, reentram no bem. De tudo isto, o universo atual não nos pode mostrar senão a tendência. Mas toda tendência é destinada a se resolver em realização. Este é o impulso que rege a vida e ele deverá alcançar a meta que a sua trajetória nos indica. Por outro lado, quem evolui se liberta sempre mais da forma, por graus, espiritualizando-se. Liberta-se do relativo, do limite, sempre mais achegando-se a Deus. O ser, depois de haver percorrido as fases do nosso universo – matéria, energia, espírito – ainda muito mais terá de caminhar. A anulação da forma por reabsorção em Deus será o fim do universo atual, Sua manifestação. O respiro de dois tempos, involução e evolução, separação e unificação, estará completo, o circuito será fechado, o ciclo dualístico estará concluído em unidade. Isto não impede que Deus possa iniciar, da imobilidade, outros movimentos em dimensões para nós inconcebíveis, ou que já os tenha iniciado. Então, não nos encontraremos somente diante da atual criação limitada, mas de uma pluralidade de criações de quem sabe quantos e quais tipos, por parte de um Deus absolutamente transcendente, que, mesmo fundindo-se em sua manifestação total, permanece sempre acima, distinto e independente de cada uma delas. Neste sentido, aquela imanência que hoje verificamos em nosso universo desapareceria como fato acidental, na relatividade e transição de toda a criação, reduzida assim a um dos tantos momentos da manifestação da absoluta e imóvel transcendência de Deus. Neste ponto a nossa mente se perde; a vertiginosa visão desaparece e a alma se prostra diante de Deus, em prece, amando e adorando. XVII. AS ÚLTIMAS ORIENTAÇÕES DA CIÊNCIA Os conceitos acima expostos foram obtidos por visão, isto é, usando a psicologia da intuição, que, como dissemos, pode constituir para alguns indivíduos sensibilizados por evolução um verdadeiro método de investigação. A forma mental que fala nestes últimos dois capítulos é o ápice da curva da onda na oscilação da personalidade, fenômeno que já observamos. Seguindo a ascensão da onda na referida oscilação, obtivemos progressivas visões da verdade. Iniciamos este volume partindo do ponto mais baixo da depressão da onda, expondo assim uma verdade concebida com uma psicologia de involuído, que permanece na superfície e, não vendo a mais profunda realidade das coisas, a nega. Daí, então, prosseguimos para alcançar outra verdade. Propomo-nos agora examinar os conceitos aqui mencionados, não com a psicologia da intuição com que foram alcançados, mas com a psicologia racional usada hoje pela ciência. Utilizando agora o intelecto normal, encontro-me no meio do caminho entre os dois extremos mencionados na oscilação da onda da personalidade e, neste nível, devo exercer a minha atividade com a psicologia correspondente. Ora, devido justamente ao plano evolutivo dessa psicologia, a ciência está ainda distanciada de uma síntese universal, possível somente em mais altos níveis mentais. Todavia será muito útil observar os resultados obtidos por ela, porquanto se baseiam em dados experimentais controlados, o que lhes fornece uma segurança que o intelecto racional não sente nos planos mais altos. Somente 67 nestes, porém, é que se podem operar amplas sínteses, enquanto o campo da ciência é muito mais limitado. Faltam-lhe elementos de caráter espiritual e moral, que ela ignora, enquanto a intuída unidade do universo nos faz presumir a existência de relações mesmo entre as coisas mais distantes, o que tende a fazer da ciência, filosofia, religião, moral, sociologia etc. uma só coisa. Justamente por este princípio de unidade, o mundo observado pela ciência, conquanto limitado, não deve, no âmbito dela, contradizer a mencionada visão universal, pelo contrário, por estar neste seu nível, deveria confirmá-la. Agora observaremos o que diz a ciência, para ver se ela se dirige para aquela síntese ou dela diverge, e quais elementos indicadores ela pode fornecer para se dirigir naquela direção. A ciência, com o seu método objetivo-indutivo, apresenta uma psicologia de prudência e de desconfiança, caminhando sem poder ver os grandes planos do ser, sobre um terreno infiel, que continuamente experimenta e controla. Caminha, assim, por tentativas e incertezas, lentamente, por hipóteses e teorias, mas, em compensação, os seus resultados são positivos, controlados, aplicáveis por todos. As últimas verdades, que a intuição percebe em clarões de luz, fogem e constituem uma meta desconhecida e distante. Mas, conquanto ignorada, é desta meta que a ciência tenta avizinhar-se através da descoberta e da coordenação de verdades parciais, por aproximações sucessivas. Tal é hoje a forma assumida pelo pensamento humano no seu progredir. Forma relativa. Evite-se, pois, tomar como definitivos e como base de orientação filosófica os últimos resultados, que são e foram sempre superados aos poucos. É a última verdade alcançada que modela o pensamento coletivo, porque mais o atinge. A Antiguidade foi dominada pela concepção platônica e aristotélica, em seguida, pela agostiniana e tomística. Depois, a ciência objetiva e experimental suplantou a especulação abstrata. Mas, logo após, também a física clássica de Laplace, Galileu, Kepler e Newton, com as concepções mecanicistas do mundo, foram superadas pela física estatística e quântica (Planck) de hoje. E, assim, esta também será superada. Houve tempo em que se acreditava apenas na lógica e se desprezava a experimentação como um contato contaminador do pensamento puro. Todavia, conquanto perfeita em si mesma, somente a lógica não pode superar a função de coligação. Ela é uma corrente que, se não está apoiada num ponto sólido, não sustenta nada. Assim, também na forma mais excelsa, a matemática. Caminhando dessa forma, a ciência materialista superou, desmaterializando a matéria, todo o seu materialismo. Ela mesma, que é tão racionalmente positiva, não pode progredir senão confiando no método irracional da intuição, isto é, criando além de toda lógica e método, ao encontrar relações impensadas entre os fatos e conceitos mais distantes. É na coligação entre experiências e na visão do seu significado, que relampeja a intuição da lei que as regula. A análise racional não basta para descobrir estas relações. E é nisto que, muitas vezes, consiste a descoberta. Desponta então a hipótese, como tentáculo lançado para sondar o mistério. Depois ela se desenvolve em teoria e, somente então, começa a trabalhar a psicologia racional da ciência, que controla com a observação e a experimentação para validar ou condenar. Se os fatos dão razão à nova teoria, então a velha rui e é abandonada. E assim, lentamente, dá-se a escalada para a verdade. A força do positivismo está em manter-se em contato com a realidade, tornando-se observador exato. Pede-se a resposta aos nossos quesitos, não à lógica, mas à experimentação. Pergunta-se tenazmente qual é o pensamento diretor que, escondido, rege os fenômenos, dado que não se pode deixar de admitir, em toda parte, um princípio diretor e ordenador. Nem a ciência pode interrogar Deus, uma vez que lhe são desconhecidos os contatos do místico. Não lhe resta senão segurar aquele divino pensamento através de sua manifestação concreta nos 68 PROBLEMAS DO FUTURO fatos, lá onde ele, ao menos no plano físico, não se exprime senão através das formas concretas e da ação. Certo é que, além da medida necessariamente sensória e, portanto, relativa, embora aperfeiçoada, deve haver aí uma realidade verdadeira e profunda, que foge à ciência, e esta não pode fazer mais do que tornar mais poderosos e mais exatos os seus meios de investigação, mais abstratos e independentes destes e dos sentidos os métodos utilizados (operações matemáticas puramente formais), menos antropomórficas as suas representações. Diante da realidade, uma medição é coisa bem diferente de um simples fato objetivo, pois constitui a resultante de um processo de ações e reações entre fenômenos, meios de investigação, órgãos sensórios e psique do observador. Dessarte, progredindo, a ciência acaba tendo que negar a sua objetividade, devendo considerar cada observação como um fenômeno entre muitos outros, todos em relação de interferência. Não que o fenômeno perca consistência objetiva e se reduza a um complexo subjetivo de percepções, de modo que, suprimidas estas, o fenômeno não exista por si mesmo. As próprias metas distantes da ciência, que ela ainda não vê, mas para as quais também tende, pois estão no final do caminho, são de caráter filosófico, metafísico e espiritual, uma realidade incontrolável experimentalmente. Quantos limites, pois, à objetividade do positivismo; que incerteza no registro e interpretação das mensagens obtidas com a observação de um suposto mundo real na profundidade, além das aparências sensórias! Como estabelecer exatas relações entre o mundo experimental dos sentidos e essa desconhecida e recôndita realidade? E como alcançar uma realidade absoluta, independente dos sentidos humanos? Por outro lado, exprobrou-se essa ciência por ser, com prevalência, utilitária. Mas devemos também reconhecer que, se a ciência nasceu, foi devido à natureza utilitária do homem. Foi a necessidade de orientar-se na navegação, de medir um terreno, de curar uma doença, de defender-se em todo campo, que a originou. O que vale mais que a exatidão e verdade de uma ideia é muitas vezes a sua fecundidade. Da absurda procura de uma pedra filosofal para a transmutação dos metais em ouro, nasce a química; a procura do moto perpétuo levou à descoberta dos princípios da dinâmica. Mais tarde, a teoria de Einstein nasceu da ideia da velocidade absoluta da luz, e a física atômica nasceu do conceito astronômico do átomo de Bohr. A história da ciência é semelhante à história de todos os eventos humanos; acabase muitas vezes num lugar em que nunca se havia pensado. Tudo passa e muda na vida. Muitas filosofias dominaram e caíram no olvido, para depois renascerem mais amadurecidas. A metafísica dominante há um século faliu, e, assim, será ultrapassado amanhã o positivismo de hoje. Tudo passa, desaparece e retorna, como as ondas do mar, no entanto se renova; dessa maneira lançam-se novos pontos de pensamento, estabelecem-se novas conexões com fatos antes concebidos à distância, que, desse modo, avizinham-se dos já conhecidos, refazendo no futuro, em novos campos, o que foi feito no passado para chegar até àquilo que hoje é conhecido, mas era antes inexplorado. Tudo já existe. Uma descoberta não cria coisas novas, apenas estabelece novas relações entre as coisas, dando-lhes novos significados. Muito da civilização moderna consiste na multiplicada possibilidade de trocas e de relações. É assim que, através de hipóteses de trabalho, fatos antes desconexos vêm a formar uma teoria, isto é, uma coluna de pensamento validada pela experiência e, enfim, um organismo lógico revelador de uma unidade diretriz ou lei sempre mais ampla. É dessa maneira que a ciência, num caminho lento e prudente, porém seguro, procura reconstruir por graus, no plano do conhecimento humano, a profunda ordem que está nas coisas, numa sempre mais perfeita imagem científica do mundo. Através de sua cansativa investigação, a ciência cumpre com sacrifício o mesmo trabalho de reunificação do todo, que é a base das ascensões humanas. Assim, como Pietro Ubaldi tínhamos acima exposto para outros campos, também o progresso da ciência representa o retorno do ser à fonte una que tudo gerou. Neste sentido, A Grande Síntese, que nunca pretendeu fazer novas descobertas particulares, demonstrou a coligação em unidade dos fenômenos mais díspares. E fazer um organismo com o acúmulo de materiais diversos é verdadeira obra de criação, como o é a hodierna formação das grandes unidades sociais, em que os indivíduos componentes gozam de uma vida mais elevada em poder, utilidade e vastidão. Vejamos, pois, o que nos diz a ciência em relação à mencionada visão, enquadrando isto no sistema universal de A Grande Síntese, sem o que tudo apenas é compreensível no particular. O princípio das unidades coletivas nela exposto (Cap. XXVII) implica em uma escala de formas hierarquicamente ordenadas no sistema do universo, em que a superior compreende a inferior, que se organiza com outras semelhantes, em uma síntese mais elevada. Esta é uma unidade coletiva que tem a função de coordenar as atividades das menores unidades componentes para novos fins, que transcendem os de cada uma delas isolada, e isto sempre segundo o conceito acima exposto do princípio unitário do universo e da tendência unificadora que ele imprime em todas as coisas. Esta coordenação é uma questão de relação, pela qual os indivíduos componentes modificam o seu valor, potenciando-se, como é lógico, pois que a unificação é retorno a Deus, isto é, volta para chegar perto do centro genético. Assim o reagrupamento coletivo tem ação amplificadora e o poder aumenta com a unificação, hierarquicamente de grau em grau, em unidades sempre mais vastas e orgânicas. Atualmente, vários cientistas já sobrepõem ao mundo físico-químico o mundo biológico e a este o mundo psíquico e espiritual. Trata-se de planos de existência, em que as leis do plano superior dominam e guiam as dos inferiores. Todo plano tem um limite além do qual, em um nível mais alto, as suas leis, mesmo permanecendo, não têm valor senão em função de uma lei superior e, por si só, não são suficientes para explicar nem para dirigir a nova unidade. Dada a estrutura hierárquica do universo, toda unidade é sempre coletiva, isto é, formada por menores unidades componentes coordenadas em organismo, de modo que a observação, toda vez que defronta uma individualização, acaba por decompô-la analiticamente nas menores unidades componentes. Toda unidade, pois, é sempre síntese e é analiticamente decomponível em unidades menores, que, por sua vez, são sínteses maiores em face das unidades-sínteses menores, ao infinito de ambos os lados. A observação pode assim mover-se em duas direções: a analítica, que vai para as sempre menores unidades componentes, ou a sintética, que vai para as maiores unidades originadas. Ora, a ciência objetiva parte de um determinado plano de unidades-sínteses, admitido ―a priori‖ por axioma e dado pelos meios sensórios da sua observação. O trabalho da ciência foi decompor as unidades desse plano nos seus elementos componentes. Por estas razões, a ciência é analítica. Esta direção lhe foi dada pela própria estrutura das coisas. Partindo da matéria, unidade sensória para o homem, a ciência penetrou a sua estrutura molecular e atômica. Porém não percorreu com isto senão um mínimo trecho em descida, enquanto o caminho é sem fim, seja em direção descendente de análise, seja na ascendente de síntese. Dizemos descendente porque é na direção da análise que se procede para a pulverização periférica centrífuga do uno na forma, e dizemos ascendente porque é na direção da síntese que se procede para a reunificação centrípeta no uno na substância. E o caminho sem fim pode ser percorrido não somente em direção analítica, como faz a ciência, mas em sentido oposto, em direção sintética. Então, em vez de penetrar na estrutura atômica da matéria, podemos conhecer as unidades sínteses superiores, como pode ser, por exemplo, o organismo múltiplo dado pela humanidade ou sociedade de humanidades e a sua alma coletiva. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Agora, o observador não é exterior ao fenômeno e distinto dele, mas é um fenômeno no fenômeno. A sua posição está num dado nível de hierarquia ou escala evolutiva, e do próprio plano ele pode olhar, de baixo, para os superiores ou, do alto, para os inferiores, isto é, a sua investigação pode hierarquicamente descer por via de análise no particular, ou subir, por via de síntese, no universal. O pensamento humano há tentado umas e outras vias, as primeiras, com o método indutivo, e as segundas, com o método dedutivo. Agora, o princípio da relatividade formulado por Einstein, dependente do sistema de referência escolhido, é aplicável pelo observador também a este caso, porquanto, além da trajetória típica de um desenvolvimento fenomênico, ainda há o transformismo evolutivo deste e um semelhante transformismo também no fenômeno representado pelo observador. Então a descoberta científica pode dar-se não somente pela projeção do olhar indagador em um outro plano, mas também pela transformação evolutiva, isto é, biológica, do próprio observador. Eis assim justificada a afirmação, muitas vezes feita nestes escritos, de que o maior progresso no conhecimento resultará, sobretudo, da transformação do homem atual no superpsíquico tipo biológico do porvir. E, assim, a ciência poderá avançar também pelo desenvolvimento das qualidades sensórias e psíquicas do homem. É evidente que toda a perspectiva do conhecimento atual poderá mudar quando o ponto de vista houver mudado, pela diversa posição biológica do observador. É certo que o nosso mundo sensível, de onde deriva também a sua interpretação científica, é um mundo sensório e relativo. Sentimos axiomaticamente que, além dele, deve existir uma realidade, diante da qual o que registramos é ilusório. Indagando em todo campo e evoluindo, procuramos chegar sempre mais perto dessa realidade, com uma interpretação sempre mais exata. Analiticamente decompondo, com a observação, uma unidade-síntese nos seus elementos, a ciência transfere ao relativo grandezas antes consideradas últimas e absolutas. Assim, à medida que se conquista o absoluto, este retrocede. Todo registro, ainda que pareça o último em profundidade, é sempre um registro de síntese, atrás do qual se esconde a possibilidade de ulteriores registros de análises reveladoras de outras leis mais particulares. Mas, se a nossa registração é progressiva e verdadeira, ela é, porém, relativa com referência à realidade e nos dá, portanto, uma realidade relativa. Será por isto, então, ilusória? Não. No âmbito do seu campo relativo, ela é absoluta, no sentido que é uma exata representação de uma dada unidade-síntese no seu plano e verdadeira somente nesse plano. Porém, quando vista de outros pontos, fora desse plano, ela se torna ilusão. Quando, de fato, os filósofos indianos falam da grande Maya, é porque eles se põem em um ponto de observação espiritual acima do plano da matéria, que, então, parece ilusão. Mas, para os materialistas e os seres materiais, a matéria é realidade absoluta, ao menos enquanto eles fiquem naquele campo e vejam com os olhos daquele plano. Esta, porém, logo que se passa os seus limites, torna-se relativa e desaparece como ilusão. Um mundo torna-se ilusório logo que é olhado de um mundo mais alto. Então, procuramos realidades mais elevadas, próprias de unidades-sínteses mais amplas que, superando-as, abraçam esta nossa realidade de relação. E é de fato na unidade-síntese maior que podemos encontrar a lei maior que abrange as menores, em que elas se coordenam e onde as diferenças que as tornam reciprocamente relativas e ilusórias são superadas e conciliadas. Tudo isto não pode ser senão uma tendência, um caminho para uma última realidade ampla ao infinito, que compreende todas as outras. Mas ela é infinita e, assim, não é alcançável pelo nosso atual concebível, em razão de suas dimensões. Vejamos o que diz a ciência a este propósito, no campo mais concreto da física. Ela confirma plenamente estes conceitos. Acima, assinalamos o sobrepujamento da concepção mecanicista clássica do mundo pela moderna física estatística e 69 quântica. Descobrindo a estrutura atômica da matéria e concebendo-a não mais segundo as leis dinâmicas, mas conforme as leis estatísticas, a ciência moderna, que parece haver invertido as suas concepções precedentes, confirmou plenamente os conceitos mencionados, isto é, o princípio das unidades coletivas, de unidades-sínteses analiticamente decomponíveis, de hierarquia de unidades e de leis, de pulverização no particular da unidade do universo, de uma progressiva divisão e complexidade no relativo, ao polo oposto do outro extremo do simples e uno no absoluto. A teoria da relatividade de Einstein e a hipótese dos ―quanta‖ de Planck, que revolucionaram a ciência, confirmam estes conceitos. Expliquemo-nos. Os movimentos brownianos, descobertos em 1827 pelo botânico inglês Brown, são devidos, provou-se recentemente, à estrutura molecular da matéria, em que as invisíveis moléculas de um líquido ou de um gás, chocando-se com as microscópicas partículas aí suspensas, lhes comunicam um movimento irregular. Este depende da distribuição assimétrica dos choques impressos por aquelas moléculas. Pode-se, assim, pouco a pouco, provar o caráter descontínuo de quantidades antes tidas como contínuas. Alcançada, assim, esta concepção da estrutura atômica da matéria, a física clássica pareceu ruir para dar lugar a uma física quântica estatística, onde não mais dominam as leis dinâmicas, e sim leis estatísticas ou de probabilidade, que regulam o processo do conjunto de inumeráveis casos particulares, em vez de apenas um; leis que governam uma multidão de acontecimentos, em que o indivíduo desaparece. Desse modo, a ciência superou a sua antiga interpretação mecanicista do mundo. Não mais propriedades definidas deterministicamente, mas probabilidades que regulam as variações no tempo, conforme leis estatísticas relativas a grandes agregações de indivíduos. O refinamento alcançado pela técnica experimental moderna permitiu descobrir esse mundo que, sem destruir o precedente conhecido, aparece novo porque está além dele, mais profundo no seu íntimo. O que formava o objeto da física clássica não eram senão as mencionadas unidades-sínteses, das quais uma análise mais progressiva acabou por revelar a composição. Antes havia sido tomado como princípio único e definitivo, irrevogável e absoluto, aquilo que depois se mostrou ser a resultante de inumeráveis irregularidades livres compensadas, de modo a revelar, não as características do caso singular, mas as dominantes na massa. Estamos na primeira fase de penetração analítica da unidade-síntese, onde o caso particular ainda não foi alcançado como indivíduo. A observação na física usa hoje o método estatístico das coletividades, conforme o qual se calculam os valores médios prováveis, em vez daqueles exatos para cada momento ou partícula. Se tomarmos para exame o caso de um centímetro cúbico de ar, não poderemos calcular, conforme a velha dinâmica, a trajetória e os choques de cada uma dos 25 trilhões de moléculas (oxigênio e azoto) nele contidas. Isto requereria um tempo imenso, além disso elas são tão pequenas, numerosas e velozes, que semelhante exame é impossível. O número das moléculas contidas em um grama de hidrogênio é de 303 seguido de 23 cifras (303x1023). A massa de uma molécula de hidrogênio é de pequenez fantástica, isto é, 0.0000000000000000000000000033 (3.3x10-27) Kg. Contudo podemos observar as moléculas nas suas qualidades coletivas de unidades-sínteses, sem que necessitemos conhecer o comportamento de cada uma. Poderemos, assim, conhecer a pressão do gás, calculando a velocidade média de cada molécula e, com ela, obter aquela pressão, isto é, o efeito-soma de todos os choques produzidos por estas moléculas contra as paredes do recipiente. E o cálculo que, em vez do caso singular, exprime o resultado coletivo é exato, porque sobre cada centímetro quadrado de parede chega o choque de um tal número de moléculas (cerca de 200.000 trilhões de choques por segundo) que, na prática, resulta uma pressão constante, cuja 70 PROBLEMAS DO FUTURO grandeza depende do impulso médio de toda molécula. No grande numero, as irregularidades individuais desaparecem na regularidade coletiva, justamente sobre a qual baseiam-se as leis descobertas pela física clássica. Ela se baseava em experiências de caráter macroscópico, o que significa uma grosseira visão do conjunto, que não penetra absolutamente na estrutura analítica da unidade-síntese e, assim, não chega a compreender os processos de dimensão submicroscópica que ocorrem no átomo. A observação sensória humana, conquanto a técnica científica se aperfeiçoe hoje, não pode penetrar nessa estrutura analítica e deve contentar-se com as resultantes gerais de massa, sem nada saber do caso singular, como acontece no uso das estatísticas, que conhecem o andamento geral do fenômeno, nascimentos, mortes, acidentes etc., sem nada saber do caso particular isolado. Ora, uma ciência que trabalha sobre resultantes gerais de massa, obrigada a abstrair de uma realidade que se distancia sempre mais na profundidade e com a qual perde sempre mais o contato, se, de um lado, livra-se de contaminações antropomórficas, deve, por outro lado, trabalhar e construir no vazio, em forma de abstrações matemáticas, procurando somente depois a concordância dos resultados obtidos com a realidade experimental. É assim que a nova física deve confiar-se muito aos matemáticos, trabalhando com conceitos que não são os da corrente-concepção sensória. E a alta matemática já está muito perto da especulação filosófica. Assim, não somente a matéria é hoje vista pulverizada na sua estrutura atômica, mas também toda representação antropomorfa e sensória do mundo desaparece totalmente. Se isto conduz a ciência para um princípio ordenador de um organismo universal, do qual ela vê sempre melhor o grandioso funcionamento, também lhe mostra que o princípio do universo, Deus, está tão além das nossas concepções antropomórficas, que, para o homem, se perde no inconcebível. Agora podemos perguntar-nos: a moderna e mais profunda penetração analítica num mundo-fenomênico mais íntimo fez verdadeiramente ruir a física clássica e as suas concepções? O fato desta ciência mais panorâmica, sensória e grosseira, escavando em profundidade, além da face exterior dos fenômenos, ter encontrado um mundo com leis diversas, não pode anular o valor das leis precedentemente descobertas, que, mesmo conquistando um valor relativo em relação a outros planos de existência, permanecem absolutas em relação ao próprio nível. É verdade que o mundo subatômico não funciona como o macroscópico. Naquele plano mais profundo, o mundo não é mais uma grande máquina dirigida por absoluto determinismo, e os seus elementos aparecem independentes e livres. Surgem assim, segundo a nova física, os ―quanta‖ de ação. Entretanto é possível, dessa desordem submicroscópica, obter uma ordem indiscutível no plano macroscópico, que é vista pela física clássica. O que esta denominava leis, sabe-se hoje que, na realidade, são apenas regras estatísticas formuladas ―a posteriori‖, como resultantes gerais de massa, nem por isto menos verdadeiras. Simplesmente elas não aparecem mais como férreo determinismo, e sim como regularidades estatísticas, que conservam o valor e a verdade de leis naturais no plano macroscópico, porém, no plano submicroscópico, repousam sobre o acaso ou liberdade dos atos elementares. Mas não são menos válidas do que antes. E, se dizemos acaso para os atos elementares, é porque a ciência ainda não encontrou neste campo as leis inflexíveis e eternas que devem vigorar num plano mais profundo que o microscópico. A concepção estatística dessas tais leis não é senão a primeira fase de aproximação para o seu conhecimento. A certeza das leis do mundo macroscópico é dada pelo grande número dos elementos e atos componentes e por uma repetição preponderante, em determinado sentido, de uma maioria de casos. O que forma essa regularidade estatística se- Pietro Ubaldi não aquela repetição de casos? O que determina essa repetição? Pela lei dos grandes números, se lançamos um dado exato, cada número sairá tanto mais regularmente por um sexto de vezes, quanto maior for o número dos lances do dado. Mas, se o dado tiver um defeito, quanto maior for o número dos lances, tanto mais claramente a distorção se manifestará nos resultados. Então a lei macroscópica está escrita nas qualidades dos componentes singulares, e a regularidade estatística nada faz senão revelá-la. O conteúdo não é senão a revelação da natureza dos elementos individuais. É na qualidade da maioria dos casos que está escrita a lei, que, mesmo manifestando-se agora como expressão de características mais íntimas, não perde, com isto, as características precedentes. Se o ato singular depende de uma lei mais profunda que, embora nos escape, denominamos acaso ou livre comportamento, a lei coletiva exprime e revela as qualidades dominantes nos casos individuais. Por isto, mesmo concebida hoje como lei estatística, não é menos absoluta a lei dinâmica. Não é de forma alguma, como se acreditou, rejeitado o necessário conceito absoluto pela moderna física estatística ou quântica, que permanece determinística como a clássica. Não é, dessarte, prejudicada a necessidade da premissa que existam leis reguladoras absolutas, que a física, como qualquer outra ciência, reclama. A nova física difere da clássica somente por haver posto em foco a observação num plano mais profundo, levando hoje a considerar como secundário ou derivado o que antes se considerava como primário ou fundamental. Assim, as ―leis naturais‖ da ciência clássica não são abolidas e, mesmo nos parecendo agora como leis estatísticas, relativas ao plano macroscópico, distintas do plano submicroscópico, não perdem, com isto, nada da sua verdade. Para compreender, podemos referir-nos analogamente aos fenômenos sociais, onde reencontramos a mesma relação, em que o funcionamento do organismo coletivo é dado por leis precisas, que se exprimem estatisticamente, enquanto no seu âmbito o indivíduo, regulado por uma outra lei, sente-se livre. Também neste caso, o organismo coletivo é dado pelas características dominantes nos componentes individuais, pelos valores comuns, enquanto as diferenças se elidem. Vemos aqui o princípio das unidades coletivas ressoar idêntico, do plano da matéria ao humano, com as mesmas características. E o que se disse do plano físico (organismo de átomos), e agora do plano social (organismos de seres humanos), pode ser repetido também para o plano biológico (organismos de células) etc. Quando as unidades individuais não são mais observadas singularmente, mas coletivamente, por massas, a observação é conduzida de maneira macroscópica em vez de o ser de maneira microscópica, então aparece uma lei nova, em que as características de minoria, dadas pelas diferenças individuais, se anulam e desaparecem, sobressaindo somente os caracteres predominantes comuns. Então, sobre a minoria dos casos divergentes, triunfa a maioria dos casos concordantes. Para lá da lei do indivíduo, aparece a lei do grupo, em que os singulares se fundem por homogeneidade de caracteres. Na mais vasta lei da unidade-síntese, é reabsorvida a lei de cada uma das unidades individuais componentes. Na visão panorâmica, desaparecem os particulares e o indivíduo revive, não como tal, mas como síntese. Da mesma forma que os respectivos planos, as duas leis são contíguas, mas diversas. E, tal como toda unidade coletiva é a resultante dos seus elementos componentes, toda lei de todo plano também é a resultante das leis que dominam a maioria dos casos singulares. Assim, analiticamente mais se desce ao particular e mais se vai para a diferenciação dos princípios diretivos; sinteticamente mais se sobe para o universal e mais se vai para a unificação e extensão dos princípios diretivos. Estes, também neste campo da Lei, são hierarquicamente conexos, conforme os planos evolutivos do ser. É assim que, acima do espírito, há uma infinita hierarquia de leis que nos Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO fogem, como no íntimo da matéria há uma outra infinita hierarquia de leis que não conhecemos. Dessa maneira, a visão sentida antes, em forma filosófica e mística, agora se prolonga em forma científica. E eis que o ponto clássico, ou um elétron que se move no espaço, já é concebido pela ciência como um conjunto de ondas, e o que se achava ser o último indivisível elemento da realidade, é ainda, depois, formado de menores elementos componentes. Desse modo, conforme a mais recente física, este último termo da realidade não é senão uma contração de energia ondulatória, tanto mais facilmente e exatamente localizável quanto mais as frequências componentes do conjunto de ondas diferem entre si. Com uma frequência única, não é possível nenhuma localização, porque uma onda única em nenhum ponto se distingue de uma uniforme intensidade. Esse elemento, portanto, pode formar-se lá onde numerosas ondas de várias frequências interfiram entre si, de modo a se anularem reciprocamente no espaço e a se distinguirem em sistema autônomo, somente em torno de um determinado ponto. Ora, dado que a ―função de onda‖ é determinável segundo regras de cálculo bem definidas, adotando-as, resolvem-se algumas dificuldades, pois somente assim, por exemplo, tornando o elétron divisível em mais ondas incidentes, explica-se o seu comportamento quando, isoladamente, incide sobre uma lâmina de cristal. Eis então, conforme a ciência moderna, a substância representada pelo elemento fundamental da realidade. O extremo corpúsculo material, qual o elétron, se dissolve em ondas; a substância fundamental, material de construção do edifício das coisas, é um puro campo eletromagnético, ondas que não têm necessidade de se apoiarem em nenhum substrato material, sendo concebidas somente como modificações periódicas. A tudo isto não se sabe mais dar qualquer significado físico real, mas apenas o de uma representação lógica da probabilidade matemática de que o elétron se encontre, naquele instante, naquele determinado ponto do espaço. A solidez do mundo físico é, pois, toda sensória e se reduz a algo que está bem distante da realidade física, isto é, a uma probabilidade matemática. Eis em que se tornou a matéria por obra da mesma ciência materialista. A série estequiogenética nos mostra como a matéria foi decomposta em 92 elementos. Depois, foi decomposto o átomo, à guisa de sistema sideral, em partículas dotadas de carga elétrica. Agora também, essas últimas quantidades da matéria são reduzidas a determinações formais de processos ondulatórios, de modo que da matéria não permaneceu senão uma forma matemática, isto é, simplesmente fenômenos de oscilações, sem que aí se encontre qualquer coisa que exista e persista por si mesma, fora delas. Não se pode admitir, de fato, uma substância absolutamente neutra, sem características próprias, que não poderiam deixar de influir sobre processos a ela relativos. De modo que, por último, a ciência da matéria se reduz a uma ciência de relações, a um puro processo lógico. Assim ela se encaminha para compreender como a última essência da matéria não seja senão uma abstração, um imponderável, um pensamento puro da mente diretriz do universo. Essa ciência prepara-se para conceber como, em Deus, este puro pensamento possa ter criado o universo, Sua expressão. Desse modo, a moderna mecânica ondulatória no estudo das ondas não pensa num substrato físico, mas somente nas leis formais do fenômeno, de modo que a física pode hoje deixar de se referir a um substrato ou meio. Ele pode existir e ser um ―quid‖ que ocupa contemporaneamente espaço e tempo, mas hoje ainda não se sabe como conhecê-lo. Assim, a física o estuda como relação, no seu comportamento, e não na sua essência. Dessa maneira, para poder continuar a trabalhar, a ciência e o seu sistema se tornaram independentes e, para funcionar, não têm mais necessidade dessa incógnita, que foi posta fora das suas equações. Tudo assim parece vaporizar-se 71 no nada. Mas, nem por isto, a ciência identifica o mundo com o nada, mas crê que alguma coisa o distingue disto. Esta diferença está num ―quid‖ objetivo, independente do sujeito conhecedor, que não é o ponto de partida das coisas. Este ―quid‖, porém, por certo não é a matéria. Esta ficou, assim, dissociada da concepção materialista, justamente ao longo da linha do realismo, e não ao longo daquela de um absoluto idealismo. Isto nos mostra que o materialismo, levado às maiores profundidades, por fim se confunde com o espiritualismo. Assim ruem tantas distinções, física e dinâmica, matéria e vida etc., e tudo se torna, como já afirmei em A Grande Síntese, a expressão de um mesmo princípio cinético. Não permanece no fundo de tudo senão um ―quid‖ que, no campo da física, extravasa naquela forma sensória que chamamos matéria. Hoje a ciência chama de ignoto este ―quid‖ no campo abstrato do puro pensamento. Mas um dia ela verá que o pensamento, de Deus ao homem, representa uma força criadora, significa uma transcendência em que é latente toda imanência, constituindo o elemento genético de toda manifestação concreta. Agora podemos compreender como o mundo, que nos aparece e denominamos real, seja, além do limitado ponto de vista sensório, uma ilusão, como possa essa realidade, que é uma síntese, dissolver-se toda através da análise científica, e como o que vemos como estabilidade da matéria não seja senão uma estabilidade abstrata, isto é, dos princípios imateriais que a regem (o pensamento). Assim, o materialismo, como acontece para o mal e todas as formas de erro, tem se autodestruído com o progredir da ciência materialista e, embora ainda impere em nossa vida prática, já foi superado no pensamento diretriz, pois esta última interpretação do elemento extremo, conhecido hoje como realidade, o elétron, é verdadeiramente uma ponte lançada pela física no campo do espírito. A ciência encontrou no fundo da matéria uma onda, uma vibração, alguma coisa que pode formar o elemento construtivo da matéria, da energia e do pensamento. Achado esse denominador comum, possuímos os elementos fundamentais para demonstrar o físio-dínamopsiquismo monista de A Grande Síntese. Assim concebida a matéria, conforme a física moderna, não há mais dificuldade em conhecer o espírito, conexo e substrato das formas materiais, dotado de potência criadora. Observemos agora a mesma realidade, não mais com o olho analítico da ciência, e sim com o olho sintético de quem sobe ao longo dos planos do ser, ao longo das grandes construções da arquitetura do universo. A visão continua, não mais no mundo físico, mas no espiritual. Ela se dilata numa concepção cosmogônica em que a matéria aparece como uma organização elementar, dominada por uma hierarquia de formas de existência superiores em complexidade e potência construtora, entre as quais estão, antes, a energia e, depois, o espírito. Assim, tal como a energia representa o princípio criador e diretriz da matéria, o espírito representa o mesmo princípio para a energia e, depois, para a matéria. Todo plano depende hierarquicamente e é dominado pelo evolutivamente superior. Assim, a vida organiza para um mais complexo nível de química orgânica a mais simples química inorgânica, como esta tinha organizado os átomos em moléculas etc. Desta forma, o espírito constrói o seu organismo com os elementos preparados pelo mundo biológico. Do espírito e além, sobe-se para Deus, em domínio e potência criadora. A criação deriva assim continuamente de Deus, mas de plano em plano, através de meios de diversa potência, utilizados como instrumentos proporcionados ao divino trabalho criador, que se cumpre por meio deles. Porém, mesmo como operários, os seres colaboram como canais, através dos quais a criação se mobiliza e a manifestação de Deus se exprime. De sua parte, o ser ascende, e evoluir também significa tornar sempre mais real o pensamento de Deus, significa dar forma a algumas coisas de verdadeiramente novo como forma 72 PROBLEMAS DO FUTURO e manifestação, se bem que tudo já exista latente em Deus. Assim a criação é contínua, pois que não se pode manter nada sem criar. Deus realiza essa criação através das criaturas. Quanto mais o ser sobe, tanto mais se torna criador, porque mais se avizinha e se assemelha a Deus. Assim, o homem participa e se torna sempre mais participador da atividade criadora divina, que cria nele e por meio dele. A criação é atual, assim o Deus transcendente se torna também imanente no contingente, e este não pode estar além d'Ele, que deve ser tudo. O homem que cria no pensamento já opera fora do espaço e do tempo e, por isso, ele é o ser terrestre que mais se avizinha de Deus e o primeiro artífice da Sua criação na Terra. A atividade intelectual e espiritual do homem é diretriz da sua obra nos planos a ele submetidos, da qual está investido de direito, dada a sua posição hierárquica no universo. O criador das obras do pensamento é o ser que mais está perto de Deus na Terra. É assim que o espírito tem verdadeiramente potência criadora no sentido que plasma organiza e mantém em vida, na forma desejada, tudo quanto existe nos planos a ele inferiores. Mas isto não significa que o mundo tenha uma existência somente enquanto seja uma pura criação subjetiva do espírito individual. O mundo, já dissemos, tem uma existência objetiva, independente do sujeito pensante. Ora, como se conciliam essas opostas afirmações? O que existe é efeito do pensamento ou é independente dele? Mas sobre a Terra não há somente o pensamento humano. Ele pode dirigir a sua vida para algum fim, mas não todas as vidas, às quais outros pensamentos presidem. Eis o mundo objetivo, independente do homem. Não é o pensamento humano a única força diretriz do planeta. Dessa potência criadora, própria do espírito, pode-se, porém, deduzir quanto interfira num fenômeno a simples presença do observador, que, embora, esteja em posição neutra de pensamento, será sempre ativo, uma força capaz de influenciar o fenômeno. Terminando esta visão, podemos perguntar: chegará a ciência a nos dar do mundo uma concepção exaurida e demonstrada em todos os campos, tudo coordenando organicamente, o que sabemos e o que saberemos, em uma síntese universal? Certo que chegará, por isso urge compensar hoje o atual divergente trabalho racional de análise com um oposto convergente trabalho intuitivo de síntese. Atualmente não se pode fazer uma filosofia ou explicar uma religião sem conhecer a ciência. Hoje não se admite mais um pensador insciente de todos os ramos do saber humano; ele deve conhecê-los todos. Trata-se de descobrir as relações que façam desse esparso saber um todo orgânico. É necessária uma obra criadora de intuição que, sem representar nenhuma das particulares ideias tomadas em cada campo, revele e represente uma nova ideia coordenando todas, o que significa a criação de um novo organismo, de uma potência muito maior do que a dos componentes particulares somados em conjunto. Não são as fórmulas e os complicados processos da matemática que criam, mesmo na física. Eles somente demonstram. O que conta são as ideias fundamentais, filhas das intuições, de onde nascem depois as teorias. Na origem destas estão as ideias, e não as fórmulas. É unicamente em seguida que aquele pensamento deverá tomar a veste matemática de uma teoria quantitativa para fins de controle experimental. Assim como na história, temos o período clássico e o romântico, a guerra e a paz, a revolução e a reconstrução; na biologia, o macho e a fêmea; na física, o núcleo e os elétrons, e na astronomia, o sol e os satélites, tudo sendo assim bipolar e avançando por opostos períodos de onda, também a ciência é bipolar e avança por clarões de intuição criadora antes e, depois, por paciente controle analítico racional. Desta forma, a elaboração racional da mais árida ciência presume como ponto de partida o seu oposto, e esse ponto de partida é uma fé. E o que é uma hipótese de trabalho, senão um ato de fé? Pietro Ubaldi Trata-se de antecipar, e sem fé não se antecipa. Poder-se-á dizer fantasia, intuição, mas estamos sempre em um campo super-racional, o único de onde pode partir a primeira centelha. Assim a ciência, que foi, mas não será inimiga da fé, nasceu e não poderia nascer senão de uma fé. Assim, se a observação não é fecundada e os dados da experiência não são coordenados pelo espírito, tudo permanecerá material desconexo, e a ciência nunca saberá concluir. Ela não é somente observação, mas também síntese das observações. Dessa maneira, como em qualquer parte, somente uma grande fé é igualmente criadora no campo da ciência. Ela é o impulso que sustém o homem em qualquer parte, mesmo na confusão das áridas fórmulas matemáticas. Desse modo, uma obra, ainda que tecnicamente imperfeita e parcialmente errada, pode ser frutífera e genética, porque sustentada por uma grande fé, de onde só pode nascer a intuição genial. Entende-se aí, no entanto, uma fé livre, sentida espontaneamente. O cientista, que deve indagar sem preconceitos, não pode estar ligado ―a priori‖ a absolutismos dogmáticos em nenhum campo. Uma fé orienta, impele, aguça os sentidos e gera a intuição, torna-se essencial em meio ao mar de particulares. Assim o matemático encontra e formula o novo teorema antes de estar em grau de demonstrá-lo. A ciência nasceu de uma fé numa ordem racional do universo. Quando o cientista se mantém no sólido terreno da experiência e da realidade dos fatos e os respeita, baseando-se neles como primeiro fundamento, sem o que não se faz ciência, somente a fé poderá, depois, dar-lhe asas aos pés para percorrer o áspero caminho. XVIII. O “CONTÍNUO” ESPAÇO-TEMPO E A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES Os conceitos desenvolvidos no capítulo precedente, observando-se as últimas conclusões da ciência, nos permitem colocá-las em relação com a concepção central de A Grande Síntese: o físio-dínamo-psiquismo. Havendo escrito esse volume em 1932 (começando a publicação em janeiro de 1933), não tinha nenhum conhecimento das mencionadas teorias científicas, que somente agora examino para fins de controle, confrontando as conclusões com aquela visão do universo. De certo, naquele tempo, elas eram ainda pouco divulgadas, e, para mim, não teria sido fácil conhecê-las. Hoje, a transformação da matéria em energia está realizada. Para a ciência, contudo, esse fenômeno permanece isolado, sem estar enquadrado no funcionamento orgânico do universo, portanto não está orientado no seu verdadeiro significado filosófico, que o situa no primeiro dos três graus da fase evolutiva do ser, à qual corresponde a fase involutiva inversa. Hoje, a ciência demonstrou a passagem físicodinâmica, mas poderá depois provar também as outras. A mais provável descoberta que a espera é do processo inverso, isto é, da transformação da energia em matéria. A ciência se colocará no caminho do processo criador, que representa a via inversa do nosso atual caminho evolutivo, isto é, o processo involutivo espírito-energia-matéria, cujo resultado é a criação da forma concreta. Haver aqui enquadrado filosoficamente o problema pode representar uma direção útil para orientar as pesquisas. Crer hoje que, amanhã, a ciência chegará a descobrir e usar o processo da assim chamada criação a partir do nada, não é mais absurdo do que era, como há poucos anos atrás, acreditar que se pudesse anular a matéria para transformá-la em energia. Esses processos já existem no universo e exprimem o progresso, lei de Deus. Os problemas do conhecimento não estão fechados senão por barreiras relativas e superáveis; o espírito humano não é construído para ficar eternamente excluído do mistério, mas para penetrá-lo e saber usá-lo para o triunfo do bem. Deus estende os braços ao nosso contínuo desejo de ascensão. Aqui não podemos nem repetir nem explicar as últimas teorias científicas no campo físico-matemático. Basta-nos pre- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO sumir o conhecimento atual, sobretudo em suas conclusões, aceitando como provados os resultados alcançados, com os seus cálculos e experiências, pelos grandes físicos e matemáticos do nosso tempo, e disto, que foi o seu ponto de chegada, fazer o nosso ponto de partida. Eis o que lemos, por exemplo, em James Jean, em ―The Mysterious Universe‖ (1948); ―(...) a matéria sólida se volatiza em radiação (...) Matéria e radiação constituem duas formas de onda, e uma pode mudar-se na outra (...) Estamos bem perto da verdade, se da matéria e da radiação fazemos ideia como de duas espécies de ondas, uma que gira descrevendo círculos, e outra que segue em linha reta (...) Assim a matéria não seria senão uma espécie de radiação congelada. A tendência da física moderna é resolver todo o universo material em ondas e nada mais que ondas. Essas ondas são de duas espécies: ondas, por assim dizer, prisioneiras, que denominamos matéria, e ondas livres, que denominamos radiação ou luz‖. Recordemos agora somente poucas linhas de A Grande Síntese, reenviando para esse volume o leitor que quiser aprofundar o argumento: ―Para compreender bem a transmutação de matéria nas formas dinâmicas, é necessário ter bem presente a sua natureza cinética (...). A matéria é pura energia. Na sua íntima estrutura atômica, é um edifício de forças (...) A evolução é a exteriorização de um movimento que, por involução, concentra-se e, por evolução, expande-se (...) A espiral, portanto o sistema atômico, continua a se abrir até ao ponto em que os elétrons não voltam mais a girar como satélites em torno do núcleo e, quais cometas, lançam-se nos espaços com trajetórias independentes (...) (Cap. 46). Os elétrons lançados para fora do sistema planetário atômico, em desfazimento devido à abertura da espiral e ruptura do equilíbrio atrativo-repulsivo do sistema, conservam em sua nova trajetória ondulatória a recordação do movimento circular de origem (...) (Cap. 48). As infinitas possibilidades concentradas num anterior processo involutivo se manifestam neste inverso e compensador movimento centrífugo evolutivo (...) Na profundeza está o movimento; quando ele muda de trajetória, então, externamente à vossa percepção, corresponde-lhe uma mudança de forma (Cap. 52). (...) as órbitas atômicas dos elétrons girando em volta do núcleo e abrindo-se para gerar a energia pela expulsão de elétrons (...) (Cap. 53) ‖. Estamos aqui, sem dúvida, entrando na técnica do processo criador, mas, para poder trabalhar mais profundamente nele, é necessário saber em que direção ele se realiza. A hodierna desintegração atômica se dá em sentido evolutivo, que é a nossa fase de existência, oposta à precedente fase da assim dita criação, que representa o inverso processo involutivo. Mas, aqui, a ciência passa para a filosofia, e da primeira não podemos pretender conclusões tão vastas. Está, ao contrário, de pleno acordo com a ciência de hoje A Grande Síntese, quando afirmava que ―ainda quando decompuserdes a matéria naquilo que vos parecer serem os últimos elementos, nunca vos encontrareis em face de uma partícula sólida, compacta, indivisível (...), nunca tendes aí um corpo, no sentido comum (...), assim, na substância, não existe matéria no sentido em que a compreendeis; apenas há movimento (...) (Cap. 46)‖. Tínhamos já visto que, pela ciência, o elétron é concebido como um conjunto de ondas, pura concentração de energia ondulatória, localizável somente por diferença de frequência diante do ambiente. Para a ciência mais recente, todo o problema da realidade se refere a formas de energia, e esta é concebida como uma abstração matemática: ―a constante de integração de uma equação diferencial‖. Eis que a ciência, por fim, não nos deixa senão um conceito absolutamente abstrato, alguma coisa que é mais pensamento que matéria ou energia. ◘ ◘ ◘ Observemos agora o que nos diz a ciência quanto às dimensões do espaço-tempo, comparando com o que diz A Grande 73 Síntese sobre o mesmo assunto. O último resultado, pela teoria da relatividade de Einstein, é a concepção de um espaço quadridimensional, em que as três dimensões do espaço estão soldadas com uma dimensão temporal. Dessa forma o universo é concebido como tendo uma estrutura quadridimensional, que é definida com o termo novo de ―contínuo‖. Este conceito substitui hoje o anterior de éter, consistindo num espaço quadridimensional em que as três dimensões do espaço são conexas e fundidas no tempo, que age como quarta dimensão. Em outros termos, esse ―contínuo‖ exprime uma realidade em que as três dimensões do espaço e a quarta do tempo entram como fatores absolutamente iguais na manifestação das leis cósmicas. Até agora, a experiência vem demonstrando que o universo funciona justamente nesse sentido e que esse é o seu sistema de medida, tendendo a provar que as leis naturais não isolam o tempo do espaço, o que confirma a referida teoria. Concebendo os fenômenos em relação a esse ―contínuo‖ quadridimensional, muitos deles, que não eram antes enfrentados nem resolvidos, vieram a ser explicados. Assim não é mais absurdo que haja dois diferentes valores para as quantidades de energia em uma dada região do espaço, como não o é que existam dois tempos diferentes no espaço. Hoje, no ―contínuo‖ espaço-tempo, um raio de luz não é mais representado pela propagação de algo concreto e objetivo através do espaço, separadamente do tempo, como se fez até agora, mas sim concebido como um fenômeno que se verifica num ―continuo‖ quadridimensional, em que espaço e tempo não se podem separar. Então o tempo aparece como um elemento que tem a função de manter unidos os outros, isto é, seria a dimensão que liga conjuntamente todas as outras dimensões do espaço tridimensional. Assim, os princípios de Einstein explicam fenômenos que a famosa lei da gravitação de Newton não havia sequer imaginado, nem podia resolver. Às próprias afirmações de Newton se deve dar hoje uma interpretação diversa. O efeito gravitacional de uma massa não é, como pensou Newton, produzir uma ―força‖, mas sim provocar uma distorção do ―contínuo‖ quadridimensional no seu interior. Um planeta que se move não é desviado então do seu movimento retilíneo uniforme pelo ímpeto de uma força, e sim pela curvatura de um ―contínuo‖. É preciso imaginar antes um ―contínuo‖ a quatro dimensões não distorcido, e depois considerar as suas distorções. Por outro lado, o efeito da distorção combinada do ―contínuo‖ quadridimensional, produzida por toda a matéria do universo, é fazer que o universo se torne a fechar sobre si mesmo, de modo que o espaço se torna ―finito‖. Mas, antes de nos envolvermos na concepção do espaço-curvo, resolvamos o problema do ―contínuo‖ quadridimensional. Partindo dessa conclusão matemática de Einstein, continuemo-la no plano filosófico, enquadrando-a numa concepção universal, do que não se ocupa aquela teoria. Façamos isto em relação aos vários sistemas tridimensionais do nosso universo, como foram expostos em 1932, em A Grande Síntese, quando quem escreve os havia sentido somente por intuição, sem ainda haver aprofundado racionalmente esses problemas, nem conhecido a teoria de Einstein, se bem que percebesse o conhecimento dela. Em A Grande Síntese se disse: ―Não tendes um tempo e um espaço em sentido absoluto, isto é, existentes por si mesmos (...) mas eles são relativos (...) Assim, cada fenômeno tem um seu tempo próprio (...) invertem-se a física e a mecânica clássica newtoniana. (...) (Cap. 34). Na realidade não encontrais senão um tempo e um espaço relativos, cujo valor não ultrapassa o sistema a que dizem respeito (...) Se o vosso universo é finito como vórtice sideral, o sistema dos universos e o sistema de sistemas de universos é infinito (...) (Cap. 35)‖. Como melhor veremos mais adiante, aqui damos à teoria da relatividade um valor universal, tanto para o tempo como para o espaço. Assim como tudo, no espaço, movimenta-se em rela- 74 PROBLEMAS DO FUTURO ção a um ponto de referência, todo fenômeno ou ser também se move em relação a um ponto de referência no tempo. Resumamos agora como é concebida em A Grande Síntese (Cap. 38) a sucessão das dimensões. Em nosso universotrifásico (matéria, energia, espírito), a matéria se nos apresenta como volume, isto é, na sua terceira dimensão de espaço (linha, superfície, volume) completa. A matéria representa a evolução do ponto à linha, à superfície, ao volume. Mas, se nela o desenvolvimento da dimensão espacial é completo, o conteúdo da dimensão sucessiva e evolutivamente contígua, que denominamos ―conceptual‖, é nulo, isto é, equivale àquilo que no espaço é o ponto. Aqui nasce segundo Einstein a quarta dimensão, o tempo, concebido porém como o primeiro termo de um novo sistema tridimensional, porque este é o esquema do universo. Se o tempo é assim a dimensão linear deste segundo sistema tridimensional, que evolutivamente sucede ao sistema tridimensional espacial, então a matéria, com o seu espaço a três dimensões, representa, diante desse novo sistema dito ―conceptual‖, o ponto, um puro germe. Dada a estrutura cinética da mais profunda realidade, é sempre através de um novo movimento, em uma nova direção, que se passa para a dimensão superior. A nova direção do novo movimento do volume, ou espaço completo, é justamente hiperespacial, dando-se no tempo. Por essa razão Einstein pôde ligar espaço e tempo. Ora o tempo é sempre linear e nada mais que linear. Não pode ser de outro modo. Ele exprime exatamente a natureza e comportamento da linha, onde o ponto a que, na nova dimensão, é reduzido o espaço já completo até à sua terceira dimensão, move-se e, com o seu movimento, forma a primeira dimensão do novo sistema, a linha. É natural que este evolua e se complete de forma análoga ao primeiro, isto é, com um movimento ou vir-a-ser em uma nova direção, progredindo por três etapas sucessivas, paralelas e semelhantes àquelas através das quais se maturou até à sua plenitude o precedente sistema tridimensional: linha, superfície, volume. Porém, nesta fase, todo o transformismo fenomênico move-se nessa dimensão linear-tempo, a primeira do sistema, e dela não pode sair. O volume é completo, mas as unidades espaciais da matéria não podem mover-se na nova dimensão tempo senão um instante depois do outro. Desta sorte nasce o vir-a-ser, o transformismo fenomênico. Assim, da matéria completa, em que se conclui o ciclo involutivo criador, inicia-se o inverso ciclo evolutivo, que retorna ao espírito, de onde tudo veio. Essa dimensão tempo começa a aparecer na evolução estequiogenética, em que a matéria se transforma e se revela plenamente no fim da evolução física, lá onde esta alcança os corpos radioativos, quando a matéria começa a se transformar em energia e nasce o universo dinâmico. Gerado assim o tempo, ele permanece como dimensão da energia, tal como o espaço representa a dimensão própria da matéria (volume). Passemos à dimensão sucessiva, a segunda do sistema conceptual, correspondente à superfície do sistema espacial precedente. Todo fenômeno vive somente o seu tornar-se, toda transmissão dinâmica vive o seu próprio curso no ―contínuo‖ espaço-tempo. Para evoluir na dimensão sucessiva, é necessário acrescentar um movimento em uma nova direção, não mais fechada na mesma linha, e sim colateral, isto é, alcançando a contemporaneidade de mais um vir-a-ser. Somente um fenômeno pode dar-nos essa sensação: a consciência. Somente ela, que corresponde no sistema conceptual à superfície do sistema espacial, pode dominar mais de um vir-a-ser (linhas), isto é, o desenvolvimento de mais movimentos no tempo contemporaneamente. A consciência é a segunda dimensão conceptual. Se a mente de Einstein pôde conceber a teoria da relatividade, foi porque ela, justamente como consciência (superfície), podia melhor confrontar os diferentes vir-a-ser fenomênicos, dominando como superfície todas as linhas que podem passar Pietro Ubaldi ali, isto é, podendo observar todos os fenômenos. A sua teoria nasceu exatamente desses confrontos, originados do fato de ser possível contemplar, o que somente uma dimensão superior pode permitir, os vários movimentos lineares na dimensãotempo, fenômenos já completos no sistema tridimensional do espaço. Abrangeu assim não o movimento de um só caso, mas os movimentos reciprocamente relacionados de mais casos, isto é, a contemporaneidade de diversos vir-a-ser, domínio que somente a consciência pode alcançar, como somente a superfície o pode fazer diante da linha. Qual será agora a sucessiva dimensão conceptual correspondente ao volume do sistema-espaço? A consciência comum é racional, analítica, finita, relativa. Ela representa somente uma primeira fase da superação do devenir linear, com a contemporaneidade de diferentes vir-a-ser, mas não além. É filha da observação, isto é, aderente aos fatos, porque não está ainda fora do plano onde se movem as várias linhas. Assim, para alcançar o princípio geral diretivo, ela deve percorrer infinitos casos particulares, não atingindo senão sínteses parciais, e somente por cansativo processo de tentativas. Ela se ressente de sua posição periférica, ligada ao concreto. Seja indutivamente, seja dedutivamente, ela concebe sempre por sucessão, no vir-aser e no tempo. Ela é superfície, isto é, uma impotência diante do volume, a menos que se verifique um movimento em uma nova direção. Eis como isto acontece. A consciência humana não é linear, isto é, limitada a si mesma ou a um só fenômeno, mas pode mover-se em todas as linhas da superfície. Para formar o volume, é necessário agora elevar a perpendicular sobre o plano, e isto é representado pela superconsciência ou intuição, uma faculdade que hoje poucos possuem, mas para a qual, amanhã, a evolução biológica levará o homem. Enquanto a consciência racional comum, somente por multiplicação de análises, pode alcançar alguma síntese particular, a intuição, como terceira dimensão conceptual, volumétrica, concebe naturalmente não mais por análises, mas por síntese, e se move, como num elemento seu próprio, no absoluto e no infinito. A sua posição no universo é mais central, mais distante do concreto e mais perto do abstrato, dos princípios diretivos, do absoluto. Ela não percebe mais analiticamente, em sucessão, por concatenação racional, como nos métodos indutivo ou dedutivo, ligado ao tornar-se do tempo, mas concebe intuitivamente, instantaneamente, fora do tempo, por síntese. A razão permanece, assim, como uma impotência diante dos clarões conceptuais da visão. Então não há mais a nossa ciência de relações, e sim uma ciência de substância, a única que poderá fazer-nos compreender a profunda e última realidade das coisas, o absoluto, inatingível de outro modo com a razão. Assim também o segundo sistema tridimensional se completa. Aqui começa para o homem atual o inconcebível, pelo que, para ele, tudo desaparece em dimensões superiores. Dessa maneira, na matéria, que já é tridimensional espacialmente, o sistema tridimensional conceptual não tem dimensão (ponto); depois, no campo do transformismo fenomênico (despertar dinâmico), ele alcança a primeira dimensão (linha); a seguir, no campo da vida (consciência), atinge a segunda dimensão (superfície); e finalmente, no campo abstrato do espírito (intuição), realiza a sua terceira dimensão (volume). Assim como a superfície absorve a linha e, no tornar-se, a consciência absorve o tempo e o domina, a intuição também domina a análise e a razão com os seus lampejos sintéticos. Vemos a ciência se tornar dessa forma sempre mais abstrata, o que deve acontecer caso queira avizinhar-se sempre mais da realidade profunda da essência das coisas. Somente assim enquadrado é possível compreender o significado e o porte filosófico das conclusões matemáticas de Einstein. Observemos agora quais desenvolvimentos filosóficos se podem dar à teoria da relatividade. Vimos há pouco que o es- Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO paço é a dimensão da matéria. Assim como esta, por desintegração atômica, pode modificar-se, gerando a energia (implícita em todo transformismo fenomênico), a sua dimensão-espaço também pode tornar-se (em direção evolutiva) o elemento genético (ponto – não dimensão) do tempo (linha – primeira dimensão conceptual). Daí a logicidade da teoria de Einstein, que viu espaço e tempo estreitamente conexos, em correspondência com uma realidade estrutural trifásica do universo, fornecendo hoje explicação para fenômenos e problemas antes sem solução. Mas isto não basta. Talvez, com o desenvolvimento das matemáticas, um ulterior progresso ainda venha a ser dado pela introdução nas suas equações também da dimensão-consciência. Isto poderá parecer uma linguagem estranha, pois que nos avizinhamos ainda mais do inconcebível, e faltam aqui as palavras para exprimir esses conceitos. Trata-se de continuar o caminho já empreendido pelas matemáticas, caminho de progressivas abstrações, sempre menos suscetíveis de representação concreta. Mas é lógico que esta, quanto mais se avança para o real, tanto menos seja possível. É provável que, para explicar outros fenômenos e resolver outros problemas, alcançando uma compreensão mais profunda do universo na sua íntima realidade, se fará necessário chegar à concepção de um ―contínuo‖ a cinco dimensões, em que fique fundida também a dimensão que hoje, por falta de outros termos, chamamos consciência, formando não somente um ―contínuo‖ espaço-tempo, mas um ―contínuo‖ espaço-tempo-consciência (3a, 4a e 5a dimensões). Trata-se de introduzir em nossas equações um novo elemento, exprimindo a dimensão consciência, fazendo-o entrar no conceito de ―contínuo‖, de modo a conceber as relações que ligam não somente espaço e tempo, mas também estes à consciência. Trata-se, em suma, de continuar a teoria de Einstein em mais altas dimensões, dilatar ainda mais o conceito de relatividade, chegando assim a uma mais vasta relatividade universal, que, desse modo, viria a ser por ora estendida da 3a e 4a até à 5a dimensão. É lógico, de mais a mais, que, na estrutura do nosso universo, situado para nós no relativo, tudo deva aparecer na forma de relatividade, isto é, em função de um ponto de referência, do qual tudo depende, e isto em todo campo, até no moral. Poderá parecer insensata essa continuação dos conceitos das matemáticas, levando-os ao contato com elementos que parecem de natureza diversa. Entretanto, num universo unitário, todos os fenômenos, também os aparentemente distanciadíssimos, devem ser conexos e podem ser concebidos como contíguos. Sendo intercomunicantes, eles são ligados em conjunto por esse monismo que tudo rege compacto, tudo reconduzindo, em todo ponto e instante, à unidade. Esta é a lógica do esquema segundo o qual é constituído o nosso universo. E nenhuma coisa, nem mesmo as matemáticas que vão indagando o absoluto, pode fugir dessa lógica. De modo que, desenvolvendo ainda os precedentes conceitos, pode-se concluir que o ―contínuo‖ do absoluto, coligando todos os fenômenos do universo, de toda ordem, é um ―contínuo‖ de infinitas dimensões e, para um determinado universo, um ―contínuo‖ que compreende todas as suas dimensões. Dele deriva um conceito de relatividade em que todo valor, de qualquer natureza, depende, para sua avaliação e determinação, do ponto de referência, isto é, do plano de existência ou grau evolutivo de onde a observação é feita. Eis como, logicamente, se pode levar a teoria da relatividade até ao campo espiritual e moral e também aqui falar de valores relativos, determináveis somente em função do próprio ponto de referência. Como se vê, hoje o mundo se prepara para um modo todo novo de conceber o universo. Modo muito estranho para a nossa velha forma mental, no entanto só ele nos permitirá resolver alguns problemas que, de outra forma, permanecem insolúveis. Na matemática, é inaudita a concepção que se deva introduzir nas suas equações, como elemento de cálculo, também o fator 75 espiritual, que implica a necessidade de avaliar não só os sentidos mas ainda a psique e a orientação conceptual do matemático. Em outros termos, o próprio matemático deve colocar-se e entrar como elemento determinante nas suas equações. É verdade que a matemática não é uma opinião, o que significa que ela é a consequência de uma racionalidade absoluta, e não relativa à mente que raciocina. Todavia, quanto mais se sabe matemática, tanto mais se faz filosofia, portanto, quanto mais se sabe, tanto mais ela vem a depender de toda a orientação intelectual do matemático que a utiliza. O novo pensador de hoje, pela sua necessidade de caminhar, deve fatalmente encontrar-se com o desmoronamento das velhas formas mentais, sendo o momento psicológico atual no progresso do pensamento humano particularmente crítico. Herdamos, por exemplo, por concepção atávica, representações de espaço e tempo que hoje, como se começa a perceber, não mais correspondem à realidade. Esses conceitos, assim como a geometria euclidiana, foram uma grande conquista do mundo grego, e nós os fizemos nossos com um sentido de absoluto. Agora se percebe que eles não foram senão uma interpretação, não falsa, mas incompleta; não absoluta, mas relativa; não definitiva, mas transitória; uma interpretação que pode ser superada. A nova visão caminha em um mundo sempre mais abstrato. Se é lógico que assim seja, já que a ascensão vai da matéria ao espírito, disto resulta todavia, para a nossa forma mental habitual, uma crescente dificuldade de visualização conceptual. Em outros termos, já não nos é possível transportar as mais profundas realidades alcançadas para o mundo das nossas representações sensórias comuns, de modo que estas realidades, das quais hoje nos acercamos, permanecem para nós inimagináveis, pelo menos até que aprendamos melhor a senti-las. Isto também ocorre agora com o conceito de espaço finito que desenvolvemos. Ele nos foge porque, além do espaço, não vemos senão espaço e, com os conceitos habituais, um nada do espaço não o sabemos conceber. Para compreender o espaço-curvo e finito, é necessário mudar o nosso modo de imaginar o espaço, como veremos, concebendo-o numa forma curva, pelo que, com o contínuo retorno sobre si mesmo, pode-se conciliar o que até hoje ficou inconciliável: o finito e o infinito. Hoje, na ascensão para o abstrato, a física se torna sempre mais matemática, e a matemática, filosofia. Se, no último vértice da racionalidade, vemos aparecer, também na matemática, o irracional super-racional, é evidente que andamos precisamente para aquela 3 a dimensão conceptual volumétrica, denominada intuição, que se move no infinito, como em seu elemento natural. Somente ela poderá dar a possibilidade da visualização conceptual do abstrato que está evolutivamente mais no alto e que, hoje, visto da inferior dimensão da consciência normal, representa um inimaginável. Na grande aventura do espírito, explorador das zonas virgens da mais alta evolução, a racionalidade representa um método velho, estabilizado e seguro, porque experimentado. Mas ele é limitado e, diante de alguns novos problemas, é impotente. A experiência intuitiva é um processo novo, não comprovado, não estabilizado, com todos os perigos que dele derivam. Ele é ainda inseguro porque está em formação, no entanto lhe pertence o porvir, porque será o único meio para avançar, com a solução de problemas novos, explorando o inexplorado. O homem inicia hoje um grande colóquio com esse universo que, em qualquer nível, sempre mais se demonstra pensante. Não pode haver verdadeira compreensão senão imergindo-se na profunda realidade da coisa que se examina, senão estabelecendo uma sintonia no espírito, entre o eu pensante humano e o eu pensante que está em todo ser ou fenômeno. Agora, essa forma de compreensão, não por observação, como no velho método exterior racional (superfície), mas por sinto- 76 PROBLEMAS DO FUTURO nização, como com o novo método da intuição (volume), é a única que nos poderá abrir as portas do infinito e o acesso à solução de novos mistérios. Não se poderá chegar até lá senão por maturação evolutiva daquele elemento que dissemos ser preciso introduzir nas equações da nova matemática, dado pela natureza psíquica do observador. Em outros termos, a solução de tantos novos problemas não será alcançável senão por maturação biológica do instrumento humano. Hoje não é mais a inteligência humana emergente no universo que o observa de alto a baixo, mas é ela mesma que começa a se sentir pequena, cada vez mais, diante de um universo que, sempre mais, demonstra saber pensar também sem ela e mais profundamente do que ela. Quem verdadeiramente sabe não é o homem, mas aquele oceano de pensamento de onde o homem capta o que lhe é possível. O pensamento é fenômeno extrahumano, cósmico, é um pensamento universal, em que o humano também se acha contido. De modo que uma descoberta ou a solução de um enigma cientifico, que, de fato, verificamos operar-se contemporaneamente em diversas mentes que não se conhecem, é mais um problema de captação que de investigação racional, e o maior cientista será aquele cuja mente sabe oscilar na faixa da frequência de onda mais elevada. Cremos, ao havê-lo repetido sob todos pontos de vista, ter tornado claro o conceito fundamental em que se baseiam estes escritos. A crise moderna não está situada fora do homem, de modo que possa ser solucionada especulativamente, mas encontra-se no homem e não é resolúvel senão biologicamente. Não se trata hoje de crise de um sistema em favor de outro, mas de crise de evolução, através do que se deve mudar a estrutura cerebral do homem e, com isto, a sua natureza espiritual e a sua forma mental. Trata-se de uma crise de transposição de limites, de explosão para fora do encarceramento das velhas formas, que não podem mais ser suportadas. A crise é dada pela maceração do ser empenhado na metamorfose por nós já observada, que deve conduzi-lo para formas de vida superiores. A autos superação, que está no instinto humano, não deve ser entendida como uma multiplicação do próprio eu, como ele hoje é e como hoje se crê. Essa concepção hodierna é completamente errada. Na concepção materialista, Lúcifer subverteu o mundo. É preciso subverter Lúcifer, isto é, inverter o materialismo cego, caótico e negativo de hoje, para o espiritualismo iluminado, harmonioso e positivo de amanhã. O homem, hoje, deve compreender que o universo não é acaso como ele acredita, um caos do qual ele deve tornar-se senhor, mas é lei, a antítese do acaso, uma lei que já sabe tudo e tudo faz, diante da qual não há comando, mas compreensão e aplicação. Conquanto nos escapem as equações, é certo que, também em nosso contingente, vivemos em condições matemáticas. O universal ressoar analógico em todo campo nos fala da unidade dos esquemas de funcionamento. A medida, recorrente em todas as periodicidades, exprime um ritmo de natureza matemática. Há uma lei em todo campo; é isto que o homem deve compreender. Se ficarmos fora da Lei, o fenômeno não mais se verifica. Mas sabemos que, se seguirmos a Lei, o fenômeno deve verificar-se (por exemplo, a síntese química). Nessa lei, o homem bem pouco pode mandar, conquistar ou impor, como hoje pretenderia. A sua melhor posição é, ao contrário, obedecer depois de haver compreendido. O universo não é matéria, como ele julga que seja, mas sim um pensamento que tudo rege e de que tudo depende. O pensamento do homem não é senão um momento infinitesimal deste todo pensante. Não resta a este outra coisa senão enquadrar-se nesse pensamento, muito maior do que ele, harmonizar-se com ele e realizá-lo. A grande moral da vida, posta aqui como alicerce destes escritos, é que a nova posição do homem civilizado dos futuros milênios não pode ser senão a de inteligente colaborador de Deus na obra da Sua criação. Pietro Ubaldi XIX. O ESPAÇO-CURVO E A SUA EXPANSÀO Uma outra concepção da ciência moderna é a do espaçocurvo, que assinalamos acima, problema que melhor poderemos enfrentar agora que, filosoficamente, havemos enquadrado numa concepção universal o conceito de ―contínuo‖ espaço-tempo e observado alguns dos possíveis desenvolvimentos filosóficos da teoria da relatividade. Estabelecida, como acima, a evolução da matéria em energia e depois vida e consciência; estabelecida também a correspondente evolução das dimensões, cada uma própria para cada fase, a dimensão-espaço permanece limitada à fase matéria, como sua propriedade e unidade de medida. O espaço existe enquanto ali nasce matéria, que estabelece os pontos de referência. Sem matéria e, portanto, sem esses pontos, um espaço vazio e infinito se confunde com o nada, é, como realidade objetiva, um não-existir. E podemos dizer que a energia se transmite no espaço e a correspondente dimensãotempo existe enquanto há matéria, isto é, enquanto as concentrações estáveis de energia que ela representa nos podem dar pontos de referência. Se o que forma o espaço é a involução da dimensão-tempo na sua dimensão inferior, por via do congelamento de radiações ou seu aprisionamento cinético na forma de matéria, o que forma o tempo é, ao contrário, a evolução da dimensão-espaço na sua dimensão superior, pelo livramento cinético da forma matéria das radiações aí concentradas e fixadas, pelo que, superada a fase-matéria na de energia, o espaço, como espaço, não existe mais. Uma quantidade de radiações navegando sempre num espaço sem matéria não nos pode dar um ponto de referência, e, sem ponto de referência, o espaço nos escapa no indeterminável e se anula. Não haveria mais ponto de partida ou de chegada. É o espaço que funciona como ponto ao longo da linha tempo, que o torna mensurável, onde a simples radiação não daria senão um indeterminável tempo sem medida, eternamente fluente. É sempre função da dimensão inferior marcar com o seu limite a dimensão superior, dando-lhe com isto medida. A dimensão inferior, sendo mais involuída e, por isto, periférica, é muito mais fechada no separatismo do relativo, que tanto mais aumenta quanto mais nos distanciamos da central unidade do todo, o absoluto. O espaço não é um elemento indestrutível e, assim como o tempo em relação à energia, pode ter fim com a forma-matéria, da qual ele é a medida. Como matéria e energia são modos de ser relativos, também relativas são as suas dimensões de espaço e tempo. E, com a transformação por evolução ou involução daquelas formas do pensamento de Deus, que denominamos matéria e energia, também as sua dimensões desaparecem. Conceitos estranhos estes, que fogem ao concebível normal, para os quais não encontramos em nossa consciência meios de representação fornecidos pela experiência passada. E procuramos expô-los da melhor maneira, como no-lo permitem as palavras e as ideias hoje normalmente disponíveis. É bem difícil reduzir o conhecimento das últimas realidades à nossa dimensão conceptual: consciência. Mas, decerto, somente assim é possível compreender um pouco mais esse estranho espaço que se pode contrair ou expandir conforme se forma ou se desagrega a matéria da qual ele é função. Em suma, por represamento cinético, não somente nasce a matéria mas também a dimensão que lhe é relativa, o espaço, pois que são os centros desse represamento que fornecem os núcleos de matéria, isto é, os necessários pontos de referência. Em outros termos, o fenômeno do represamento cinético na forma matéria e o da libertação cinética em forma de energia, fenômenos verificados, implicam também os da formação e extinção do espaço. É assim que o espaço, enquanto é função da matéria, pode gradativamente se formar por centralização de radiações ou se dissolver por descentralização dinâmica e, portanto, pode contrair-se ou expandir-se. Isto é difícil de imaginar porque a realidade atual Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO não oferece tal fenômeno às nossas vistas, isto é, ele se encontra fora da nossa experiência e concepção comum, além do que jamais encontramos matéria ou energia isoladas, mas, assim como as suas respectivas dimensões de espaço e tempo, sempre fundidas em conjunto. Estamos situados com o nosso universo em determinado plano evolutivo e não podemos sair dele nem física nem conceptualmente. Por espaço entendemos aqui a dimensão da matéria e a medida desta e do que está em relação com ela, em sentido objetivo, independente da consciência humana. Dado que esta pode traduzi-lo na sua própria dimensão, numa abstração subjetiva independente da realidade, o espaço pode existir também como ideia em nossa mente, mas então não temos o espaço, e sim o conceito de espaço, isto é, um espaço abstrato, na realidade um vácuo, porque de si é um não-espaço e uma não-matéria, que, porém, é um germe de onde pode nascer, por involução criadora das superiores dimensões conceptuais, a matéria e, pois, o espaço, sua dimensão. Tudo pode nascer do que está nas dimensões superiores, nas inferiores, em direção involutiva, à guisa de condensação do pensamento, e tudo pode ser restituído, evolutivamente, das inferiores às superiores, à guisa de expansão. Esta é a técnica criadora pela qual todo o concreto pode se desenvolver da potência que está na ideia, para depois a ela retornar. No sentido objetivo, um espaço vazio não teria dimensões nem medida, constituindo um indefinido e um indefinível, em que nada se pode distinguir enquanto aí não se gere alguma coisa. Um espaço vazio é somente uma possibilidade em potência, em que nada está ainda realizado. Aí, o ser ainda não tomou forma no plano material, mas é somente um germe no regaço da ideia geradora. O espaço real, existente em sentido objetivo, é dado pela matéria e nasce com ela por concentração dinâmica. Disto decorre que, quanto mais concentração de matéria se gera, tanto mais o espaço se centraliza e se acentua, isto é, se torna restrito. Eis como ele se pode contrair ou expandir, e isto conforme a matéria, que forma naquele espaço sua dimensão, se concentra ou se rarefaz, condensando-se (matéria) em determinados pontos ou se expandindo (energia) ao precipitar-se distante deles. A expansão do sistema cinético da substância representa a nossa fase evolutiva do universo (expansões das espirais galácticas, arrefecimento por irradiação, formações planetárias, desintegração atômica, geração da energia e desenvolvimento do espírito). A concentração do sistema cinético da substância representa a precedente fase involutiva (gênese dinâmico-física, proveniente da primeira potência criadora do espírito). No primeiro caso, temos concentração de matéria e progressiva contração do espaço; no segundo, temos expansão da matéria e progressiva dilatação do espaço. É assim que a concentração em forma de matéria faz diminuir as dimensões do universo, dando-se o contrário com a expansão. Deste modo, quanto mais matéria se formou no universo, tanto mais o espaço se há encurvado, isto é, tanto mais rapidamente ele se fecha em si mesmo e menores se tornam as suas dimensões espaciais. Isto se dá na fase involutiva ou criadora, quando o universo vai para o polo ou centro-matéria, enquanto na sua fase inversa evolutiva ou expansionista (a nossa), ele vai para o polo oposto ou centro-espírito, ao qual tudo o que dele (Deus) foi gerado a ele tende voltar. Já dissemos que, pelo dualismo universal, tudo é bipolar e também é cíclico. As dimensões do universo físico dependem assim da quantidade de condensação que nele se dá em forma de matéria, e o espaço relativo está em função da sua curvatura, dada por essa centralização cinética. Daqui o conceito de espaço-curvo e contrátil, único conceito que nos pode explicar o seu aparecimento e desaparecimento como dimensões de um sistema cinético que se centraliza ou se expande. Procuremos esclarecer ainda melhor esses conceitos complexos. O nosso concebível dificilmente pode separar do todo a ideia de tempo da de espaço e vice-versa. Procuremos isolar em 77 nossa concepção um mundo dinâmico sem condensações físicas, feito de radiações, de energia vagando somente ao longo da linha do tempo, à espera de condensação e represamento cinético, em forma de matéria ainda não nascida. Vimos que o tempo é linear. Ora, o espaço começa a aparecer logo que se inicia a curvatura daquela dimensão linear, ou, em outros termos, o estado cinético linear da energia radiante começa a encurvar-se sobre si mesmo, andando para aquela forma diversa do ser, que é dada pela prisão cinética que constitui a matéria. De modo que a gênese do espaço poder-se-ia conceber toda como um processo de curvatura do tempo. E a descida da terceira dimensão (volume) à segunda (superfície), à primeira (linha), até à anulação do sistema do espaço tridimensional no ponto, poderse-ia conceber como um processo de curvatura. De forma semelhante, por outro lado, poder-se-ia imaginar a gênese do tempo como devida a uma curvatura da dimensão-consciência, e esta, a uma curvatura da dimensão-superconsciência. De modo que o processo involutivo criador seria devido a esse fenômeno de curvatura. Certo é que faltam as palavras, porque os conceitos comuns não são mais suficientes. Curvatura é um termo espacial, como também o são os conceitos de condensação, concentração e aprisionamento, e são estas as ideias que o nosso relativo nos pode dar com as imagens tomadas em nosso mundo relativo. Podemos, porém, compreender que, se tivéssemos capacidade de dar a essas representações um valor universal, válido em todos os planos de existência, poderíamos chegar muito mais perto daquela recôndita realidade que, em verdade, nos escapa completamente, porque os meios comuns de concepção são absolutamente inadequados para penetrá-la. O processo inverso, nosso período atual, evolutivo, pode ser concebido invertendo-se as posições precedentes, isto é, distendendo-se a curvatura com a ascensão de fase em fase e de dimensão em dimensão, ao longo da escala, e isto da primeira à segunda e terceira dimensão do espaço, à primeira, segunda e terceira dimensão conceptual. Agora, o escopo destas nossas observações não é mais tornar concebível o inconcebível, mas sim ampliar a compreensão do problema da curvatura do espaço, da sua contração e expansão, enquadrando o fenômeno no esquema do funcionamento universal, como sempre fazemos em nosso sistema. Deste modo, o conceito de espaço-curvo fica mais lógico; harmonizando-se no todo, ele resulta racionalmente mais provável e compreensível. Estendemos assim o conceito de curvatura além do seu comum valor espacial, dando-lhe um significado universal, como já fizemos com os conceitos de ―contínuo‖ quadridimensional e de relatividade. Neste sentido universal, o que, no plano matéria, significa espaço curvo, no plano conceptual, significa ciclo, e ao contrário. Esse princípio que denominamos, com termos espaciais, de curvatura, mas que tem um valor universal, bem mais que espacial, nos reporta ao princípio geral do circuito ou ciclo, que reencontramos em qualquer caso, reproduzido a cada passo, porque ele está no esquema unitário do todo. Reencontramos o princípio da curvatura na trajetória típica que nos traça o desenvolvimento dos movimentos fenomênicos (cfr. A Grande Síntese). Mas, se a curvatura é um conceito universal, chegou agora o momento de perguntarmos se, na natureza, a reta existe de fato em sentido absoluto. Muito provavelmente ela não existe senão no relativo, no finito, no particular. Então devemos chegar à conclusão de que o infinito é curvo, isto é, não o temos senão com o retorno do finito sobre si mesmo. O infinito não é, pois, senão o ciclo, circuito do finito, em que o absoluto pode coincidir com o infinito retorno do relativo sobre si mesmo. Somente assim se concebe a compacta reunificação no uno por parte de um todo fragmentado no multíplice e particular da forma, enquanto o separatismo do relativo é conexo com um contínuo retorno a si mesmo. No finito em que vivemos, das massas gravitacionais às boas e ruins obras e pensamentos, tudo retorna sobre 78 PROBLEMAS DO FUTURO si mesmo, à origem. O próprio universo, nascido de Deus, retorna a Deus. Aí está o que, visto como síntese, é infinito e, visto como análise, é finito. O infinito e finito, absoluto e relativo, não são senão dois aspectos do mesmo todo uno, Deus. Eis que tudo permanece sempre uno, embora o uno se haja pulverizado do infinito no finito, do universal no particular. Certo é que assim, concebendo tudo segundo um esquema curvo, podemos compreender muito melhor o universo. O circunferência na superfície e a esfera no volume são de fato as únicas formas geométricas que podem conciliar em um mesmo princípio o infinito e o finito. Mas então, se tudo é curvo, podemos ainda nos perguntar como é que pudemos dizer que a gênese do espaço é dada pela curvatura do tempo, antes definido como linear, qual primeira dimensão na reta. Só agora podemos precisar melhor. Sendo tudo já curvo, por curvatura não podemos entender senão uma curvatura maior do que a precedente. E, então, devemos concluir que também o universo dinâmico, na dimensão-tempo, era curvo, fechado sobre si mesmo, retornando sobre si mesmo. Mas, então, ele era muito mais expandido, menos curvo que o universo físico, enquanto nele não se haviam ainda formado concentrações dinâmicas por represamento cinético. Naquele universo de energia, todo impulso, mesmo propagando-se ao infinito, dada a curvatura daquele sistema cinético, retornava ao ponto de partida, fechando o circuito assim num percurso infinito em espaço-curvo fechado. A passagem para o universo físico é dada, pois, não pela curvatura de uma reta, mas por aumento de curvatura de uma curva. Assim, o universo físico é dado por uma contração das vastíssimas trajetórias dinâmicas no fechado dos sistemas circulares atômicos, que continuam a representar o mesmo esquema, isto é, o universal princípio da curvatura, mas com uma intensidade muito maior. Mesmo nos aproximando do inconcebível, todas essas concordâncias falam claro. A disposição espiralada das galáxias, a estrutura esferoidal das estrelas-planetas, dos sistemas planetários e dos sistemas atômicos nos falam do princípio da curvatura. Segundo este, a criação não é senão uma progressiva curvatura, enquanto a atual inversa fase evolutiva é uma progressiva distensão daquela curvatura. Com esse princípio é possível compreender como o espaço possa ser finito e infinito ao mesmo tempo: finito porque, enquanto é curvo, permanece fechado em si mesmo, e infinito porque, enquanto é curvo, retorna sobre si mesmo sem qualquer fim. Assim, pode-se conceber o espaço finito e infinito ao mesmo tempo. Por essa via consegue-se atingir o conceito de infinito, não alcançável pela estrada comum, que nunca resolve, como no habitual contínuo sobrepujamento de um limite que, sem pausa, ressurge e, sem pausa, se supera. Mas também essa psicologia exprime o curvo, pelo qual o relativo percorre no finito um ciclo infinito, de que não pode sair porque ele o conduz sempre sobre si mesmo. Deste modo, chegamos ao conceito de espaço-curvo. Assim como, seguindo para o infinitamente pequeno, onde a observação macroscópica nos indicava uma física mecanicista, chegamos com a observação submicroscópica a uma física estatística e quântica, também agora, seguindo para o infinitamente grande, toda reta do nosso mundo finito, observada em dimensões ainda mais macroscópicas, torna-se uma curva. Em A Grande Síntese, Cap. LIII, é dito que na natureza qualquer reta é uma curva. Eis, pois, que, na gênese do plano físico, nos encontramos diante de um universo dinâmico muito expandido onde se acendem focos de condensação de energia em forma de matéria, que representa uma cinética igualmente fechada em si mesma, porém muito mais contraída, como a estrutura do átomo de Bohr mostra com evidência. O sistema cinético dinâmico curvo, passando da onda livre à represada num circuito muito mais restrito, não faz senão acentuar as suas características curvas. Assim, do amplíssimo espaço, o circuito vastíssimo da energia se há restringido no circuito da matéria, de espaço mui- Pietro Ubaldi to mais concentrado. Hoje que vivemos na fase oposta e complementar da criadora, isto é, na evolutiva, o nosso universo está na fase de expansão, em que tudo foge do centro e, paralelamente, o espaço se dilata. Esses conceitos de contração e dilatação do espaço não se podem alcançar senão admitindo o espaço-curvo. Observemos o que dele diz a ciência. Calcula-se que a velocidade de distanciamento dos universos galácticos chega aos 144 milhões de quilômetros por hora. Os astrônomos de Mount Wilson calcularam que, no seu conjunto, o nosso universo não contenha de matéria senão uma fração de grama expressa por uma unidade precedida de 29 zeros (10-29) e que o raio deste universo seja de 35 bilhões de anos-luz. Um raio de luz, viajando através do espaço, conforme dizem os cientistas, descreve um grande circuito cósmico e retorna à sua origem depois de pouco mais de 200 bilhões de anos terrestres. Hoje se conseguiu transformar a matéria em luz, calor, som e movimento, isto é, em energia, e admite-se a equivalência entre ambas, pelo que, se a matéria expande a sua massa e viaja com a velocidade da luz, nós a denominamos radiação dinâmica, porém, se, ao contrário, a energia se congela e se torna com isto inerte, sendo possível assim estabelecer a sua massa, então a denominamos matéria (―The Universe and Dr. Einstein‖, por Lincoln Earnett, 1949). Essa equivalência nos indica a possibilidade acima mencionada, talvez mais próxima do que se pensa, da descoberta da transformação da energia em matéria, o que permitiria ao homem realizar um trecho, conquanto pequeno, do processo criador. Trata-se de fazer o processo inverso daquele gerado através da energia atômica pela liberação do movimento aprisionado na matéria. A equivalência matéria-energia em direção evolutiva nos deve dar também a inversa equivalência energiamatéria. Se a matéria é radiação congelada e, hoje, a ponte se abriu pela liberação daquela radiação, é bem lógico que, amanhã, se possa abrir a ponte que, em direção oposta, leva, através do aprisionamento da energia, à síntese da matéria. Talvez, para o homem, não haja conveniência utilitária em consumir uma grande quantidade de energia para produzir somente algum fragmento de matéria, de que há tanta abundância. É possível, no entanto, que ele, com a desintegração atômica, venha a ter também a energia em grande abundância, podendo ser-lhe útil a síntese de particulares tipos raros e preciosos de matéria. Ficará, além disso, a importância científica de uma tal descoberta, rica de quem sabe quais consequentes descobertas afins, também utilíssimas. Tudo isto é logicamente possível. Estamos num universo fechado, cuja forma mutável é dada pela contração dele e de suas dimensões, em direção involutiva, e pela expansão dele e de suas dimensões, em direção evolutiva. O princípio cíclico universal é expresso do átomo aos sistemas planetários, aos ciclos telúricos, biológicos e históricos, em qualquer parte e sempre, para nos mostrar que ele está no sistema do todo. E, se tudo funciona por circuito, por movimentos espaciais relativos, que, em substância, não são deslocamentos, mas apenas autoelaboração do transformismo fenomênico, é lógico que também o universo e o espaço sejam curvos. Se tudo isto não é facilmente imaginável pela nossa forma mental, que é o resultado de outras experiências biológicas, é certo que o porvir da ciência está em concepções abstratas do todo, não susceptíveis de serem reduzidas, através de representações concretas, às ideias comuns sobre a realidade. Tendo sempre visto o espaço com a matéria, isto é, sempre conexo a um ponto de referência, não nos damos conta de que ele é para nós concebível só relativamente. A nossa experiência biológica não conhece o fenômeno da condensação de matéria partindo da energia, e lhe escapa todo o processo centralizador involutivo criador, que está nos antípodas daquele evolutivo, expansionista, que hoje se percorre. A vida, vinda depois, encontrou o espaço já formado e centralizado na matéria. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Naquela fase de concentração, formavam-se ilhas de matéria num universo que se tornava sempre menor. Mas, a um dado momento, o processo involutivo converteu-se no evolutivo. Aquelas ilhas incandescentes e irradiantes iniciaram o caminho oposto. Desde então, os corpos que se haviam formado como matéria, em vez de se precipitarem um contra o outro (fase de contração), afastam-se, distanciando-se um do outro (fase de expansão), e assim, hoje, universo e espaço se dilatam. Desde então, realiza-se o desgaste da matéria como tal, por irradiação. Assim, o Sol perde peso na razão de 250 bilhões de toneladas por minuto, de modo que ele chegará a se consumir todo. Acrescente-se que esta radiação o repele, porque exerce uma pressão sobre a superfície em que cai. A radiação conduz massa consigo. Um feixe de luz contém massas que se movem com a velocidade da luz, 300.000 quilômetros por segundo. Assim, uma pequena placa pode ser vista oscilar sob golpe da radiação da luz como se fosse ferida por um projétil. Mas essas não são senão pressões mínimas. Tudo seria, ao contrário, repelido potentemente, apenas se avizinhasse do Sol, pela tremenda radiação proveniente dos 50 milhões de graus, que é a temperatura no seu centro. A ciência admite que o nosso universo haja começado a se expandir somente há poucos milhares de milhões de anos, o que indica que ele está numa fase juvenil. Agora, alguns cientistas, verificando que, em confronto com o total das estrelas, há uma quantidade escassa de sistemas planetários e considerando que a vida é possível somente nesses, concluem que as condições dominantes são hostis à vida. Por entendê-la assim, como um caso secundário, fora do plano do universo, os cientistas não se dão conta do seu real significado. É verdade que os espaços astronômicos, como os cúmulos estelares, são lugares onde a vida é impossível e que estes são predominantes; é verdade que, para a vida, não restam senão pouquíssimas ilhas de zonas temperadas ao redor dos focos estelares, além das quais, tudo morre imediatamente; é verdade que essas zonas privilegiadas constituem menos de um milionésimo ou mil milionésimos de todo o espaço. É verdade, ainda, que é bem raro o acidente de uma estrela, por atração de outras estrelas que passem perto, vir a entumecer, levantando tais marés de matéria líquida e lançando-as no espaço de modo a formar planetas; é verdade que, mesmo sendo improvável que o sol seja a única estrela com planetas, esse desenvolvimento seja extremamente raro e que, provavelmente, somente uma estrela em 100.000 tem um planeta; é verdade que essa passagem de uma estrela tão perto de outra de modo a produzir gêneses planetárias, com a progressiva expansão do cosmo, torne-se sempre mais improvável. Se tudo isto é verdade e os planetas são tão excepcionais, não se pode, contudo, deduzir que a vida, somente porque ela nos aparece hoje como um subproduto sem importância, mínimo diante do todo, como um descuidado acidente fora do plano geral, não seja o escopo da evolução. Não. Considerando-se que a ciência julga haver, até onde alcança hoje o mais potente telescópio, 75 milhões de universos semelhantes ao nosso, deve existir em tão grande número um complexo de muitos milhões de estrelas com planetas, dos quais quem sabe quantos são habitáveis também para o nosso tipo de vida. Além disso, não é necessário que, por vida, se deva entender somente a forma que ela tomou na Terra, e ninguém pode excluir a existência de outras tantas formas, de todo diversas da nossa, até mesmo incorpóreas. Não. O nosso universo é simplesmente jovem. A vida nele se encontra ainda, em grande parte, na fase matéria e energia. Mas ela deverá alcançar a fase biológica que se iniciou na Terra e se tornar depois psíquica e espiritual, para voltar assim à fase pensamento ou espírito, como era na sua gênese, antes da descida involutiva, conclusões estas a que não se pode chegar senão tendo enquadrado o atual conhecimento científico no plano do todo. Podemos, enfim, acrescentar que, hoje, o homem não 79 vê o universo atual, mas sim o da época em que a luz que lhe chega partiu e foi transmitida pelas fontes, por isso lhe atribuímos uma estrutura diversa e mais jovem, em que tantos sistemas planetários não nasceram ainda. Se o universo atual está em via de se gastar por radiação e, portanto, por expansão no espaço e se os átomos que formam a matéria desaparecem nessa sua forma, anulados como massa pela transformação no equivalente das radiações emitidas em milhões de anos, nada se anula por isto. Já vimos, em nosso planeta, que as radiações solares se tornam vida e que a vida se torna consciência; verificamos que a ciência mais recente ainda mais profundamente confirma o físio-dínamo-psiquismo de A Grande Síntese. Compreende-se, assim, a criação partindo de um nada relativo e vê-se o lógico e equilibrado duplo respiro do universo, antes na fase criadora involutiva e, depois, na fase inversa evolutiva. Podemos assim contemplar um pouco da maravilhosa técnica da criação, pela qual tudo pode nascer do pensamento de Deus e tudo deve a Ele retornar. A ciência atual confirma estas visões filosóficas. Depois de todas estas comprovações e controles científicos, racionais e analógicos, temos motivo para crer que as afirmações de A Grande Síntese correspondem à real estrutura do universo. A ciência moderna mais progressiva se está orientando justamente em sentido monista, unitário, como foi sustentado em A Grande Síntese, embora essa afirmativa haja sido julgada errônea por alguém. Propriamente nesta direção aponta a última teoria de Einstein, anunciada pela imprensa nos começos de 1950, com o nome de ―Teoria Generalizada da Gravitação‖ ou ―Teoria do Campo Unificado‖, com que se haveria encontrado o elo que faltava para a concepção unitária do universo. Haverse-ia alcançado uma mais profunda realidade fundamental que, compreendendo-os, teria unificado os fenômenos da gravitação e do eletromagnetismo numa mesma lei superior universal. Dela resulta, entre eletricidade e gravitação, uma afinidade que as torna duas forças irmãs, derivadas de um único princípio unitário. A isto tudo se pode reduzir a energia radiante, da qual derivariam todos os fenômenos, todos reconduzíveis a uma única idêntica lei fundamental do universo. Ter-se-ia dado assim demonstração matemática da relação entre todas as forças cósmicas e, portanto, de sua unidade. Eis que aparece, também para o olhar da ciência, uma harmônica construção de leis cósmicas, o plano orgânico do universo, em que se manifesta o pensamento de Deus. Ora, tudo isto dito há 18 anos, em A Grande Síntese, antes publicada em revista, em 1932, foi afirmado não só em linhas gerais, nos princípios unitários, mas também no particular de afinidade entre gravitação, eletricidade, luz etc., explicando a íntima natureza da força da gravitação como protoforma do universo dinâmico. Isto, de modo particular, foi exposto no Cap. XXXVIII de A Grande Síntese, ―Gênese da gravitação‖, mais precisamente no antepenúltimo parágrafo desse capítulo. Aí se especificou que os conceitos da teoria de Einstein, então conhecidos, deviam ser completados, como aconteceu, e que isto devia ser feito pelo cálculo, como se fez. Todo leitor pode verificar quanto acima ficou exposto. Deixando de lado o problema psicológico de como a intuição filosófica haja conseguido captar os mesmos conceitos a que os processos racionais teriam depois conduzido os grandes matemáticos, percorrendo assim os tempos e antecipando-se às suas descobertas, e também o problema de haver um pensamento não tanto no indivíduo quanto na vida, que o alcança quando houver atingido sua maturação, ou seja, de que uma nova verdade somente se revela por maturidade biológica, que dá à vida uma transparência por sensibilização, o certo é que, hoje, a ciência, que não se discute, confirma em cheio o monismo, o conceito unitário que é a base de A Grande Síntese, e também os pormenores que o provam. 80 PROBLEMAS DO FUTURO XX. COM A CIÊNCIA PARA O INCONCEBÍVEL Essa nossa corrida pelo mundo físico-matemático tem o escopo de desenvolver as suas conclusões científicas no campo filosófico, para levá-las até ao plano espiritual e moral, onde estão as grandes diretrizes da ascensão humana. Num universo unitário, todas as verdades parciais e relativas do homem devem fundir-se em uma só. Assistimos hoje a um grande acontecimento no pensamento humano: a própria ciência está contribuindo para a queda do materialismo e se dirige com os seus próprios métodos para a descoberta de Deus. A ciência está para desembocar no espírito e com os próprios meios; as suas velhas negações caem pela sua própria maturação. O espiritualismo, religioso ou leigo, parece não perceber que essas portas estão sendo abertas pela própria velha inimiga, a ciência, e continua ainda, por inércia, a verberá-la como negação do espírito, enquanto ela se prepara, com os meios positivos que lhe são próprios, a descobrir o novo mundo. Essa é a mais poderosa apologética das religiões, a da ciência que nos conduz a verificar uma consciência diretriz do universo e à descoberta da imanência de Deus. No campo da própria ciência, o universo dá sinais manifestos de um poder inteligente que o guia e controla, de um pensamento que muito se assemelha ao de nossa mente, especialmente no campo das concepções matemáticas abstratas. A inteligência não é um fato isolado do homem, mas preenche todo o universo. Há um pensamento que rege tudo, com o qual temos afinidade de natureza e estamos conectados por compreensão. Se podemos compreender um pouco da estrutura do universo, isto ocorre somente por essa afinidade, porquanto também somos semelhantes àquele pensamento que tudo ordena e penetra em qualquer parte. Há pontes e comunicações a cada passo. O pensamento não é estranho à matéria, que é feita mais por conceitos do que por uma simples e aparente solidez sensória. O seu dualismo antagônico é superado no monismo universal, e isto não porque a matéria se dissolva em um nada, mas sim porque ela se tornou a expressão de um pensamento com o qual está estreitamente conexa e sem o qual não pode existir. Eis que as velhas concepções materialistas são invertidas, e a ciência tende a concordar com alguns postulados da fé, explicando-os em grande parte. O século passado disse a grande palavra: evolução. O nosso tempo diz: relatividade. O futuro próximo dirá: síntese. Chegamos a compreender o espaço em função da matéria, da qual é a dimensão, portanto um espaço finito como a matéria, mesmo sendo ilimitado, porque curvo. Admitimos hoje que o que existe fisicamente não é senão uma propriedade do próprio espaço, uma distorção do ―contínuo‖ espaço-tempo a quatro dimensões, e que a gravitação é uma distorção levando à curvatura do ―continuo‖. Concebemos um espaço que se dilata, e continuamente a lei de probabilidade substitui a de causalidade. Este universo não tem mais representação material. Ela não se lhe adapta mais hoje, que vemos mais profundamente. Com o progredir do nosso conhecimento, começamos a compreendê-lo em uma sua mais verdadeira realidade, que é puro conceito. É a nossa visão que avança, e, com isto, o universo se torna para nós sempre mais pensamento. A ciência viu nele primeiramente uma simples máquina, porque essa ciência era mecânica. Hoje, ela vê a inteligência que está atrás da máquina. Assim, o universo nos aparece quase consciente de si mesmo, como se uma parte conhecesse o que fazem as outras partes distantes, pois ele age em relação harmônica. Os fenômenos não se podem interpretar senão como projeções dessa inteligência que tudo coliga e guia para fins precisos. Cada movimento tem a sua lógica, como se dependesse do pensamento de um matemático puro. A sabedoria que está em cada coisa existente é tão profunda, que nela a nossa pequena inteligência se sente confundir. Basta pensar no que cada um de nós é, simplesmente, como or- Pietro Ubaldi ganismo físico. Este, para o homem, se calcula composto de 10 mil quatrilhões de átomos, em uma colônia orgânica de 60 trilhões de células, que têm tarefas diversas, com funções especializadas e sincronizadas em perfeita coordenação hierárquica. Pense-se que uma célula-ovo é constituída de 8.640 quatrilhões de átomos, organizados em 1.728 trilhões de moléculas, e que o menor organismo vivente é constituído, pelo menos, por 4 trilhões de moléculas. Que vertiginosa visão é, pois, a simples vida física, sem se cogitar da psíquica e espiritual! Pense-se que o átomo já é um microcosmo, um sistema solar planetário, mas do diâmetro de cerca de um décimo de milionésimo de milímetro, enquanto o núcleo e os elétrons oscilam entre cem bilionésimos e um trimilionésimo de milímetro. Para imaginar essas medidas, considere-se que o número dos átomos contidos em um grama de matéria resulta em cifra da décima à vigésima quarta potência (1024), cifra vertiginosa, que é igual à que exprime o número dos centímetros cúbicos de água contida em todos os oceanos. Somente um centímetro cúbico de hidrogênio contém 54 bilhões de bilhões de átomos. E todo átomo é composto de um núcleo positivo em repouso ou rotativo sobre si mesmo, em torno do qual com uma velocidade de 30 km por segundo, se move uma miríade de elétrons de carga variada, de número diverso conforme cada único elemento. Ora, esse microcosmo não é senão o primeiro elemento do edifício molecular, que não é senão o primeiro do edifício celular, que não é senão o primeiro do edifício orgânico, que não é senão um caso único do edifício biológico. Sobre o plano físico, a mesma progressão hierarquicamente construtiva se estende do átomo à molécula, aos cristais ou cúmulos, às grandes estratificações geológicas, aos planetas, aos sistemas solares e galácticos, aos sistemas de sistemas galácticos. A nossa mente se perde não só pela extraordinária grandeza ou pequenez, mas também pela complexidade da organização que mantém em tão vastas e complexas estruturas a ordem mais precisa. Num centímetro cúbico do ar que respiramos, cerca de 30 bilhões de bilhões de moléculas se precipitam com velocidades fantásticas, chocando-se e mudando rumo cerca de 10 milhões de vezes num segundo. Respiramos esse mundo cinético e, assim, formamos inúmeras outras combinações de movimentos, das quais deriva o nosso funcionamento orgânico e a nossa vida. Assim, vemos tudo desfazer-se na velocíssima dança de infinitos elementos imponderáveis, não somente para a matéria, mas também para o nosso corpo. E este, na sua profunda realidade, torna-se um imponderável dirigido pelo pensamento, o mesmo que rege também a matéria. Então, esta e o espírito podem ser reduzidos à mesma substância: uma lei, e o corpo, chamado de prisão do espírito, torna-se da mesma natureza deste. Pense-se que o aspecto físico da matéria, bem como do nosso corpo, é devido simplesmente a vertiginoso movimento dos elementos dos átomos que o constituem e que se compõem nessa forma porque são guiados por um pensamento inteligente, embora escondido em nosso inconsciente. E então, que significa a presença dessa inteligência que, através do nosso inconsciente, nos plasma e nos mantém a vida, à nossa revelia, senão a imanência de Deus? A própria matéria não representaria senão uma das formas do pensamento a que tudo se pode reduzir, como substância universal, elemento último e fundamental, gerador de tudo. Quando essa substância toma a forma atômica, então ela se torna ponderável e chama-se matéria; quando toma a forma dinâmica, chama-se energia; quando a forma não é nem atômica nem dinâmica, chama-se pensamento. Entre a matéria e o espírito haveria apenas uma diferença: aquela é substância atômica (ponderável) e este é substância não atômica (imponderável). Dado isto, não é absurdo o conceito aqui exposto de uma criação entendida como gerada a partir de um nada relativo à fase criada, como uma forma particular do pensamento de Deus. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Da compreensão dessa imanência de um pensamento diretivo do mundo fenomênico deriva a compreensão da técnica criadora que nos mostra como opera o pensamento de Deus. Tudo o que existe em forma de matéria é formado por laços no espaço vazio, e não por massas de partículas rígidas, laços dados pelos desenvolvimentos cinéticos regulados e derivados de puro pensamento. Isto nos faz pensar que aquelas zonas de determinismo, que formam em nossa vida o que nela há de destino fatal, não são senão laços cinéticos formados como os conjuntos de ondas que constituem o elétron; não são senão concentração de forças, por nós operada com os nossos pensamentos e atos do passado e assim fixada à guisa de semente. Esta, como toda semente ou germe (que também é alguma coisa de semelhante), deve desenvolver o que nela foi concentrado, restituindo tudo na forma original, repetindo o mesmo esquema do nosso universo, que agora, em fase evolutiva, restitui o que nele foi concentrado no estado de germe, no precedente período involutivocriador. Não se trataria, talvez, de vários casos particulares, em que se aplica sempre o mesmo e único princípio? Eis, assim, a possibilidade de imaginar e admitir uma criação emanada do pensamento de Deus, partindo de um estado que, diante da matéria, de que será depois formado o criado, é o nada. ―No princípio era o Verbo‖. O Verbo se faz ação e tudo deriva do dinamismo que dela nasce na forma de matéria, radiação congelada em ondas aprisionadas. Assim a criação procede da onda-pensamento, à onda dinâmica, até à transformação do sistema cinético no circuito fechado da matéria. Hoje, a ciência já está trabalhando nesse sentido, começando pela transição da matéria à energia. Mas essa passagem deverá ser aberta ainda além, em fases superiores, e também na direção inversa. Então, a ciência chegará a fazer a síntese da matéria, usando a energia. Depois da síntese dos conceitos, a síntese física. E talvez, num dia mais longínquo, o homem, que tem sua mente feita à semelhança de Deus, poderá derivar a energia do seu pensamento e, dessa maneira, poderá realizar todo o percurso do caminho criador: espírito, energia, matéria. A atual técnica em realização, da desintegração atômica, se bem que situada no período oposto do ciclo, nos indica essas possibilidades. Ela representa a técnica evolutiva, e não a criadora, isto é, a nossa fase atual de desenvolvimento partindo da concentração-matéria, e não a anterior fase involutiva criadora, que vai para a referida concentração. Ao contrário, as materializações espiritistas, ectoplásmicas, são construções ideoplásticas, que provam a possibilidade do ato criador psíquico-dinâmicofísico também nos limites do campo humano. Já vimos que, no universo, esse ato diz respeito à fase de descida por emanação de Deus, ato que se equilibra, depois, na oposta fase de ascensão ou realização de cada ser em Deus. Assim compreende-se como o universo se torna tanto mais explicável quanto mais o reduzimos ao que é na sua origem e na sua essência, isto é, um conceito puro. Certamente ele é uma grande incógnita a ser interpretada, e a sua representação é bem diferente da antropomórfica. A última realidade do universo é um conceito abstrato, sem possibilidade de uma figura redutível às nossas aparências. Toda redução nesse sentido é uma deformação, de modo que, quanto mais a representação é antropomorficamente acessível, tanto mais ela se torna um desvio da realidade. Se, pois, quisermos fazer modelos para explicar o conteúdo dos conceitos abstratos e fórmulas matemáticas que exprimam o universo, poderemos fazê-lo, mas por conta e risco nosso, porque sabemos que, assim, em vez de nos acercarmos da verdade, distanciamo-nos dela. A última realidade não é suscetível de representação e, quanto mais nos avizinhamos daquela realidade, tanto mais a sua representação se torna impossível. Toda imagem nos distancia mais do que nos conduz para perto do real; toda forma, ao invés de nos dar a ideia da essência das coisas, é apta a traí-la com aparências ilusórias. Isto demonstra 81 que a última realidade é pensamento puro e que o absoluto é, para a mente humana de hoje, um inconcebível, do qual ela não pode obter senão aproximações sucessivas. O fato é que somos relativos, inexoravelmente situados no relativo, isto é, contidos em dimensões particulares das quais não é fácil sair. Desse modo, não podemos formular um julgamento senão em relação a alguma coisa, em função de um ponto de referência. Se sairmos do relativo, este nos vem a faltar e, com ele, toda possibilidade de juízo. Uma vez que concluímos por comparação entre quantidades ou qualidades, não podemos proceder senão no âmbito das dimensões que nos são próprias e conhecidas, onde também está situado o objeto em exame. É nesse âmbito que a nossa psique está fechada, fora do qual ela não compreende e, como instrumento de conhecimento, vem a ficar inadequada e falida. Agora, para conceber a substância das coisas, trata-se justamente de sair desse âmbito, de abandonar os velhos pontos de referência para encontrar novos. É natural que a nossa mente fique completamente impotente enquanto, pouco a pouco, não aprenda a individualizar e conhecer novos pontos de referência, hoje situados no inconcebível, transferindo-os assim ao seu concebível. A concepção hoje alcançada da energia, como uma abstração matemática: ―a constante de integração de uma equação diferencial‖, significa haver tornado a subir o caminho criador, seguindo para a abstração. E é justamente por essa via, concebendo as coisas em forma sempre mais imaterial, que poderemos chegar perto da mais profunda realidade: o espírito. A representação sensória nos conduz apenas ao caso particular, enquanto a fórmula abstrata, e somente ela, é universal, capaz de abrangê-los todos. Com isto, parece que o real nos escapa, porque ele está para nós no relativo e particular, que são o irreal, e não no absoluto e geral, que são o real. Mas tudo é relativo e, para nós, o irreal é real e o real é irreal. Assim, na abstração de uma fórmula matemática, não podemos saber, com termos sensórios completos, o que é o objeto sob exame, mas só como ele se comporta. Vemos agir esse ―quid‖ desconhecido que, na ação, projeta-se em nosso conhecível e só assim podemos apreendê-lo como uma cognição de relação, isto porque, sendo relativos, ficamos no relativo. Esta é a nossa condição, portanto o absoluto nos foge no inconcebível. Conquanto o nosso conhecimento possa progredir para o absoluto, o homem não pode conceber senão a sua projeção no próprio plano de conhecimento, isto é, uma representação a ele relativa. O antropomorfismo é um limite, e o progresso consiste justamente em saber superá-lo. Por isto a ciência moderna renuncia, por ora, à representação do real e para naquela do seu comportamento, limitando-se a este derivado do absoluto. Isto parece coincidir com o velho ―ignorabimus‖ 10, ou seja, constituir uma renúncia ao conhecimento. No entanto isto já é um progresso, pois a ciência, ao chegar hoje mais perto da realidade última e, assim, compreender que esta não é suscetível de representação, já não cai mais nas ilusões dadas pelas representações antropomórficas, ilusões que, até ontem, ela tomara por realidade. Assim, entramos num terreno que parece renunciar a conhecer o real, mas que, ao contrário, é mais sólido e mais verdadeiro, justamente porque, quanto mais ele é imaterial e abstrato, tanto menos é suscetível de representação. Chegamos, assim, ao ponto de achar que se possa dar a essa formulação completamente abstrata do universo aquele conteúdo em que cada um crê, pois chegou-se a compreender que cada representação dele é um relativo e um irreal, uma pura interpretação ilusória diante da realidade. Isto significa havermos chegado racionalmente mais perto de Deus, tendo compreendido que Ele, na sua essência, é um incognoscível. Já dissemos que suas definições são reduções e mutilações. Desse modo, a 10 Ignoraremos. (N. do T.) 82 PROBLEMAS DO FUTURO ciência admite que os valores concretos das suas formulações abstratas possam ser diversos, e aí está a sua nova universalidade. O real é tanto mais verdadeiro quanto mais for abstrato, distante do concreto, princípio universal, distante do particular. Conduziu-nos para perto da realidade o fato de não dar-lhe mais uma representação ou, pelo menos, se a damos, de não atribuir-lhe senão um valor relativo e fictício. Dessa maneira, ao menos compreendeu-se que as nossas representações do real não valem senão pelas necessidades do contingente e que é erro dar-lhe um valor absoluto. Elas não podem servir para esse fim. É assim que o homem saiu do antropomorfismo e acercou-se mais da realidade, compreendendo dela ao menos sua bem definida característica de estar situada no atual superconcebível. É a primeira tentativa para começar a definir a realidade. Já se encontrou um primeiro atributo não imaginário. Com isto, o homem compreendeu, pelo menos, que Deus, o absoluto, última realidade, não é redutível ao seu atual concebível. Já é importante haver saído um pouco do velho inconcebível, enquanto, com a superação do antropomorfismo, que tornara o homem medida das coisas, desmantelou-se a ilusória representação que ele fazia do real. Quanto aqui é exposto decerto é um sistema de concepção mais complexa que os precedentes, e os sistemas, muitas vezes, encontram favor em proporção da possibilidade de sua compreensão. A facilidade de representação tem importância na divulgação da teoria. A presteza com a qual foram aceitas tantas explicações mais elementares do universo, foi obtida pela sua aceitação psicológica, isto é, capacidade de representação e compreensão por aderência à forma mental humana. A nossa psique se formou por vias sensórias, que a tornam mais apta a entender o mundo relativo que a circunda, ainda que irreal, e não um mundo absoluto que ela nunca concebeu diretamente. Quando aquela mente é usada para essa finalidade tão distante, é certo então que se faz dela um uso bem diverso daquele dos fins imediatos da vida, para o qual nossa mente se formou. Diante da investigação abstrata, a única mais aderente ao real, a psique formada para os escopos do contingente tende a se confundir, tornando-se inadequada. Acontece-lhe tal como ao jovem que vai à escola, que, em geral, já possui no instinto adquirido no passado todas as astúcias e prepotências necessárias à luta pela vida e deve fazer um grande esforço para usar uma tal mente no trabalho lógico e abstrato da cultura. No jovem que, sem esforço, é hábil no primeiro trabalho, a vida repele a nova e diversa atividade, com a qual não está acostumada e da qual não cuida porque não é imediatamente útil. Mas a evolução consiste justamente nessas transformações. Para enfrentar o problema do conhecimento, devemos antes fazer as contas do que somos e do que podemos. Hoje, finalmente, compreendemos que tanto mais nos acercamos do real quanto mais nos distanciamos do imaginável; compreendemos que o verdadeiro está situado no inconcebível e que tanto mais chegamos perto dele quanto mais nos distanciamos do nosso normal concebível. Decerto o sistema atual é mais difícil, mas ele demonstrou a capacidade de penetrar, muito mais a fundo, na natureza das coisas e de saber explicá-las. As novas interpretações que fazemos da realidade desconhecida e que parecem mais capazes de harmonizar-se com ela, não são materiais, e sim matemáticas. Esta abstração vence, por potência explicativa, precisão e aderência aos fatos, as precedentes representações materiais. Também é certo que esta é apenas uma representação, e não a última realidade, mas é uma aproximação maior do que as precedentes, uma interpretação mais vizinha do verdadeiro. Compreendeu-se que as coisas não estão mais como antes se acreditara, se bem que não se saiba ainda como verdadeiramente estão. Porém a explicação em termos matemáticos resolve muito mais do que as precedentes representações mecânicas. A última realidade possui, sem dúvida, um significado Pietro Ubaldi que transcende a nossa atual capacidade de compreender. Porém é certo que se caminhou nessa compreensão e que hoje a velha concepção é inadequada. As ondas que representam um elétron na mecânica ondulatória, hoje se julga que são ondas de probabilidade, cuja intensidade em cada ponto dê a medida da probabilidade de que um elétron esteja naquele ponto. A nova representação é simbólica e se exprime somente em termos de probabilidade. Agora, quando falamos de ondas no espaço-tempo, formamos simples visualizações de uma fórmula matemática de natureza ondulatória, mas de todo abstrata. Assim o ―contínuo‖ quadridimensional da teoria da relatividade não admite representação espaço-temporal. Temos visto, porém, que há dimensões superiores, e a primeira é a consciência, que está fora desse ―contínuo‖. E a ciência já imagina que os fenômenos desse ―contínuo‖ espaço-tempo são a projeção, a quatro dimensões, de uma realidade de mais de quatro dimensões. A própria ciência caminha para a aceitação dos conceitos acima expostos acerca das dimensões superiores, admitido a possibilidade de vários planos de existência, tal como há graus de evolução na matéria, na energia e na vida. Se tudo isto para a ciência significa chegar mais perto do real, para o filósofo é acercar-se do verdadeiro e, para o crente, de Deus. A ciência indica uma natureza que parece estar muito versada nas matemáticas puras, entendendo com isto aquela matemática que é criação do pensamento puro, sem se contaminar com a observação. Agora, se é propriamente essa criação do pensamento puro o que mais nos faz avizinhar da íntima realidade das coisas, então significa que essa realidade, isto é, a substância do universo, é afim daquilo que no homem é pensamento do espírito. Se é com o espírito que nos avizinhamos da essência das coisas, quer dizer que essa essência é de caráter espiritual. Eis a grande descoberta da ciência. Ela, então, já não é mais materialista, e sim espiritualista. A essa certeza chegou com os seus próprios meios. Com estes, hoje, a ciência moveuse e avizinhou-se da descoberta de Deus e Dele poderá racionalmente nos dar uma certa aproximação, que, assim como a dada pela fé, talvez necessite de representações antropomórficas para poder ser utilizada pelas massas. A grande mudança está na orientação do pensamento científico. A verdade é hoje enfrentada não mais com o simples método experimental, e sim com os métodos da lógica pura, tipo Aristóteles, porém transferidos para o plano das matemáticas. Está, então, superado o ciclo do método experimental? Será que ele não é mais suficiente? Certo é que hoje se recorre com sucesso e se justificam também outros métodos. Hoje se admite uma aproximação da realidade também com os meios do pensamento abstrato, não influenciado pelo mundo exterior, nada tirando da experiência. Eis-nos na via do método da intuição, já sustentado e explicado nestes escritos. Os fenômenos objetivos, que parecem tão certos, nos aparecem somente como uma projeção de um mundo que os gera, um mundo diverso, que demonstra conhecer muito bem esses processos de pura matemática. A ciência chega, assim, a sentir atrás dos fenômenos a presença de uma mente diretriz que, por certo, conhece muito bem as regras que os geram. Decerto que as matemáticas não chegam a descrever a natureza da última realidade, porém sabem estabelecer as relações que regulam as várias partes no seu funcionamento, isto é, o pensamento que tudo rege e guia. E que mais é isto senão o espírito, a Lei, Deus? Há, pois, uma afinidade entre nosso espírito e esse espírito regulador do universo. Torna-se assim a valorizar o método dedutivo do passado. Entramos na era da síntese, em que o método indutivo e dedutivo coexistem e se fundem num plano conceptual superior: a intuição. Eles não são senão duas direções do mesmo pensamento. Pode-se caminhar num sentido ou em outro, porém por vias opostas, sempre para o conhecimento da Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO mesma realidade. A involução do passado as mantinha separadas e antagônicas, não se sabendo percorrê-las senão uma por vez (involução=separatismo). O homem novo do terceiro milênio delas fará uma perspectiva bifronte para a mesma realidade, com o método da intuição que conduz à síntese. A última e mais profunda interpretação do universo nos diz que ele parece pré-ordenado pela mente de um matemático puro. E, então, devemos admitir que, se é essa matemática que nos conduz para a realidade do universo, nesta realidade deve haver aquela matemática, isto é, uma abstração, pura qualidade do espírito. E, se esta realidade nos é revelada por graus, devemos admitir que ela já existe, tão vasta e completa, que nos escapa no inconcebível, mas nem por isto menos real e perfeita em si mesma. Então podemos concluir que a descoberta do desconhecido não é senão o resultado de uma maturação do meio, a psique humana, cuja compreensão é limitada e dada pelo grau da sua evolução. Em outros termos, o limite do conhecimento está somente na natureza humana e ele se desloca porque esta evolui, daí a progressão na conquista da verdade. De maneira que o homem não descobre o universo, mas a si mesmo. Ele deve descobrir sempre novas expressões na sua linguagem, em lugar das precedentes, que se tornam inadequadas à medida que as suas capacidades intelectuais lhe revelam mais profundos aspectos do real. Por último, toda representação pode significar uma limitação ou deformação dele. Então, a verdade se avizinha sempre mais do inexprimível, e é exatamente isto que nos revela a sua verdadeira natureza. E o homem, cansando na subida para sair do antropomorfismo, livra-se da ilusão só para se avizinhar do inexprimível. Cabe-lhe saber, na ascensão, exprimir o inexprimível, isto é, evoluir a sua psique para saber introduzir nela uma representação hoje inimaginável do real. E, assim, o inconcebível é gradualmente conquistado no concebível. A natureza não é antropomórfica. Começa-se hoje a compreender que o homem está superando o seu velho ser. A realidade não pode absolutamente ser reduzida a esquemas antropomórficos. Ao contrário, ela mostra-se aderente a esquemas puramente matemáticos, pelos quais se deixa interpretar melhor. A realidade mais profunda está mais estreitamente ligada aos conceitos da matemática pura do que aos da biologia ou da mecânica, que permanecem mais exteriores. O universo fenomênico adquiriu um sentido muito mais claro e profundo quando ele foi visto com o olhar da matemática pura. Isto é lógico, porque, quanto mais soubermos ser abstratos, tanto menos seremos materiais e antropomórficos, e tanto mais chegaremos perto da realidade, que é de natureza abstrata. Dado que a visão matemática é mais abstrata, espiritualmente mais elevada do que a mecanicista, é lógico que ela explique melhor as coisas. Dessa forma, desmaterializando o seu concebível, espiritualizando a sua psique, o homem se acerca da compreensão da verdadeira natureza do real, realizando dessa maneira a escalada para o inconcebível. Assim a ciência, tornando-se sempre mais abstrata, caminha no conhecimento de uma realidade que, por sua vez, torna-se também sempre mais abstrata, mas com isto mais verdadeira. Hoje só podemos dizer que para nós, lá onde está o absolutamente inconcebível, está o absolutamente verdadeiro. Hodiernamente, quando a ciência chegou a esse grau de espiritualização, os modelos mecanicistas do passado são considerados mais um obstáculo que um auxilio para a compreensão do real, que está atrás dos fenômenos. Assim, a ciência moderna prefere os símbolos abstratos das equações matemáticas, o que nos limita ao conhecimento das relações, o qual nos diz, pelo menos, como as coisas funcionam, embora não nos diga o que elas realmente são, o que virá depois. Com isto, cai o modelo mecânico, ideia adaptada à forma mental do velho cientista materialista, e prevalece uma ordem psicológica de todo diversa. Ela nasceu da verificação de que a estrutura da matéria se rebela à visão concreta. Mas essas mudanças não são coisa no- 83 va, porque a forma mental, não obstante tomar sempre uma posição axiomática e dogmática, muda em cada século com o seu progredir, pois que tudo está em função do subjetivismo, mesmo na mais objetiva investigação. Se a velha forma mental, subjugada pela prevalência do método experimental, via tudo materialistamente, a nova, ao contrário, vê espiritualistamente. Hoje, a concepção mecanicista-materialista, que não enxergava o real senão no concreto, está superada. Começando do alto das mentes que dirigem a cultura humana, haverá uma nova orientação de todo o pensamento moderno, e as massas, que ainda revolvem no materialismo, pois que elas chegam sempre por último, amanhã seguirão também este novo caminho e formará uma nova civilização: a civilização do espírito. A ilusão sensória e a filosofia materialista que dela decorria, hoje estão desfeitas. E já foi dada a partida numa nova direção. O método objetivo-experimental, que criou a ciência moderna, por esta mesma já foi superado e agora está em segundo plano. Em suma, não se pede mais o respectivo conhecimento ao fenômeno, que não é mais considerado, como antes, o ponto principal, mas passa para um segundo plano, em posição subordinada. Esta inversão, pela qual o real se tornou irreal e o irreal, real, renovará as diretrizes do pensamento moderno, diretrizes que dão a orientação ao próprio século. Os aspectos espirituais da vida não são mais considerados ilusórios somente porque não são concretos. Eles, assim, avizinham-se de nós e se valorizam, entram a iluminar a nossa vida de cegos. O concreto tornou-se irreal, e o espiritual, real. Assim, a nossa vida alcançou outras realidades, além dos velhos horizontes, com meios mais sutis do que as velhas vias sensórias. A ciência hoje abre as portas para o espírito e, na conquista deste, poderá ser uma grande aliada. Logo que a ciência começou a observar atentamente a realidade concreta, esta se desfez; o que se tomava por indiscutível solidez não era senão um dos sinais sensórios que uma misteriosa, distante e íntima realidade nos transmitia. Então se compreendeu que aqueles sinais, qualquer fosse a forma que assumissem, eram somente uma expressão simbólica de alguma coisa completamente diferente, que estava atrás das cenas, uma representação toda relativa, eram a expressão de uma realidade ignota, exprimível somente com o símbolo matemático ―X‖. XXI. A CIÊNCIA NA DESCOBERTA DE DEUS Quando subimos aos mais altos planos do conhecimento, nos avizinhamos do centro em que se dá a unificação de todas as coisas, para a qual tudo tende, evoluindo. Então, acontece que o cientista e o místico se aproximam tanto um do outro, que chegam quase a tocar-se no mesmo terreno. Eles representam tudo o que chamamos ciência e fé, que, assim, também se avizinham até se fundirem; trabalham ambos num mundo invisível, onde têm valor experimental, positivo e objetivo fatos de natureza imponderável, subjetivos – os fenômenos da consciência. Esta parece feita não somente para registrar os dados da experiência sensória, mas também os resultados de outras impressões espirituais de caráter todo diverso. Desta ordem de experiências a ciência não conhece absolutamente nada, mas delas acabará tendo de se avizinhar, logo que ela progrida para as grandes profundidades do conhecimento. Então, cientista e místico entram no mesmo mundo do transcendental, em que todas as formas superiores de consciência se aproximam para se fundir; ciência e fé nos aparecem então como dois diversos modos de ver a mesma verdade, duas vias para chegar à mesma realidade última. A separação e a luta entre ciência e fé são apenas questões de involução. Evoluindo, segue-se para o universal, para o abstrato, para a unidade. O pensamento imaterial que rege e constitui a matéria torna-se a mesma coisa que o pensamento imaterial que constitui o espírito. No alto, tudo se concilia e se harmoniza. Então, tudo se unifica num mesmo plano, 84 PROBLEMAS DO FUTURO onde trabalham juntos e concordes o cientista, o místico, o matemático, o musicista, o poeta, o santo; onde a ciência é arte, a matemática é filosofia, a pesquisa é prece; onde tudo se funde e se torna um só impulso para o mesmo único centro, Deus. A mente humana, percorrendo a circunferência do relativo, tenta alcançar no centro o absoluto, que ela reencontra projetado em todo ponto daquela circunferência. As suas experiências analítico-objetivas estão dispersas ao longo dessa circunferência. Mas, progredindo com a evolução, a mente humana penetra em zonas sempre mais conexas e vizinhas ao centro, aproximando-se assim, cada vez mais, da unificação. Tal como a fase criação-involução representa uma projeção na forma, distante do centro, assim a evolução significa uma reconstituição no centro, em unidade, daquele universo, antes cindido no particular. Isto também para o conhecimento, que assim torna-se sempre mais unitário. Dessa maneira, elimina-se progressivamente o separatismo humano, que divide o conhecimento em mil afirmações antagônicas em luta entre si. Assim, aos poucos, caminha-se para a verdade única, que é luz e que, dada a estrutura do universo, é tanto mais verdadeira quanto mais é abstrata e unitária. Essas são as características que devem ter as maiores verdades futuras, mais avançadas que as atualmente concebidas pelo homem. Quanto mais se progride, tanto mais se tornam pesados e insuportáveis os muros divisores, o separatismo de todos os enquadramentos humanos e a luta entre verdades, que são diversas e rivais somente devido à involução. Quando se alcançam os mais altos planos do conhecimento, todas as formas de investigação se dispõem em paralelo e todas as formas de experiência, da científica à mística, avizinhandose do centro, igualam-se e, concordando, colaboram para o mesmo fim. Evidentemente, a substância do mundo em que vivemos representa algo que transcende tudo quanto pode ser medido com os instrumentos da física e até o que é descrito com os símbolos da linguagem matemática. Se, portanto, o místico vê com modo próprio as realidades profundas e nos revela um aspecto delas, não podemos, ―a priori‖, excluir essa forma de investigação, nem podemos dizer que ela não esteja mais perto da verdade do que as outras, pois, de qualquer modo, ela possui sempre um significado e tem alguma coisa a levar para a ciência. Não se pode excluir nada. Não se pode negar que também os nossos sentimentos e impulsos espirituais possam atingir alguma revelação daquela realidade. Esses resultados, em vez de serem repelidos como desprezíveis, por não serem positivos, deveriam ser coordenados com os do físico e do matemático, para obter uma compreensão sempre mais completa da realidade das coisas. Não se pode absolutamente dizer que só pelo fato de usarmos os meios sensórios do espírito, em vez dos relativos e ilusórios do corpo, caímos no erro e no irracional. Pode ser que se trate apenas de um raciocínio diferente da corrente racional científica, mais profundo e mais potente, que, resultando da observação e contemplação mística, também pode ser positivo e importante para o conhecimento. Sem dúvida, a ciência chegou hoje à concepção de uma realidade do todo transcendental que antes lhe escapava e, com isto, veio a se debruçar sobre o campo das experiências do místico. Chegamos ao ponto em que isto pode fornecer alguma orientação à ciência, e esta pode então receber a contribuição de uma tão inusitada fonte. Nos capítulos precedentes, vimos como a concepção e Einstein pode ser orientada e continuada no campo filosófico. Agora, aquela concepção pode continuar também em forma mística, numa visão universal. Neste volume, diante dos últimos problemas, ciência, matemática e misticismo aparecem fundidos numa única síntese, convergindo para ela harmonicamente. A intuição mística encontrou confirmação na mais recente físico-matemática, e esta nos conduz àquela. Mas diremos ainda mais. Pondo-nos diante da última realidade, poderíamos perguntar se, em vez do místico, não é o ci- Pietro Ubaldi entista quem mais se move entre as sombras do irreal. Se observarmos a fundo os dados experimentais, eles perdem muito da sua valia. O místico, quando alcança a sensação de Deus, obtém a prova completa e não procura outras. E, quando se chega a esta sensação, como se dá em tantos casos e temperamentos diversos, tem-se o mesmo direito de negar que se possa obtê-la pelas sensações da investigação física. Estas, se as examinarmos a fundo, não nos dão nenhuma garantia absoluta. Se, atrás de toda sensação, há de existir uma realidade, por que umas devem ser falsas e outras verdadeiras? É lógico que ambas sejam verdadeiras. Então eis que, para o místico, o Deus que tudo permeia poderá ser a mesma lei onipresente e perfeita que, para o físico, tudo regula. Por ambas essas vias, tão distantes e opostas, apresenta-se a mesma imanência de Deus, tão logo a consciência se eleve mais para o centro do ser. O místico, porém, quando queremos nos avizinhar da mais profunda e verdadeira realidade, tem muito mais a dizer do que aquele escuro mundo de símbolos com que a matemática, uma vez que a representação mecânica e antropomórfica diz bem pouco, procura hoje ver no mistério do universo físico-dinâmico. O próprio cientista sabe que tudo isto não o coloca em contato com a última realidade e que dela obtém apenas puras interpretações, algo bem diferente do absoluto e definitivo. O místico pode, ao contrário, ensinar-nos que, além dos sentidos apropriados para a análise objetiva, o homem possui um senso interior dos valores e do caminho para atingi-los; que, além dos recursos puramente racionais do cientista, há meios intuitivos mais rápidos e sintéticos; que, além dos sentidos imediatos, existem meios de percepção direta aptos para apreciações que se estendem a campos inacessíveis ao raciocínio. Por outro lado, no fundo da observação sensória, há a premissa axiomática, apriorística e não demonstrada, de que os nossos sentidos constituam um canal para o conhecimento, apto a revelar o significado real das coisas. Os primeiros momentos da ciência racional são indemonstráveis, super-racionais e intuitivos, como os últimos. O matemático puro não tem uma opinião elogiosa sobre os métodos de dedução usados pela física e desaprova a fragilidade do que é aceito como prova pela própria ciência física. Isto demonstra a contribuição que pode dar a intuição do mundo invisível por parte do místico, ainda que, do ponto de vista da ciência, possa parecer inconsistente, porque imprecisa. Concluindo, nenhum caminho deve ser desprezado para enfrentar o mistério; ele é tão profundo e complexo, que todo auxílio nos é necessário; é tão vasto e múltiplo, que todos os caminhos podem conduzir à sua solução. Na própria ciência positiva, que acredita ter base sólida, vemos que os resultados conseguidos por uma geração não valem mais para a seguinte. É tudo um contínuo fazer e sobrepujar, em todo campo. Pode-se, então, perguntar se essa contínua mudança do nosso conhecimento em todo campo não seria apenas o efeito da evolução psíquica humana, da qual depende tudo o que pensamos, não sendo senão o seu índice; se toda objetividade científica não seria senão uma função dos nossos meios sensórios e psíquicos; se o nosso conhecimento não dependeria, sobretudo, da evolução daquele instrumento que é a nossa mente. É certo que, em princípio, para uma inteligência nata e feita para os fins imediatos da vida, o ingresso nesses campos de investigações abstratas pode dar o sentido de uma aberração biológica, de uma atividade anormal. O intelectual que avança nesse terreno poderá parecer uma monstruosidade para a classe média, alguma coisa que vai além da vida, à qual interessa primeiro a nutrição e a reprodução, coisas que não apenas são bem conhecidas do homem normal, mas também estão no fundo da vida do pensador. O primitivo, normal, não tem nenhuma necessidade de conhecer a estrutura do universo para viver. No entanto um futuro da evolução não é sequer imaginável senão nessas atividades supernormais, hoje aberrações biológicas, amanhã criações de Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO novos tipos de existência. O conhecimento é, sobretudo, resultado da evolução. O intelecto, como tudo no universo, desenvolve-se e floresce. O que verdadeiramente rege tudo é a imanência de Deus; o que guia tudo é a Sua constante obra criadora. Vemo-nos porque antes, sem o sabermos, foi construído o olho. Com este e outros sentidos formados do mesmo modo, debaixo do estimulo da luta, que instrui e seleciona, o homem descobriu depois as leis ópticas, segundo as quais, há muito tempo, sem que ele as houvesse analisado e compreendido, o seu olho já funcionava. Assim ascende-se ao atual superconcebível pouco a pouco, com a formação e o aperfeiçoamento do órgão psíquico, e somente este fato poderá permitir, com uma mente mais perfeita, penetrar a estrutura daquele conhecimento que hoje não se alcança. Toda a nossa incompreensão dos últimos problemas é questão de imaturidade biológica. ◘ ◘ ◘ Termina por ora a nossa corrida no campo da ciência moderna. Temos comprovado e desenvolvido muitos conceitos sumariamente expostos no começo de A Grande Síntese. Reunimos também as conclusões filosóficas e místicas do capítulo ―Deus e Universo‖ com as da mais moderna ciência físicomatemática. Assim, a nossa concepção da estrutura espiritual do universo concorda com a atômico-dinâmica dos maiores físicos e matemáticos hodiernos. A ordem moral, em que se movem as forças espirituais, funciona em harmonia com a ordem dinâmico-física, concebida segundo as últimas teorias da relatividade de Einstein, dos ―quanta‖ de Planck, da física estatística e quântica, do ―contínuo‖ quadridimensional e do espaçocurvo. Aqui vimos como essas teorias podem desenvolver-se no campo filosófico, nas teorias conexas desenvolvidas na primeira parte de A Grande Síntese, segundo as quais o mundo físicodinâmico é conjugado com o mundo moral. Assim aparece o todo-uno que denominamos monismo. Tudo isto converge para a demonstração que esse todo-uno é realmente um físio-dínamo-psiquismo, o conceito central destes escritos. Estes três modos de ser da mesma substância única são conexos por um transformismo que os muda um no outro, seja em um respiro de ida, de involução ou centralização, seja em um inverso respiro de retorno, de evolução ou expansão, que é o atual. Trata-se de uma viagem através de progressivas dimensões, de uma viagem que, em nossa fase, é uma íntima autoelaboração, em que Deus está presente e ativo e pelo que tudo volta a Ele. Hoje, tudo se dirige para o puro pensamento. A visão da ciência é mais circunscrita. O ponto de vista científico mais ortodoxo é que a entropia do universo aumente e deva aumentar até ao seu valor máximo final. Ela é rapidamente crescente. Mas a ciência para na atual fase evolutiva, que deve justamente, porquanto se encaminha para o espírito e representa a reconstrução dessa forma do todo (Deus, pensamento), representar a morte da matéria, como a involução representa a morte do espírito Assim, isolando a entropia numa só direção, sem ver o transformismo oposto, não se pode compreender essa transformação. Foi na precedente fase inversa involutiva que se concentrou aquela potência que agora se manifesta e vai gastando-se, nivelando-se como entropia. Ela não é senão um desenvolvimento que, anulando a forma-matéria, cria a formaespírito, que é o retorno a Deus na ascensão evolutiva atual. A técnica da criação é explicada por esse atual retorno, que equilibra um transformismo inverso: psíquico, dinâmico, físico, de criação do universo sensível, da forma, por um ato do pensamento puro. Este, a ciência hoje o verifica; ficou como que emaranhado em toda parte, revelando-se presente na estrutura íntima da matéria. E isto tanto é verdade, que a reduzimos a uma fórmula matemática, uma vez que esta é a representação mais próxima daquela realidade, que é abstrata. James Jeans, como homem de ciência, diz que o ato da criação é uma materialização do espírito. Mas também vários outros cientistas hoje 85 reconhecem que o nosso universo dinâmico-físico pode ser uma formação involutivamente descida na 4a dimensão, ou ―contínuo‖ espaço-tempo, da 5a dimensão, que é a consciência. E o que quer dizer isto senão o físio-dínamo-psiquismo evolutivo atual, na sua inversa fase criadora? Esta consistiria justamente em uma emanação do pensamento de Deus, de que, também pela ciência, derivaria toda a formação do nosso universo. O esquema desse universal transformismo cíclico se reproduz em toda parte, debaixo de nossas vistas, nos casos menores, que nos são acessíveis. Em um universo conexo, harmônico e analógico em toda parte, isto é uma prova. Tudo é cíclico no universo, tudo renasce das radiações em que tudo se dissolve. Diz o mesmo James Jeans: ―As estrelas atuais se volatilizam em radiações que de novo tomarão consistência, tornando-se matéria... Assim pode-se representar o nosso universo como cíclico, isto é, enquanto numa região ele morre, em outra os produtos de sua morte são capazes de produzir novas vidas‖. Eis traçado aqui, no âmbito físico-dinâmico, o inverso respiro criador-evolutivo do universo. A ciência já viu esse traço do dúplice transformismo. Temos primeiro, então, a formação dos núcleos de matéria no espaço, dinamizados pelo pensamento criador, e depois a irradiação dinâmica desses núcleos altamente dinamizados, até seu esgotamento (entropia), mas, em consequência, formam-se os planetas e sobre eles a vida, incumbida da transformação da energia em consciência e pensamento. Cumpre-se assim o ciclo de ida e de retorno do ser, de Deus para Deus. Tudo é cíclico e volta ao ponto de partida. Hoje, a direção do tornar-se é evolução. Ou avançar ou morrer. A vida está a caminho do espírito. Tudo, porque é cíclico, é curvo no universo. O átomo é esférico como os sistemas planetários. Curvo é o espaço, dimensão do universo físico, que hoje, em fase evolutiva, está em expansão; curvo é o ―contínuo‖ quadridimensional em que se fundem o espaço e o tempo, dimensão da energia; curvo é o conceito criador-evolutivo, que assim cumpre o ciclo e retorna ao ponto de partida. Curvatura universal, expressa pelo universal esquema do ciclo; curvatura de todas as dimensões do ser, em que finito e infinito se fundem. Curvatura expressa pela lei de causalidade, onde causa e efeito, efeito e causa, ligam-se em cadeia num circuito que se completa, retornando às origens. Esse é o esquema do universo. Eis a grande e simples ideia que tudo explica e contém. A explicação, quanto mais simples, tanto mais é convincente. Nesta, que tudo enquadra e em que tudo torna a entrar, tem-se maior probabilidade de reencontrar a mais fiel interpretação do verdadeiro. Ela é hoje a mais completa e exauriente. A conclusão deste nosso trajeto, levado a termo com a ciência, que caminha para a descoberta de Deus, é que o universo não é uma realidade inconsciente e mecânica, onde reina o acaso, mas algo sempre mais como um grande pensamento que sabe melhor do que um grande maquinismo autômato, ignaro de si. Também no universo físico e dinâmico se revela a inteligência e a consciência. Elas regulam tudo através de uma lei perfeita, que se distingue das leis humanas, enquanto não sofre exceções e nunca é violada. Ela determina o ser e lhe define as propriedades. No mundo físico, os símbolos matemáticos indicam essa irrevogabilidade absoluta. Na matéria e energia, ela é uma regra íntima, tão inserida na essência das causas, que está em sua natureza segui-la, de modo que ela é espontânea, não forçada, livre mas nunca desobedecida. Enquanto nas leis humanas é a realização que é difícil, aqui é a não realização que é impossível. Acontece o que deve acontecer, conforme a Lei. Entre os mundos involuídos da matéria e da energia e os planos mais evoluídos do espírito a diferença é que essa obediência inconsciente torna-se consciente; mas a Lei sempre domina, e a vida, ainda que através do erro e da dor, serve para ensinar a se tornar consciente, isto é, a segui-la livremente, como o próprio e máximo bem. 86 PROBLEMAS DO FUTURO Ela é o pensamento de Deus, de que tudo depende. O espírito, pois, é universal, porque hoje, também para a ciência, ele não parece mais um intruso, nem mesmo no reino da matéria, mas fundido nela, emergindo evidente das suas profundidades. O espírito que denominamos Deus aparece hoje também para as grandes mentes diretivas da ciência, como o criador e o governador de todo o universo. Tudo isto prova que, hoje, verdadeiramente, caminhamos para a nova civilização do espírito. XXII. O DRAMA DE QUEM CRÊ De quanto dissemos resulta a inegável presença de uma inteligência nas coisas. Como podemos então perguntar se uma tão profunda sabedoria pode às vezes falir como na morte, na dor, no aborto, e não ser capaz, assim, de alcançar os seus fins? Como é que tanta potência pode aceitar tanta limitação? Mas será isto verdadeira limitação, ou toda barreira depois vem a ser igualmente sobrepujada, e a vida, portanto, pode ficar indiferente a essas falências? E tudo isto não poderia ser, ao contrário, uma forma de vitória e um meio de conquista? Então é possível, quando tudo rui em torno de nós, que Deus funcione também através da nossa esperança desiludida? Sinto, então, que alguma coisa se move com a fé e que ela, embora não se alcance imediatamente a realização, permanece e, dessa forma, não se torna vã. O Deus imanente e recôndito parece não ter pressa de se manifestar e saber realizar os seus fins, mesmo através da falência e além da nossa desilusão. Mas nós queremos e procuramos a via mais direta e segura para conseguir o êxito, porque, em nós, a vida o procura e o quer. Porém devemos verificar que os cálculos da razão, na prática, podem falir como os impulsos da fé. Nenhum dos dois métodos sabe darnos uma segurança; um não é mais válido do que o outro. Fracassam os grandes calculadores prudentes e previdentes, e, por vezes, alcançam êxito, com métodos opostos, homens que só têm fé e arriscam tudo, e ao contrário. Tal é a complexidade da vida e tantas incógnitas ela contém, que nunca há nela algo de seguro. Mais não nos resta senão confiar-nos a essa imanente, sim, mas tão recôndita sabedoria, que tudo rege, e nos limitarmos a fazer de nossa parte o que pudermos, pois que, seja como razão, seja como fé, sempre podemos muito pouco no seio de um universo sem limites, também como pensamento. Parece que este Deus, que tudo sabe e sem o que nada pode existir, procura tornar-se inacessível para nós. Tão logo os fenômenos nos dizem que Ele não é antropomórfico, como ingenuamente imaginávamos, e acreditamos haver descoberto alguma coisa e saber algo mais, percebemos então que sabemos menos, porque, suprimindo o antropomorfismo, Deus desaparece do nosso concebível e não sabemos como procurá-lo. E a tão declamada sensação de Deus que o místico obtém, é verdadeiramente sensação de Deus ou será o resultado de quem sabe quais processos psicológicos subconscientes? Contudo, nem por isto, eles ficam menos verdadeiros. E o que deles sabemos nós da sua verdadeira função biológica criadora e em que relação eles estão com Deus? É certo que esse nosso corpo e a sua psique, aliados num conjunto para viver a todo custo contra tudo e contra todos, podem pregar-nos boas peças e dar-nos perspectivas ilusórias. Mas é certo também que a vida dificilmente se deixa enganar nos seus escopos de vencer. Então é lícito suspeitar que toda derrota não seja senão uma vitória transferida, porque, para a vida, o tempo não falta; é lícito pensar que a derrota seja a condição de uma vitória maior. Certamente, o instinto nos indica muitos caminhos para vencer, e, através deles, Deus, sempre presente, nos impele para salvar-nos. Ele se manifesta como uma espécie de recuperação contra os assaltos, como uma reação nossa, defensiva e protetora, que parece automaticamente fazer-se tanto mais forte quanto mais forte foi o golpe arremetido pelo exterior. En- Pietro Ubaldi tão Deus parece dar-nos força e falar muito mais potente para nos dizer: vai, vive, luta, resiste, age, mas vive! A vontade de Deus é que a vida viva a todo custo, utilizando todos os seus recursos, aprendendo todas as coisas, boas e más, conquanto se viva. Ora, quando a fera mata para não morrer de fome ou o involuído, esmagado, rebela-se e rouba, tornando-se delinquente porque não tem outro meio para viver, é a voz de Deus que diz: vive. Quando o santo tudo sacrifica, até a vida, pelo ideal, é a voz de Deus que diz: vive. Essa voz nunca se resigna definitivamente à morte e, diante desta, revive, renovando-se em novas vidas. Também a fera e o homem-fera querem viver. Mas cada um tem a sua vida. O involuído não tem outra e se apega à vida animal, que é tudo para ele. E se o santo a entrega, é porque ele viu uma outra vida a ser conquistada, da qual o primeiro nada sabe. O santo se rebelaria com a mesma potência, se bem que em planos e com métodos diversos daqueles com os quais se rebela o involuído, quando lhe viesse a ser tirada a sua vida de santo, tal como aquele reage quando se lhe tira a sua vida de besta. Porém, se bem que ele tenha razão no seu plano inferior, o seu modo de comportar-se o qualifica e o revela como ser inferior. E esta marca é a sua mais grave condenação, porque isto implica em estar ele ligado a formas de vida inferiores. Mas a vida quer viver em todo plano e, quando lhe falta o necessário, procura-o por todos os meios. Com lobos saciados poderemos sempre viver tranquilos, em paz, mas nunca com lobos esfomeados. Ora, a vida nos faz compreender, pelo modo como incita os lobos esfomeados contra os seus esfomeadores, que ela é necessidade para todos, é dever e direito ainda se os esfomeadores, somente porque são mais fortes, classificam como culpa a defesa de quem é esmagado e como justo direito o seu próprio ato de esmagamento. Assim se explica como, em dado momento histórico, quando chega a maturidade das classes inferiores despertadas, a vida, como vontade de Deus, possa impeli-las a conquistar por si aquele bem-estar que dois mil anos de Evangelho aconselharam em vão aos de mais posses repartir fraternalmente. Quando o evoluído fracassa no seu plano, ele sente que está tentando realizar um tipo de vida super-humano, mas que, por enquanto, aquela tentativa fracassou. Não conseguir por enquanto o que deseja não constitui derrota, mas faz parte da estratégia de conquista. Então, se o homem é maduro, a fé que parecia aniquilada pela desilusão, ressurge mais forte por outro lado, como se potenciada pela derrota, mais aguerrida para melhor poder vencer novas batalhas. Porque a verdadeira fé não é um estado inerte e passivo, mas uma arma que deve ser refinada, uma posição de vanguarda que deve ser consolidada, que pode vacilar e que se pode perder, mas que se pode reconquistar. A fé sentida é uma força útil na grande batalha para a evolução, para a conquista no espírito e para a ascensão até Deus. A alma sente a utilidade da fé nessa luta e, conhecendo-a, não a abandona mais. Quando a vida provou a fé e conquistou essa força, decidiu mantê-la, pois que nunca deixa o que lhe é útil. A fé é um novo sentido, um tentáculo estendido para o ignoto, com um poder de intuição que pode errar, mas que, errando, se corrige, se aperfeiçoa, se consolida. Ela é um meio positivo de defesa da vida, apto a progredir sempre. Para quem provou uma vez a fé, há, ainda quando esta fracasse e pareça nos haver enganado, um instinto que conduz à sua salvação, porque ela possui a grande função de ser a última âncora de salvação, sem o que toda derrota não pode ser senão desespero. A esperança que a vida nos impõe, ainda quando tudo parece perdido, é um instinto que vem do Deus presente, que quer que vivamos ainda; instinto que, irracionalmente, parece saber que, não obstante tudo, derrotas, dores e até mesmo a morte, a vida continuará. É este instinto, em que fala o Deus imanente, que nos faz crer na vida além da morte. Além de todas as aparências contrárias, esse instinto nos diz que a vida não pode acabar. Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO Estranho, misterioso mundo este, que somente a fé no-lo pode abrir! Por momentos, ele se abre de par em par; depois, torna a se fechar. Ele nos enceguece com seus raios, no entanto parece feito de treva profunda. Na fé está o porvir da vida. Há um pressentimento de divina indestrutibilidade em todas as coisas. Não é essa a voz de Deus, que nos fala das profundezas? É a eternidade da essência das coisas que nos fala, revelando-se do profundo de tudo o que existe, dizendo-nos, através de um indomável instinto nosso, que, não obstante toda a aparência contrária, segundo a qual tudo é lábil e transitório, parecendo poeira e ilusão, tudo, ao contrário, é estável e real. E o que é esta voz senão a revelação da universal presença de Deus? Então levanto a vista para o céu e digo: ―Deus, perdoa-me se, no momento em que as coisas fracassaram, a minha fé caiu e assim te reneguei. Eis que Tu novamente surges diante de mim, mais vivo e mais presente do que antes. Nenhum fato contrário nunca poderá eliminar a Tua presença. Tu estás aqui, e eu Te escuto‖. Será ilusão, mas com a fé pode-se operar muitas coisas que, de outra maneira, não podem ser feitas. O fato é que ela é útil, serve-me, e eu a utilizo para a vida. A desilusão escava mais profundamente, com o resultado de demolir uma fé superficial e encontrar uma mais profunda. Porém é preciso ser prudente também na fé, pois que também ela oferece os seus riscos. Quem se aventura loucamente, confiando na imaginação, fanatizando-se e crendo que a fé consista nisto, pode estragar esse mecanismo maravilhoso e, então, a fé não pode funcionar em suas mãos. A culpa, então, não é da fé, mas de quem não soube crer justamente. E, renegando-a, distanciamo-nos de uma via salutar, que nos conduz para forças boas e amigas. Disse que Deus desaparece da nossa mente quando O desantropomorfizamos. No entanto Ele ressurge em nosso pensamento e diz a cada um de nós: ―Olha em torno: em toda parte, Eu estou‖. E tudo volta a falar-nos d'Ele, que volta a nos olhar de uma miríade de rostos diferentes. E nós, que julgávamos havê-Lo perdido por não O vermos mais localizado numa forma, vemo-Lo ressurgir diante de nós em todas as formas. Realmente, para muitos, essa imanência pode tornar-se amedrontadora, então eles se afanam em enclausurar Deus nas igrejas e distanciá-Lo no transcendente, para ficarem mais livres de Sua presença, que os preocupa em seus negócios quotidianos. Mas o justo, que sofre e tem ânimo puro, goza dessa imanência e se lhe agarra com todas as suas forças, como única defesa, e não há condenação espiritual que possa separá-lo dessa sua fé. A nossa rápida corrida através da ciência nos confirma sempre mais a ideia não só da existência, mas também da imanência de Deus. Se essa sabedoria por vezes parece fracassar e ser contrastada pela dor e pelo mal, trata-se apenas de uma aparência. Para quem vê em profundidade, esses desequilíbrios são reabsorvidos em equilíbrios maiores e, no fim, são eliminados. Certo é que o universo aparece diferente segundo o olho que o vê e o plano de onde se vê. Então nos vem a propósito perguntar como apareceria o nosso mundo visto de um plano macroscópico. Talvez do mesmo modo como a nós aparece o mundo submicroscópico. E, assim como nos escapa o universo macroscópico, também não poderíamos perceber o mundo do nosso plano, se tivéssemos uma mente e sentidos adaptados a perceber o mundo submicroscópico. Uma consciência submicroscópica, quem sabe com que esforços, chegaria somente a alguma aproximação daquele mundo sensório que forma a nossa realidade concreta! Avizinhar-se-ia dele como fazemos com os universos galácticos, com tais e quais observações, hipóteses, teorias, cálculos, controles experimentais e por sínteses progressivas. Uma consciência assim formada deveria fazer estudos, quem sabe quais, para distinguir a água da pedra e nunca poderia perceber e compreender um ocaso, uma flor, um quadro. De seu próprio plano, portanto, o homem sabe muito mais. Se ele pertencesse a mundos menores, não compreenderia nada 87 do seu próprio, que chamaria de ilusão, embora, relativamente a ele, no seu plano, seja uma realidade. Todo mundo é real no seu nível, mas ilusão se visto de outros planos, e todo ser é dotado da sabedoria que lhe serve para a sua vida. Se o homem vai conquistando o conhecimento do universo, é porque a sua vida se dilata em proporção àquele conhecimento que lhe deverá servir. Tudo é relativo em nosso universo, que é relativo. Sem ir tão longe, observando casos menores, ainda em nosso mundo, vemos que existem entre os homens diferenças profundas, dadas pelos diversos planos biológicos em que vivem, conforme o seu grau de evolução. A ciência médica, bem como as ciências sociais, dirigem-se para o tipo médio e aplicam para todos normas estandardizadas e adaptadas àquele tipo. Assim, quem é menos ou mais evoluído que este padrão, deve adaptarse à medida comum, ou elevando-se para um comportamento superior à sua natureza, ou rebaixando-se para um inferior. Bem dura será na Terra, entre os normais tipo ―standard‖, a vida do ser que alcançou no espírito formas biológicas superiores. O primeiro obstáculo colocado diante desses puros pesquisadores da verdade, a esses ascetas do pensamento e sacerdotes do espírito, é a humana intransigência e mania de enquadramento, pelo que tudo já está aprioristicamente catalogado segundo os interesses de cada grupo. Quem procura seriamente a verdade tem necessidade de ser livre, e não preso a pontos fixos e soluções já dadas. Assim ele se encontra de maneira a não poder dar um passo sem encontrar um muro divisório e, atrás dele, um inimigo armado. O involuído é separatista, agressivo, absolutista. O evoluído é universal, pacífico, tolerante. Como tal, não pode ser enquadrado nos grupos humanos, com base em interesses e ávidos de se destruírem para dominar. Desta sorte, o evoluído não encontra senão tentativas de encarceramento da sua universalidade em limitações humanas. Disto resulta o seu sufocamento e o secar-se daquela fonte espiritual de que o tipo inferior, mais do que todos, tem necessidade. A esses seres que emergem do tipo biológico normal impõe-se a luta de todos, de modo que eles devem saber viver como anjos entre demônios e produzir no espírito, em meio a turbas de encarniçados ventres ambulantes. Sem dúvida, o método da luta é útil à vida para os seus fins seletivos, mas, nessa forma, o é só nos graus inferiores, onde o ser não sabe aplicar um mais elevado gênero de atividade evolutiva. Mas, em planos superiores, essa forma de atividade é completamente estúpida e inútil para os fins seletivos. O ser superior afasta-se dela completamente, com a tolerância e o perdão. O inferior, que não sabe fazer melhor do que faz, tem necessidade, para aprender a evoluir, do egoísmo, da rivalidade com o vizinho, da agressão recíproca, da fome e da resistência de um ambiente hostil. E tudo lhe é fornecido em proporção. Mas, para o evoluído, a seleção se realiza em forma totalmente diversa. A sua atividade se dirige para criações muito mais profundas. Para ele, é completamente estúpido matar-se uns aos outros, quando, para viver, o que há na Terra sobra para todos. Mas, se comem uns aos outros os seres que ainda não compreenderam o rendimento utilitário do trabalho fraternalmente orgânico e por isto lutam e sofrem, é justamente para aprender tudo, que é a meta da sua evolução, já alcançada pelo evoluído. Este encontra-se só e deve viver entre os que ainda não podem compreendê-lo. Mas, para o homem normal, é coisa diversa. Para o animal, se não fosse a agressão, quem lhe ensinaria a astúcia e quem lhe formaria a inteligência? Tudo sempre se escreve em nosso eu; onde e como, não sabemos, mas permanece escrito. O evoluído, que não tem necessidade de reforçar a inteligência, pois, pelo menos nesse plano, já a formou, sabe esquivar-se ao golpe, porque é inteligente. O néscio, que tem necessidade de reforçar a inteligência porque ela ainda lhe é escassa, é o que menos sabe defender-se e o que mais se expõe, portanto apanha todos os 88 PROBLEMAS DO FUTURO golpes. Ele é o bom bocado dos espertos dedicados à caça ao parvo; ele é o que mais vai à escola. Quem mais sabe, por mais ter aprendido, não frequenta mais as aulas. Não se pode impedir isto, porque é da vida que no mundo social, a cada passo, exista uma armadilha e um lobo pronto para dilacerar. Tudo é lógico e equilibrado no plano normal e tem o seu justo escopo. Tudo é proporcionado à necessidade de evoluir e à sensibilidade dos homens que, para compreender, têm necessidade de duros golpes. Mas, para o evoluído, ficar imerso nesse mundo e exposto a esse gênero de luta é coisa inútil e antivital, enquanto ela é útil e vital para os outros. Ele deve gastar tempo e energia para não ficar ferido, enquanto desejaria cumprir o seu fim, para o qual ele está na Terra, fim bem diverso daquele egoístico dos demais, e que é o bem dos outros. A incompreensão da posição do evoluído por parte do mundo chega ao ponto de considerá-lo um anormal, e o seu estado é tido como patológico pela medicina, que não admite senão um modelo estandardizado, baseado no tipo biológico médio, dominante por número. Todo o resto é definido como patológico. Não se admite o tipo biológico transcendente, supernormal, imerso no duro trabalho criador que se opera naquela fase de transição evolutiva que os demais ignoram. Por razões de prática atuação, hoje os princípios terapêuticos, econômicos e sociais são todos estandardizados, contudo nenhuma coisa é igual a outra e nada é mais absurdo na natureza do que o igual para todos. Dever-se-ia chegar, ao contrário, a um novo ramo de medicina do supernormal, cujas perturbações evolutivas sejam entendidas como normais e salutares, e não, como hoje, patológicas, como também não são patológicas para a mulher as dores do parto. No entanto, muitas vezes, no caso do evoluído, esses princípios são considerados patológicos, qualificados com nomes que dizem bem pouco, como histerismo, neuroses e semelhantes. Como se daria o parto de uma mulher que visse o seu feto considerado como um tumor a ser operado e devesse suportar intervenções nesse sentido? Todavia assim acontece com o futuro tipo biológico que hoje, excepcionalmente, começa a formar-se, tipo que deverá sempre mais se generalizar, porque é no espírito que está o único porvir da vida. É preciso compreender que certos desequilíbrios são necessários como condição de equilíbrios mais altos, que assim são conquistados. Formou-se desse modo uma pseudopatologia. Entretanto, quando o novo tipo biológico de amanhã começar a formar-se com maior frequência de casos, deverá nascer essa nova medicina que contempla os distúrbios evolutivos e as perturbações orgânicas e psíquicas geradas pelo transformismo biológico, que tende para mais altas formas de vida. A progressiva evolução humana está transformando tudo na Terra, e o involuído ainda não se apercebe dela. A ciência está prestes a abrir muitas portas do mistério, derrubando muitos ídolos, e iluminará muitas mentes, modificando em consequência a nossa vida individual e social. O ultramicroscópio eletrônico (utilizável somente com a fotografia) pode alcançar aumentos de 40.000 diâmetros. Mas, com isto, estamos bem distantes de poder penetrar a alma das coisas. Atrás do mundo das aparências, há um outro mundo, de potências. Entretanto tudo já está escrito e resolvido no pensamento universal, basta somente saber ler nele. A solução de todos os problemas está em ideias ou ondas pensamentos que já existem e circulam na atmosfera espiritual do cosmo. Nada há para descobrir; basta apenas saber evoluir e, consequentemente, sensibilizar-se, que tudo se tornará visível e evidente. Este trabalho que cabe ao evoluído, àquele que os demais consideram o grande imbecil da vida, porque ele não rouba, não esmaga, não mente. Trabalho que deve equilibrar os efeitos de uma ciência que o involuído Pietro Ubaldi não sabe utilizar senão para a morte e a destruição. A invenção da bomba atômica parece secundária diante da descoberta de raios letais que teriam um efeito infinitamente superior ao produzido pela desintegração de um núcleo de plutônio ou de urânio. São conhecidas as reações em cadeia na desintegração dos átomos. Nesse processo se formam radiações gamas que interrompem a cadeia desintegradora. Se essas radiações podem causar distúrbios na desintegração em cadeia completa, então eles podem criar zonas letais. Acelerando-se essas radiações e regulando-se-lhe a velocidade e a direção, poder-se-ia canalizálas a uma velocidade teórica de 300.000 km por hora a um objetivo até 100.000 km. Nesse campo, toda vida deveria cessar. Como se vê, a ciência do mal não está em ócio. Os homens, aninhados em suas posições conquistadas com esforço, desejariam, para conservá-las, que nada caminhasse no mundo, permanecendo tudo imóvel. Mas a vida não pode parar. Que faz parte dos insuprimíveis ímpetos evolutivos, não é o revolucionário louco ou egoísta, que mente em vantagem própria, mas sim o revolucionário sábio, que trabalha em contato com o pensamento de Deus e em harmonia com as leis da vida. E pense-se que a ascensão em todo campo é a grande lei do ser, o princípio fundamental do universo, sustentado pelas maiores forças da vida. Pode-se matar o homem que personifica essas forças, mas elas estão acima de todo poder humano e não se pode destruí-las. Deus está com os homens que se sacrificam por esses escopos de ascensão humana, e, para cada um deles que se mate, renascem cem. Há mais de um século que o mundo se orientou para o materialismo, que, em seu tempo, também teve a sua função. É o fenômeno equilibrado das oscilações do pêndulo ou do retorno cíclico dominante na vida, também na social, que agora impõe um impulso na direção oposta, ou seja, para o espiritualismo. Isto é elementar. A vida harmônica e equilibrada está para dizer o seu ―basta‖ aos homens da matéria. Isto significa a sua liquidação. Tudo é periódico e equilibrado na natureza. Estamos sujeitos a retornar a uma ordem, estamos sujeitos a uma vontade cósmica, contra a qual o homem nada pode. E este que se conclui, é o nosso oitavo volume, que estuda o pensamento e o comando dessa vontade cósmica, da qual o homem quase não faz nenhuma conta. Ela fala sempre, e a escutamos em todas as suas expressões, das seguidas pelo cientista às percebidas pelo místico. Escutar, para eles, constitui espasmo, porque aquela voz é terrivelmente potente e fala do inconcebível. Para compreendê-la, é preciso enfrentar o martírio da mente e do coração, pois somente então ela responde, somente através desse martírio o homem se torna digno de ouvi-la. O esforço da vida é fugir à paralisação dos mundos inferiores e evadir-se da imobilidade e do determinismo das leis dos planos mais involuídos, para conquistar liberdade e domínio. Contra a morte, o ambiente hostil, as forças do mal, o egoísmo do involuído, a vida quer subir para Deus. Esta é a Lei. Por isso a vida arrisca o novo e imola tantos exemplares, para explodir da forma para o espírito, para evadir-se da matéria, para elevarse, sempre insaciável de superamentos. Assim, a vida lança os seus campeões e, para esse fim, também os sacrifica, mesmo sabendo que arrisca a sua melhor parte. O pensamento criador, concentrado nas formas inferiores, não está morto. Ele está aí prisioneiro, mas pronto a se desenvolver em energia e de energia em psiquismo, porque quer se libertar e retornar a ser ele próprio. E eis que, no fundo de todo conceito, reencontramos sempre a vertigem do infinito. FIM Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS ASCENSÕES HUMANAS I. O PRINCÍPIO DE UNIDADE Depois de haver, no volume anterior, examinado os problemas psicológico, filosófico e científico, encaminhamo-nos agora para novas regiões do pensamento. Nos capítulos do volume precedente1, desenvolvemos vários conceitos contidos em A Grande Síntese. Foram assim confirmadas varias afirmativas científicas, que se podem encontrar especialmente nos capítulos XII, XIII e XLVI, bem como no Cap. XCVI da obra citada. Vimos, desta forma, os últimos resultados da ciência objetiva confirmarem os conceitos apontados pela intuição. Ali, procuramos fortalecer a previsão intuitiva com especulações em todos os campos, ainda os mais diversos. E, de cada um destes, obtivemos a confirmação desejada, para tornar válida a visão sintética fundamental. Dado que qualquer ramo do conhecimento humano não é senão uma visão parcial do universo, dado que o objeto observado, ainda que muitos sejam os pontos de vista diversos, é único, torna-se inevitável que estas visões parciais e particulares, se não forem torcidas por preconceitos e absolutismos, devam finalmente convergir e fundir-se numa única visão harmônica. É certo que o pensamento sintético de hoje deve possuir, senão nos detalhes, pelo menos em seus últimos resultados, todo o conhecimento moderno. Se, antigamente, o filósofo, desdenhando o contato com os fenômenos, reputados coisa impura, podia especular apenas no campo das puras abstrações da lógica, hoje ele deve levar em consideração toda a riquíssima contribuição oferecida pelos inúmeros ramos particulares em que se divide a ciência, cada qual no seu campo de pesquisa, como resultado da indagação objetiva. Estes ramos do saber humano nos aparecem, de fato, como disciplinas circunscritas no âmbito restrito do particular e, por conseguinte, fragmentárias e até divergentes, mas o objeto é único: trata-se do mesmo universo unitário, em que todos os caminhos conduzem ao mesmo centro. Por esta razão, pode haver discrepância, por exemplo, entre revelação, religião, filosofia, ciência etc., mas isto apenas enquanto estes ramos do conhecimento forem ainda involuídos e se apresentarem no atual estado elementar, pois é evidente que, sendo idêntico para todos o livro em que se abeberam, eles, ao progredirem, não poderão acabar dizendo senão a mesma coisa. Efetivamente estamos vendo, na presente quadra, a ciência evolver além do materialismo, abrindo caminho para a verdade do espírito, já proclamada pelas religiões e filosofias. É justamente este sentido de unidade que domina a presente obra. Daqui resulta a grande dificuldade de isolar qualquer fenômeno, seja qual for a sua natureza, do restante do todo, mesmo com relação a aspectos que pareçam de uma ordem muito afastada. Quem concebe o universo com mentalidade sintética, e não analítica, encarando-o como um todo orgânico, e não como um oceano de fenômenos isolados, não pode deixar de perceber, qualquer que seja o ponto do mundo fenomênico que ele observe, que a multidão dos casos afins ao caso tomado por objeto de estudo acumula-se em derredor, para se fazer ouvir também a sua voz. Um fenômeno isolado é uma abstração nossa, por necessidade de estudo, que não corresponde à realidade. Assim como não é possível observar nenhum fenômeno completamente isolado, sem que nele repercutam e influam tantos outros fenômenos, inclusive o próprio fenômeno que o observador representa, também não é possível enfrentar e solucionar um problema particular sem conhecer a sua conexão com muitos outros problemas e resolver todos eles, até ao máximo, que 1 Problemas do Futuro. (N. do T.) 89 é o universo. Segue-se daí que não é possível tratar nenhum argumento isoladamente, porque cada um reclama a consideração de todos os outros, com os quais tem pontos de contato, impondo-se assim a necessidade de localizá-lo com relação a todos os problemas do universo. Quando se passa para um novo problema, torna-se indispensável relacioná-lo a todos os precedentemente desenvolvidos, porque se sente a cada passo uma rede de contatos recíprocos que, em um universo uno, faz com que, de qualquer ponto deste, todos os demais pontos sejam notados. É esta impossibilidade de isolar qualquer caso que o faz apresentar-se a nós sempre circundado por um cinturão de outros casos, que necessitam ser tomados em consideração. Este é o motivo pelo qual, nesta nossa exposição, veremos reaparecer com frequência os mesmos conceitos, o que poderá induzir o leitor desavisado a concluir que houve repetições desnecessárias. Tratase, ao invés disto, do retorno ao mesmo caso para observá-lo diferentemente, ora de frente, ora de lado, ora de cima, ora de baixo, ora em função desse ou daquele fenômeno, ora em um ponto ou posição do organismo universal, ora em uma outra, pois é muito importante estabelecer as conexões e realçar as relações com os outros casos e com o todo. As maiores descobertas podem nascer apenas por se terem encontrado relações novas entre fatos velhos. O universo é uno, e não é possível, em nenhum instante, deixar de encará-lo como um todo. É difícil, pois, concatenar numa elaboração lógica e sistemática aquilo que, apresentando-se como um bloco único e compacto de coexistência de todos os fenômenos, rebela-se contra a exemplificação parcial e sucessiva. Esta volta frequente aos conceitos básicos, que, como dissemos, pode parecer repetição, é devida à nossa orientação convergente e centrípeta, e não divergente e centrífuga; resulta da nossa contínua preocupação de unidade, a fim de permanecermos coligados ao único centro de todas as coisas, encarando estas apenas em função deste, do qual dependem. Em vez da concatenação lógica, o pensamento de quem observa o universo procede, em nosso caso, segundo a trajetória típica dos movimentos fenomênicos (cfr. A Grande Síntese, Cap. XXIV, fig. 4), isto é, por retornos cíclicos que, progressivamente, elevam a posições sempre mais altas o ponto de partida, seguindo as oscilações de uma onda. O pensamento também obedece a esta lei universal dos fenômenos. Todo conceito, realmente, é atravessado muitas vezes e, cada vez, se aprofunda mais, de modo a surgir ampliado e coligado a outros conceitos novos e mais afastados. Da primeira vez, ele surge genérico, como vista panorâmica de conjunto; depois aparece diferenciado, com particulares que emergem e se distinguem com individualidade autônoma. O seu desenvolvimento detalhado não se pode verificar senão a seguir, pois que, de outra forma, prejudicaria o aspecto conjunto da primeira visão. Por este mesmo motivo, o desenvolvimento de tantos temas, apenas acenados em A Grande Síntese, não era possível naquela ocasião, pois divagaríamos em digressões que teriam fragmentado a unidade da exposição, além do mais a visão não havia adquirido os detalhes que só subsequentemente poderiam vir a lume. Assim compreendese a necessidade de retomar cada tema em lances sucessivos, para fazê-lo progredir. Desta maneira, progressivamente, dilata-se o nosso conhecimento, tanto em amplitude como em penetração, e, assim, partindo dos princípios gerais, cada vez mais nos aproximamos da atuação prática da nossa vida. Finalmente, também é levado a encontrar repetições nesta exposição quem, em sua leitura, procura apenas o conceito, pouco se importando em transformá-lo em ação na própria vida. Ora, estes escritos não foram feitos para serem somente lidos, mas sobretudo para serem aplicados, pois que não constituem uma ginástica intelectual, um treinamento literário, e só começam a revelar sentido quando forem vividos, porque então, e só então, poderão ser compreendidos. Quem simplesmente os ler, sem aplicá-los em si, não poderá dizer que os compre- 90 ASCENÇÕES HUMANAS endeu. Sim, trata-se de vida, de conceitos-ação, de pensamentoforça, trata-se de um verdadeiro dinamismo concentrado na palavra, à guisa de um explosivo capaz de imensa expansão em ambiente apropriado; trata-se de conceitos-germe, capazes de enorme desenvolvimento se caírem em solo fecundo. Quando, pois, o leitor achar que se encontra diante de uma repetição, em vez de exclamar: ―mas isto já foi dito e eu já o li‖, diga: ―mas ainda não fiz isto, e esta repetição deve me induzir a pô-lo em prática‖. Quem ler este livro como o fez com todos os outros, por curiosidade ou por cultura, sem realmente pensar em vivêlo, perde o tempo. A leitura aqui consiste em assimilar e aplicar. Ela se completa na maceração, aperfeiçoa-se na maturação e conclui-se na catarse e na sublimação. Justamente pelo principio de unidade que domina em todo o universo – aquele monismo em que nos aprofundamos nos capítulos precedentes2 e que encontra confirmação na ciência – constatamos que os princípios universais e as grandes coisas estão coligadas com as pequenas do nosso mundo, de modo que a nossa limitada e efêmera vida do relativo adquire significados imensos e eternos. Assim é que a vida mais simples pode dilatar-se, agigantando-se no infinito. Se esta descoberta de novas relações entre as coisas velhas pode parecer uma repetição delas, pois não se consegue com isso nenhuma descoberta nova particular, no entanto empresta-se a cada uma delas um sentido e sabor novo. Assim, quanto melhor não se poderá compreender cada uma delas, como por exemplo o fenômeno social, quando visto do mesmo ponto de vista biológico que repete no nível vida o que sucede nos agregados celulares, moleculares e atômicos da matéria! Este método universal dos agregados, ou unidades-sínteses, que observamos por toda a parte, em todos os campos e em todos os níveis evolutivos, este procedimento em direção a unidades cada vez mais vastas bem como a estrutura coletiva de toda unidade nos mostram a verdade dos princípios acima afirmados, ou seja, de um lado uma pulverização do todo em elementos cada vez menores indefinidamente e, do outro, a reconstituição da unidade no reagrupamento destes elementos em conglomerados continuamente maiores. Esta constatação da estrutura coletiva de toda a individualização, que é sempre uma síntese, é justamente uma demonstração ativa do processo supracitado da reunificação universal. Calcula-se, afirma Lieck, que um homem adulto seja constituído, em cifras redondas, por 3 bilhões de células e que possua mais ou menos 22 bilhões de glóbulos vermelhos. Pense-se agora, de quantas moléculas será constituída uma célula, de quantos átomos cada molécula, de quantos elétrons cada átomo e de quais e quantas ondas interferentes será constituído um elétron, para então avaliar-se a complexidade da estrutura coletiva e progressiva sobre a qual se eleva o edifício do ser humano. No entanto, mesmo existindo nele uma série de mundos, a multidão de elementos que o compõem coordena-se tão harmonicamente, que esta unidade-síntese, que é o homem, sente-se perfeitamente uno no seu eu. Mas o homem, por sua vez, não é senão um elemento da sociedade humana, que também o é de uma humanidade mais vasta, e assim ao infinito. Atendo-nos a esta observação dos fatos, de um ponto de vista científico, poderemos imaginar Deus como a máxima unidadesíntese, em que se reunificam estes agregados que, gradativamente, progredindo de unidade-síntese em unidade-síntese, chegam até Ele. Se este é o esquema do universo, que da matéria ascende até ao homem, o mesmo deve suceder também do homem para cima, pois que já vimos que o sistema é único em todos os níveis. Ele exprime exatamente o princípio da cisão e reunificação da cisão, confirmando com isto o outro princípio do equilíbrio universal. Deve-se compreender, ademais, que cada unidade-síntese não é apenas a soma dos elementos com2 O autor refere-se ao livro Problemas do Futuro. (N. do T.) Pietro Ubaldi ponentes, mas é a resultante da sua organização, isto é, alguma coisa qualitativamente em tudo diferente. E assim se prossegue até à unidade máxima, Deus, que certamente não é a soma de todos os elementos do universo, mas algo completamente diferente e muito mais, não só por ser unidade-síntese, mas também porque, neste ponto, o ciclo dos efeitos se esgota, confundindose com a causa, que assim permanece eterna e absoluta, transcendendo além de todas as suas manifestações imanentes, além de sua natureza exaurível, que opera no limitado. A ciência e a lógica, que nos permitiram chegar a estes princípios, nos guiarão em suas importantes aplicações. O progresso é, pois, sinônimo de unificação, ou seja, a evolução não se cumpre apenas individualmente, porque, tão logo se tenha revelado neste sentido, manifesta-se reorganizando rapidamente os elementos em unidades coletivas. Hoje, a identidade de interesses começa a irmanar em grupos variados os homens de todo o mundo, num sentido coletivo antes ignorado, pelo menos nas proporções e na extensão que se verificam agora. E o indivíduo pode encontrar no respectivo grupo, qualquer que seja este, proteção e valorização. A unificação, sem dúvida, corresponde sempre a um interesse mais alto no momento, e a evolução consiste em chegar a compreendê-lo. Assim, mal uma série de indivíduos progride, descobre a maior vantagem de viver organicamente que em luta recíproca. Atualmente compreende-se isto para vastas classes sociais; ontem se compreendia apenas para grupos menores; amanhã compreender-se-á para toda a humanidade. A organização será tão ampla quanto a compreensão. Quanto mais se caminha para o separatismo, tanto mais se desce. A unificação é o caminho da ascensão. A nossa vida social é uma aplicação destes princípios. Quando um organismo qualquer, físico, biológico ou social, se desfaz, é uma unidade-síntese que se fragmenta, verificando-se um retrocesso involutivo, e ao contrário. No primeiro caso, não permanecem senão as menores unidades ou elementos componentes, que, isoladamente, retomam a vida num plano inferior, sem mais conhecer-se um ao outro, frequentemente inimigos. A rede das relações que formam o organismo superior se despedaça. Assim se dá na morte de um homem, como na de uma nação. A própria cisão do tipo humano em dois sexos é uma forma involuída, em que cada unidade procura completarse na outra metade, sem a qual permanece incompleta. Um dia o macho atual, que compreende apenas a força, o trabalho, o dinheiro, a organização e a inteligência, deverá completar este seu conhecimento com a bondade, o sacrifício, a beleza e o sentimento, qualidades estas sobretudo da mulher atualmente, que também deverá completar-se no outro sentido. E quando o tipo biológico houver reunido em si todas estas qualidades, então terá avançado. Entretanto, quando o homem e a mulher conseguem coordenar as suas qualidades em colaboração, na família, já constituem um organismo mais evoluído, uma primeira nova célula ou uma unidade-síntese coletiva. Mas, quando uma destas unidades se desfaz, ao mais evoluído estado orgânico seguese um involuído estado caótico. Quando uma sociedade se desagrega, são em verdade os atritos que triunfam em vez da colaboração, e, na queda involutiva, são os mais primitivos que ganham projeção, valorizam-se e emergem, porque o funcionamento da vida coletiva desceu ao seu plano. No grau superior, eles não têm oportunidades de ação. Estas desagregações se verificam assim que a classe dirigente se esgota e entra em crise, como sucede depois das guerras e nas revoluções. Então, à ordem de um funcionamento orgânico sucede a desordem e a revolta, que se justificarão chamando-se liberdade, até que se reconstitua uma nova ordem, com uma nova disciplina, que se justificará com o nome de dever. A vida social jamais pode parar. Quando a classe dirigente, detentora da autoridade, se cansa, perde-a, e uma classe inferior a conquista, a classe mais involuída dos primitivos. São as classes inferiores que sempre fazem Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS pressão de baixo, intentando subir. São elas que o poder, nos períodos de calma, mantendo a disciplina, coagem dentro da própria ordem; são elas que, aspirando sempre ao domínio, no primeiro sinal de fraqueza saltam à garganta do velho patrão para estrangulá-lo e substituir-se a ele no comando. Mas também isto redunda em fadiga, e também as classes inferiores se cansam em exercitar o poder. Por isso mesmo a nova ordem por elas construída será subsequentemente agredida por outros estratos sociais, numa luta em que sairá vencedor o mais idôneo, aquele que melhor representar os interesses da vida. Assim, quando a unidade-síntese superior é reconstituída em condições melhores que a precedente (assim caminha a história) e firmar-se como poder, então os involuídos, representantes de um nível de vida inferior ao da maioria, devem subordinar-se à unidade superior e viver uma vida secundária, apenas em função dela. Desta forma, eles são enquadrados na ordem restabelecida e, dado que a vida agora funciona num plano mais elevado que o seu, não aparecem mais como heróis de uma revolução, e sim como delinquentes comuns, inimigos da ordem. Mesmo o micróbio-patogênico no organismo humano é uma forma de vida, que é mantida à parte enquanto predomina a do organismo são. Mas, tão logo esta se desfaz, eis que o micróbio invade tudo, encarregado da liquidação da sociedade celular, que é o corpo humano. Eis o significado biológico e cósmico das lutas políticas e classistas hodiernas, vistas em relação aos dois princípios de cisão e reagrupamento dos elementos do universo. Em tudo isto há equilíbrio. As classes inferiores, como os micróbios patogênicos, são solicitados pela vida à ação somente enquanto for necessária e útil a sua presença, e não mais. Trata-se de intervenções patológicas, de crises de transição (revoluções), de execução de uma tarefa de destruição necessária à reconstrução, da qual eles são condição. Mas a obra dos demolidores se extingue com eles logo que os interesses da vida reclamam a obra dos reconstrutores. É assim que as revoluções, cumprida a sua função, se exaurem, e os seus autores são tragados pela sua própria revolta, na qual está toda a sua missão. Assim se formam sempre equilíbrios novos. Mas, nestes equilíbrios, impera sempre a lei biológica, segundo a qual o ser biologicamente involuído deve permanecer automaticamente, pela própria qualidade, submetido ao evoluído. Como nunca, hoje, no mundo se defrontam em luta dois princípios opostos: o da cisão e o da reunificação. O nosso século é de transição, em que estão abalados os equilíbrios precedentemente estabelecidos e se está na expectativa da formação de novos equilíbrios. É bem verdade que este estado de coisas é o mais criador, mas também é o mais perigoso. É o mais criador porque tudo desmorona; o velho mundo é removido, e o terreno se torna desimpedido, desaparecendo as barreiras e desmantelando-se as defesas das posições conquistadas. Tudo é mudável, um campo aberto a todas as inovações. Tudo é possível hoje. Mais do que a bomba atômica, temos sob os pés o fermento das ideias, que é muito mais explosivo. Tudo é destruição atualmente. Rolam por terra as velhas divisões nacionalistas, econômicas, religiosas, ideológicas. É a grande hora de joeirar e reconstituir todos os valores humanos. Na hora destrutiva, são chamados em cena os demolidores de todos campos, materiais e espirituais. É a orgia da destruição preparada pelo materialismo, e este é a ideia que, na quadra atual, atinge a plenitude de sua realização. Mas, justamente por se encontrar em plena realização, ela amadureceu e caminha para a sua morte, enquanto que, pela lei do equilíbrio, desponta por baixo dela, ainda como um fraco dealbar de aurora, a ideia do espírito. As trevas e a luz se digladiam em plena batalha. E, na verdade, se de um lado tudo desmorona, jamais como agora se observaram tão aguçadas as tendências às grandes unidades. Involução e evolução se contrastam. A capacidade destruidora, o materialismo, o ódio, o egoísmo, a avidez desaçaimada e individualista até 91 nos opostos imperialismos, representam a corrente involutiva. O imenso progresso científico que nos conduz até ao espírito, o domínio sobre as forças da natureza, os grandes meios de comunicação, a formação de grandes unidades sociais, políticas, econômicas e religiosas, uma tremenda necessidade de orientação e de fé, nascida da dor, representam a corrente evolutiva. As características da nova era serão a unificação e a universalidade. Isto por si só justifica, em face das finalidades da vida, a necessidade da ação destruidora atual. A nova era não será de imposição, mas de compreensão. O sistema da coação e da força, no último meio século, destruindo a Europa, isto é, o centro do mundo civil, nos forneceu a mais dolorosa e desastrosa experiência que um homem pode conhecer. Quem ainda acreditar em tal método e segui-lo, deverá fazer a mesma experiência e chegar ao mesmo fim, pois que isto está implícito no sistema. Mas existe um outro sistema, incompreendido e negligenciado, que é o único que poderá sobreviver: o da compreensão e o da convicção. Os absolutismos, as verdades exclusivistas e intransigentes, tendentes a dominar e coagir o indivíduo e a consciência, em qualquer campo, são métodos superados. Da concepção matemática da relatividade de Einstein, o que todos compreenderam foi a ideia da relatividade humana. Avizinhando-nos hoje, por evolução, mais um passo do absoluto, sentimos em compensação a nossa relatividade, a princípio pouco notada, e percebemos melhor, em contraste, a natureza transitória e envolvente do nosso contingente. Sentimo-nos na pura função de ponto de referência. Desta forma, os absolutismos exclusivistas que antes possuíam o sabor de absoluto, agora não passam de obstáculos. A divulgação moderna do conceito de relatividade desferiu-lhes um golpe mortal. Por isso os nacionalismos estão em via de extinção e sobrevivem apenas como imperialismos. E estes reduziram-se a dois apenas, numa luta para decidir a supremacia final de um mundo só. Transforma-se o conceito de pátria. O que antes se apresentava como santo patriotismo, hoje só parece belo para efeito interno e, além fronteiras, desperta nos outros povos suspeitas contra a nação que o professa, porque uma tal forma de amor tende a resolver-se em ódio e em guerra contra outros países. Ao lado deste amor surge concomitantemente a ideia do estrangeiro, inimigo que deve ser combatido. Modernamente, com os grandes e contínuos intercâmbios e contatos, desponta uma tendência à fusão de todos os povos em uma humanidade e o conceito de uma grande pátria que abrace todos eles. É uma dilatação de egoísmo, como já vimos para o indivíduo, que evolve até abraçar outros povos. Deste modo, as grandes unidades humanas se reagrupam em torno de outros conceitos mais compreensivos, e tanto ódio, antes justificado e santificado por separações nacionalistas, encaminha-se para a extinção. O amor de pátria, limitado a um país, hoje pode parecer um obstáculo a um novo espírito tendente às grandes unificações. Os caminhos são dois: subir ou descer. O mundo atual está suspenso entre ambos. Ou fortalecer-se construtivamente através da unificação, que irmana, ou embrutecer-se no separatismo e destruição, num massacre alternado. Ou construir um organismo humano mais vasto, sem exemplo no passado, e só em nome deste destruir o atual, ou então destruir por destruir, finalizando na barbárie. O homem seria capaz de seguir o último se a vida sábia não velasse por ele, que ignora. Por isto é fatal uma grande onda de ascensões que invada e eleve o mundo; mas que provas e dores isto implicará? E será o homem quem deverá suportá-las. Assim como para o indivíduo, duas são as sendas na vida dos povos: a do progresso e a do retrocesso. Por elas se desenvolve o grande caminho do universo em direções opostas, como vimos. Hoje, como ontem, as criaturas seguem uma ou outra, como vemos. Os métodos usados por elas revelam o caminho de sua escolha, a sua natureza e posição. Quem procura a matéria, acredita na riqueza e na força, nos exércitos e no do- 92 ASCENÇÕES HUMANAS mínio; é um involuído, subjugado pela ilusão. Na sua grosseira insensibilidade e ignorância, deve ainda atravessar duríssimas provas para compreender a vida; deve, sofrendo as consequências de sua ação, dado que o seu pensamento é concreto, conquistar o senso do bem e do mal. Encontrando-se em queda, ele não sabe valorizar-se senão com a posse, à qual se aferra e pela qual luta. Por isso é ambicioso e insaciável. Não é capaz de compreender outra realização de si mesmo a não ser a que consiste em ligar a sua vida física efêmera às coisas transitórias da Terra. Nada enxerga além disto. Permanece ainda excluído da vida maior, em que se é eterno colaborador de Deus, cidadão do universo. Possui do bem um conceito limitadíssimo, circunscrito ao próprio egoísmo, no qual permanece aprisionado. Assim, a sua alma se encontra excluída da grande e inexaurível riqueza de Deus, sempre insaciada, e, por mais que possua, torna-se sempre mais esfaimada. Quanto mais possui, tanto mais lhe cresce a avidez e, porque crê apenas na ínfima vantagem individual e só por isto vive, é levado a menoscabar o resto. Um mundo feito de tais seres não pode ser senão uma alcateia de lobos. A sua involução, que lhe faz ter fé apenas na força, dá nascimento a um espírito egoístico universal de revolta, que faz do mundo um caos. E é por isso que o involuído é vítima de si mesmo. O que o fere é a reação provocada pelo próprio método: ―Quem com ferro fere com ferro será ferido‖. Estamos assim na via descendente, que termina na pulverização. Mas, se o involuído assim age em seu prejuízo, condenando-se a uma vida inferior, porque não compreendeu o escopo da vida, o evoluído caminha em sentido oposto, que o conduz para a unificação. Este compreendeu que há muitas outras conquistas a fazer além dos bens materiais, compreendeu a esterilidade de tantas lutas colimando a conquista de uma posse efêmera, insuficiente para saciar o desejo infinito da alma. A razão de ser da vida é outra. A procura de uma felicidade através de satisfações materiais é vã; ela cria inimigos, desencadeia lutas, verte sangue, desperta dores e nos deixa cansados e insatisfeitos, na sensação da inutilidade de semelhante esforço. Só o involuído, inexperiente, pode aceitá-la. Assim tem-se nojo da Terra, que traiu, e volta-se a olhar para o céu; então tudo se inverte. O desenvolvimento, que é lei de vida, atua não mais tomando, mas dando; o impulso não é mais para o exterior, mas para o interior; a riqueza que se procura não é mais a efêmera da forma, mas a eterna da substância. E o ódio se transmuda então em amor; a força, na compreensão; o egoísmo isolacionista, na unificação; a guerra, na colaboração. Ora, enquanto o indivíduo não evoluir de modo a compreender estas coisas, a aplicação de princípios de solidariedade não poderá passar de utopia e mentira. O irmanamento humano é o resultado de maturação e convicção, não podendo sê-lo da força. É verdade que na Terra foram feitas tentativas, em todos os tempos, para se chegar a grandes unidades através dos mais diversos imperialismos, mas deles nada resultou. Com a imposição domina-se, esmaga-se, escraviza-se, mas não se unifica. Se as raças se misturam, isto depende de deslocamentos demográficos e não diz respeito aos imperialismos. É a vida que tudo utiliza a seu modo. A força e o egoísmo – dois impulsos separatistas – não podem conduzir à unidade. A verdadeira unidade é outra coisa que não imposição violenta e sobreposição dos povos ou das suas classes. Ela implica elementos espirituais que a política ignora. Trata-se de compreender e de sentir a Grande Vontade diretora do universo e de conduzir-se neste de acordo com ela. Neste plano de vida dominam princípios bem diferentes. Ao invés do egoísmo, o altruísmo; ao invés da lei do mais forte, a lei do sacrifício e do amor. No evoluído, o involuído é transformado nos seus instintos e métodos. Se, no segundo, a vida do espírito cede em favor da vida do corpo, no primeiro é a do corpo que cede em favor da vida do espírito. Então, a Terra, antes campo de realização e de conquista, torna-se teatro de sacrifício Pietro Ubaldi e de missão, porque a realização e a conquista se transferiram inteiramente para o plano mais elevado do espírito. E a vida terrena, em vez de enriquecer, espolia, porque, para o evoluído, ela se tornou de sinal negativo, dado que o positivo é representado por uma nova vida que apareceu, ignorada ao involuído: a vida do espírito. Quem freme por dominar e enriquecer-se não se iluda: está no caminho da descida, em direção que conduz à pulverização. Só quem gosta de dar e sacrificar-se pelos outros está no caminho da ascensão, em demanda da unificação. Poderá parecer utopista, mas só ele está habilitado a transformar um mundo de ladrões e assassinos em um mundo de civilizada colaboração fraterna. O elemento coesivo de unidades maiores só se pode encontrar em quem concebe a vida como um encargo altruístico. Só uma massa de semelhantes indivíduos pode formar um organismo social. Querer organizar um coletivismo real com o tipo biológico involuído é mera utopia. É neste coletivismo, atingido não por imposição exterior de força, mas pela dita maturação, que se pode verdadeiramente valorizar o eu, e não pelo domínio do próximo, como ainda hoje se compreende na Terra. A hipertrofia da personalidade de um indivíduo a expensas dos outros representa o triunfo do princípio separatista, exprime um estado de pulverização da unidade. Se for obtida com a tirania, será apenas uma unidade às avessas, uma construção forçada, em equilíbrio instável, sempre pronta a desagregar-se. Tais são as pseudo-unidades, construtivas só na aparência, mas substancialmente destrutivas, obras de Satã. Nelas, o eu, por mais poderoso que seja, está sempre entrincheirado no próprio separatismo, permanece um centro isolado e jamais abre as portas do amor para unir-se a outros seres. Os liames impostos pela força são superficiais, não substanciam e só perduram enquanto existem forças para mantê-los. Em profundidade, eles não ligam coisa alguma. Não é considerando todas as coisas apenas em função de si mesmo que estes liames se podem estabelecer, mas só considerando-as em função dos outros. Como se vê, os sistemas atuais empregados na formação de grandes unidades coletivas poderão servir como tentativas, como experiência e ainda como meio educativo para penetração de conceitos novos. Mas, para atingir a sua real atuação, mister se torna outro método, inteiramente diverso: o da compreensão. Para tal fim, é necessário um tipo humano diferente, e outro caminho não existe para se conseguir esta compreensão senão aquele que conduz à formação desse tipo. O mais acirrado adversário da unificação dos homens em um plano de justiça social é exatamente o homem hodierno, aquele que, para servir seus próprios fins, mais a preconiza, mas que, na realidade, menos crê nela. Na realidade, os programas professados e realizados com tal psicologia manifestam-se às avessas e, efetivamente, ocultam sob bela roupagem a luta comum pela vida, através da substituição de pessoas nas mesmas posições de domínio ou de subjugação. A isto não se pode chamar progresso, porque é falência da unidade. A verdadeira unidade não repousa no equilíbrio instável, carregado de reações, como o imposto pela força, mas na adesão livre e convicta. Quando o eu intenta construir apenas pela via do egoísmo, ele tende, mais do que construir em unidade, a desfazer-se no separatismo. Quando o eu se torna centro no lugar de Deus e se apossa de tudo, então caminha-se para Satanás, e não para Deus. De tal método não podem surgir senão rivalidades e antagonismos, que só oferecem uma solução possível: a destruição de um dos contendores. Mas a isto não se pode chamar vitória, porque, na realidade, trata-se de uma ilusão, visto que, em uma guerra, todos são prejudicados e vencidos. Isto é natural, uma vez que nos mundos inferiores reina a traição. Tais métodos são próprios destes mundos inferiores, como o é o mal, e é por isso que, carregados de atritos, dado que a força é a sua base, não podem resolver-se senão em destruição e dor, Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS por mais que apregoem construção e felicidade. Este é o destino fatal de quem se encaminha para a matéria. Estas são as leis da vida, que funcionam igualmente no campo das realizações sociais, pois que seria certamente ingenuidade supô-las excluídas do funcionamento orgânico do universo, onde seriam arbitrariamente plasmadas apenas pelo capricho do homem. Se este é invadido pela pretensão de tudo dominar, nem por isso o pode diante dos fatos. As leis da vida deixam ao homem também a faculdade de crer no que entenda, mas nos fatos elas agem de acordo com as próprias diretivas. Cada um pode crer e dizer o que deseja, mas no modo de agir revelará sempre aquilo que realmente é. Se acredita na força e age de acordo com ela, é um involuído, que nela encontra a sua lei. Se acredita e age na solidariedade, é um evoluído, que na unidade encontra a própria lei. Força e justiça são dois extremos irreconciliáveis. Uma exclui a outra. Elas representam a lei e o sistema de dois planos de vida diferentes. Quem recorrer a uma não pode apelar para a outra. II. A ERA DA UNIDADE Eis que, partindo de uma visão cósmica e de conceitos universais, chegamos agora à aplicação destes nas mais longínquas consequências em nosso mundo no momento atual. Referimo-nos às condições da hora histórica presente, que, mesmo sendo consequências de princípios universais, são na sua essência transitórias e relativas. O mundo está atualmente dividido em duas partes separadas por um abismo intransponível: o oriente comunista e o ocidente liberal. Cada uma apoia-se em seu princípio idealístico. Eles são reciprocamente exclusivistas e irreconciliáveis. Isto porque, por trás dos ideais, estão os interesses, que são irreconciliáveis. Os verdadeiros ideais são verdades universais, e não particulares, e, sobre esta base, o acordo é natural. Se há conflito é porque as duas partes são rivais no mesmo terreno humano e os homens que o compõem pertencem ao mesmo tipo biológico e ao mesmo plano de vida. Cada uma delas pretende esconder atrás dos ideais apregoados os próprios interesses. Por isso elas se acusam reciprocamente, sem cessar, cada uma tendo razão enquanto está no campo do ideal, mas tendo culpa quando, na prática, aplica este ideal apenas em vantagem própria. O quanto de razão cada uma possui, ainda que pareça sacrifício, constitui a sua força, e a parte de culpa que cada uma tem, embora pareça vantagem, forma a sua fraqueza. Apliquemos sempre os princípios acima expostos, ou seja, evolução para a unidade é crescimento em potência, involução para a cisão é decréscimo em potência. Observemos. A democracia possui uma parte de razão, que lhe é dada pelo princípio de liberdade. Isto representa a sua força, pela qual ela pode acusar o parte contrária. Mas também possui uma parte de culpa, representada pela injustiça econômica, pelo egoísmo capitalista e pela desigualdade na distribuição dos bens. E isto representa a sua fraqueza, pela qual ela se expõe às acusações da parte contrária. O comunismo, de outro lado, tem por sua vez uma parte de razão, dada pelo princípio da justiça econômica, da igualdade e solidariedade social. Aqui está a sua força, que lhe faculta acusações à parte contrária. Mas também exibe uma parte de culpa, dada pelas limitações à liberdade e ao individualismo, expressas pelo absolutismo e pelo capitalismo de Estado. Nisto está a sua fraqueza, que o expõe às acusações da parte contrária. Assim, cada um dos dois sistemas encontra justificação no fim a atingir, mas também possui as suas culpas e, por conseguinte, os seus pontos fracos no modo com que procura atingir este fim, visto que, em ambos os casos, realmente, só existem em mira vantagens próprias. Trata-se, no fundo, em todos os quadrantes da Terra, do mesmo homem involuído, que age com idênticos critérios. Assim, se um dos dois tem as suas rei- 93 vindicações teóricas a fazer, com o que se justifica, possui também as vítimas que o acusam: de um lado, as vítimas do cárcere e dos trabalhos forçados; de outro, as silenciosas e ―livres‖ da miséria, aquelas que geraram a revolução comunista. O que leva um sistema contra o outro é a sua parte de culpa, e isto justamente porque a vida quer destruir esta parte, valendo-se dos dois antagonistas como um meio de recíproca depuração, de modo que deles não sobreviva senão a parte em que ambos têm razão. De um encontro entre os dois resultará a destruição daquilo que cada um possui de egoísmo separatista, antivital para a coletividade, pela qual, efetivamente, todos trabalham. É inerente à natureza humana que culpa e razão, méritos e defeitos se apresentem conjuntamente imiscuídos, e é lei de vida que, embora o homem seja separatista, tudo seja comum entre os homens. A solução não pode estar senão em uma recíproca depuração que elimine em cada um a parte de culpa. Sobreviverá aquilo que de melhor existe nos dois. Deste modo, vencedora será unicamente a vida, que conseguirá o seu fim de fazer progredir a humanidade, objetivo para o qual utiliza ambos os antagonistas, confiando a cada um deles um princípio a ser afirmado. Neste sentido, o comunismo possui uma função vital, que é lançar no mundo uma ideia de justiça com métodos de tal ordem, que ela possa ser lembrada bem claramente por aqueles que, embora tendo-a recebido do evangelho há 2.000 anos, acharam mais cômodo não tê-la posto em prática. Neste sentido, o Ocidente, prevendo o inevitável, que já está iminente pela imposição das massas em plena arremetida, começa hoje, queira ou não, a aplicar vários princípios do comunismo, ainda que sob bandeiras diferentes. E assim caminha no mundo a ideia da justiça social. Cristo pregou há tempos, mas, visto que a palavra d'Ele continuava letra morta e as gerações não pensavam de modo nenhum em aplicá-la, a vida teve necessidade de servir-se para isso de inferiores meios de coação. Há maturações biológicas que não se podem conter. O atual movimento do mundo, que caminha em demanda da justiça, concentrou-se em um dado país, que se fez dele promotor em virtude de contingentes razões históricas. Mas ele é um movimento de toda a vida humana planetária e, se não se tivesse configurado em um país, tê-lo-ia feito em um outro. Não importa que seção política do globo assuma o encargo, contanto que este seja desempenhado. É natural que um agregado de interesses logo enquadre e limite qualquer movimento. Mas este se propaga além dos confins do enquadramento, porque tudo é comunicante e universal na vida. Assim, as ideias do inimigo são absorvidas, pois ultrapassam os confins políticos; também assim, elas se purificam, se adaptam e se tornam vida em toda a parte. Desta forma, a ideia nascida em um ponto, sendo pela própria natureza universal, avança e alcança até onde não se imaginava; intensifica-se, expande-se, e os mais diversos agentes são chamados a desempenhar cada qual a sua parte de trabalho. Eis por que a ideia de uma justiça social ganha corpo atualmente. Na realidade, ela se desenvolve e floresce mais como um princípio geral da vida do que como uma particular ideia política, avançado além de todas as barreiras, para alcançar as finalidades da vida, e não apenas as de um só povo ou partido, cada qual devendo rejubilar-se da contribuição que deu para o avanço de uma ideia que é de todos. Encontramo-nos em verdade, atualmente, na maturidade dos tempos, e está próxima a aurora de uma nova civilização, em que o evangelho deverá ser aplicado plenamente. Quem dirige a história são as forças da vida, e não o homem. O comunismo não foi criado por uma doutrina econômica, por um partido ou povo que o tenha proclamado e aplicado. Ele não é senão o efeito da maturidade dos tempos, que conduz ao evangelho. Tudo o mais não passa de meios materiais, portanto transitórios, que cairão depois de preparadas as vias para a referida realização. 94 ASCENÇÕES HUMANAS Assim, ficarão neutralizadas pela recíproca eliminação as duas zonas de culpa, e se fundirão as duas zonas de razão em uma nova formação, em que nenhum dos dois contendores do momento sobreviverá íntegro e exclusivo na forma que cada um pretende. Assim também, exaurir-se-á a tarefa de ambas as partes, que é de elaborar e ativar na sociedade uma ideia universal já expressa pelo evangelho, que está acima do contingente e de suas lutas. Este já contém, numa fusão conjunta, quanto de razão há nos dois princípios opostos, sem aquilo que de errado existe presentemente na sua aplicação. O evangelho também encerra comunismo, mas de amor, e não de força, e sustenta a liberdade individual, com a justiça do ―quod superest date pauperibus‖3. Compreende-se que se deve tratar de um evangelho vivido, e não apenas teoricamente pregado. O movimento atual é de ascensão biológica, e a vida trabalha com fatos, e não com palavras. Não se trata, pois, de um evangelho situado em uma religião particular, utilizado como substrato de uma hierarquia de homens. Cristo é universal e, como o ar e o sol, que devem vivificar tudo, não podendo encerrar-se em divisões humanas, supera todas as barreiras. Algumas poderiam dizer: nós representamos Cristo oficialmente. Ninguém o nega se, por ventura, o evangelho for vivido. Muitos de vós o vivem de fato, porém Cristo é realmente representado somente por quem vive a Sua lei. O resto possui escopo diverso e uma função que não é a de fazer representantes de Cristo. Assim, o comunismo, depois de trazer à lembrança dos homens o evangelho, sobreviverá como evangelho, pelo qual trabalha sem saber, e cairá como bolchevismo, que é contingente; sobreviverá como justiça econômica e, com isto, esgotada a sua missão, cairá como absolutismo de Estado e escravidão coletivista. Também a democracia, após haver defendido a liberdade humana e salvado o individualismo nas novas e grandes unidades coletivas, sobreviverá nestes princípios do evangelho e cairá como injustiça econômica e egoísmo capitalista. Tudo passará, exceto o evangelho. Quem está cego pela luta, vivendo no particular, não pode perceber estes equilíbrios. A vida ressurgirá no evangelho, porém não mais apenas pregado, e sim vivido. O homem, hoje, não se contenta mais apenas com palavras e quer olhar os quadros que estão atrás. Para isto, foi educado por duras lutas de milênios, de modo a ver atrás de cada verdade uma mentira. Tem sido uma escola constante, a única forma de educação que todos os dirigentes, em todos os tempos e lugares, em todos os campos, concordaram, durante séculos e séculos, em conceber. Não sabemos se o evangelho vivido coincidirá com a Igreja de Roma, que o professa em sua forma atual, ou se poderá coincidir com uma outra forma que venha a revesti-lo, ou com um cristianismo mais vasto, e não apenas católico, ou simplesmente com os homens de boa vontade, aos quais foi anunciado. A hora histórica do momento é apocalíptica, e tudo está abalado desde os alicerces. A verdade é que as duas grandes forças ora em ação, democracia e bolchevismo, tornaram-se fracas pela recíproca inimizade, pois que cada um dos dois impulsos é neutralizado quando se defronta com outro igual e contrário. É este antagonismo que pode destruir a ambos, deixando somente aquilo que eles possuem de evangelho. É certo também que o ciclo da matéria está para esgotar-se, encaminha-se para a morte e, na ânsia de sobreviver, recorre aos meios extremos da desesperação. A matéria exaure-se no tempo, e o tempo não pode parar. Vimos que, pelas leis da vida, o materialismo é um sistema fatalmente autodestruidor. Isto significa a destruição dos valores materiais, os únicos a que hoje se tributam reverências. Só os valores superiores espirituais, que são inatingíveis pela destruição, serão salvos. Salvar-se-á também unicamente quem vive neles. Os que se apegarem a tudo que for terreno, em 3 ―Dá aos pobres o que te sobra‖. (N do T.) Pietro Ubaldi qualquer campo, serão tragados. Tais são e assim querem as leis da vida atualmente, e ninguém poderá contê-las. É interessante observar a sutil mecânica que um sábio jogo de impulsos, na luta entre o bem e o mal, conduz ao triunfo do primeiro. No comunismo, as forças do mal, dada a sua natureza negativa, operam naturalmente às avessas e, consequentemente, aplicam o evangelho desfigurado. Elas não sabem agir senão com inversão de valores. Efetivamente não há nada mais antievangélico que o método com que o evangelho é aplicado, ou seja, pela força, dado que a essência do evangelho é o amor. É lamentável que na Terra não se procure atingir a justiça senão através da injustiça. E isto macula tudo. Que faz então a vida destes impulsos negativos? Se os deixa agir, é sinal que, de qualquer modo, eles são construtivos, porque todos convergem para um centro diretor que é Deus, e não para um segundo centro anti-Deus, Satanás. O fato é que o mal, em última análise, é enganado, porque esta inversão, depois, se retifica em favor do bem. O mal é ignorante e, querendo imperar pela força, excita reações em toda a parte, de modo a levar todos a se unirem contra ele. Ele gera mártires que, depois, formam a potência e a grandeza moral do inimigo. Sempre foi assim, e o mal, que é cego, recai permanentemente nos mesmos erros. E, assim, faz o jogo do inimigo, o bem, que ele combate. Ei-lo, desta forma, a desempenhar a função social de purificar a Igreja e vivificar a fé. O mal é assim utilizado para divulgar o evangelho com a ideia da justiça social. Aquele pobre mal, que tanto se esfalfa para conseguir os seus fins, nada mais faz do que preparar, sem compreender, os fins que o bem colima. Depois disto, as forças da vida o liquidam em favor do bem, que ele acredita desfrutar e que o deixa agir somente enquanto é um meio para o próprio triunfo. Na sabedoria divina, o mal está a serviço do bem. É natural que, para mover o homem de hoje, torna-se indispensável impelir a mola do seu egoísmo. É preciso que ele creia agir em seu imediato interesse. Por esse meio, a Lei o manobra para seus próprios fins mais sábios, fazendo-o em benefício de todos, porque o tipo biológico atual jamais seria levado a trabalhar por tais fins se conhecesse o real funcionamento da história. E, assim, sem sabê-lo, uns e outros dos dois grandes inimigos, capitalismo e comunismo, trabalham concordes pelo louvável fim comum do progresso humano. Eles creem que dirigir-se ao povo seja uma mentira útil e astuta, de que habilidosamente se valem para conseguir os próprios fins egoísticos, e não compreendem que, ao contrário, é este o verdadeiro escopo pelo qual, à sua revelia, a vida os põe em movimento, e será o único que conseguirão, enquanto que a consecução do próprio interesse é muito problemático que se verifique. Quem participa só de um ou de outro destes dois polos na luta comum pelo progresso, não pode ser senão o dominante tipo biológico involuído, que só pode pensar em função do contingente. O evoluído está acima do embate, admira a perfeição da obra divina, na qual a Lei, para conseguir os grandes fins evolutivos da humanidade, mobiliza homens aos quais é necessária a forma de luta para que eles se ponham em ação. Tudo que presentemente acontece no mundo é simplesmente a consequência natural do grau de evolução em que o homem vive. Se ele fosse mais evoluído, a sua vida seria inteiramente diversa. Mas evolverá e, evolvendo, tudo mudará. Os grandes imperialismos atuais do mundo, com poderosa tendência expansionista, que se tornou possível em tais proporções em virtude dos novos e grandes meios de comunicação, acabam por manter em contato, seja na paz ou seja na guerra, as nações e raças mais distanciadas. Entrar em contato significa o início da unificação. A humanidade está para tornar-se una. Assistimos a um esboroamento universal de barreiras. Transpõemse todos os velhos limites. O contato, na posição de vencedor Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS ou de vencido, de senhor ou de escravo, leva sempre ao mesmo resultado: a fusão. Tudo termina sempre com a unificação. Esta é a essência das tendências políticas modernas: a formação de unidades cada vez maiores. Essa será a conclusão do nosso período histórico. Parte-se para conquistar e acaba-se por irmanarse, hodierna tendência universal em todos os campos. Assim como, no fim da Idade Média, as cidades transbordaram com alegria da angústia das estreitas muralhas circundantes, estendendo-se desafogadamente além de confins acanhados e de barreira, desfrutando um senso de liberdade onde antes ninguém podia circular sem esbarrar a cada passo em obstáculo inimigo, também hoje, no fim do Segundo Milênio, a humanidade começa, jubilosa, a transbordar com alegria das angústias psicológicas que a asfixiam. Cairão as barreiras que dividem partidos, filosofias, religiões, isolando e sufocando em absolutismos que paralisam a circulação da vida do espírito. São superações que redundarão em benefício de todos. Cada atrito social pesa e custa. Então, a máquina coletiva poderá funcionar mais desembaraçada, sem atritos e conflitos econômicos, políticos, religiosos, filosóficos, demográficos, raciais etc. É um grande obstáculo à vida ter de, a cada passo, esbarrar com uma parede divisória. Hoje, os homens vivem agrupados em castelos inimigos, prontos a combaterem-se. Se isto é útil para a sua seleção, que não tem outro objetivo, também torna a vida bem fatigante. A nossa época quer abater estes obscuros castelos medievais do espírito, que, se são defesa, são também prisão. Esta é outra forma de expressão vital que acabará na unificação. Entrementes, toda força social presentemente em ação possui uma função na vida. O comunismo tem a função que a oposição tem em todas as assembleias: o controle que induz aos exames de consciência perante a opinião pública e a história, e determina o aperfeiçoamento das armas, elemento de luta para a seleção. De um modo particular, o comunismo desempenha a tarefa de despertar o espírito de massa e de educação ao funcionamento coletivo. A luta, enquanto não se torna cruenta, será pelas conquistas das massas, e, nesse sentido, as duas partes colaborarão na educação delas, obrigando-as a pensar. Estas, feitas de carne insensível, serão obrigadas à fadiga de compreender para saber escolher um guia, qualquer que seja. Toda luta se reduz a uma escola, e os tempos de luta são tempos de aprendizagem e, consequentemente, de progresso. O comunismo serve para forçar o capitalismo a admitir alguns princípios de justiça, pelos quais, de outra maneira, este jamais se decidiria. Dado que a criatura humana é por natureza egoísta e a mesma em ambas as partes, a justiça, se não fosse imposta, jamais seria obtida. Esta é a razão biológica pela qual a vida atira o comunismo contra o capitalismo. Sem a violência, não se teria dado a Revolução Francesa, e o mundo estaria ainda na fase feudal dos privilégios da aristocracia e do clero. A violência, por certo, é o que revela o involuído, porque o evoluído jamais recorre a ela. Mas é preciso recordar que nos encontramos no plano biológico animal-humano, e não além, plano em que as coisas só se podem resolver desta maneira primitiva. Certo é também que, se não tivesse sido ensejado um motivo para o surgimento desta violência, dado por uma injustiça inicial que está no fundo dos atos de todos os homens deste plano, então esta violência não teria oportunidade de se formar. Como se vê, trata-se de um jogo de forças que, contrastando-se, concorrem para o mesmo fim: o progresso. A carne é preguiçosa, e a maioria dos homens é carne, e não espírito. Eles se furtam ao trabalho de evolver. Então a Lei os alcança, envolve e agita, lançando-os uns contra os outros, iludindo-os com miragens de interesses pessoais que jamais conseguirão e que desaparecerão logo que seja atingido o escopo prefixado pela Lei, que eles ignoram. Assim age a Lei. Por isto os animais possuem uma carne que, se para um é corpo, para outro é alimento. Por isto eles são levados a contender, o que é útil para 95 que aprendam na luta a formar a inteligência, postos na contingência de empregá-la no ataque e na defesa. Foi assim que surgiu o homo sapiens e, desta maneira, foram conseguidas as finalidades evolutivas da Lei. Como a química e a física, também a vida possui as suas leis e os seus fins, dos quais não se pode fugir. Essa necessidade de luta é imposta pela Lei, em vista de suas finalidades seletivas e evolutivas. Tal finalidade têm as guerras, que estão antes no instinto dos povos do que no comando dos chefes. É tão forte esse instinto de guerra, que, não podendo satisfazê-lo na verdadeira luta cruenta, as massas dão desafogo a ele no sucedâneo das competições esportivas. Assim, graças às contínuas competições, necessárias ou supérfluas, sanguinolentas ou incruentas, o homem se manteve sempre vigilante ao assalto de qualquer rival, que pode surgir a qualquer instante, movido pela miragem de um benefício pessoal. E assim também se cumprem os fins de evolução. O atual antagonismo entre os dois grandes imperialismos do mundo é problema seletivo. Eis o verdadeiro jogo mundial da história no momento. Jogo inerente ao plano do tipo biológico atual. Dado o que ele é, os problemas só são solúveis através da luta e da destruição recíproca. Nesse plano, a substância da vida é de natureza econômica. Nele domina a economia limitada e egoísta do ―do ut des‖4, isto é, interesse e materialismo, armamento e destruição. Mas já dissemos que existe para cada plano de vida uma biologia e uma economia diferente. Ambos os antagonistas terrenos ignoram que existe uma biologia e uma economia mais elevada, em que nenhum dos dois penetra, porque ambos pertencem a um plano de vida inferior. O ser encontra-se encerrado em sua forma de consciência. Além desta existe o infinito, rico de poderes, de bens ilimitados, ao alcance da mão. Mas está separado desse infinito pela impossibilidade de compreender, pelo menos enquanto não evoluir. Explicar a este tipo biológico que os seus problemas serão rápida e automaticamente resolvidos, logo que se eleve em evolução, é obra inútil. Ele não poderá compreender enquanto essa ascensão não se der, razão pela qual realmente ele hoje vive e luta, destrói e sofre. Observada de um outro plano, toda esta luta se torna unidade e o problema se transforma completamente, pois que cada problema é verdade sempre em função da inteligência que o propõe e dos limites da mesma. Mais acima, vê-se a luta entre o bem inteligente e o mal estúpido, luta em que este, pela sua estupidez, cumprida a função que lhe cabe, é vencido e eliminado como um mal, restando dele apenas os efeitos, que ele, sem saber e querer, produziu para o bem. Então a visão se perde naquela que configurou as tentações do Cristo. Ele, após haver jejuado 40 dias, sentiu fome, e Satanás, o tentador, acercando-se, lhe disse: ―Se és filho de Deus, dize a estas pedras que se transformem em pão‖. Mas Jesus respondeu: ―Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de cada palavra saída da boca de Deus‖ (Mateus, 4: 3-4). Eis em que se torna o problema econômico que atormenta o mundo de hoje, se visto de um plano mais elevado. O diabo então conduziu Cristo ao cimo de um monte assaz elevado e, tendo-lhe mostrado todos os reinos da Terra e sua magnificência, lhe disse: ―Eu te darei tudo isto, se te prosternares e me adorares‖. Mas Jesus respondeu: ―Arreda-te, Satanás, porque está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás‖. O diabo então o deixou, e os anjos o rodearam e se puseram a seu serviço (Idem, 4: 9-11). Com isso, estão fixados os limites ao mal, que nada pode além deles. E todas as grandes lutas terrenas pelo domínio material e pelo bem-estar econômico se reduzem a agitações de um mundo inferior, além do qual a vida é completamente diferente. Então desaparecem os temas relativos da luta moderna, comunismo e capitalismo. Eles se reduzem ao que 4 Dou para que dês. (N. do T.) 96 ASCENÇÕES HUMANAS são todas as coisas humanas: uma transitória e ilusória forma exterior, neste caso, de um único e idêntico movimento de progresso, para o qual concordemente colaboram. Assim quer a unidade da vida, Porém, dada a psicologia do homem atual, esta colaboração não pode encontrar outra forma senão a da luta. O que realmente se dá hoje é uma formação da consciência coletiva e um despertar das massas, movimento universal de maturação biológica, que, na vida, se coloca acima das divisões humanas. Pouca importância tem que ele hoje se vista de comunismo ou capitalismo. O movimento existiria mesmo sem estes nomes e teorias, vestidos em outras roupagens. De tal maneira, ele de fato se iniciará e continuará, ainda que estas vestes desapareçam. Deste modo pode-se concluir que as novas ideologias e concepções modernas, mais do que constituir a causa dos presentes e grandes movimentos coletivos, são apenas a forma relativa e transitória que, no atual momento histórico, assume em nosso mundo o eterno movimento ascensional da vida. III. CAPITALISMO E COMUNISMO Depois de havermos visualizado o problema da unidade em suas linhas gerais, focalizemos de maneira particularizada e concreta o que sucede atualmente no campo político do mundo. Para principiar, perguntamos: corresponde às leis do universo o princípio de igualdade que se pretende impor presentemente pela força? Na estrutura atômico-eletrônica da matéria, os diversos elementos componentes não são iguais. É o que nos desvenda a indagação submicroscópica. Em seguida, se à observação analítica substituirmos uma observação sintética macroscópica e constatarmos uma homogeneidade de conjunto, é porque esta resulta das características comuns aos elementos diferentes, que só assim conseguem uma identidade de conjunto. E isto se dá sem prejuízo de sua individualidade e livre manifestação, segundo a estrutura de cada um. As leis da existência nos dizem, pois, que a vida atinge a homogeneidade sem prejudicar a individualidade, atinge a igualdade que unifica, sem destruir as diferenças que distinguem. Os elementos conservam, pois, a individualidade inviolada, sem com isto impedir que todas as semelhanças equilibrem estas diferenças, reconstituindo assim a unidade segundo as qualidades coletivas, que estão na base de uma individualização mais vasta do que a dos simples elementos. A igualdade se constitui, deste modo, não como uma violação imposta à individualidade, mas como uma espontânea reordenação dessas unidades. A igualdade não é, assim, uma superposição forçada da realidade, mas uma organização desta em um plano evolutivo mais elevado. Naturalmente, é inútil falar dessas leis universais a quem não compreendeu o funcionamento orgânico e unitário do universo. A igualdade que a natureza nos oferece é o resultado espontâneo, um produto das próprias individualidades, erguido sobre a linha de suas semelhanças, sem alteração da linha de suas diferença. O mesmo que se dá com os agregados celulares se passa com os agregados sociais, de que agora nos ocupamos. Nós existimos em um universo unitário, de princípio único, que se repete em todos os níveis evolutivos, e o fenômeno social, para ser compreendido, deve ser tomado como um momento do fenômeno biológico. A homogeneidade celular nos tecidos é efeito de qualidades dominantes comuns, que deixam intactas as diferenças individuais, sem forçá-las ou suprimi-las, porque, tanto no indivíduo como na sociedade, elas são necessárias e possuem função própria. E, se o princípio é sempre o mesmo, e a sociologia é biologia, por que se deveria aplicar nos agregados humanos um princípio diverso daquele aplicado pela natureza a todos os seus agregados? E então, o que representa neste sistema de vida a igualdade forçada imposta pelo comunismo? Pietro Ubaldi Todavia assistimos ao fato de que se está desenvolvendo atualmente um comunismo no campo social. E, se tudo que existe tem uma razão biológica, neste caso qual será esta razão? Ela é dada pela atual fase da evolução humana, que assume a forma coletiva, quando tende à formação de grandes unidades de massa, isto é, de grandes organismos biológicos coletivos. Esta é a tendência moderna de toda a vida humana sobre o planeta terreno, ativada, pois, em todo o mundo, ainda que revestida em formas e normas diferentes. É uma tendência que implica a ânsia em demanda da justiça social. O mundo, que atingiu através da ciência um inaudito domínio sobre as forças da natureza, tende a reordenar-se em novos equilíbrios econômicos. Este é o conteúdo que, nesta sua atual fase evolutiva, a vida empresta à luta pela seleção. Sendo assim, é natural que o comunismo tenha surgido primeiramente nos países pobres, onde é maior a luta da qual ele deriva. É lá, onde mais cruciante é a fome e, consequentemente, mais sentida a inveja, que mais intensa se torna a luta para destronar os que possuem mais. Onde mais elevado é o nível econômico, não existe ódio contra quem possui, porque todos possuem. O fenômeno só é compreensível se atentarmos para a realidade biológica que ele representa. As ideologias podem sobrepor-se às leis da vida, podem envolvê-las e intentar recalcá-las, mas não podem destruí-las. Eis o que representa o comunismo moderno. A causa eventual que fez com que o movimento universal da vida no sentido da justiça social se localizasse na Rússia, foi a miséria tradicional do seu povo. A necessidade de igualdade econômica e de justiça social foi sentida, antes e mais acentuadamente, na terra da clássica desigualdade econômica e da injustiça social. Na superfície da Terra, esse povo representou o ―locus minoris resistentiae‖5 para a explosão da crise. As características da vida nesse país permaneceram as mesmas de há muito: a pobreza, a dor, os desnivelamentos sociais, os ódios, a constante ameaça da Sibéria, a própria desolação que encontramos em Gorki, Tolstoi, Dostoiewsky e outros. Parece que toda nação do planeta possui uma função, que, no presente caso, é a dor. O povo russo sempre sofreu um duro destino, e as convulsões sociais frequentes, em vez de atenuá-lo, agravaramno. O fenômeno é, pois, antes de tudo, russo, caracterizado pelas condições deste povo. Ainda que a ideologia comunista seja universal, a sua forma de bolchevismo russo não é aplicável a povos tão diversos, com destinos e funções biológicas diferentes. Ainda que a ideia comunista se divulgue, não poderá ser senão assumindo alhures formas diferentes. E é natural que os povos não se adaptem quando ela queira permanecer russa, para tornar russos povos que pela própria natureza não o são e que, biologicamente, não podem sê-lo. Se, pois, a ideia comunista não souber despojar-se da forma contingente da terra em que se originou praticamente, a sua expansão reduzir-se-á como a de todos os imperialismos, despertando fatalmente as reações e resistências naturais por parte das outras formas humanas de vida. Se ela quiser permanecer russa, para tornar russo o mundo, o problema efetivamente oculto sob a ideologia será o de qualquer invasão demográfica e predomínio racial, velhíssimo motivo da história. A guerra deflagrada seria apenas de raças e de interesses, e não de ideias. Possui o comunismo atual capacidade de universalizar-se, erguendo-se acima das suas características particularmente russas? Saberá ele permanecer não russo em outros lugares, com psicologia e métodos totalmente diversos? A vida, para atingir o universal, deve antes atravessar o particular. Antes da ideologia que tende à formação de unidades universais, a vida sente, muito mais vívida, porque mais próxima, a menor unidade biológica nacional. Esta é a realidade, e nenhum povo pode mudála. Se o trabalho obrigatório pode ser uma necessidade para um 5 ―Lugar de menor resistência‖ (N. do T.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS povo paciente e sonhador em um país imenso e triste, onde o homem se habituou a ele desde séculos, como poderá ele aplicar-se a povos de hábitos secularmente diversos, que jamais viveram de tal forma sob regime algum, qualquer que fosse o gênero deste? O que decide não é somente o tipo de governo, mas, sobretudo, a natureza do povo sobre o qual atua. A forma de governo não é mais do que um dos tantos elementos da vida de um povo, que são, com frequência, antes a causa do que o efeito desta forma. Desta maneira se vê como o comunismo atual é resultante de tantos fatos diversos. Resultou do presente momento histórico ou fase biológico-social, que avança para a formação de grandes unidades coletivas e amplos organismos biológicos de massa, o que impõe a implantação da justiça social. Desenvolveu-se segundo a natureza particular do povo russo, que fez com que este fenômeno fosse mais sentido e se verificasse naquele país, mais pobre e sofredor que os outros. Isto explica a razão deste comunismo, cujo aparecimento hoje no mundo, biologicamente, significa a aproximação da ação evangélica esperada há 2.000 anos, ter nascido na Rússia às avessas, isto é, como ódio de classe ao invés de amor evangélico. Tivemos de nos referir ao evangelho porque, no seu atual lance evolutivo, a vida está prestes a dar um passo decisivo para aproximar-se da realização da Boa Nova, que há 2.000 anos foi simplesmente anunciada. A ideia comunista, mesmo se, em principio, o aplica de forma invertida, representa do evangelho a primeira e vasta aproximação no plano econômico e político. Disto deriva que, se o comunismo quiser continuar a desenvolver-se segundo a linha traçada pelas leis da vida, deverá completar-se, desenvolvendo-se amanhã, além da sua atual fase materialista, com um novo aspecto espiritual evangélico, de que hoje carece. Ninguém nega a bondade e a verdade do comunismo como justiça social. Mas, para que uma ideia seja aplicável em toda parte, é necessário que seja universal, e não o produto apenas de um dado povo ou regime. Ora, somente o evangelho, que não é filho de nenhum governo e que, nascido de um povo, dele se destacou, possui não só as características de universalidade, mas também se apresenta completo no campo espiritual, que é necessário à vida. A história nos mostra que, quando o catolicismo se nacionalizou em um povo e em um governo temporal, originou a reação nórdica e antilatina do protestantismo. Assim sendo, para evitar cismas em um comunismo universal, não restaria outro caminho senão o de um imperialismo tirano e escravagista, o que também significaria chegar-se a pior injustiça social por meio da teoria da justiça social. Assim, um processo tão deformado não estaria de acordo com a atual tendência evolutiva da vida, mas contra e, portanto, destinado por esta, que é mais forte, a ser destruído, o que se verificará se o comunismo não se universalizar e não se espiritualizar, isto é, se não conseguir aproximar-se em tudo, também como método, do evangelho. A acusação movida pela democracia ao comunismo é a de que ele não é comunismo, mas capitalismo de Estado, não é justiça, mas uma forma de injustiça social pior do que aquela que ele aponta e pretende corrigir. De fato, o comunismo se implantou como luta de classes, pelo que não pode resultar senão como imposição de classe, velha lei biológica do mais forte, que ele aplica como a vida sempre fez, desde que o homem existe. Em escala mais ampla, luta de classe significa luta de povos e domínio de povos, imperialismo e imposição pela guerra. Onde está a justiça social? Pode-se alcançar a justiça pela força? Ou então a ideologia é pura forma e aparência, por trás da qual vigora a velha realidade biológica peculiar ao involuído, que não sabe afirmar-se senão pela força? Então a novidade consiste apenas em acobertar com um manto de teórica justiça social o velho sistema da lei elaborada e imposta pelo mais forte em sua vantagem? Então é preciso confessar que a vida, dado 97 o que é o homem atual, não pode empregar outros sistemas para alcançar esta justiça, que, no entanto, representa a conquista a ser feita nesta nova atual fase de evolução. Falamos da necessidade que o comunismo de amanhã tem de universalizar-se, desnacionalizando-se, para supernacionalizar-se como ideia, e não como imperialismo de guerra; de superar a fase de imposição de força, para ceder lugar à livre persuasão; de substituir a luta de classe pela do amor evangélico. Acenamos também sobre a necessidade, para o comunismo de amanhã, de espiritualizar-se, completando assim a sua inicial unilateralidade materialista. No seu aspecto atual, ele é incompleto, porque a vida não é feita apenas de matéria e os seus problemas humanos não são unicamente os do mundo econômico. E ninguém o impede de poder encontrar, no seu caminho, ensinos do gênero de A Grande Síntese, que estejam em condição de fornecer-lhe um sentido orgânico e uma orientação universal da vida, que as teorias de Karl Marx são insuficientes para dar-lhe. A vida caminha atualmente, e tudo o mais com ela, para o plano supermaterial. Para ele estão se dirigindo a ciência e, inevitavelmente, todo o pensamento humano. O ateísmo se torna cada vez mais absurdo em um universo que a físico-matemática revela cada dia mais ser pensante, isto é, feito de pensamento na sua mais profunda realidade. Os míopes, que não se orientam e não se atualizam, fixando-se nas conquistas do momento e do contingente, sem conseguir vislumbrar um amanhã mais vasto e sem poder pressentir a continuação do presente no futuro, da matéria no espírito, arriscamse a ficar em meio do caminho. Não se pode existir na vida em estagnação, mas só como vir-a-ser. E ninguém pode mudar as leis da vida, que assim pensa e assim quer. O homem pode crer nas ideologias que mais lhe aprouverem, mas ai da ideologia que tenta sobrepor-se às leis biológicas, procurando violentá-las! No conflito entre ideologia e biologia, vence sempre esta última, que é a mais forte. A vida é um fenômeno muito mais vasto e complexo do que o simples fenômeno econômico. O homem não é, exceto em parte, um fator de produção. No dia em que a atual ideologia não for mais concorde com os planos inteligentes que a vida quer realizar, será logo arredada do caminho, não pelos homens, não pelos governos ou exércitos, mas pela própria vida, que é a única força que, com a sua inteligência e poder, verdadeiramente domina o planeta. Em suma, não é o comunismo ou a democracia que comandam a vida, mas é esta que comanda a ambos. É ela a única e verdadeira senhora do mundo e lhe impõe a própria vontade, que hoje é a de subir. A respeito deste domínio das leis da vida prepostas como guia dos eventos históricos, é este o ponto mais oportuno para que se responda a algumas objeções propostas ao Cap. XCIX: ―O Chefe‖, de A Grande Síntese. Quem, na Itália e no exterior, quis ver nele uma referência particular à exaltação de um dado homem e de um dado regime, não compreendeu o significado universal dos conceitos ali expostos, aplicáveis a qualquer tempo, em qualquer lugar e a qualquer chefe, visto que eles exprimem universais leis biológicas. E as primeiras entre elas são a autoridade-função e o poder-missão. Função e missão, que são o único verdadeiro sustentáculo da autoridade e do poder, de modo que, se eles caírem, a vida arrebata estes últimos, e toda a posição, qualquer seja a força que queira protegê-la, automaticamente cai. Repetimos sempre que a sociologia não é senão um momento da biologia, e a política não é uma criação humana, mas um efeito das leis da vida. Perante estas realidades, o regime representativo não é senão uma das formas pelas quais essas leis podem exprimir-se. Quem apresentou, pois, tais objeções não leu o que está escrito em A Grande Síntese, no fim do Capítulo XCVI: ―Concepção biológica do poder‖. Aí está dito: ―As forças biológicas não garantem o homem, mas a função, e o destroem apenas ele 98 ASCENÇÕES HUMANAS deixe de corresponder a esta. (...) Assim, sempre a história chama os seus homens. (...) Rejeita-os, sem remorsos, apenas a função cesse ou quando eles exorbitem ou se entibiem‖. E o referido capítulo se encerra dizendo: ―Assim nasce Napoleão, simples instrumento de uma guerra difusora de novas ideias, que foi posto à margem pelo destino, como inútil, mal se esgotara a sua função, da mesma forma como o último rei da França, do qual ele se rira‖. Trata-se, pois, de leis biológicas, prontas para entrar em ação mal se verifiquem alguns precedentes determinantes, seja no passado, no presente ou no futuro, independentemente da pessoa, tempo e lugar em que elas se aplicam. A história confirmou e confirmará sempre estes princípios. Deste modo se compreende quão instáveis são todas as posições de mando baseadas na força, e não na função. É natural então que se pergunte que estabilidade podem ter hoje os poderes humanos considerados genericamente como uma conquista em seu próprio benefício. Daí as desconfianças e lutas entre governantes e governados, daí a clássica forma de rebelião que parece hoje inerente a toda forma de autoridade e que assume o aspecto de legítima defesa. Por tudo isto se vê como os critérios através dos quais a vida nos dirige são diferentes daqueles pelos quais o homem desejaria mandar, e também como a distinção entre capitalismo e comunismo só possui valor contingente e transitório, em função de certas finalidades, conseguidas as quais, tudo se transforma. A distinção biológica é de alcance bem diverso e se verifica entre involuído e evoluído, diferença evolutiva, de substância, da qual tudo deriva e da qual o problema social atualmente não se ocupa. Assim, praticamente, este se reduz a um conflito de interesses em que os homens de ação, preocupando-se com objetivos imediatos e concretos, permanecem imersos na peleja, privados de qualquer visão de conjunto, a qual, se é de realização mais remota, não deixa de ser um fim a ser atingido depois. Quem estiver envolvido na ação política deverá assumir a atitude e o encargo de agir, o que é indispensável, mas não pode dispensar o homem de pensamento, único capaz de indicarlhe as grandes linhas de orientação. Quando se está encerrado no horizonte estreito das realizações concretas, não se pode enxergar o amanhã distante, que também deve chegar; não se pode ver o pensamento da vida e a vontade da história, que, na realidade, guiam o homem, ainda quando ele se julgue dirigente autônomo. Quem se limitar à visão e realização imediatas poderá certamente atingir os seus fins próximos, mas não poderá saber que realizações mais distantes alcançará. A elas chegará, embora não queira e não saiba. Acenamos acima para onde, muito provavelmente, levarão as tendências sociais modernas. Em política, o homem prático age num outro plano. A imparcialidade e a universalidade para ele não têm sentido. No entanto o tem, bem acentuado, o enquadramento dos próprios interesses em um dado partido, com exclusão dos outros e contra os outros. Sua psicologia de ação se reduz, pois, a uma psicologia de luta e ao exercício desta. De posições que correspondem apenas a um relativo que lhe é próprio, particular e transitório, faz um absoluto. O problema social e político se transforma então em problema particular, isolado, limitado, jamais fundido com o problema universal, do qual ele mesmo depende. Surgem desta forma, nos primeiros planos, as questões secundárias, perdendo-se de vista os projetos de ação mais vastos, justamente nos quais opera a mais vasta inteligência da vida. É assim que nos engolfamos em uma técnica de pura batalha. Desta forma, o comunismo, que se justifica com a injustiça social, procura-a e amplia-a, para também justificar a sua intervenção. Cessa, desta forma, esta ideologia de justiça, dado que prospera melhor na desagregação social, que ele incentiva para se servir dela. E, assim, uma ideologia de ordem e justiça começa a agir como desordem e injustiça. Mas decorre daí um fato estranho. As nações capitalistas, para impedir o crescimento do Pietro Ubaldi comunismo, são coagidas a obstar a formação dessas condições de miséria, que justificam e atraem o comunismo. O resultado do assalto comunista, porque tal é a sua forma de ação em face da técnica de luta que adota, é compelir os Estados capitalistas a uma produção e distribuição de riqueza que facultam um elevado nível econômico em todos os países não comunistas, de modo que o comunismo não encontre neles um ponto de apoio, nem razão ou meio para interferir. Eis então que, superando os limitados planos dos homens de ação, os mais vastos planos da vida desenvolvem um programa inteiramente diverso, isto é, transformar um agente revolucionário de desordem em um gerador de bem estar, e forçar o capitalismo a ser o primeiro a aplicar a justiça comunista, para não ser por esta suplantado num desígnio hoje universalmente sentido e reclamado. Assim, nas mãos sábias da vida, a desorganização transmuda-se em organização, o mal em bem, e, assim também, o capitalismo conservador é obrigado a ativar o progresso. Desta maneira, nas mãos da vida, o assalto comunista resolve-se, à sua revelia e contra a sua vontade, na consecução daquilo a que ela aspira, e não do que almejam os diferentes chefes: um universal progresso de todos, mesmo das nações capitalistas, rumo à justiça social. A vida atinge então essas suas finalidades pelo método da reação. Quando ficamos no contingente, onde fervilha a luta, desencadear o assalto significa excitar uma reação equivalente, em virtude da lei universal do equilíbrio. Uma benéfica reação dos Estados capitalistas consiste, pois, no imperativo, a que eles se veem sujeitos, de desenvolver, eles mesmos, os princípios de uma justa distribuição da riqueza e de justiça social proclamados pelo comunismo, ainda que o façam gradativamente. Uma outra reação consiste no fato de serem obrigados a cuidar do nível econômico dos novos amigos por toda a forma de auxílio. Efetivamente, como consequência da reação, surge neles esta objeção: se o fim é melhorar o próprio estado econômico, por que, em vez de melhorar-se o problema através da distribuição, não fazê-lo através da produção da riqueza? O mesmo problema universal da melhoria econômica pode assumir, realmente, segundo a natureza dos diferentes países, aspectos diversos. Um país pobre, incapaz até de explorar o seu território, ainda que rico e vasto e, por isso mesmo, ainda pouco adiantado, sentir-se-á mais impelido a resolver o problema pelas lutas de classes, disputando as riquezas já produzidas. Um outro país, rico de história, de temperamento e clima diferentes, jovem e dinâmico, cheio de recursos próprios e alheios, será levado a encarar o método precedente como um contrassenso e achar muito mais conveniente resolver o mesmo problema por meio de uma maior produção de riqueza para todos, relegando a um segundo plano a questão de sua distribuição mais ou menos justa ou do nivelamento econômico. As nações não comunistas podem proclamar que elas acham mais conveniente resolver o problema deste modo e que assim o resolvem. Desse modo, sem luta de classe, o regime capitalista pode ser meio de uma abundância geral para superar as desigualdades distributivas, enquanto que o regime comunista, mesmo distribuindo com justiça, deixa todos na miséria. Por que então perder tempo em uma luta intestina de classe, com todas as suas consequências destrutivas e corrosivas, quando o fim se pode mais facilmente atingir mercê de uma produção mais aumentada, que é capaz de elevar o nível econômico de todos de modo a contentar a cada um? Ao invés de lutar contra o semelhante, possuído de ódio, por que não lutar apenas contra as forças da natureza para dominá-las? O problema não é distribuir, mas sim produzir. Só assim se pode verdadeiramente melhorar as próprias condições. Não é preferível um sistema de bem-estar geral, que exista para todos, ainda que desigualmente distribuído, a um sistema de igualdade na miséria? Por aí se vê quanto é difícil o transplante de ideologia feita para um país e outros climas, difícil de aplicar a outras realida- Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS des biológicas, que naturalmente reagem. O que pode ser verdadeiro junto a um povo pode parecer absurdo a um outro que possui qualidades muito diferentes. Como mandar um urso polar para o Equador? Ou morre ou se transforma. A vida, com as suas férreas exigências, impõe adaptações dentro de férreos limites de tolerância. Por este motivo, como dissemos, o comunismo, se quiser ganhar o mundo, deve desnacionalizar-se, adaptar-se e transformar-se, porque existem leis biológicas que nenhuma força pode mudar. O resultado final da realização da ideologia não sabemos a que distância está do ponto de partida, porque, para atingi-lo, a ideologia originária deve defrontar-se com as leis e com a vontade da vida, que a amoldarão inexoravelmente às próprias exigências, e, se, por ventura, não se quiser dobrar, será despedaçada. Já dissemos que o pensamento da vida é bem diverso do pensamento dos homens. É aquele, e não este, o verdadeiro pensamento que necessita ser lido para que se possa compreender os fenômenos sociais. Existem princípios universais mais profundos, que o indivíduo, imerso nos seus problemas particulares, não vê e que, entretanto, atuam. É, pois, natural que no mundo imperem motivos diversos, repetidos no fragor das armas, mas que, embora guerreando, colaboram todos para os mesmos fins evolutivos da vida. Momentaneamente, pondo-nos do lado do capitalismo, podemos indagar se a desigualdade econômica, contra a qual só hoje a psicologia coletiva se insurge em massa, foi historicamente considerada uma injustiça. Se ela existiu, se a vida lhe permitiu existir, isto significa que deve ter cumprido uma função que hoje teria desaparecido, não se sabendo qual será o seu substituto. Só hoje a vida, em um momento excepcional, decidiu o progresso das massas humanas em bloco. Antes, com a sua habitual parcimônia, ela permitiu o avanço apenas de grupos limitados, que formavam as aristocracias. Este sistema persistia, ainda que se lhe mudassem os componentes, porque estava adequado à função de criar modelos de civilização mais avançados, formas de existências mais refinadas, de modo que os menos abastados, a seguir, pudessem por sua vez, imitandoos, ascender. Estas formas mais adiantadas, quer em razão do meio, quer pelo preparo educativo, não podiam se alcançadas pelo grosso das massas e se tornavam assim, necessariamente, limitadas a uma classe de reduzido número de pessoas. Estas possuíam uma função educadora e diretora, representando uma antecipação ou modelo. A Europa admirou, desta maneira, as loucuras luxuosas de Luís XIV, que constituíram depois o modelo para a civilização aristocrática do século XVIII e, exaurida a sua função, justificaram o assalto demolidor da Revolução Francesa. A mesma plebe que se sentiu honrada e se extasiava quando era admitida a contemplar a opulência daquela corte nos banquetes reais, nos jardins etc., um século depois considerava tudo isso um escandaloso insulto. A vida, que se expressa através das pessoas, utilizou o egoísmo da classe aristocrática enquanto esta lhe servia para criar um modelo. Mas, quando esta classe, egoisticamente pretendeu monopolizá-la para seu usufruto exclusivo, a própria vida se insurgiu e, manifestando-se através de todos os que haviam sido excluídos, lançou-se contra os monopolizadores. A vida é por si mesma coletivista e não admite injustas exclusões. Então ela grita pela boca dos deserdados: ―também nós!‖. O erro humano que a vida pune e que, para não ser pago, deve ser evitado está inteiramente no egoísmo e no monopólio. A moral está em que, segundo o verdadeiro coletivismo, que é o da vida, todos devemos ser irmãos. Hoje, com a igualdade, obteremos certamente a justiça social, mas também o nivelamento de toda distinção e refinamento, perdendo completamente o modelo do senhor que, se era rico, também deveria ser educado, culto e bondoso, pelo menos em teoria. Teoria hoje perdida, embora justamente, mas perdida, porque traída pelas classes altas. O povo está pronto a apropriar- 99 se de todas as vantagens materiais e igualmente dos vícios das classes superiores, mas não se preocupa com os deveres, educação e encargos inerentes a esses níveis. Daí decorre um rebaixamento geral do nível de vida a plano inferiores. Erigirem como modelo o homem da rua, o camponês, o operário, significa um nivelamento também espiritual e está em correspondência com o atual materialismo, com a psicologia do ventre, própria do tipo menos evoluído, assim como com a tendência destruidora atualmente em ação em todos os campos mais elevados da mente e do coração. O problema é muito vasto. Hoje, nos encontramos em fase universal de nivelamento, que não é apenas econômico. É natural que os extratos inferiores da sociedade humana, despertando, nivelando-se e afirmando-se, carreguem consigo aos primeiros planos todas as características do involuído. O princípio igualitário não interessa apenas ao mundo econômico, mas é fenômeno que investe sobre todas as manifestações da vida, mesmo aquelas que não lhes dizem respeito. Puseram-se em movimento para sentir a vida todas as células sociais, mesmo aquelas adormecidas em expectação. É certamente um fermento de vida extenso, mas rude, primordial. Desta maneira, na quadra atual, cada vez mais decai a raça do indivíduo evoluído selecionado, porque uma emergente maré de vida inferior se impõe, conquista todo o espaço e submerge qualquer superelevação biológica. Tal é o momento histórico, do qual o comunismo não é senão um aspecto no plano econômico-político. Em seu âmbito, o nivelamento talvez satisfaça o sentimento de inveja dos menos abastados, mas é indubitável que a nossa época deverá pagar esta conquista com um rebaixamento do tipo mais elevado de civilização. Porém este tipo era de poucos, e o nivelamento agora é de todos, e, por isso, faltar-nos-ão modelos elevados, a não ser o da mediocridade. Teremos um estado de semicultura, de semirriqueza, de semieducação e finura, mas igual para todos. É verdade que, na alma do pobre que sonha, o comunismo é bem diverso de um ideal de justiça social, ou pelo menos essa justiça deveria ser, no seu modo de ver, uma substituição por sua pessoa nas posições de favor de pessoas dos velhos esquemas sociais. E, assim, ele está pronto a aceitar o comunismo somente enquanto houver o que ganhar e, se, por ventura, tiver que resignar-se a uma paridade econômica, só admiti-la-á no caso em que signifique para ele uma melhora. Com o que ele verdadeiramente sonha é o desnivelamento de antes, mas em seu favor. Contudo esta possibilidade de emergir, distinguindose da plebe, está definitivamente eliminada da atual fase histórica, mesmo para a plebe. Esta, no igualamento, terá o gosto de não ver mais diante dos olhos esta exibição de riqueza; não terá ao menos quem e o que invejar; não poderá mais admirar, ainda que seja invejando, as cenas de que ela mesma sempre foi tão ávida. No entanto poderia ser-lhe útil explorar alguns dos aspectos da riqueza que lhe foge, percorrer as experiências das classes refinadas, que conhecem também outras formas de dor, que a justiça da vida mantém distanciadas daqueles que já se encontram abundantemente gravados com a dor da pobreza. Em face destas mais profundas realidades da vida, todos os nossos nomes de partido e de governo passam para segunda plano, e parece até inútil amofinar-se com as distinções atrás das quais, sob a forma especiosa de palavras novas, esconde-se o velho homem de sempre. Então se desce ao terreno da luta, onde é inútil procurar a verdade. Esta situa-se alhures, nas leis da vida. E, por esta, as diferenças individuais existem e persistem e, como tais, voltarão a manifestar-se. Nenhum nivelamento econômico poderá impedir ao mais inteligente e voluntarioso de aparecer, e ao mais obtuso e preguiçoso de ter que se submeter a ele. A distância entre servos e senhores corresponde a uma realidade biológica e está sempre pronta a reconstituir-se, até na sua manifestação exterior de posições sociais diferentes. Nenhuma disciplina de estado pode alterar estas posições substan- 100 ASCENÇÕES HUMANAS ciais. Nos indivíduos, como nos grupos, o mais forte se torna sempre centro, em torno do qual, como planetas, os mais fracos gravitam, seguindo a lei e a ordem que ele lhes quiser impor. O movimento da vida hoje é o mesmo já realizado no passado: a ascensão das classes sociais inferiores. O nivelamento não tem outro sentido. Verificar-se-á uma retração das distâncias, sobretudo formais, mas as diferenças são insuprimíveis. A plebe ainda agora é menos evoluída do que os chefes, constituindo campo de luta favorável aos dominadores, que continuarão a instruir as massas sempre com novos truques, pois, na verdade, cada povo possui os dirigentes que merece e que pode compreender. Desta maneira, as massas aprenderão melhor a pensar e, de desilusão em desilusão, sofrendo duramente de cada vez, irão formando, como é natural, à própria custa, a consciência coletiva. Assim, a vida consegue permanentemente, através da luta, os seus objetivos evolutivos. Como se vê, a tendência destruidora universal do presente não passa de uma fase. Em biologia, a destruição tem sempre uma função renovadora. A substância de todos estes movimentos é a luta biológica, em que cada um se comporta segundo a própria natureza. Toda ideologia tem de se ajustar sempre aos insuprimíveis instintos que fazem o homem agir, e, entre estes instintos, são fundamentais o de posse e propriedade, meios poderosos que o ajudam a subir. O verdadeiro comunismo presumiria o homem angelical, desinteressado, altruísta, disposto a renunciar às próprias vantagens individuais em benefício de todos. Existem hoje exemplares de tal homem? E, se existem, poderão sobreviver no mundo atual? Então, como podem subsistir tais qualidades? Com o espírito de grupo e o interesse de partido? Mas, assim, da ideologia não estará em atividade senão a habitual e antiga luta pelo domínio, a união para gerar a força. Esta culpa não cabe ao comunismo ou ao capitalismo, mas ao próprio homem, que, em toda a parte, é sempre o mesmo. Na verdade, a meta é o evangelho e a sua justiça. Mas, dado o que o homem ainda é hoje, mais avançada aproximação em massa não se pode obter presentemente. Tudo sucede em virtude de uma razão profunda e colima num objetivo na vida, e este ainda está muito distante para que os homens da atualidade o percebam. Amanhã, a fase atual de capitalismo e comunismo estará superada. Sem dúvida nenhuma, a consciência coletiva foi despertada e as massas sentem com maior clareza a voz da vida. Os erros serão pagos e, na dor, serão corrigidos. Deste modo, por eliminação, sobreviverá apenas o melhor, que passou pela seleção das provas. Todos os movimentos hodiernos, ainda que em parte naufraguem, possuem uma grande função como escola e prova. Começará a formar-se um egoísmo de classe que é mais vasto que as unidades psicológicas que se haviam formado no passado. Tudo que arvora-se em coordenação e unificação é uma forma de progresso. A estruturação da organização de classe levará a um sentido de unidade por parte de células que ainda não se conheciam. A coordenação dos egoísmos de classe em mais amplos egoísmos de povos e humanidade levará a novo progresso. Já vimos, no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio, os métodos de aquisição do involuído. Ele é levado a considerar ―legitimamente seu‖ qualquer coisa em que, de alguma forma, tenha arriscado a pôr as mãos. As atuais macerações sociais levam-no, pelo amadurecimento, a conceber uma propriedade cada vez menos egoísta e exclusivista, cada vez mais coletiva e social, até à sua negação no comunismo. Esta é uma maneira de conduzir o involuído à concepção que o evoluído possui de propriedade, que, em outra parte, veremos ser muito diferente. Muitos são hoje os modos pelos quais a vida procura eclodir das suas velhas formas. Não nos resta mais que confiar na sua sabedoria e nos limitarmos a segui-la, lendo-lhe o pensamento, que se inscreveu nos eventos da história. Respeitemos Pietro Ubaldi os homens de ação, que são necessários, mas não nos deixemos empolgar demasiado pela sua miragem. Atentemos para a vida, que é a única que não mente e pode inspirar-nos confiança. Ela, dividindo o mundo entre capitalismo e comunismo, não faz mais do que aplicar o seu universal princípio de dualidade. Nós sabemos que o dualismo é a base do monismo, porque cada unidade que existe é o resultado de duas metades inversas e complementares. Essas duas metades são hoje no mundo: capitalismo e comunismo. Estes formam, por conseguinte, uma unidade. Eles representam a forma atual dos equilíbrios da vida. Isto é, as duas metades são, como sempre e em toda a parte, equilibradas, tal como o positivo e o negativo em todas as coisas, como os dois polos do circuito elétrico ou os dois termos do sexo. Assim como a história possui os seus períodos românticos e clássicos e a política as suas formas de democracia e totalitarismo, assim também devem ser encarados capitalismo e comunismo. O primeiro é produtor, logo armazenador e conservador, estribando-se na riqueza e no bemestar material. O segundo é revolucionário, logo expansionista e guerreiro, baseando-se na conquista e na ideia. Eles lutam hoje como o macho e a fêmea no amor, acreditando, como estes, poder impor o seu próprio eu para sua exclusiva vitória. Mas o terceiro elemento, o filho, que nascerá desse encontro, não será exatamente nem um nem outro, pois, ainda que se lhes assemelhe, será apenas ele. E o que será mais necessário para a sua gênese: o macho ou a fêmea? A vida age sempre, em toda a parte, com os mesmos princípios. Antigamente, pobres e ricos viviam na mesma cidade. Hoje, esta cidade é o mundo, e como todos os pobres se uniram, o mesmo fizeram os ricos. Assim, o mundo se dividiu em dois. A Rússia, que é pobre, fez-se mãe de todos os pobres e está abraçando a China, que também é pobre, em uma ideologia que justifique a todos. A América, que é rica, fez-se mãe dos ricos e está abraçando a Europa, que até ontem pertencia à casta dos ricos. Se, no passado, todo pobre pedia esmola ou pretendia extorqui-la ao rico à força, cada um cuidando de si mesmo, sem pensar em outro pobre, e cada rico dava isoladamente, hoje, em consequência da atuação do princípio das grandes unidades, o mesmo gesto, de uma parte ou de outra, é repetido em grandes massas. Hoje, não é mais um pobre ou um grupo deles, mas é uma metade do mundo que pede e impõe justiça econômica à outra metade. A realização do princípio das grandes unidades a que o progresso nos conduziu nos faz alcançar a unificação em todos os campos, começando pelo econômico. IV. A UNIDADE POLÍTICA Nos capítulos precedentes, observamos o principio da unificação e a sua presente atuação no mundo, que representa a fase atual do seu progresso. Trata-se da coordenação de múltiplos elementos antes heterogêneos em novas unidades-sínteses, o que significa uma ascensão na hierarquia do ser, dado que este é um momento da reordenação progressiva do caos, através da qual tudo tende a voltar para Deus. Qualquer que seja a atitude que o homem queira presentemente assumir, no bem ou no mal, o fato novo que exprime o progresso atual é que tudo hoje começa a suceder em escala sempre crescente, em razão do homens abranger distâncias cada vez maiores, agrupando-se, consequentemente, em unidades mais amplas. Falando em A Grande Síntese (Cap. XXVII) da lei das unidades coletivas, simplesmente constatamos esta estrutura analítico-sintética, isto é, coletivista, através de reagrupamentos orgânicos no universo. Aqui, estamos observando alguns casos particulares situados no campo social da presente fase histórica, analisando algumas unidades coletivas, sobretudo no seu processo de formação, ou seja, não em seu aspecto estático, mas sim no dinâmico de sua transformação. Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS No capítulo anterior, verificamos assim o fenômeno hodierno das grandes unificações mundiais na fase de interesses econômicos. Passamos agora a observar o mesmo fenômeno no campo político e, finalmente, o veremos no religioso. No estudo destes casos particulares de unificação, encontramos também uma explicação e uma confirmação do monismo que sempre nos guiou nesta obra. Por este estudo, o leitor verá que todos os problemas são sempre orientados para o mesmo princípio universal. Mesmo agora, partiremos utilizando um ponto de referência de caráter universal. A criação não é o resultado da intervenção exterior por parte de um princípio transcendente que do nada cria tudo de uma vez. A realidade fenomênica nos mostra universalmente que a criação é o resultado de uma contínua e íntima atividade de um princípio imanente, cuja faculdade criadora deriva do fato de dispor de um modo permanentemente novo e diverso de formas transitórias e caducas, numa substância que é indestrutível. O que muda e se acaba é apenas a forma. Somente ela nasce do nada, e não a substância. Esta é envolvida por uma cadeia de contínua composição e decomposição, segundo modelos diferentes. Tudo se individualiza em tipos definidos e, compondo-se, passa a existir. Depois desintegra-se, para recompor-se de novo, em uma existência mais completa e perfeita, consoante a marcha da evolução. Através deste florir e fenecer para reflorir, nascer e morrer para renascer, a vida avança – movimento que, se é esforço e parece instabilidade, é porém meio de inexauríveis conquistas. Por isso é certo que quem toma por realidade definitiva a forma transitória e a ela se fixa, abraça apenas uma aparência e se perde na ilusão. Isto não acontece a quem se fixa na substância. Dito isto, vejamos sua aplicação. A nova era, na qual o mundo está para entrar, não é uma criação nova do nada, mas somente uma forma diversa e mais elevada de vida, em que os elementos individuais e sociais da humanidade, hoje existentes, serão dispostos diversamente, isto é, mais harmônica e organicamente, com maior amplitude e profundeza de fusão, através da supressão de tantos atritos dolorosos, de modo a tornar possível a formação de uma individualidade biológica coletiva mais harmônica, extensa, complexa e perfeita, ou seja, uma civilização mais avançada. Há milênios que os indivíduos sofrem uma elaboração dentro dos mais variados acontecimentos históricos, que de modo nenhum se podem repetir igualmente. Ainda não existe a compreensão, mas há a possibilidade de se alcançá-la. Indiscutivelmente, o homem é, na maioria dos casos, um involuído. Mas dois fatos novos surgiram: a extensão das suas faculdades racionais, mercê da ciência e da cultura, e o progresso tecnológico, que libertou o homem do trabalho material e lhe facultou fáceis e rápidos meios mundiais de comunicação. Formou-se, pois, na humanidade, a capacidade e o meio para que ela se sinta em qualquer dos seus pontos. Não existe ainda o senso da organicidade, mas as suas premissas já estão plantadas. O mundo está maduro para começar a compreender e movimentar a ideia nova de unidade. A velha mãe Europa completou grande parte da sua tarefa, irradiando a própria civilização para as duas Américas, as suas duas filhas, a latina e a anglo-saxônica, nas quais se expandiram e revivem as duas grandes raças europeias. O mundo está dividido hoje entre as duas únicas grandes potências: Rússia e América. De qualquer maneira, deverão defrontar-se e decidir a supremacia mundial, alcançada a qual, tudo girará em torno de um único centro, aquele que demonstrar como potência, justiça e inteligência, ser o melhor. Somente a formação de um único governo central poderá estabelecer uma ordem que isole e elimine a violência bélica dos Estados separados. Os idealismos antibélicos podem exprimir um desejo e preparar o terreno para a paz, mas não são por si sós suficientes para eliminar a guerra. 101 Em nosso século de movimento e velocidade, assistimos a um contínuo desmoronar de barreiras. As paredes divisórias, erguidas pela ignorância humana, por mais que resistam, vão sendo paulatinamente demolidas. No campo político, revela-se absurda e ofensiva para os excluídos a ideia de uma absoluta superioridade racial, como o é também a de uma absoluta superioridade individual. Tanto mais perniciosa é semelhante ideia quanto mais ela tende à escravização e ao extermínio de outras raças ou povos. Toda raça possui qualidades que não se formaram ao acaso e que têm uma função coletiva. Cada povo pode oferecer uma contribuição útil à formação do novo organismo da humanidade. E, se existe uma raça mais evoluída, esta tem, por isso mesmo, o dever de educar e fazer evoluir, e jamais o direito de esmagar e desfrutar. A mentalidade moderna, especialmente depois das últimas experiências bélicas, é impelida a fazer a crítica do velho conceito de nacionalidade, que dividiu e prejudicou o mundo por milênios. Então interroga: que interesse tem alguém em matar, por motivos de estratégia política, homens que não conhece? Em face de qualquer afirmativa, o espírito crítico moderno vai espiar por trás dos cenários, dando origem então à dúvida de que as exaltações heroicas, as honorificências bélicas, podem ser criações artificiais dos governos ou classes sociais, a serviço dos seus objetivos egoísticos, e que, efetivamente, não interessa aos povos, conduzidos assim ao massacre, para vantagem de alguns. O racionalismo moderno abalou a confiança simples de antanho. Os últimos desmoronamentos de grandes potências e os rápidos transtornos que sofreram as pregações e os ideais, puseram à mostra o desgaste de muitos políticos que em geral, antes, se mantinham ocultos. O lamentável aspecto dos governos desnudados desacreditava a ideia de Estado. A proclamação feita aos quatro ventos dos abusos praticados pelos dirigentes soou aos ouvidos do cidadão, inimigo natural de seu patrão estatal, não mais como uma reivindicação de justiça, mas como uma simples acusação pública contra toda autoridade, razão e justificativa de desordem e consequente incentivo à rebelião. Degringolou assim o prestígio da autoridade em si mesmo, personificada em quem quer que fosse. O homem, tornado mais astuto e suspicaz pela constatação de tantos enganos, começa a compreender os truques de todos os governos, de todos os programas, de todos os partidos, e sabe agora por que método a imprensa fabrica a opinião pública e, em meio a tantos mestres, aprendeu a desconfiar de todos. O homem de vida privada quer os seus negócios, a sua paz. Os povos estão cansados de guerra. Eles não admitem hoje senão uma guerra: a guerra contra aqueles que pretendam desencadear novas guerras. Por este motivo, quem deseja fazer a guerra desempenha antes o papel inocente do agredido, proclamando ao mesmo tempo que é o defensor da paz. No entanto murmura-se: o pacifismo abre as portas ao inimigo. É verdade, mas o atual transtorno e relatividade de fronteiras, com os meios aéreos que as podem superar e com a moderna tendência a grandes unidades mundiais, faz tal frase perder dia a dia sua significação. A guerra se faz, cada vez mais, com capitais e indústrias e, cada vez menos, com patriotismo e espírito heroico; cada vez mais, com a capacidade técnica e, cada vez menos, com o valor militar. Por isso tem mais ação protetora para o povo o senso orgânico industrial do que o sentimento bélico. O mundo se transforma, caminha para a fase orgânica coletiva. Ora, o coletivismo é, pela própria natureza, colaboracionista, antiagressivo e pacifista. Pelas suas naturais destruições, a guerra encaminha-se para destruir a si mesma. A técnica torná-la-á tão destruidora, que o mundo entrará em coalizão, em autodefesa, contra quem quiser recorrer a ela. E, assim, o espírito belicoso de virtude se transformará em culpa. Tudo isto, hoje, pode parecer desmoralização, mas, com a evolução, as necessidades e os valores éticos sociais mudam. A vida avança e abandona os 102 ASCENÇÕES HUMANAS valores que não mais a servem. O que servia em um mundo de paz temporária, permitida por um equilíbrio instável entre tantas nacionalidades distintas e rivais, não serve mais para um mundo que gravita em torno do único poder central, para um mundo orgânico, ligado assim ao pacifismo. Os meios técnicos conquistados, assim como emancipam o homem dos esforços animais, também o levam a aplicar as suas energias em lutas mais elevadas, para servir a uma seleção espiritual, e não material. O patriotismo, sentimento tão fundamental no passado, para a defesa nacional, ressente-se da mutação condicional da vida e se transforma. Ao invés de surgir como exaltação heroica, ele se nos revela em outros aspectos, que lhe são peculiares, em conexão com sentimentos de intolerância, rivalidade, agressividade, guerra e destruição. Cada um desses sentimentos encadeia-se com outro, numa sequência de raízes profundas. A elevação do nível de vida e a progressiva evolução do ser humano o tornaram mais sensível a tudo, especialmente em face da destruição, cujas dores se tornam cada vez mais insuportáveis. Se o patriotismo é belo dentro dos limites pátrios, no exterior constitui uma ameaça, e a cada exaltação patriótica interior corresponde uma recrudescência de ódios nos países vizinhos. Estes isolamentos egocêntricos se tornam gradativamente mais absurdos em um mundo tão intercomunicante nos seus interesses e relações de qualquer gênero. Hoje, sentimos o peso das barreiras a que nos sujeitávamos no passado, resignados como a um fato inevitável. Tem-se sede como nunca de liberdade, de uma liberdade mais ampla que a precedente, de mais espaço, porque, de criança, o mundo transformou-se em adulto. Como nunca, hoje o homem sente que a vida é tanto mais bela quanto mais livre. A intensificação do dinamismo moderno e dos meios de movimentação que satisfazem a este dinamismo exige liberdade. E uma liberdade maior não se pode obter senão com uma tolerância e compreensão proporcionalmente maiores. Do princípio de que é grande quem ama apenas a própria pátria, odiando todas as outras, chegar-seá ao de que é grande quem ama ao próximo como a si mesmo. Aquilo que, perante a velha mentalidade, parece desmoralização é, pelo contrário, uma queda de barreiras. O patriotismo do futuro abraçará todo o mundo, e um homem não será cidadão senão da nação humanidade. O tipo biológico do futuro, senhor do planeta, o vencedor da luta pela vida nas suas novas formas, não será o homem belicoso, violento e feroz de antanho, mas um ser orgânico, ―o homem social‖, célula de um imenso organismo humano, cuja vida nada mais terá a ganhar com a extorsão do indivíduo pelo indivíduo praticada até agora, mas basear-se-á no desfrutamento das inexauríveis riquezas e energias que transbordam da natureza. V. A UNIDADE RELIGIOSA O mundo atual não caminha apenas no sentido da unidade política internacional em que está implícita, numa relação de causa e efeito, a unidade econômica, mas avança também para a unidade religiosa. Neste campo, igualmente tão importante como o político e econômico, lavra uma tendência, em meio a tantos grupos distintos e hostis, à unidade, isto é, à formação de um só rebanho, com um só pastor, mas é necessário frisar que isto, assim como para as raças e nações, não se deve interpretar como supremacia de uma religião e seus representantes, com exclusão das outras religiões e seus representantes. Assim como a futura humanidade será uma unidade racial e nacional acima das diferentes unidades raciais e nacionais, a religião do futuro também será uma unidade espiritual acima das diferentes unidades religiosas. Em outros termos, da mesma forma que no campo político, social e econômico, a unidade no campo religioso também não pode ser dada senão pela compreensão e fusão em um todo harmônico das verdades religiosas existentes. Pietro Ubaldi Compreensão não significa sujeição do superior ao inferior e, muito menos, do inferior ao superior, mas coordenação, segundo o valor intrínseco e peso específico de cada unidade, para a formação de um todo orgânico e único. Cada religião na sua justa posição, consoante à sua elevação espiritual. Há lugar, pois, para os budistas, maometanos, hebreus e cristãos de todos gêneros, inclusive os católicos. Há lugar para cada religião, para cada seita que supere o espírito sectário, para cada forma de fé, filosófica ou científica, contanto que seja livre e que tenha tendência sincera para o espírito e para o divino. Também isto pode parecer desmoralização. Mas tantas subdivisões humanas do mesmo sentimento de adoração a Deus, com as quais acredita-se ciosamente conservar a fé, são mais questões de forma do que de substância e atingirão a unidade quando souberem superar a forma, atendo-se precipuamente à substância. Dê-se à forma o valor que merece e não mais. Quantos delitos se cometeram por ela, quantos massacres se fizeram em nome do mesmo Deus, que a cada qual parecia tão diverso, sendo sempre o mesmo. É evidente que tudo quanto divide é satânico. Os caminhos de Deus, que são amor, conduzem à unidade. O espírito egocêntrico e sectário é uma expressão do mal. O espírito de compreensão, altruísta, é expressão do bem. Em todas as igrejas se adora Deus, e trata-se do mesmo Deus. No entanto queremos dividir-nos com a pretensão de definir o indefinível infinito, de conceber o inconcebível, de dar no relativo uma forma àquilo que, podendo assumi-las todas, está acima de qualquer forma! Se a verdade absoluta é uma só e jamais muda, é natural que, no relativo humano, não possa caber senão uma verdade relativa, limitada e em evolução. É natural que a capacidade humana de compreensão não possa abarcar a verdade absoluta, que está além de toda a inteligência humana e que, pois, a esta verdade não se pode subir senão por graus, por aproximações sucessivas. Na livre atmosfera espiritual do universo, todo isolamento fechado de uma verdade particular é estiolamento e morte. Cada profeta, cada fundador de religião, levou a sua mensagem do mesmo Deus, em formas diversas, adaptadas ao homem e proporcionada aos tempos. Não confundamos a forma com a sua essência. As diversas mensagens de Deus não são verdades diferentes e inimigas, mas sim as formas sucessivas com as quais se exprime a palavra de Deus aos homens em um mesmo progressivo plano de educação. Não basta a tolerância, que é atitude passiva. É necessário alcançar a compreensão, isto é, a fraternidade entre as várias religiões. Não se trata de suportar um inimigo tolerando-lhe o erro com um tácito espírito de condenação, trata-se sim de ir ao encontro de todas as formas de fé, de coração aberto, procurando, mais do que aquilo que as divide, aquilo que as pode unir. É necessário compreender que elas não são mais que diferentes estágios históricos, fases evolutivas ou formas étnicas de uma mesma religião única, que evolve paulatinamente e se completa de período em período. Por que deve o adulto ser inimigo do jovem ou da criança; o fruto, inimigo da flor ou do botão ou da semente, se é sempre o mesmo eu que marcha no tempo, evoluindo? A atual mania separatista no campo espiritual torna-se dia a dia mais ilógica e prejudicial. As barreiras que dividem o mundo são ainda grandes, mas, na época atual, elas deverão desmoronar. A luta entre as religiões esteve até agora unida à luta racial, política, econômica e nacional. É evidente que, conseguindo-se a unificação nesses últimos campos, deve-se conseguir a unificação também no campo religioso. Visto que a realidade fundamental das religiões é uma só e a mesma e que a luta religiosa é frequentemente a expressão de rivalidade de outro gênero, é certo que, desaparecendo esta, a tendência à unidade em todo campo acarretará a fraternidade também no campo religioso. Esta fraternidade fará com que o mais evoluído compreenda e ajude o menos evoluído, ao invés de condená-lo e combatê-lo. Não é nociva a disputa de interpretação quando acarreta cisão e ódios? Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS Não é a essência da religião a união, a fraternidade, a aproximação de Deus, amando o próximo? A mais profunda erudição, sem o ardor de sacrifício e de fé, é puro farisaísmo. É evidente, já o dissemos, que em nosso tempo assistimos a um desmoronamento de barreiras em todos os campos. O instinto expansionista, sempre fundamental e ativo na vida, jamais atirou como agora uns nos braços dos outros, ainda que o seja por instinto de violência bélica e num amplexo de ódio. Não importa. Os fins da unificação em um mundo involuído se manifestam sobretudo em forma de luta, que é a primeira fase do avizinhamento. A vida é sempre expansionista em qualquer nível, desde as invasões bárbaras, que reduzem os povos à servidão, aos imperialismos políticos e econômicos, até mesmo na ordem evangélica, que diz: ―Ide e pregai a toda a gente‖. Tudo tende sempre a dilatar-se e, por conseguinte, à unidade. No campo religioso ocidental, esta dilatação não pode ser realizada pela segregação dos dissidentes, mas sim por uma expansão além de sua forma atual. É necessário encontrar, para lá do Cristo chefe de uma única religião, o Cristo universal conexo a todos, no qual se pode, assim, concentrar o consenso de todos os justos que seguem os princípios do evangelho, ainda que formalmente se filiem a outros ritos e hierarquias. Uma verdadeira expansão não se pode verificar a não ser neste sentido, porque é o único que não gera reações naturais de defesa. Os obstáculos nascem do que é material e terreno. As cisões religiosas nasceram, com frequência, das rivalidades nacionais e raciais. Quando a ideia assume forma concreta de homens, hierarquias e interesses terrenos, entra-se no campo biológico, com seus absolutos antagonismos. Quanto mais a religião assumir forma material, tanto mais ressentir-se-á das lutas que dominam a vida terrena e delas dependerá. Se esta pode ter sido uma dura necessidade do passado, pela qual a religião, o poder temporal, a força e a guerra tiveram que misturar-se, é também verdade que tudo evolui e que, com o tempo, tudo se espiritualiza. Quanto menos a ideia penetrar no árduo terreno biológico, tanto mais independente ela se torna de todas as limitações que daí derivam e tanto mais possível se lhe torna a expansão e a consequente unificação, que estão a serviço da espiritualização. Tal é o processo evolutivo das religiões, que, nas suas formas, exprimem as etapas seguidas pela ascensão biológica dos povos. Essas formas são o efeito da forma mental dominante nos vários séculos. As culpas e erros que se atribuem a uma hierarquia humana não passam de culpas de um século e mais ou menos de todos os homens. Quando a evolução biológica tiver civilizado o mundo, a religião ter-se-á libertado da forma terrena e, então, poderá expandir-se sem as reações de parte a parte, rivais apenas porque são formas terrenas. Quando a religião se fundamentar no céu, não haverá, como não há para os santos, razão de rivalidades na terra e desaparecerão todos os males que dela derivam. Céu e terra são dois opostos. Toda potência terrena é uma impotência no céu, e toda derrota na terra é uma vitória no céu. Assim, quando a religião for apenas espírito, então, automaticamente, será universal. A unificação só pode vir fora da terra, no único Deus universal, que, acima de todas as divisões humanas, domina-as todas. Em outros tempos, não maduros para tais conceitos, era uma necessidade histórica fixar a verdade na forma, restringindo a liberdade de pensamento no campo da fé, para impedir o seu fracionamento em heresias. O misoneísmo possui funções conservadoras, também necessárias. O cisma era o terror de toda a unidade religiosa, que representava uma laboriosa e preciosa construção, custara milhares de mártires para formar-se e exigia uma plêiade de pensadores e uma legião de ministros para manter-se. Ele se insurgiu contra tal espírito conservador, que tem contudo a sua função e, de fato, não freia a evolução. Não obstante a sua aparente imobilidade, as religiões caminham conexas com o progresso humano. De outra forma, teriam pere- 103 cido. Elas avançam com a psicologia dominante. Ideias que, há poucos anos, pareciam heresias, como o conceito de evolução, hoje são admitidas. Assim será também amanhã para estas páginas. Deixemos que, no homem, o finito caminhe gradativamente para o infinito, pois que jamais o atingirá. Deixemos que o homem faça de Deus a representação admissível pelo seu poder de concepção. Tudo quanto ele disser de Deus jamais será Deus, mas a Sua limitação para uso humano. A essência da divina realidade é para nós inconcebível, e qualquer especulação filosófica e teológica não pode nos dar dela mais do que uma longínqua aproximação. O homem não pode ver Deus senão em Seus espelhos. Passam pela Terra seres como o poeta, o gênio, o santo, o herói; tão avançados, que neles podemos ver um reflexo de Deus; alguns tão perfeitos, que nos aparecem como semelhantes a Deus. Se a essência divina não é cognoscível, as manifestações da Sua qualidade são visíveis por toda a parte, e nada existe que não nos fale d'Ele. Então poderemos vê-Lo em todo rosto e forma, amá-Lo em toda criatura, encontrá-Lo em toda parte. Então compreenderemos que Deus não se atinge senão amando o próximo e que, se agredirmos e detestarmos, ainda que seja em nome de uma fé, estamos nos distanciando d'Ele. Acima das diferentes formas religiosas está, pois, a substância da verdadeira religião de Deus, que só pode ser única. Hoje, vivemos ainda em um mundo de cisões. Não se pode dar um passo sem tropeçar numa parede divisória. Nenhuma fé verdadeira pode existir com o espírito sectário de domínio, no entanto é este que se encontra em todos campos. É o mesmo espírito humano de luta e exclusivismo que impera. Deus, o bem e o justo estão sempre desse lado; Satanás, o mal e a culpa estão sempre no lado oposto. É sempre o homem agindo por si mesmo, e não fazendo-se instrumento de Deus. Os métodos de Deus são opostos: aqueles que o seguem, praticam antes de pregar; convencem com o amor e com o exemplo antes de constranger com as argumentações, ameaças de sanções e de condenações morais. A guerra santa é uma contradição. Matar é sempre um delito, mesmo que se cumpra em nome de Deus. A guerra religiosa não se faz com a espada, mas com o exemplo e o martírio. Jamais puderam as perseguições sufocar a verdade, tornando-se, pelo contrário, instrumento de divulgação. Para cada crente morto pela sua fé, formam-se centenas de novos crentes. Esta também é uma estratégia de guerra, ainda que oposta à estratégia bélica humana. No limite extremo do nosso ciclo histórico, os conceitos se tornaram mais ásperos. Se ciência e fé não estão de acordo em algum ponto, isto significa que, aí, pelo menos uma delas deve possuir algum conceito errado e, por conseguinte, não pode ter razão. Isto porque uma religião e uma ciência que sejam verdadeiras e completas não podem deixar de concordar, devendo ambas dizer de maneira diferente o mesmo pensamento de Deus. É necessário que essas duas asas do espírito humano se movam sincrônica e harmonicamente, sem o que o voo não será possível. Não se voa com uma asa só. Com a religião apenas, cai-se na superstição; só com a ciência, resvala-se para o materialismo. Hoje, Oriente e Ocidente estão divididos, não se comunicam, não se compreendem. Entretanto o primeiro tem necessidade dos conhecimentos científicos do Ocidente, e este precisa dos ideais espirituais do Oriente. Um simples intercâmbio preencheria as duas lacunas. Presentemente, as religiões e as várias formas de fé são, com frequência, causa de separações e de ódio. Quem, com estes sentimentos, professa qualquer religião ou fé é antirreligioso, e toda religião que não gerar amor, harmonia e união não é verdadeira religião. A verdade que se fundamenta em anátemas e acusações recíprocas de falsidade está muito longe do espírito de verdadeira religiosidade. O progresso do conhecimento exige colaboração em todos os campos, porque cada um está ligado ao outro e toda descoberta, qualquer que seja ela, ilumina a todos. Assim, o astrônomo, o quí- 104 ASCENÇÕES HUMANAS mico, o físico, o biologista, o psicólogo, o sociólogo, o filósofo, o teólogo etc., ajudam-se constantemente um ao outro. É necessário que eles se compreendam e se completem fraternalmente. A síntese universal do saber só poderá surgir desta unificação, em que o intérprete da divina revelação dos textos sagrados concorde com o intérprete do mesmo pensamento divino escrito na realidade fenomênica. Todos esses dissídios constituem um contínuo óbice às pesquisas e manifestações do pensamento. Cada seção, cada fé, possui uma terminologia própria com que pretende enclausurar a verdade nos limites do seu monopólio. Apresenta formas que constituem simplesmente as vestes da própria verdade, acreditando com isto apresentar a própria verdade. Quem tem espírito de separatismo se escandaliza com quem, possuindo espírito de unidade, diz a mesma verdade indiferentemente, de qualquer maneira. Este último, na realidade, acredita dar um bom exemplo de unificação quando, no campo religioso, animado de fé, fala e escreve sobre as mais diversificadas questões como se fossem uma coisa só; quando demonstra que se sente igualmente bem entre crentes de qualquer fé, sejam católicos, protestantes, hebreus muçulmanos, budistas etc., contanto que sejam sinceros; quando mostra que sabe venerar a Deus tão bem em uma igreja como em uma sinagoga, ou em uma mesquita, ou em um templo hindu, ou mesmo a céu aberto. Deus, em toda parte, não é o mesmo? Quem possui espírito de unidade, que é muito mais do que tolerância, desfruta dessa confraternização, que ofende o espírito de exclusivismo e intransigência de tantos. Às vezes acontece que uma verdade, ainda que aceita por uma crença, é por esta condenada quando exposta com a terminologia e divulgada com a configuração de uma outra. Surgem assim estranhas contradições: um livro ou uma ideia são exaltados sobretudo porque condenados pela parte oposta, que é sempre de Satanás, e o mesmo livro ou ideia são expulsos como satânicos mal sejam aceitos e subscritos por essa parte. Pobre verdade! Efetivamente, quando se expõe um conceito, é necessário manter-se no princípio abstrato, onde todos estão de acordo, porque ele não toca em pessoas e interesses. Mas, quando se entra em particulares, até alcançar os representantes terrenos dessa ideia, então a controvérsia é inevitável, e a condenação da parte oposta é certa. Isso demonstra que aprovação e condenação são com frequência frutos de interesses e preconceitos. Muitos concordam hoje em seguir o Cristo da história, porque pode parecer estar longe e afigurar-se teórico, mas quantos o seguiriam se Ele voltasse à Terra e ferisse os interesses terrenos? Aqui, esboçamos a unificação sobretudo no aspecto religioso, porque a religião é a base da civilização. Mas, neste aspecto, estão implícitos todos os outros. Os sinais dos tempos nos revelam a aproximação de uma nova era para o mundo. Esta será a era da unidade. Isto quer dizer era do espírito, do amor, da consciência. E, só quando tudo isto existir, poderá haver também liberdade. Esta é algo que o homem procura, mas que ele ainda não aprendeu a conseguir. A nova civilização nascerá da substituição progressiva da animosidade recíproca pela ajuda recíproca. É lei de vida que a crisálida se transmude em borboleta, que a criança se torne adulto e que a flor desabroche e origine o fruto. Tudo deve fatalmente maturar. É verdade que sempre estivemos e todos já nos encontramos unidos em um organismo universal, ainda que muitos não o saibam. Mas hoje estamos unidos mais por vínculos de ódio e de luta do que de amor e compreensão. Que vínculos duros e tristes são estes. O homem do futuro será consciente desta unidade que hoje não compreende. Presentemente, estamos unidos mais pela dor do que pela alegria, unidos sem querê-lo, unidos sem compreendê-lo, unidos pela força. União suportada, e não sentida e conhecida; vivida sem a coparticipação consciente nesta divina unidade de tudo quanto existe no universo, que é a mais evidente expressão de Deus e a maior maravilha da vida. Pietro Ubaldi VI. OS CAMINHOS DA SALVAÇÃO O leitor que seguiu a vasta orquestração ascensional com a qual procuramos dar apenas um eco daquela que realmente vive e soa no infinito, ver-se-á agora, gradativamente, conduzido ao mundo místico. Uma vez neste, teremos nos avizinhado do ponto culminante deste trabalho, para depois, novamente, descendo de grau em grau, atingirmos o seu termino. Ao vértice, o leitor será guiado por uma real experiência do autor. Essa, como aqui está exposta, representa dele uma nova maturação, cujo trajeto preparatório está nesta obra delineado nos quatro capítulos que se seguem, do VI ao IX, em que se estabelece a base para o salto até o capítulo XI: ―Ressurreição‖, que conclui a fase. O capítulo XI pode ser considerada o ponto culminante deste volume. Estes quatro capítulos foram sentidos e registrados na Quaresma do ano de 1947, em um lance instintivo que representava uma preparação à eclosão da Páscoa do mesmo ano, na ―Ressurreição‖, que se segue. Nos aproximaremos deste ponto ao entrar em mais detalhes à medida que avançarmos, atingindo a ―Paixão‖, que se apresenta como antecedente para uma elevação, assinalando o harmônico retorno do ritmo de uma vida. Estes quatro capítulos foram escritos para em opúsculo individualizado, cujo capítulo seria ―A Comunhão Espiritual‖, que deveria narrar completamente uma experiência mística, logicamente apresentada e enquadrada. Porém, não tendo sido possível encontrar um editor religioso que quisesse publicar o opúsculo sem antes obter o ―imprimatur‖ e visto, também, que este grupo de capítulos representava a fase espiritual vivida pelo autor a meio caminho da gênese do presente volume, ele foi incluído aqui, neste ponto e neste momento, em seu lugar mais natural e lógico, como verdadeira exposição de estudos místicos vividos. Todavia resta o fato que esses quatro capítulos, tendo sido escritos para um opúsculo separado, tiveram que ser refeitos nessa ocasião para adaptarem-se aos conceitos gerais, que deviam ser aqui escritos resumidamente, a fim de permitir um melhor entendimento ao leitor novo, mas que se tornam repetição supérflua para quem os acompanhou nos outros volumes. Não obstante, dado que se trate de poucas páginas, aqui nada alteramos da sua original espontaneidade, seja porque qualquer alteração seria difícil hoje, em face do estado de alma superado e longínquo que os criou, seja porque somente de um texto assim, deixado íntegro, poder-se-á construir em seguida, para as almas devotas, um extrato autônomo completo em si, num opúsculo. O leitor que já conhece os motivos gerais que nesses quatro capítulos aparecem como ponto de experiência para uso de um leitor novo, a quem era destinado o opúsculo, poderá facilmente dispensar a sua leitura. Mas, nem mesmo aqui, de resto, será completamente inútil projetar aqueles conceitos complexos sob um ponto de vista diferente, isto é, de uma forma prática para as almas simples, mais como aplicação vivida do que como teoria ou demonstração. Pode saltar esses quatro capítulos o leitor que não aprecia a psicologia do tipo místico-religioso, para satisfazer-se com os de caráter filosófico, social, cientifico ou psicológico. Todavia deverá admitir que, em nome da imparcialidade e universalidade que aqui foram sempre profundas, não se pode excluir a priori nenhuma forma de pensamento e, por isso, nem mesmo a místico-religiosa, dado que alguns estados de alma não se podem exprimir de outra maneira. Os aspectos da verdade apresentados neste volume são variados, e cada um traz consigo a sua forma mental e a terminologia que lhe corresponde. Quanto menos formos universais, tanto mais nos encerraremos em um ponto de vista particular e tanto menos poderemos obter a visão conjunta do verdadeiro. Para compreender este, é preciso saber pensar nas mais díspares formas mentais e exprimir-se segundo as mais diversas psicologias e terminologias. Quem se fecha no seu particular aspecto do verdadeiro, es- Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS candalizando-se quando se lhe mostram outros aspectos da questão, não pode compreender estes escritos, que são animados pelo principio da mais imparcial universalidade. Sob a orientação que aqui se segue, foi escrito: ―A religião universal de Cristo‖. Acompanha-o quem vive na disciplina do espírito, tremenda porém livre, porque é consciente e convicta. Não há nisso nenhuma anarquia, mas sim uma ordem maior, porque, além de exterior, é também, e sobretudo, interior. Só a universal religião do espírito, nas pegadas de Cristo, vivendo o evangelho, reunindo todos os justos da Terra, de qualquer religião, pode dar ao mundo uma unidade religiosa, que não se pode obter por imperialismos e imposições morais, mas apenas por compreensão e confraternização. Isto dito, quem escreve pode afirmar que tudo quanto segue, antes de ser exposto, foi por ele experimentalmente vivido, objetivamente estudado, cientificamente compreendido. Não se trata, pois, de vagas aspirações, mas de realidades controladas com o método da observação e da experimentação, ainda que devamos nos referir a realidades imateriais que fogem à sensibilidade comum do homem atual. Se este as nega porque não as percebe e não as compreende, isto não obsta a que elas existam. Quem aqui escreve deu-se conta das atuais e desastrosas condições espirituais da maioria. Mas ele sabe que nesta babel infernal que é o mundo de hoje, existem também almas eleitas, ainda que em minoria, e que a estas está confiada a salvação e o futuro de todos. A nossa terra é reino ainda involuído, no qual ramificações provindas de baixo, da grande árvore do mal, animada por Satanás, se entrelaçam, frequentemente vitoriosas, com as ramificações descidas do alto, da grande árvore do bem, animada por Deus. Em nosso plano material, onde reina a forma, Deus se manifesta através de Suas criaturas. É certo que toda criatura é um canal para as manifestações divinas, mas os bons constituem o mais elevado, melhor e mais permeável meio pelo qual Deus pode exprimir-se com maior evidência. Assim eles representam o ponto de apoio do bem na Terra; constituem o canal através do qual a ação benéfica de Deus pode melhor operar entre nós; são a única via aberta para que o mundo possa atingir a divina fonte da vida, que está no centro: Deus, e nutrir-se nela, estabelecendo uma comunicação com o princípio afirmativo e construtivo do bem. Do outro lado, os malvados representam o ponto de apoio do mal na Terra; constituem o canal através do qual a ação das forças do mal pode se manifestar entre nós; são a via comunicante com o princípio negativo e destrutivo que personificamos em Satanás. Se aos malvados, pois, está confiado o encargo de tudo massacrar, espiritual e materialmente, aos bons está atribuída a incumbência de tudo salvar e construir. O terreno de seu encontro e luta é o nosso mundo. Estas páginas se dirigem imparcialmente a todos os bons, que representam na Terra a obra divina do bem. Os outros não podem compreender e, obedecendo a outros impulsos e encargos, palmilham a sua estrada. Contudo quem compreendeu a vida sabe, com absoluta certeza, que só as vias do bem conduzem à felicidade e que as forças do mal, prometendo-a, em verdade traem depois a promessa e, cedo ou tarde, acabam infalivelmente na dor. O escopo desta obra é de ajudar, ensinando os espíritos evoluídos a alçar-se sempre mais para o alto, de modo que a felicidade, que está no bem e com a qual Deus permanentemente nos quer inundar, contanto que saibamos e queiramos, possa, por caminhos inteiramente independentes das coisas terrenas, alcançá-los e entrar neles, para aí permanecer, instaurando a sua paz interior. Ajudar as almas dispostas a alçar-se sempre mais para o alto tem, pois, também por escopo multiplicar os canais de comunicação com o divino, ampliar as estradas, aumentar os meios para que, mais rápida, ativa e abundante, por eles flua e possa descer a linfa vital do bem, único meio de salvação. Como se vê, aqui se fala em termos de psicologia utilitária, pois sabemos bem que o homem não compreende e não se mo- 105 ve senão em função de uma dada vantagem. E a vantagem neste caso, para cada um, é um estado de felicidade dependente apenas de si mesmo, e não das condições do ambiente e da vontade alheia. Para o mundo, a vantagem está em receber a mais valiosa contribuição hoje possível para conseguir a sua salvação em uma hora histórica de tremenda gravidade. O nosso mundo de hoje é materialista. Projeta-se pelas vias sensórias, que chama de objetivas, completamente para o exterior e só aí procura a solução dos seus problemas. Nós seguimos uma via oposta. Ao invés de agir sobre os efeitos, penetramos nas causas, na substância espiritual das coisas e dos problemas, havendo antes bem compreendido como tudo funciona. Trata-se de compreender, para depois agir de maneira inteiramente diversa da habitual. As fontes do conhecimento e do poder, da riqueza e da saúde não estão, como a maioria crê, no mundo material, exterior a nós, mas no mundo espiritual. E tudo o que se realiza naquele não é mais do que uma consequência daquilo que primeiro se realizou neste. Tudo deriva de um centro do universo, que tudo rege e se chama Deus. Colocar-se e manter-se por vias espirituais em contato com Deus, significa poder atingir tesouros guardados e alegrias desconhecidas. Nós somos livres e podemos, se quisermos, alcançar a felicidade. Mas tudo provém do interior, e nada poderá andar bem no exterior, se antes não estiver bem marcado em nosso interior. Só nos mudando para melhor é que poderemos transformar para melhor toda a nossa vida. Não se pode pretender que negócios, saúde e os acontecimentos se tornem nossos amigos ao invés de inimigos, se antes não tivermos estabelecido a ordem dentro de nós, em harmonia com Deus e a Sua lei. Quando as coisas vão mal, ninguém quer admitir ter sido ele próprio a causa disso. Não compreende que atribuir isto ao próximo de nada serve, que este desafogo a que tantos recorrem na dor não só não a elimina, como, pelo contrário, agrava-a pelo novo mal que se lhe acresce, pois quem faz o mal aos outros o faz a si mesmo e, para fazer o bem a si mesmo, necessário se torna praticá-lo em primeiro lugar com outros. A vida provém de Deus e é irradiada desse centro em forma universal. Para que ela possa ser fecunda de alegria, tudo deve circular livremente com espírito fraterno. O egoísmo atualmente dominante, com o seu separatismo, é antivital. Ele obstrui os canais da linfa vital, opondo desta maneira barreiras que produzem congestões e estagnações; aqui, superabundância inútil; ali, dolorosa miséria, e, por toda a parte, tristes diferenças e penosos desequilíbrios de todo o gênero: econômicos, demográficos, orgânicos, espirituais. Aqui, buscamos orientar-nos de maneira diversa; procuramos não só compreender que a vida funciona de modo inteiramente diferente daquilo que se crê e que se segue, mas também entender que a maior parte das nossas desventuras depende de não sabermos comportar-nos. Procuramos a felicidade onde ela verdadeiramente está e a encontraremos se soubermos pensar e agir. Poderão, desta maneira, começar a formar-se, no oceano das dores humanas, ilhas de felicidade e, no espinheiro universal, tufos floridos. Na tempestade do mundo, algumas almas poderão, desta maneira, formar em derredor de si uma atmosfera de bondade e de paz e nela repousar. Nesses castelos, protegidos por forças espirituais, ainda mesmo que, a princípio, isolados no inferno terrestre, poder-se-á ter, aqui e ali, uma antecipação do paraíso. Deste estado de ordem e harmonia interior, não pode deixar de derivar, espontaneamente, um símile estado de ordem e, por conseguinte, de bem-estar nas próprias coisas terrenas também. Cada um desses indivíduos, reequilibrados dentro de si, não poderá deixar de irradiar em torno de si mesmo equilíbrio e paz, carregando consigo, para onde quer que vá, a sua atmosfera de harmonia, e poderá assim saturar com ela tudo que ele tocar, sanando o mal e a dor ao seu redor, depois de havê-lo sanado dentro de si mesmo. Formar-se-ão, desta maneira, na desordem geral do mal, núcleos de atração de bem, do Alto para a Terra, e de ir- 106 ASCENÇÕES HUMANAS radiação deste para o bem de todos. Isto permitirá a formação de correntes benéficas e salvadoras, uma gradual reordenação do caos, uma progressiva transformação da infernal dissonância terrena na música divina do paraíso. A vida poderá então, cada vez mais, expandir-se pelas largas estradas do amor. A vida tem necessidade, para prosperar, não das barreiras do egoísmo, mas dos canais abertos do altruísmo. E da lei de Deus que, nestes canais, ela se atire triunfante, apenas eles se formem, para levar nutrição vital onde existe mal, amor onde domine o ódio, paz onde predomine a guerra, alegria onde reine a dor. É a bondade de Deus que faz pressão para verter-se nestes canais e por eles circular. São as forças do bem que por eles querem descer até nós para, entre nós, contrapor-se às do mal e vencê-las, espargindo a felicidade. As graças divinas procuram as portas abertas e requerem almas dispostas para poder chegar até nós e nos salvar. É a estas almas que aqui nos dirigimos, a fim de que atinjam o centro divino e sirvam de canal à Terra e, desta maneira, não só conquistem a felicidade para si mesmas, mas também a irradiem em derredor de si, cumprindo a sua missão, que é de receber do Alto e irradiar embaixo. Elas formarão uma rede de correntes benéficas que envolverão o mundo e – vencendo as influências maléficas, que, funcionando em sentido contrário, querem transtorná-lo – salvá-lo-ão dos cataclismos que hoje o ameaçam. VII. FAZER A VONTADE DEUS Tudo isto é possível, mas é necessário saber alcançar as fontes da vida, que estão em Deus. Para conseguir isto, começaremos procurando compreender algumas coisas elementares. Eilas. O universo é um movimento contínuo que não se desenvolve ao acaso, mas segundo normas precisas, estabelecidas por uma lei que representa o pensamento e a vontade de Deus. Quanto mais a ciência avança, tanto mais deve constatar em todos os fenômenos um princípio orgânico que rege o universo e que revela a presença de uma mente diretriz. Segue-se daí que o nosso livre arbítrio não é absoluto, ilimitado. Se podemos agir como loucos, praticando o mal e, consequentemente, provocando para nós mesmos a dor, enquanto a lei de Deus quer nosso bem, para a nossa felicidade, esta possibilidade de violação, em um sistema universal de ordem, está providencialmente confinada dentro dos limites dados pelas necessidades de nossa experimentação. O homem vive para aprender. Ele deve construir-se espiritualmente, conquistar a plena consciência, e não apenas constituir um instrumento cego, um autômato de Deus. É-lhe feita, portanto, a concessão de agir em plena liberdade. Mas, para que esta liberdade não possa redundar em sua destruição, ela é regulada pelas reações da própria Lei, que permanece inviolada e, com a dor, fere o homem com o único escopo de corrigi-lo e iluminá-lo para o seu bem, tão logo ele se aparte da referida lei pelo erro ou pela culpa. Se ele é livre, é contudo responsável também e deve fatalmente sofrer as consequências de suas ações. No mundo atual, o homem, na sua ignorância, engana-se, tomando como poder absoluto esta limitada liberdade de agir que Deus lhe concedeu apenas para os referidos escopos. Ele não compreende que se trata de uma liberdade enquadrada nas férreas reações da lei de Deus, que lhe inflige dor quando ele erra. Assim o homem se engana ao crer-se árbitro de tudo, quando na realidade não é senão árbitro do próprio destino. O homem atual, efetivamente, não compreende a vida e, por isso, a emprega quase que por inteiro para cometer erros e provocar dores. É natural então que, na Terra, a dor seja dominante, pois é sobretudo à construção intensiva dela que o homem se dedica hoje. Quem guia tudo não é o homem, mas Deus. E como poderia o homem guiar um mundo onde ele procede tão mal, onde pode tão pouco e do qual nada sabe? O desastre dar-se-ia de Pietro Ubaldi imediato, se a direção fosse confiada ao homem, seja por desorientação, por impotência ou por incapacidade deste. O homem é relativo na evolução, imperfeito e contingente. A Lei é eterna, perfeita e resoluta. O homem é capricho inconsciente; a Lei é disciplina sábia. O homem é desordem; a Lei é ordem e harmonia. A primeira coisa, pois, que devemos compreender é que, acima da vontade do homem, está esta norma que tudo regula, feita de bem, de liberdade e de amor, representando a perfeição. Nada se pode acrescentar a ela; nada há nela para se modificar. Então, quando o mal triunfa e a dor nos fere, ao invés de culpar a Deus e a sua lei, devemos compreender que isto não é obra D‘ele, mas da criatura, que, sendo livre e ignara, enganou-se no caminho; compreender que é justamente por meio da dor que Deus a faz compreender que errou e a induz a procurar o caminho certo, onde ela encontrará alegria. Assim, pois, ao invés de nos rebelarmos ou maldizer, o certo é procurarmos compreender qual foi o nosso erro, para corrigi-lo. Caso se pudesse chegar ao absurdo de suprimir a dor, como desejaria o homem, a vida se deteria no seu caminho ascensional, que a conduz à perfeição e à felicidade, porque, então, viria a faltar a sua maior mestra e o seu mais poderoso corretivo. A grande coisa a compreender é que nós não vivemos num caos, mas sob a guia de um pai sábio e amoroso que, com a sua lei, através de todos os meios compatíveis com a nossa necessária liberdade, quer conduzir-nos à nossa felicidade. É necessário compreender que Deus não nos faz sofrer por egoísmo ou vingança, mas sim para o nosso bem, porque nos ama; que a Lei não faz mal e que, se inflige dor a quem a transgride, é para ensinar que ela é a única e verdadeira via da felicidade. Certamente o homem é tremendamente ignorante e se atira de um lado e de outro, iludido por miragens cuja falsidade ainda não conhece. Somente sofrendo pode compreender onde foi que errou. É justamente a dor que nos mostra quão amorosamente Deus vela por nós, como ele nos guia e age sempre, ainda quando nos fere, para o nosso bem. Em vista disto, compreende-se agora que não só a felicidade é possível, mas que nós somos realmente feitos para ela e que o nosso instinto, que nola faz procurar em toda parte, não nos engana. Compreende-se também que há uma via para alcançá-la, mas que, não bastando isto, Deus emprega todos os meios compatíveis com a nossa liberdade, para nos fazer enxergar esta via e nos forçar a atingir essa felicidade. A lei de Deus indica esta via. Então, a melhor posição possível em nossa vida, aquela que exprime o máximo grau de perfeição atingível para cada um, relativamente ao que ele é e deve ser, é dada pela vontade de Deus e pela fusão da nossa vontade na d'Ele, numa adesão tão completa, que ambas se fundam numa só. E que mais se pode desejar senão aderir a uma vontade que só procura o nosso bem? Se o homem compreendesse Deus, veria claramente que Ele deseja o seu bem muito mais do que ele mesmo o desejaria. Muitos se quedam, todavia, perplexos, porque não sabem qual possa ser para eles a vontade de Deus. Antes de tudo, nós, mais ou menos dependentes de nosso grau de evolução, possuímos todos o senso do bem e do mal. A vontade de Deus está sempre sobre as sendas do bem. Uma regra mais precisa é esta: cumpramos o nosso dever, como ele nos é apresentado pelas condições da nossa vida, e teremos feito a vontade de Deus. Mas o que é que se entende por dever? Para estar de acordo com Deus e, assim, aproximar-se do infinito, não são necessários atos heroicos. Trata-se de estabelecer uma harmonia, e isto se pode atingir muito bem pelos meios mais simples e humildes. Para cantar a música divina, não é necessário aquela altissonância que fere os sentidos e, na Terra, faz tanto efeito, mas basta apenas executar bem o próprio trabalho, com amor e com consciência. Tudo consiste em saber enquadrar a própria atividade no funcionamento orgânico da vida e do universo. Nós nos valorizaremos ao máximo apenas se soubermos desincum- Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS bir-nos da função que nos toca. Desta maneira, a corrente vital nos impelirá; de outro modo, porém, ela estará contra nós e procurará destruir em nós o rebelde e o inimigo. Não é, pois, a importância e a nobreza de trabalho que decide, mas é o modo pelo qual ele é por nós executado. Este trabalho pode até assumir a forma apenas de dor, isto é, algo que pareça não apenas improdutivo, mas até mesmo prejudicial. Na sábia organização da vida, tudo e todos são úteis em seu lugar, cada um ocupa a posição mais justa, segundo a capacidade e o mérito que lhe é peculiar, a mais adaptada para sua vantagem, a mais útil para o seu bem, ainda que seja a mais humilde, desprezível e dolorosa. Observando-se, verifica-se que a concepção do mundo é exatamente inversa de tudo isto, e que tantos males derivam justamente do fato de que ninguém quer executar bem o próprio mister, qualquer seja ele. Todos se sentem deslocados e querem mudá-lo, tornando o mundo cheio de descontentamento e de luta. Cada qual pretende valer muito mais do que realmente vale e acredita que o mais certo esteja em mudar de posição, enquanto uma realidade se impõe e mostra saber mais, acabando por ficar melhor aquele que sabe permanecer fiel no lugar que lhe cabe. Hoje, considera-se falido quem não triunfa de qualquer modo, não importam os meios que utilize; admite-se que a dor seja um insucesso e uma perda; enquanto há possibilidade de uma vitória e de um ganho, não se trabalha senão com o espírito de avidez, reputando-se bravura saber fazer o menos possível dentro do próprio dever, em aparente vantagem própria e prejuízo dos outros. A vida, ao contrário, é para todos uma missão, com objetivos, realizações e recompensas ultraterrenas. Antes que operários humanos, somos operários de Deus, igualmente grandes, qualquer seja a posição social. Desincumbir-se da própria função no imenso concerto universal, qualquer seja ela, como nos é oferecida por Deus, e executá-la bem, eis a perfeição, porquanto isto é fundir-se na perfeita lei de Deus. Este é o segredo da felicidade: enquadrar-se na ordem divina. Quando tivermos desempenhado em nosso posto todo o nosso dever, teremos feito o suficiente para que tudo caminhe bem por si mesmo. Podemos então repousar tranquilos. Quando tivermos obedecido em tudo a Deus, conformando-nos à Sua Lei, propriamente deixamos de ser responsáveis, porque, na realidade, não agimos por nós mesmos e também não somos passíveis de reações dolorosas como quando nos substituímos a Deus e Sua lei, agindo independentemente. É natural que, quando a escolha seja nossa, também nossas sejam as consequências e males. Mas é natural também que, quando não sejamos senão executores da vontade de Deus, tenhamos direito à Sua proteção e providência. A nosso vida encontra então, de novo, um equilíbrio, uma sensação de segurança que o mundo de hoje ignora. Desta maneira, fluiremos aquele profundo sentimento de paz que é o primeiro passo em direção à felicidade interior, que é a substância do paraíso. Assim, a nossa vida se torna rica e a nossa obra, coordenando-se em um plano universal, torna-se infinita. Se, ao invés, nos isolarmos em nosso egoísmo, permaneceremos destacados e sós e, distanciados de Deus, nos sentiremos perdidos. É necessário abdicar do separatismo e, através da caridade para com o próximo, tornar-se uma só coisa com o todo. É abraçando os nossos irmãos que conquistamos a unidade. Em um universo de princípio unitário, é a via da unificação que conduz a Deus. É indispensável olhar com amor todas as criaturas irmãs, porque cada uma delas é um canal através do qual Deus se exprime e nos fala. Para chegar a abraçar Deus, o caminho mais fácil é começar por abraçá-Lo nas Suas infinitas manifestações da Criação. Em toda parte e sempre, devemos ser executores da vontade de Deus, que é bondade e amor. Só nisto é que está a vida. Assim como um órgão ou célula não pode ter uma vontade diversa da de todo o organismo, nós também não podemos ter uma vonta- 107 de diferente da de nosso Pai. E, assim como o organismo provê, através de uma sábia distribuição, cada célula e órgão para que execute o seu trabalho e auxilie os outros elementos com os quais está em conexão, para a vantagem de todos, assim igualmente Deus proverá cada indivíduo quando este tenha cumprido o seu dever, isto é, tenha desempenhado as suas funções com relação aos seus semelhantes. Esta é a economia da criação. Bem-aventurado é quem sabe amoldar-se a ela. Nessa economia, o trabalho é remunerado com justiça, e o parcimonioso pode depositar o fruto desse trabalho em caixas seguras, que lhe proporcionarão uma renda garantida para a hora da necessidade, em proporção ao mérito que adquirir. Só assim se pode encontrar uma forma de investimento seguro, que assim é porque depende apenas de Deus, que é justo, e não dos homens, nos quais não se pode depositar confiança alguma. Consegue-se dessa maneira um pecúlio tranquilo e pacífico, porque é harmônico, visto que está contido na sua verdadeira função, que é a de ser um meio aos fins da vida. O homem, universalmente, coloca a riqueza fora do lugar, fazendo dela um fim, e não um meio. E, assim, torna-se ambicioso e ansioso pelo dia de amanhã, e, em meio à abundância, acaba por debater-se em tormentos. Deus não nos quer ávidos e ansiosos, mas confiantes n'Ele. ―Para cada dia baste a sua pena‖. Por que haveremos nós de pretender dominar o amanhã, se dele nada sabemos? Não é pela vontade que poderemos nos impor a ele, mas pelo obediência à Lei, merecendo. Poderemos assim formar em nós um oásis de paz, não importa qual seja o inferno que nos circunde na Terra. Não é o mundo que no-lo poderá dar, com as suas fascinantes mentiras, mas somente a adesão à vontade de Deus. Obedeçamos à Lei, e o auxílio está garantido, porque a vida foi querida por Deus, e, com ela, ganhamos o direito aos meios para vivê-la. Todos temos direito à vida perfeita, mas somente quando tivermos antes cumprido os nossos deveres para com Deus. Se não fizermos isto, este direito deixa de existir ou existirá apenas na medida em que tivermos atentado para os deveres. O mundo não quer compreender tudo isto, está destorcido e fora dos trilhos. É lógico que sofra e caminhe para a ruína. Para muitos, no entanto, tudo isto ainda não basta para conhecer a vontade de Deus no seu caso particular. Deus está presente em toda a parte, no entanto não o vemos jamais manifestar-se por ação direta, mas apenas por meio do pensamento e ação das suas criaturas, por meio dos eventos, e agir, mais do que no exterior, no profundo ou pela profundeza das coisas. É a isto que é necessário atentar. Quando Deus faz uma flor, cria um órgão ou matura um fenômeno, não age com as próprias mãos, como nós o faríamos, pelo exterior, mas opera silenciosamente do interior, justamente porque, se Satanás é exterior e periférico e age em superfície, Deus é interior e central e opera em profundidade. A vontade de Deus reside, pois, no interior da vida e daí aflora nos fatos. É uma tácita e lenta transformação que só por fim aflora à realidade sensória, quando todo o processo da gênese estiver completo. Por isto a maioria não a percebe e, assim, acredita que Deus não esteja presente na Sua obra contínua. É, pois, necessário saber enxergar profundamente, não com olhos materiais, mas espirituais. É necessário permanecer com ouvidos atentos para ouvir como falam os fatos em volta de nós, sobretudo como significado espiritual, que não é quase nunca aquele significado próximo e utilitário que nós lhes damos. Se soubermos ouvir, perceberemos que realmente Deus nos fala. Ele se manifestará indiretamente, através de outras bocas e outras ações, mas se manifestará. Efetivamente, através dos infinitos seres viventes e pensantes, não lhe falecem as vias para exprimir-se em qualquer linguagem e caso. Nós nos fazemos iludir pela voz do mundo. Esta é muito diferente. É verdade que fere muito mais os ouvidos, mas não atinge a alma. O mundo tem sempre pressa, porque está encerrado no tempo. Deus fala calmo, porque é senhor do tempo. Por 108 ASCENÇÕES HUMANAS mais que o mundo corra, nunca chega exatamente. Deus, com a paz das coisas eternas, jamais se engana na hora. O mal clama estertorante nas praças, faz-se ouvir bem materialmente e, por isto, parece prevalecer. O bem, que vem de Deus, enxerga-se mais dificilmente, porque está oculto no interior, onde silencia e espera, mas amadurece na raiz das coisas. As vias de afirmação são opostas, mas as interiores produzem efeitos bem maiores. Os homens escrevem na superfície, mas Deus esculpe nas profundezas, de onde tudo nasce. Assim, os bons não aparecem, porque não fazem ruído. O bem move-se mais lentamente, mas produz transformações mais substanciais, por conseguinte mais duradouras. Ele se propaga pacificamente, quase invisível; ramifica-se, infiltra-se no interior, sem aparecer, porque obedece aos tenazes e profundos impulsos da vida, que o quer. Aflição, alarido e também instabilidade estão no exterior, no reino periférico de Satanás, não nas fontes, onde se encontra Deus. Ali há paz e silêncio; uma atividade imensa e silenciosa, que só surge, por fim, quando tudo está feito. Deus opera sem rumor. A Sua ação é tranquila, igual, segura, tenaz, e tudo vence em paz, como uma lenta inundação. Diferentemente da afanosa evolução do mundo, Deus ―é‖ e silencia, no entanto está sempre presente com a Sua ação íntima, constante, benéfica. Só com essa Sua silenciosa presença, Deus alimenta e renova o universo, não da periferia ou superfície, mas do centro; não da forma, mas a esta chegando pela substância, onde Ele é fonte da vida. Por isto é que Deus se nos revela em uma sensação de grande paz. É nesta direção, portanto, isto é, na profundidade, no espírito, que devemos procurar ouvir as vozes que nos dizem qual é para nós, em nosso caso e a cada momento, a vontade de Deus. VIII. COMO ORAR Não basta ter estabelecido as nossas relações com Deus. É necessário entrar em comunicação com Ele, é necessário a oração. Eis aqui uma outra coisa elementar, comumente não compreendida, e que também é necessário compreender, para alcançar não só o conhecimento da vontade de Deus mas também a adesão a ela e, com isto, a união mística da alma com Ele. Em geral, não se sabe orar, o que explica o escasso resultado que obtemos com as nossas orações. A lei de Deus, que tudo regula, inclusive a nossa vida, não é e não pode ser ilógico capricho, como frequentemente cremos e como, tal qual somos, assim desejaríamos, para que a pudéssemos submeter à nossa vontade. Nesta lei, que guia e rege o universo, tudo é ordem, lógica, método, disciplina. O contrário está apenas em nós, que somos um grosseiro esboço de sua realização e, por conseguinte, nos encontramos muito longe da sua perfeição. A desordem não está na Lei, nem em Deus, mas somente em nós, e a dor, que lhe é consequente, não é uma absurda condenação de um Deus malvado que nos criou para nos atormentar, mas é uma prova da Sua bondade, sabedoria e cuidado que nos dedica, visto que, por intermédio dela, Ele nos conduz ao único caminho que nos pode proporcionar felicidade, sabiamente corrigindo-nos e ensinando-nos na escola da vida. A dor, que tanto nos azorraga, não é uma violação da vida divina do universo, mas é justamente uma reintegração nela, ainda que seja às nossas expensas, o que é justo, porque fomos nós que livremente quisemos violá-la. Ora, o que sucede frequentemente, ao nos apoiarmos em Deus, através da comunicação com Ele pela prece, é que, ao invés de aderirmos à disciplina que Ele criou e da qual nos dá o exemplo em Suas manifestações, procuramos alterá-la em nossa vantagem. Então, ao invés de nos unirmos a Deus, fundindo a nossa na Sua vontade, procuramos as vias do separatismo egocêntrico, em que pretendemos ser nós os senhores e dirigentes, vias estas pelas quais justamente mais nos distanciamos de Deus, que é unidade e, por conseguinte, fusão, e não cisão. E Pietro Ubaldi quando a dor nos fere, em lugar de procurar compreender o seu significado profundo e aceitá-la, reconhecendo que o que Deus nos envia não pode deixar de ser justo; em lugar de admitir que, se ela nos fere, é sinal de que a merecemos; em lugar de procurar, sobretudo, superar essa prova salutar, para aprender, evitando recair em novo erro, nós tentamos iludir essa ordem em nosso favor, com a pretensão de dirigir e violentar a vontade divina. E é por isso que, ao contrário de repetir as grandes palavras de Cristo: ―Fiat voluntas tua‖ 6, que nos mostram a consciência da divina ordem do universo, nós nos tornamos advogados de nós mesmos, com o único objetivo de evitar danos ou ganhar graças em nossa vantagem, e isto quase sempre no campo material, que mais de perto nos toca e interessa. Em suma, na oração, nós nos conduzimos diante de Deus com a psicologia de luta e utilitarismo, que é própria da Terra e das coisas terrenas. Ora, se essa mentalidade pode estar adaptada ao nosso mundo inferior, ela está inteiramente deslocada quando nos elevamos para o Alto. A atitude egocêntrica, para não dizer egoísta, e o exclusivismo constituem um grave erro quando se fala com Deus. É, pois, ilusório que semelhante gênero de oração possa produzir frutos reais. Certamente, Deus permite que falemos. A diferença está em que nós não obtemos aquilo que pedimos. E é lógico. Deus não nos dá senão o que merecemos, senão aquilo que é justo, segundo a Sua lei, nos seja dado. Que grandes tolices nós cometemos quotidianamente, agindo assim em um ato tão vital quanto é o de nos colocarmos em comunicação com Deus. Que resultados poderemos obter quando transportamos para planos de vida mais elevados a psicologia do nosso plano, quando levamos para eles aquela mentalidade de luta e usurpação, que na Terra parece tão verdadeira e útil, porque corresponde às necessidades seletivas animais, mas que, um pouco acima, não tem o menor sentido? A atitude fundamental da prece deve ser de obediência, de adesão à vontade de Deus, de harmonização entre nós e a Sua Lei, que é perfeita. No entanto, mesmo na prece, recaímos na primeira culpa do homem, que foi também a de Lúcifer: erigir o próprio eu em lei da vida e antepor essa lei, em que o eu é centro, àquela em que o centro é Deus. Desta maneira ora-se às avessas, com um impulso de afastamento, ao invés de aproximação a Deus. Nós nos erigimos em juízes de nós mesmos, de nossos semelhantes, do mundo, da própria ação de Deus e pretendemos indicar-lhe o caminho a seguir para o nosso bem. Pretendemos salvar tudo e não sabemos nada. Justamente nos dirigimos a Deus, mostramo-Lhe todo o nosso orgulho e a nossa presunção. Exatamente na oração, provamos desconhecer a Sua bondade e o Seu amor por nós. Tomamo-Lo, universalmente, por um chefe caprichoso, que podemos propiciar com ofertas; por um Deus de vingança, capaz de ser aplacado com sacrifícios. Imaginamo-Lo um senhor despótico e O respeitamos apenas porque é o mais forte. O insensato chega mesmo a manifestar, na blasfêmia com que O desafia, uma prova da própria força. E muitos oram apenas porque não podem mandar. Desejariam poder mandar e, não o podendo, entregam-se a uma total sujeição. Tornamo-nos, às vezes, petulantes ao pedir e insistir em vantagens imediatas e materiais que, se coincidem com o nosso prazer, nem sempre representam o nosso bem. Por que esta atitude de mendigos enfadonhos, que pretendem impor-se mais com a insistência do que com a humildade, mais com a longa repetição vocal do que com a expectação confiante? Mas Deus tudo sabe a nosso respeito, sabe do que necessitamos, sabe melhor do que nós aquilo que é benéfico ou maléfico para nós. Devemos compreender que Ele é Pai que nos ama e que, por conseguinte, antecipa-se em nos oferecer todo o bem que não seja para nós um dano, antes que nós mesmos saibamos ou pensemos. Como podemos presumir que possamos ensinar-Lhe o 6 ―Faça-se a tua vontade‖. (N. do T.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS que é melhor para nós, correndo para oferecer-Lhe esse belo aspecto de soberba atitude, justamente na oração? Não. A oração deve ser diferente. Nela, não devemos ter a pretensão de ensinar nada a Deus. Não é a lei de Deus que deve alterar-se, adaptar-se a nós, mas somos nós que devemos mudar, curvando-nos a ela. Não devemos pretender, com a oração, tornar Deus um nosso servo a trabalhar para nós, nem buscar fazer de Cristo um redentor que tenha sofrido em nosso lugar. Não se deve inverter, porque é cômodo, a ordem divina. Cada um conquista a felicidade com a própria dor. A verdadeira oração é avizinhamento e adesão, é dócil aceitação. Nem também por isto, ela deve ser confundida com uma passiva e inerte resignação. Ao contrário, ela é consciência da ordem e vontade de Deus, é cooperação ativa na Sua ação de bem no mundo, é aceitação operante, dinâmica e fecunda. Aceitar significa colaborar com Deus segundo os Seus desígnios, significa corresponder ao Seu amor, compreendendo que toda a alegria que, segundo a Sua bondade e justiça, nos pode ser dada pelo nosso verdadeiro bem, Ele já no-la deu antes que fosse por nós pedida, e que se não nos dá um bem, é porque este nos faria mal. Mesmo uma privação pode ser um dom em vista de uma maior felicidade futura. Se quisermos, pois, que a oração seja uma verdadeira prece e dê os seus frutos, não peçamos o impossível, porque, por mais que seja pedido e rogado, nos será negado. Ela não deve ser uma ordem, nem uma petulante mendicância, nem também um modo de aconselhar Deus quanto ao que deve fazer, mas deve ser um ato de humilde adesão à Sua sábia vontade: ―Fiat mihi secundum verbus tuum‖7. E, se quisermos reduzir a oração a um pedido de graças, recordemos que o melhor meio de obtêlas é tornarmo-nos merecedores delas. Nós somos livres para fazer o que mais nos aprouver e aceitar ou não, no momento, a vontade de Deus. Mas, se não aceitamos hoje, teremos que aceitá-la amanhã, em condições mais onerosas, pois que a vontade divina é que nós consigamos, por todos os meios e a qualquer custo, mesmo com dor, o nosso bem. Essa ativa adesão a tudo que Deus nos prepara; essa nossa compreensão e boa vontade de desenvolver os motivos que Ele nos oferece, sejam eles sofrimento ou alegria; esse superamento do nosso interesse imediato em vista de maiores interesses nossos porvindouros; enfim, essa anulação da nossa vontade individual na vontade divina, que guia os grandes planos da vida universal, tudo isto é essencial para atingir e manter aquela contínua união com Deus, que aqui nos propomos atingir. Semelhante comunicação com Deus através da prece pressupõe em nós um estado de ânimo habitual inteiramente diverso do comum. Na Terra, acredita-se que valer e poder estejam em função de possuir, enquanto que o que realmente conta é o que se é, e não o que se possui. Quanta gente possuiu os nossos haveres antes de nós, acreditando ser deles o verdadeiro dono, no entanto teve que deixá-los! Assim, nós também podemos acreditar que sejamos os seus donos, mas, apesar disso, os deixaremos, e assim também outros, depois de nós, acreditarão sucessivamente ser igualmente donos e terão que os deixar. E cada um não levará consigo senão o que realmente é e vale, isto é, as obras e os méritos, isto é, somente aquilo que possui em espírito. Deve-se, por isso, desligar o coração de qualquer coisa terrena, tratando-a com desapego de simples administrador, depositário que deve prestar contas a Deus dos bens que lhe foram confiados temporariamente para fins mais altos. Então, na verdade, não se possui mais nada para si mesmo. Tudo se torna propriedade de Deus, e a Ele compete a defesa dos nossos haveres. Embora nos cansemos e corramos, é para mais segura recompensa e já sem a ânsia de perder, porque tudo é confiado ao verdadeiro dono, com a garantia de sua sabedoria e bondade. Então, estamos seguros de que Ele nos enviará, com a Sua Pro7 ―Faça-se em mim segundo a tua palavra‖. (N do T.) 109 vidência, o necessário para que possamos cumprir a obra da nossa vida. Que paz se origina em trabalhar assim nos braços de Deus, na consciência do próprio dever cumprido! Quando se executou o próprio dever para com Deus, está-se seguro de que Deus cumprirá o Seu para conosco. E que grande fato, que expansão de toda a nossa vida é nos tornarmos assim Seus operários e representar uma parte do grande organismo, uma função no funcionamento do universo! A oração que se baseia em tal estado fundamental de alma deve caracterizar-se por ser feita mais de aspiração que de palavras, deve ser mais sentida do que dita. Ela deve preferir as coisas espirituais e só pedir as materiais em função das espirituais. A oração só deve ser feita com escopo justo e altruísta, pois não pode produzir efeito de outra maneira, contrariando a lei de Deus, que quer o amor ao próximo, e não o egoísmo; o bem, e não o mal. A oração não deve ser egocêntrica, do eu que pede para si, mas uma adesão à vontade de Deus, um ato de harmonização com a ordem divina. Devemos estar dispostos a sofrer quando tivermos violado essa ordem, persuadidos de que o nosso bem e a nossa redenção residem nessa dor merecida, que nos reintegra na ordem que violamos. As formas inferiores de oração, próprias do involuído homem atual, poderão ser, por piedade à sua ignorância, permitidas por Deus, mas é certo que a verdadeira e elevada oração não exige, não julga, não aconselha, não pede, apenas escuta, para depois aderir e obedecer. Cessa, desta forma, a exposição das necessidades e rogativas terrenas; domina uma atitude receptiva de audição, em que muito mais fala Deus do que nós; prevalece uma expectativa de conselho e de guia, de ampliação de energia e de potência para a nossa nutrição. A prece torna-se assim algo diferente: é um abrir de portas da alma para que Deus entre, para que o grande rio da vida, descendo das suas fontes, nos inunde, e para que a divina irradiação do centro nos invada e vivifique. Atitude de grande atividade espiritual, porque se trata de atingir as altas frequências e os potenciais necessários para nos sintonizarmos com o centro transmissor, porque sem sintonia não há comunicação. Trata-se de nos darmos em amor, porque só então Deus pode dar-se a nós em amor, dado que Ele jamais se impõe a quem não O quer. E, enquanto nós não O quisermos, porque ainda não chegamos a compreender, Ele permanecerá em expectativa, indiretamente estimulandonos por mil vias, a fim de que sintamos a necessidade d'Ele, procuremo-Lo e O chamemos para que venha até nós. Quantos perdem os Seus imensos tesouros por andar à procura das pobres riquezas terrenas! No entanto Deus não deseja senão tornar-nos ricos! Mas é necessário que O procuremos, fazendonos dignos, porque assim o quer a Sua justiça. A verdadeira oração, a mais elevada e mais intensa, chega assim a não ter mais palavras e se reduz a um silêncio de todo o nosso ser, em atitude de receptividade e de oferecimento à escuta da palavra divina. A maior oração é tácita e consiste, antes de tudo, em ter agido bem e, depois, na simples sensação da presença de Deus. Quando tivermos compreendido e cumprido tudo quanto acima está dito, isto é, quando tivermos nos harmonizado em pensamento, palavra e ação na ordem divina, tornando a nossa vontade una com a vontade de Deus, então provaremos esta sensação. Quando tivermos dado tudo a Deus e ao próximo e deixado de existir para nós mesmos, então tudo virá a nós espontaneamente e tudo possuiremos. Preparemo-nos, pois, para essa oração. Ela se faz em silêncio, a sós com Deus, distante do alarido das multidões, tacitamente enquanto espera a mão de Deus, como ocorrem na intimidade os maiores fenômenos da vida. Abramos confiantes as nossas almas, como faz a flor à luz do Sol. Assim como a lei de Deus quer que o sol leve aos seres a vida orgânica, ela também quer que as radiações espirituais do sol divino nos inundem de sabedoria e felicidade. 110 ASCENÇÕES HUMANAS IX. A COMUNHÃO ESPIRITUAL Quando bem tivermos compreendido e assimilado os pontos acima expostos, suscetíveis de aplicação em qualquer religião, visto que possuem um significado universal, racional e, poder-se-ia dizer também, biológico e científico, poderemos entrar em uma fase mais profunda, fase mística e intuitiva, em que não se procede à luz da razão, mas da fé, fase de atuação dos referidos pontos no seio do cristianismo, que é a mais elevada religião que o homem conhece. Deus, na Sua verdadeira essência, está tão acima de nossa capacidade intelectiva e afetiva, que permanece inacessível à nossa natureza humana. Não somos capazes de amar e proclamar tal suprema abstração, em face da qual o coração e a mente se perdem. Devemos, por conseguinte, contentar-nos em nos aproximar de Cristo, mais acessível a nós porque é também forma, e forma humana. Cristo, materialmente desaparecido da Terra e aos nossos sentidos com a Sua morte física, fica entre nós sempre presente em espírito e, de um modo particular, na Eucaristia. Ele quis, com esta Sua instituição, deixar um canal aberto para que nós pudéssemos nos comunicar com Ele. Este é o maior dom da Sua paixão. Nós nos propomos aqui utilizar justamente este canal para conseguir a união com Cristo em uma forma que, de resto, não é nova, mas que, se já é admitida, não foi muito praticada e sentida; uma forma que, se pode parecer materialmente mais livre, exige em compensação uma disciplina espiritualmente mais rígida, pelo menos se quisermos obter os resultados que lhe pedimos. As almas pias poderão recorrer a ela para integrar a forma material, renovando-a nesta forma espiritual, que pode ser praticada mesmo quando a outra não seja possível, quer pela hora, pelo lugar ou por outras incontáveis circunstâncias. A comunhão espiritual pode efetivamente ser praticada não só nos momentos e circunstâncias mais próprios, nos instantes de maior urgência e fervor, mas em qualquer hora e lugar, sem necessidade de jejum, todas as vezes que a alma sinta necessidade, com uma frequência que, de outra forma, seria impossível, até que se consiga assim, mesmo em meio às nossas ocupações, uma contínua e completa união em Cristo. Esta forma de comunhão, sendo espiritual, não pode deixar de assumir, por esta sua própria natureza, uma forma mais individual e espontânea, relativa à natureza de cada alma. É difícil assim traçar-se normas gerais, porque cada um irá adaptá-la a si mesmo, e não se pode, nem como guia, configurar preces com palavras e formas. Cada alma dirá, com plena sinceridade e efusão, o que ela mesma é, expondo de acordo com as suas necessidades, mas, sobretudo, ouvirá consoante a própria capacidade de ouvir. Nenhum constrangimento lhe é imposto, nenhuma linha lhe é traçada, senão os princípios gerais acima expostos, porque ela deve dizer as coisas que verdadeiramente sente, que brotam de si mesma, jamais abandonando-se a repetições mecânicas no trabalho de lábios, e não de espírito. É justamente esta realidade interior que pode faltar mesmo na mais perfeita execução das formas materiais de comunhão; é esta realidade interior que deve, de maneira absoluta, ser posta em primeiro plano e tudo reger; é ela que, quando tudo o mais tenha caído, deve subsistir em toda plenitude. Não é, pois, possível conseguir a comunhão espiritual com o espírito ausente, com a alma errante, sem a mais completa e vibrante adesão de nós mesmos. É lógico que, tratando-se de um puro ato de amor, presume-se como preparação, de modo absoluto, um perfeito ato de dor com respeito às próprias faltas, isto é, uma dor verdadeiramente sentida por haver violado a lei de Deus e desobedecido à Sua vontade. Seria verdadeiramente ofensivo, em um ato de amor tão puro, introduzir, justamente no momento de cumpri-lo diante de Deus, cálculos de interesse referentes ao pró- Pietro Ubaldi prio prejuízo pelo inferno merecido e pelo paraíso perdido. Ao menos neste supremo momento de união com Cristo, deve-se banir completamente todo o egoísmo humano. Para alguns, isto será difícil, e só quem for capaz poderá consegui-lo. Mas, se quisermos obter resultados verdadeiros nesta comunhão, não há outro caminho a seguir. Quem não estiver amadurecido não pode compreender e deve ocupar-se com outra coisa. Para estes, a Eucaristia é verdadeiramente um ―mysterium fidei‖8, algo incompreensível, de que só pode avizinharse com: ―credo quia absurdum‖ 9. É questão de evolução e relativa sensibilização. Mas quem atingiu a maturidade biológica e, com ela, a necessária sensibilidade nervosa e espiritual, quem conseguiu, contrariamente ao comum, ser mais vivo no espírito que no corpo, poderá então ―sentir‖ na Eucaristia a real presença de Cristo; e ―sentir‖ a tal ponto, que poderá estabelecer o colóquio. Esta é a evidência máxima que supera qualquer demonstração ou esforço de fé. É justamente na prática da comunhão espiritual que a alma procura educar-se ainda melhor para esta sensibilização, estabelecer a comunicação, aprofundar a sensação, progredindo sempre para Deus. Esta prática pode ser, pois, para as almas eleitas, um grande meio de elevação espiritual. É certo que Deus, do centro, faz pressão para alcançar as Suas criaturas, mas, frequentemente, as forças do bem não podem passar, porque os canais estão obstruídos por mil detritos e atravancamentos espirituais. É certo também que as forças do mal, que personificamos em Satanás, tudo fazem para manter esses canais fechados e, cada vez mais, acumular obstáculos à passagem das correntes benéficas. Mas é igualmente verdade que, simplesmente pela vontade humana, um e outro canal abre-se ao fluxo livre das radiações divinas, podendo se formar assim um bom condutor para a corrente espiritual, através do qual ela pode passar. Então, as forças do bem precipitam-se álacres e abundantes por essa via, que lhes permite a expansão, porque assim é a Lei. E a vida, que fala no coração dos homens, constringe-os instintivamente a sentir e reconhecer, nesses seres que servem de conduto à vontade divina, o mais alto e precioso valor biológico, ao qual está cometida a incumbência de alimentar-nos e salvar-nos. Estas atividades espirituais aqui expostas são, pois, preciosas não só para o indivíduo em sua ascensão, mas também para o bem de todos. Começamos, desta maneira, a nos aproximar do ponto culminante da comunhão espiritual, que é a sensação do contato e da união com Cristo, reconstruindo em nós, isto é, revivendo espiritualmente, como conceito e como sentimento, a sublime cena da Última Ceia. Quem não a tiver presente, já impressa na alma, pode recorrer à leitura dos evangelhos. Estes contém um imenso material para meditação. Pode-se chegar, assim, a atingir a formação em nós e em derredor de nós de uma atmosfera espiritual onde vibra como que um eco daqueles sentimentos que, de um lado, foram sublimes em Cristo e, de outro, comoventes nos discípulos; sentimentos de alta paixão espiritual, como os que se agitaram no cenáculo, naquela hora suprema de amor e de dor. Deve-se procurar alcançar um estado de identificação espiritual; em outros termos, alcançar a presença em espírito de todo o drama vivido, gradativamente começando da representação da cena material e, aos poucos, ascendendo através dela, penetrar sempre mais na sua íntima compreensão, cada vez mais profunda, até à efusão espiritual. Começa-se por concentrar a própria atenção na figura de Cristo, observando o pensamento, o amor, a paixão d'Ele naquele momento, procurando penetrar o sentido do Seu supremo sacrifício. Aproximar-nosemos, assim, paulatinamente, da visão da Eucaristia, da percepção do seu verdadeiro conteúdo e significado. Abriremos, desta 8 9 ―Mistério da fé‖ (N. do T.) ―Creio porque é absurdo‖ (N. do T.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS forma, pouco a pouco, as vias à comunhão espiritual com Cristo, que se dá então a nós nesse momento. Inicialmente, nesta ascensão, a nossa gradual elevação de tensão será dificultosa e lenta. Tudo depende da nossa pureza. É necessário, como primeira condição, que a alma, antes de entregar-se a estes atos espirituais, que constituem uma verdadeira realidade e atividade no imponderável, se haja destacado de todas as coisas terrenas, pela compreensão de tudo quanto foi acima exposto, encontrando-se já distanciada e bem acima delas. É indispensável, para isso, estar habituado à concentração, saber isolar-se do ambiente na meditação. Nisto pode ajudar-nos a solidão, quer ao ar livre, quer em casa, como também em uma igreja que seja silenciosa, pouco frequentada por perturbadores, recolhida e, sobretudo, pobre. Tudo quanto é luxo humano profana esses contatos de espírito. Não importa tanto o lugar, mas sim a atmosfera espiritual de que ele se constitui, as radiações de que está saturado, pois que a base de tais fenômenos é a sintonização de vibrações. Há ambientes que parecem esplêndidos, no entanto são espiritualmente surdos, e há ambientes paupérrimos, como por exemplo São Damião, em Assis, mas riquíssimos de sonoridade e ressonâncias espirituais. Cada um deve escolher, de acordo com a sua natureza, todos os meios que sentir serem no seu caso coadjuvantes do processo de sintonização com o centro, para o qual se dirige e em torno do qual gravita. A alma pode seguir nisto as suas simpatias e atrações, mas deve lembrar-se de que aquilo que sobretudo forma a sintonia é a natureza dos seus pensamentos habituais, pensamentos de cada instante de sua vida, mesmo os que estejam fora do mundo; é o seu caráter e tipo; é a natureza das obras de que ele vive; é a sua afinidade conseguida com o Alto. Comunhão quer dizer de fato adesão, contato de espírito, ensimesmamento, fusão, identificação. Ela se baseia na afinidade. É necessário, pois, que procuremos avizinhar-nos o mais possível de Cristo desta maneira, tendo antes já nos avizinhado d'Ele em todas as manifestações de nossa vida. Pode-se alcançar tudo isto, mas é necessário uma disciplina que nos transforme radicalmente. O objetivo é exatamente uma maturação e ascensão de todo o nosso ser. O exercício e o hábito abreviarão e facilitarão essas fases iniciais. Façamos, pois, o que saibamos e possamos para abrir a nossa alma e escancará-la às radiações divinas, deixando-nos inundar por elas, recebendo-as e tornando-as nossas, vibrando com elas em todo o nosso ser. Quando tivermos, de nossa parte, tudo feito para sintonizar-nos; quando tivermos sabido tornar-nos receptivos, mais por abandono do que por esforço; quando, subindo em espírito, tivermos conseguido abrir o canal e estabelecer assim uma corrente entre emissor e receptor, então basta: a nossa parte está feita e a nossa tarefa executada. Abertas as portas, a luz entra por si. Aqueles que não estejam habituados ao trato com coisas espirituais de tal profundidade, não se amedrontem. Deus, que, no outro extremo, deseja a união muito mais do que a próprio criatura e pode muito mais do que esta, virá em seu auxílio, porque tudo isto está na linha da ascensão, que é o ponto mais vital e central da lei divina. A alma nada mais tem a fazer, senão secundá-la, permitindo-lhe a atuação. Sem dúvida, quanto mais se é evoluído, tanto mais fácil é percorrer rapidamente e com mais sucesso esse caminho. As almas preguiçosas, gélidas, egoístas, fechadas em si mesmas e incapazes de um grande impulso de paixão, ainda que religiosas, ainda que carregadas de uma montanha de práticas formalísticas e mecânicas, são as mais distanciadas dessas realizações espirituais e as que mais necessitam de maturar-se. Mas tenhamos fé, porque Deus está presente em toda a parte e também a elas auxiliará. Continuemos. Uma vez estabelecida a comunicação por meio do desejo e da prece, a comunhão é espontânea, calma, profundamente vibrante e sem choques. É como que um deslizamento pelo ar. As sacudidelas do desprendimento da terra cessaram, e tudo se acalma, parecendo imóvel. Nem sempre conse- 111 guimos estabilizar-nos na alta velocidade do voo e nele manternos em equilíbrio. Como quem sobe a vertente de um monte, em terreno irregular, escorregaremos às vezes para trás, nos deteremos às vezes, ora baixamos ora subimos, mas continuamos sempre, cada vez mais alto, até atingirmos o cume desejado. Assim, quando tivermos chegado a obter o estágio colimado, estabilizando a passagem do fluxo espiritual, por haver eliminado todo o material obstrutor, então sentiremos a radiação divina descer em amplas ondas, enchendo-nos a mente de pensamento, o coração de sentimento, saciando-nos de potência, nutrindo-nos de energia, iluminando, confortando e alimentando todo o nosso ser. Nessa altura, tudo se harmoniza e se potencializa dentro de nós. As mesmas energias, em vez de divergirem e se atritarem reciprocamente em lutas e conflitos, agora convergem e colaboram entre si para produzir um rendimento máximo. Adquiriremos, então, a potência que é própria dos sistemas de forças equilibradas. Uma nova harmonia, que tem sabor de paraíso, começará a invadir o nosso ser, penetrando-o gradativamente; primeiro, no plano espiritual; a seguir, nervoso; depois, orgânico, até atingir a medula dos nossos ossos, imprimindo no indivíduo todo um ritmo de vida mais elevado e benéfico. Isto permanecerá em nós como um eco doce e poderoso e se estabilizará, emprestando-nos uma vitalidade nova, que cicatrizará primeiro as nossas feridas morais, depois materiais, começando por nós e invadindo a seguir o nosso ambiente. Uma nova força nos fará superar as dificuldades das provas e as angústias da vida. No mundo orgânico, não é tudo regido, ainda que através de inúmeras passagens graduais, pela energia que desce do Sol para a Terra? Assim também, no mundo das forças espirituais, tudo é regido pela potência que de Deus desce às almas. Quando estes mais elevados planos do espírito são atingidos, a oração se torna audição e a alma não mais fala, mas ouve e recebe. Então, ela nada mais tem a dizer e não faz senão ouvir à voz de Deus, nutrir-se de Sua potência e deixar-se conduzir pela Sua vontade. Quando a ciência define como alucinatórias semelhantes sensações, relegando-as em massa, sem discriminação, para o domínio do patológico, não sabe o que diz nem o que faz. Tratase, como já dissemos, de realidades experimentais e objetivas, se bem que de realidades sobrenaturais, que escapam a quem não tem os sentidos para percebê-las e, por conseguinte, as nega. Mas o homem, com o tempo, evoluirá e então compreenderá. Hoje, faltando a sensibilidade necessária para a percepção, para a admissão de um fato que está além da razão, como seja a presença de Cristo na Eucaristia, não há outra via senão a da fé. Dado que este escrito se dirige ao ser humano atual, é necessário insistir sobre o que, para ele, constitui a parte mais difícil a percorrer, isto é, a que prepara a sintonização. Para isto, aconselhamos a reconstrução interior do ambiente espiritual da Última Ceia no momento da instituição da Eucaristia, momento que seria de uma grandeza terrificante, se tudo nele não fosse feito de amor, em que Cristo se sacrifica e tudo dá, esquecido da própria grandeza, de tal maneira que desce até ao nível da natureza humana. Ora, em nada encontraremos tão poderosamente reconstruída, atual e presente, em sua sensação mais vívida e profunda, a substância espiritual desse momento como no sacrifício da missa. Basta apenas seguir-lhe o desenvolvimento em espírito, ainda quando, materialmente, não se possa estar presente. As próprias fórmulas do rito, pelo menos as mais importantes, repetidas com todo fervor, poderão ser um ótimo guia para o preparo da Comunhão Espiritual. Sigamos, pois, o sacrifício da missa e concentremos a nossa atenção no momento culminante da elevação, repetindo as mesmas palavras do sacerdote, as mais vitais, aquelas que ele realmente pronuncia em voz baixa, como que para subtraí-las à profanação do público distraído. Repitamo-las, meditando, procurando senti-las em profundidade, em um crescendo de paixão e aproximação: 112 ASCENÇÕES HUMANAS ―Accepit panen in sanctas manus suas et elevatis oculis in coelum, gratias agens benedixit, fregit, deditque discipulis suis dicens10: ―Accipite et manducate ex hoc omnes: hoc est enim corpus meum11. ―Accipit et bibite ex eo omnes: Hic est enim calix sanguinis mei, novi et aeterni testamenti, mysterium fidei: qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem peccatorum‖ 12. ―Haec quotiescumque feceritis, in mei memoram facietis‖. 13 Cada qual procure ―sentir‖ estas palavras na máxima profundeza possível que a sua natureza permita. Depois disto, a alma sensível começa a perceber a real presença de Cristo tornar-se cada vez mais vizinha e perceptível, em um lento crescendo de sensações, cada vez mais claras e evidentes. Cada palavra, naturalmente, não deve ser dita com a boca, como habitualmente se faz, mas com a alma, sentida como a própria paixão, profundamente. Extraordinariamente poderosa é a palavra que corresponde a um real estado de alma, a palavra que não é apenas som, mas força viva da alma. Eis que se avizinha o momento culminante em que Cristo, tendo-se pouco a pouco aproximado como nossa sensação, pode comunicar-se com a alma que lhe soube abrir as portas. Saudemos esta aproximação com as palavras do sacerdote: ―Agnus dei qui tollis peccata mundi: miserere nobis. ―Agnus dei qui 'tollis peccata mundi: miserere nobis. ―Agnus dei qui tollis peccata mundi: dona nobis pacem‖ 14. A esta palavra ―paz‖, deixemos a nossa alma repousar tranquila, longe de todas as tempestades e preocupações humanas, plácida como um lago límpido em cuja superfície o sol pode agora espelhar-se em toda a sua pureza, sem ofuscamento ou deformação. Atingindo esse estado de calma e limpidez, abandonemonos agora a Cristo, deixando que Ele venha a nós e complete o restante. Mas, antes que Ele chegue, ofereçamo-nos a Ele completamente, em perfeita fusão com a Sua Lei e vontade, ofereçamo-Lhe tudo o que sejamos como dor e como miséria, já que nada mais possuímos. Repitamo-Lhe as grandes palavras. ―Domine, non sun dignus, ut intres sub tectum meum: sed tantum dic verbo et sanabitur anima mea‖ 15. Após este último impulso de humildade e consagração, a alma que, em graus sucessivos, conseguiu subir até aqui está pronta. Ouvirá então uma voz atrás de si anunciando-lhe: ―Corpus domini nostri Jesu Cristi custodiat animam tuam in vitam aeternam. Amen‖16. A alma deve seguir este pensamento três vezes. Na terceira, ela terá a sensação da presença de Cristo, não mais apenas vizinho, mas dentro de si mesma. Se ela estiver amadurecida e pronta, frequentemente Sua presença em si, para tornar-se sentida, não esperará a terceira vez, mas será notada desde a pri10 ―Tomou um pão em Suas santas mãos e, levantando os olhos para o céu, deu graças, abençoou-o, partiu-o e o deu aos Seus discípulos, dizendo‖: 11 ―Tomai-o e comei dele todos: isto é o meu corpo‖. 12 ―Tomai e bebei dele todos: este é o cálice do meu sangue, do novo e eterno testamento, mistério da fé, que por vós e por muitos é derramado em remissão dos pecados‖. 13 ―Todas as vezes que fizerdes estas coisas, fazei-o em lembrança de mim‖. (N. do T.) 14 ―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; tem compaixão de nós. ―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; tem compaixão de nós. ―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; dá-nos a paz‖. (N. do T.) 15 ―Senhor, não sou digno de que entres em minha casa, mas dize uma palavra e minha alma ficará curada‖. (N. do T.) 16 ―O corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo guarde a tua alma na vida eterna. Assim seja‖. (N. do T.) Pietro Ubaldi meira, porque o espírito arde no desejo de unir-se ao espírito. Dentro de si não significa penetração material de corpos, mas, como sempre acontece no mundo espiritual, fusão de centros de forças vibratórias e isto pela via da sintonização, que é vibração em uníssono, semelhante ao que sucede no campo acústico, pela qual duas notas distintas tornam-se uma nota só. Esta fusão é a mística união com Cristo, isto é, a perda da própria personalidade egocêntrica distinta, que se abstraiu assim e se introverteu na de Cristo, com a qual, daí em diante, saberá pensar e agir. Se a alma souber atingir este ponto, qualquer guia será para sempre supérfluo ou até mesmo um obstáculo. Deus agirá e falará nela, e ela, silenciando, admirada e arrebatada, por-se-á à escuta, realizando assim a oração perfeita. Ela não necessita mais do guia, porque Cristo a guiará. Daqui por diante, ela tudo possui e nada mais lhe pode ser dado pelo homem. Neste ponto, o conselheiro que até aqui, nestas páginas, serviu de guia, deixa a alma que ele procurou conduzir a Deus, nas mãos de Deus, para que Ele apenas lhe fale, a ilumine, a conforte, a nutra e a fortifique. Ninguém pode interferir nesses colóquios e amplexos de espírito. A comunicação com Deus está estabelecida, e toda a alma encontrará, segundo sua própria natureza, em plena liberdade, vias individuais de efusão. Neste ponto, o pobre conselheiro que a acompanhou até aqui, nestas páginas, cala, venera e em silêncio se retira. X. PAIXÃO Agora que completamos o trajeto dos quatro capítulos precedentes e, com isto, se não chegamos todos a realizar, pelo menos compreendemos a união espiritual com Cristo, avancemos ainda no mundo místico, tremendamente real para quem o alcançou, mas dificilmente concebível para o homem apenas racional. Chegados a este cume, não podemos deixar de voltar para trás e considerar o longo caminho que percorremos desde o Cap. I – ―A Verdade‖, do livro Problemas do Futuro, até aqui. Todas as formas mentais atravessadas foram verdadeiramente sentidas como reais por quem expõe, e isto pelo fenômeno acima descrito da personalidade oscilante e pela sua ascensão em onda progressiva até às tensões elevadas. À medida que nos avizinhamos do cume, a racionalidade, embora progredindo até destilar-se nas abstrações físico-matemáticas, permanece no limiar do mundo místico, incapaz de penetrar em uma atmosfera tão rarefeita, em que ela se sente dissolver e onde apenas a intuição pode penetrar. Após haver observado esse momento culminante e o seu reflexo nos problemas que lhe são afins, o leitor poderá observar o fenômeno da personalidade oscilante na sua cômoda metade descendente, isto é, em uma coordenação mais calma, no plano da racionalidade normal, retornando aos problemas da Terra. Com isto, o volume se encerrará. Os dois capítulos: ―A Verdade‖ e ―Ressurreição‖, deste volume, representam os dois extremos da oscilação da vida percorrida pelo autor no período 1945-50, em que este volume foi escrito, no fim do qual ele retornou ao fundo, mas sempre em nível mais elevado, e assim por diante. Daí se pode concluir que não é tanto o estudo ou o raciocínio que eleva o conhecimento, mas a maturação da personalidade. Aqui não se trata, assim, de aquisições culturais, mas de um fenômeno biológico mais profundo, de uma catarse de todo o ser, da qual deriva toda essa produção. Antes de seguir adiante, será útil observar o ritmo destas oscilações ou ondas sucessivas e ascendentes, comparandolhe os vértices, que, como dissemos, com a maturação do indivíduo, atingem níveis cada vez mais elevados. Um cume fora em primeiro lugar alcançado no fim da I Trilogia, com a cena conclusiva: ―Paixão‖, do volume Ascese Mística, como foi descrita na Páscoa de 1937, ao pé da tumba de São Fran- Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 113 cisco, que está na sua Basílica em Assis. O cume atual, na cena do capítulo seguinte, ―Ressurreição‖, foi atingido na 2 a parte do 1o volume da III Trilogia, na Páscoa de 1947, diante do Alverne. O conteúdo aqui não é de desolação na expectativa da guerra e de oferta na dor, como em ―Paixão‖, mas é triunfante na espera de uma nova civilização. Também o ambiente de inspiração, ao invés de uma tumba escavada nas entranhas da terra, lugar de morte para o corpo, é o da contemplação radiosa de um monte sagrado, onde Cristo apareceu, lugar de máxima realização espiritual. Tudo se transforma e se inverte. O motivo de 1937, expresso no 3 o volume, com que se encerra a I Trilogia, se transforma completamente, em 1947, no 1 o volume, com que se inicia a III Trilogia, em perfeito equilíbrio em uma obra de três trilogias. Há depois um retorno, com ritmo decenal, 1937-47, que encontramos também nas Mensagens Espirituais17, pelo qual, também aqui, ―A Mensagem da Paz‖ (Páscoa de 1943) chegou inesperada, justamente dez anos após a ―Mensagem aos Cristãos‖ (Páscoa de 1933), que encerrava a serie precedente. Retorno decenal de vértices, segundo um ritmo que parece inserido no fenômeno, pelo qual os dois cumes, 1937 e 1947, seguem o primeiro na vida do autor, no ano de 1927, ano em que fez o seu voto de pobreza e teve a primeira visão do Cristo. Como se vê, já em 1927, o fenômeno se verificara, embora a sua primeira manifestação exterior não haja surgido senão com a primeira ―Mensagem do Natal‖, em 1931. Todas essas coisas não foram preparadas nem previstas, sendo constatadas somente posteriormente e por um impulso íntimo, não controlado pela vontade e consciência por parte de quem o experimentava. É evidente que este, como tantos outros fenômenos biológicos, é regido por um seu ritmo inteligente e sábio, que o ser não cria, apenas segue. Eis então que, assim como no volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio se verifica um desenvolvimento de A Grande Síntese, aqui também se encontra mais aprofundado o motivo final do volume Ascese Mística. Assim, os germes sumariamente aparecidos na primeira explosão retornam amadurecidos com a progressiva catarse do indivíduo, da qual mais não são que um momento e uma expressão. Assim, através dos volumes das várias trilogias, toda a obra verdadeiramente ascende, elevando-se a uma atmosfera cada vez mais purificada. Aqui, cada palavra, cada capítulo, cada volume, enfim toda a obra, não pode deixar de espelhar e repetir o grande motivo ascensional, que é a base de toda a orquestração da vida, que se expande para Deus. É um canto único de todo o ser, canto do qual estes escritos não são senão um eco na alma de um pobre homem que sentiu cantar em si o universo e, em uma férvida paixão, se tornou dele o humilde intérprete. Assim, este canto, começando na forma racional das zonas inferiores da matéria e do nosso cotidiano contingente individual e social, eleva paulatinamente o seu potencial. Assim é que a racionalidade se torna intuição, a observação se transforma em contemplação, o pensamento se transmuda em prece, a visão do verdadeiro se faz êxtase, amor, arrebatamento. Então deixa-se de ser espectador, para se tornar ator no grande funcionamento orgânico do universo. Não mais se ouve apenas a divina harmonia do criado, mas nela se penetra, por ela se é envolvido e transformado. E nós mesmos nos tornamos assim um canto, o canto da vida, uma harmonia de Deus, uma harpa vibrante na divina orquestração do todo. E nos anulamos, desta forma, perdidos no ilimitado incêndio do amor divino. Descreveremos aqui, em seguida, no presente capítulo e no seguinte, estes dois vértices: ―Paixão‖ e ―Ressurreição‖. Esta última composição é nova, enquanto que a precedente é reproduzida do volume Ascese Mística. Isto para que seja possível o confronto. Mas, antes, façamos algumas observações. O novo impulso representado pela ―Ressurreição‖ foi preparado como que por um prenúncio na noite que precedeu a terceira sexta-feira anterior à Sexta-feira Santa de 1947, com inesperados e intensos fenômenos místicos. Isto sucedia com a aproximação da Páscoa, ao 60o aniversário do autor, enquanto ―Paixão‖ foi escrita na Páscoa do seu 50o aniversário. Essa composição representa a dor e o voto expressos pelas três solenes promessas feitas na tumba de São Francisco de Assis, aos cinquenta anos. Essas promessas foram repetidas em seguida, todas as tardes, até que, 10 anos depois, juntam-se à ―Comunhão Espiritual‖, atrás exposta, escrita em 1947, pouco antes de ―Ressurreição‖. Esta, depois daquele período de maceração, representa a alegria que triunfa sobre a dor, a vida que se sobrepõe à morte, o cumprimento da catarse. Após 10 anos de esforço e de dor, no Monte Alverne, onde Francisco se uniu a Cristo, veio do Alto a resposta e foi colocado o sinete da promessa final. O motivo negativo de ―Paixão‖ reproduz-se aqui em posição corrigida, positiva. Não mais trevas e tormentas, mas luz e vida. É a retificação do mundo na nova era do espírito. A dor, compreendida, aceita e vivida, cumpriu a sua obra de redenção e se transmuda em alegria. É a ressurreição do mundo através da sua atual prova e paixão, é a derrota do mal no triunfo do bem. Sobre as ruínas despontam as flores, e a vida avança. O autor não vive aqui um motivo seu, individualizado, mas todo o motivo biológico da sua era histórica, e começa a realizar, primeiramente nele, a metamorfose que levará o mundo para o novo tipo de civilização. É assim que, nestas composições e nesta sua obra, pode repercutir e vibrar o ritmo do grande fenômeno que a vida está agora vivendo. Ele teve que vivê-lo antes, sentindo em si a correção evangélica dos valores hoje invertidos no materialismo, como deve hoje vivê-lo o mundo em tragédia paralela. Neste endireitamento, os três motivos da ―Paixão‖ reaparecem, portanto, em ―Ressurreição‖, correlacionados entre si, mas transformados de treva em luz, de tristeza em alegria. E o mesmo homem que, na Quinta-feira Santa de 1937, havia tornado sua a dor de Cristo moribundo e a dor que esperava o mundo, então ignaro da última guerra mundial, agora faz, na manhã da Páscoa de 1947, também suas a festa do Cristo que ressurge triunfante e a glória que está reservada para o mundo em uma nova civilização que ele ainda não vê. O fenômeno não se refere apenas a quem escreve, mas envolve a todos no mesmo ritmo e a todos conduz para a mesma meta. Enquanto ―Paixão‖ foi escrita na noite de Quinta-feira Santa, vigília de paixão, na treva, embaixo, junto a uma tumba, ―Ressurreição‖ foi escrita na manhã da Páscoa, à luz, no alto, onde triunfou o espírito em Cristo. Esta passagem representa o afastamento da pedra que fechava o sepulcro e a ressurreição do espírito, que, no terceiro dia, isto é, no III Milênio, explode do seu invólucro corpóreo. Assim, quem escreve, instintivamente preparado pelo ritmo do fenômeno universal, que vai da vida de Cristo à vida do mundo, fenômeno no qual se encontrava preso sem sabê-lo, chegou à manhã da Páscoa de 1947, após um vago pressentimento da aproximação de um grande acontecimento espiritual. A visão exposta em ―Ressurreição‖ se desenvolveu nas primeiras horas do dia, estando o seu espírito presente na Capela dos Estigmas, no Alverne, enquanto o corpo estava em Santo Sepulcro (Arezzo), aonde fora com a família. Voltando a si, ele registrou a referida visão, de jato, como uma explosão, ao mesmo tempo que podia ver com o olho físico o perfil do Alverne e o ponto onde se encontra a aludida capela, visíveis dali de Santo Sepulcro. E aquela manhã, embora interposta entre duas semanas de mau tempo, estava verdadeiramente límpida e radiosa. Eis o texto de ―Paixão‖ 18. Seguir-se-á, no capítulo subsequente, ―Ressurreição‖. 17 18 Traduzidas em português com o título de Grandes Mensagens.(N. do T.) Publicado também no volume Ascese Mística, II Parte – Cap. XXVI, do mesmo autor. (N do A.) 114 ASCENÇÕES HUMANAS PAIXÃO Assis, Quinta-feira Santa de 1937 Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Senhor. Despedaçaste todos os meus afetos humanos, um a um; quiseste que somente o Teu amor permanecesse. E, quando o meu coração caiu por terra, ensanguentado, na estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolheste e me disseste: ―Eu sou o teu amor. Somente a mim podes amar‖. Em mordaça de ferro, comprimiste minha paixão; quando ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fechaste todas as portas e a lançaste dentro de mim, para que, na constrição, se tornasse mais profundo e mais potente o seu lume e ardesse num incêndio sempre maior e, no íntimo, inflamasse, chamejando até encontrar-Te, Senhor. Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, quiseste que eu me aproximasse de Ti por minha procura e por esforço meu. Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia chegar senão pela dilaceração de todo amor humano. A Ti não se chega senão pela tempestade, por que és o turbilhão e o poder, és a essência da força. Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança labaredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodilha em minha alma, aperta-a e agarra-a, para atraí-la a si, no centro do incêndio. Afrouxa em seguida a pressão e me deixa recair nas coisas humanas, para retomar-me depois, outra vez, e ainda outra, sempre mais forte. Aquele incêndio me espera, e eu nele cairei. ◘ ◘ ◘ É a Semana da Paixão, e aproxima-se a hora santa em que Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito de redenção e de amor. Nestes dias, espadelaste minha alma para que também eu vivesse a Tua paixão de dor e de amor. Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoando, passaram o choque brutal e o insulto feroz, e nela pousaram, submergindo com alegria na minha dor. Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu não o senti. A nova dor, porém, reergueu até Ti minha sensação e, nas profundezas do meu desânimo, eu Te encontrei, assim como tantas vezes eu Te perdi e, na minha prostração, vieste ao meu encontro e de novo me apareceste. Que desejas de mim, Senhor? ◘ ◘ ◘ Chego a Assis ao anoitecer da Quinta-feira Santa. Sete velas e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem solitárias na basílica de Francisco19. Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar longo e triste, em que chora a Igreja e o mundo suplica; lá fora, tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos históricos vitrais. A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde com a lenta sonolência de morte em que se extingue a agonia da paixão. Quando, porém, com a derradeira luz do dia, apaga-se a última vela, o último cântico do salmo explode tão trágico e dilacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no solo, que minha alma tempestuosa se abate, porque, então, ouço dentro de mim gritar a dor do mundo, que, súplice, chora com o Cristo que morre. Pietro Ubaldi Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a dor de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se abate desnuda ao pés de Cristo. Neste ar triste, mas calmo; nesta atmosfera de dor, grande mas consciente e resignada, ouço o clamor das multidões distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o espasmo das marés humanas que a dor e a paixão perseguem e atormentam. Minha alma treme. Jaz abatida ao pé da cruz e olha no alto o drama de um Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força para viver. Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até à cruz; Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo. Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho coragem. Não tens mais sangue para dar; morres nu e amaldiçoado e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem? Eu o sei: dar-me-ias ainda lacerações tremendas; mas, a cada novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: ―Por amor de Ti, Senhor‖. E, quando, já sem forças, cair e vir chegar até mim a carícia sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qualquer repouso ou conforto e dizer: ―Por amor de Ti, Senhor‖. Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto e pronto ao Teu comando. Com a minha renúncia, alimentarei todo o dia a chama de amor por Ti. Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. ―É pelo meu amor, Senhor‖. Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me em Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a maturação prossegue no mundo e em mim, por caminhos opostos. A hora é intensa para todos. Não se pode detê-la. Preparada já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar. ◘ ◘ ◘ O círculo se aperta. O drama da paixão de Cristo se faz intenso dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa quem está lá fora. Desço a cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco. Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão forte que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio. Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim, Senhor? Começo a balbuciar: ―Toma minha alma‖. Estou à espera, vibrando em tensão, sem palavras. Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: ―Segue-me, segue-me‖. Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei. Sinto solene a hora. Estás perto de mim, ó Cristo, eu Te sinto. Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me contempla e me ajuda. Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A ideia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a expresse, que a engaste em sua última forma. Finalmente, emerge a voz e minha alma grita: ―Senhor! Eu Te seguirei até à cruz‖. Então, sinto dentro de mim, a cantar: ―Tu estás no centro de meu coração‖. Minha alma, liquefeita em lágrimas de júbilo, de amor e de paixão, prostra-se sem forças. Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superior20 da igreja baixa, pintada por Giotto, o cântico que salmodia 19 Nesta basílica giotesca, ao anoitecer de Quarta e Quinta-feira Santas, se faz o ―Ofício das Trevas‖, extremamente sugestivo pelo ambiente artístico, a liturgia, o canto solene e, sobretudo, pela quase ausência do povo, que perturba sempre, com a sua distraída incompreensão. (N. do T.) 20 A basílica de São Francisco é composta de três igrejas superpostas. A cena realiza-se na igreja do meio e na cripta embaixo, onde está o túmulo do Santo. (N. do T.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS até ao vértice de Sua paixão; ressoa como raio a ecoar toda a explosão do meu tormento, condensando minha tempestade; ressoa, no clamor da musica e das vergas batendo no solo, o grito derradeiro do Cristo que morre. Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em mim; abre-se uma fenda em minha alma. O extremo apelo me convoca: é o lamento de Cristo, é a dor do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e inferiores. Sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice de forças titânicas; sinto a voz instar dentro de mim e repito: ―Senhor, seguir-Te-ei até à cruz‖. Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene. ◘ ◘ ◘ Torno a subir à igreja média, pintada por Giotto. Apaga-se a última vela. É noite. Ouço a repetir-se ainda mais perto, dentro de mim, o grito do Cristo a morrer. Ele aqui está, atual, presente. Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da terra e do céu. O céu chora a agonia e a paixão de amor de um Deus; a terra treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval sem noite. O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta hora suprema de paixão. Olho atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se projeta para a terra e vejo a terra sacudida, agitada, submersa num mar de sangue. É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperança. O círculo estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fechado, e tarde será para escapar à compressão. A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão prontas a desencadear-se as forças para o choque fatal. Está próxima a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz quem não for vivo, então, sobre a terra O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra. Há algum tempo, eu já disse – preparai-vos, preparai-vos – e não ouvistes. Em breve será demasiado tarde. O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, ressoa desesperadamente, no mais íntimo de meu espírito. Repito: ―Toma, Senhor, minha alma‖. E três vezes repito: ―Senhor, ofereço-Te a mim mesmo pela salvação do mundo‖. ―Seguir-Te-ei até à cruz‖. Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me escutas e me aceitas; estou unido à Tua Paixão. Compreendo que me guiaste até aqui, ao templo de São Francisco, para que, sobre Seu túmulo, próximo Dele, eu Te repetisse esta nova promessa solene, decisiva, seguindo a primeira, após cinco anos de duro caminhar. Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, porque agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço mais árduo me espera. O cântico cessou depois de seu último paroxismo. Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no escuro. Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmani, sua última desolação. Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo. Naquele instante, verdadeiramente senti a terra tremer. ◘ ◘ ◘ Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre o doce e extenso vale umbriano, os reflexos do Tescio 21 e os pinheiros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores da distância! E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio, a mole do templo, irreal entre pálidas luzes, e a imensa campina adormecida. Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recordações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profundamente vivi e que tanto amei. Hora em que o céu e a terra refletem, amigos, um sorriso comum e se estreitam num fraterno amplexo. Parecem em paz, mas é aparência do momento. Vive dentro de mim a visão da realidade. Eu senti verdadeiramente a terra tremer. XI. RESSURREIÇÃO Alverne – Páscoa de 1947 É manhã de Páscoa, manhã radiosa da minha ressurreição em Cristo, e eu cheguei em espírito aqui em cima do Alverne. E, aqui, na Capela dos Estigmas, no lugar em que Francisco viu Cristo, a minha alma escreve no livro da sua vida eterna, em caracteres que não mais se apagarão. Escreve e exprime em si este novo grande dia da sua eterna transformação, dia de alegria, depois de tanta dor, dia de vitória e de paz, depois de uma caminhada tão exaustiva. Sinto o olhar de Cristo sobre mim, que imprime um sinete de fogo à minha palavra. Deste alto cume do Alverne, contemplo a terra adormecida lá embaixo, longínqua e vaga na névoa matinal, tão cheia de ânsias e de dores e, apesar disso, aquecida e fecundada pela divina luz do sol. Deste cume espiritual, também repasso a história do mundo, ainda imerso no paul da ignorância e da barbárie, perdido na névoa da involução, história cheia de aflições e destruição e, apesar disso, guiada e regida pela lei de Deus. Deste cume do meu destino, miro a infinda alternância de minha transformação, que hoje, finalmente, emerge da prova e da dor e, por esta impelida a um ancoradouro mais firme e elevado, pode arremessar-se agora de um salto para Deus. O espírito, redimido pela dor, pode finalmente escancarar as portas cerradas pelo egoísmo e pela culpa, pode abrir-se para que a luz do alto o penetre e o inunde. Eis que hoje, não mais na tumba de Francisco de Assis 22, tumba de Seu corpo morto, mas no Alverne, a apoteose do Seu espírito vivo e presente confirma-se e se concluem, amadurecidos no tempo, os meus pactos com Cristo, já cumpridos em uma hora de paixão e de treva para o mundo, no claro pressentimento do iminente último conflito mundial. Tudo caminha e tudo fatalmente deve maturar-se na vida. O bem e o mal estão enquadrados no ritmo de sua transformação, e eisme chegado aqui em cima, de onde contemplo a terra, a história e a mim mesmo. Dez anos faz, na Quinta-feira Santa de 1937, que chorei em Assis e pranteei a minha dor e a dor do mundo, que tornei minha. E, como agora ressurjo da minha dor na alegria de Cristo, assim ressurgirá o mundo em uma nova civilização. Vejo-a do alto deste cimo, que domina o tempo, última meta de tanta luta e sofrimento. Hoje, aqui, neste cume do Alverne, não choro mais a minha paixão em Cristo e a paixão do mundo, mas canto a minha ressurreição em Cristo e a ressurreição do mundo. A esta dediquei a vida. ◘ ◘ ◘ Senhor, semeei segundo as Tuas pegadas, como me ordenaste. Semeei por toda a parte, em todos os campos do mundo, rivais e invejosos de vãs posições terrenas. Entrei lá, onde, com bondade e compreensão, me foi aberta a porta, seguindo o Teu evangelho, que nos ordena amor. Permaneci contristado em silêncio, no limiar das portas que me foram fechadas. Fui expulso por aqueles que mais amava e que melhor deveriam ter com22 21 Rio perto de Assis (N. do T.) 115 Veja ―Paixão‖; Assis, Quinta-feira Santa de 1937, capítulo anterior. (N. do A.) 116 ASCENÇÕES HUMANAS preendido. Senhor, ofereço-te esta minha dor. Eles não me quiseram. Oro por eles. Outra coisa não posso fazer. A obra da qual eu sou o servo é Tua. Somente Tu possuis os meios para fazê-la triunfar. Eu nada sou. Repito-Te o meu voto: ―Senhor eu sou o Teu servo, nada mais quero senão isto‖. Senhor, pela salvação do mundo, para aliviar, se possível, a sua merecida dor; para dar à Tua justiça uma contribuição qualquer de amor, ainda que seja quase nula; para encher o horrendo vazio produzido pelo ódio, ofereci a Ti minha dor aqui em cima, esvaído e quase que sangrando. Somente Tu a viste. Tu o sabes. Jamais peço para mim. A minha prece não pede, mas ouve. Ouve a Tua voz. Mas, se posso implorar para os outros, faze com que o mundo seja salvo da medonha catástrofe que o ameaça, faze com que ele possa aportar a salvo à outra margem, que se encontra além da sua atual prova de dor e faze com que a meta da sua ressurreição, pela qual Te ofereço a vida, seja logo plenamente alcançada. Faze que não seja vão tanto sofrimento, faze com que a dor abra as mentes e os corações, faze que esta destruição na matéria construa no espírito. Também Tu, Cristo, ressurgiste da Tua paixão, e também ressurgi agora em Ti da minha dor. Faze que igualmente o mundo, redimido pela sua tribulação, ressurja em Ti, álacre e triunfante, como Te vejo ascender hoje aos céus, vencedor da dor e da morte, como me apareces neste radioso cume do Alverne, nesta gloriosa manhã de Páscoa. Faze com que isso aconteça. Sei que tudo é perfeito no universo, segundo a vontade do Pai, que Lhe acena a marcha fatal e que eu, orando, não posso e não devo nem ajuizar nem aconselhar, mas apenas obedecer. Deveria dizer somente: ―Seja feita a Tua vontade‖. Mas esta minha súplica é a explosão do meu amor pelos irmãos em perigo, e é mais forte do que eu. Vejo o báratro da barbárie, que ameaça as multidões inconscientes. Entre tanta preconização de sistemas, salva-os, Senhor. Repito-Te o meu segundo voto: ―Senhor, eu Te ofereço a mim mesmo pela salvação do mundo‖. ◘ ◘ ◘ Senhor, ao terceiro ponto, permaneço só, diante de Ti. O destino do mundo separa-se do meu destino. Cada qual é livre e responsável por si, isoladamente. Um dia me chamaste para dizer-me: ―Segue-me, segue-me!‖. Obedeci ao Teu apelo e procurei seguir-Te Senhor, como a minha infinita fragilidade e fraqueza permitiram, como a minha pobre e culpável humanidade facultam. Mais não pude fazer. Desesperadamente Te segui de longe, chorando o meu amor perdido, no desejo de tornar a manifestá-lo. E caminhei sangrando entre as sarças, caindo e levantando, levantando apenas porque Tu, que conheces a miséria, tiveste piedade de mim e me estendeste a mão. SeguiTe de longe, como convém a um servo indigno. Procurei verTe do fundo destas trevas terrenas. Procurei ouvir de novo a Tua voz amiga no Evangelho, esquecido dos homens. Escutei com a minha pobre razão os passos por Ti impressos na história, sentindo, contudo, que a pobre análise feita pelos sentidos não poderá jamais reconstruir a Tua figura, que está acima de toda a forma humana. Segui-Te chorando a minha insensatez, envergonhado por não saber falar a Ti, porque Tu estás no alto, em tão ofuscante glória de perfeição, que eu me desoriento. Senhor, juntei esta dor que é a consciência da minha miséria às outras dores e também isto Te ofereci, para que Tu tivesses piedade de mim. Tudo isto Tu sabes, e eu o sei. Nada fiz do que devia e do que desejaria. No entanto o meu coração, enamorado de Ti, sem medir mais nada, nem a Tua grandeza, nem a minha indignidade, o meu coração, ardente de desejo por Ti, incapaz de resistir à Tua chama, que o envolve e queima, incapaz de compreender o alcance das suas próprias palavras, a imensidade de seu ardor, o absurdo do seu impulso, o meu coração Te repete, irresistivelmente transtornado à Tua luz, repete o seu terceiro voto: ―Senhor, seguir-Te-ei até à cruz‖. ◘ ◘ ◘ Pietro Ubaldi Eis que, aqui, no cimo do Alverne, nesta manhã de Páscoa, o meu drama se cumpre. Por dez anos repeti toda tarde os três votos. E Tu permaneceste ao meu lado, Senhor, e guiaste cada passo meu no mundo, precedendo-me com a Tua cruz, coroado de espinhos. Mas tudo é transformação, e a transformação possui um ritmo. A lei que rege o universo é um pacto que Deus fez com o homem, estabelecendo a garantia da estabilidade fenomênica. Nesta lei, o mal está enquadrado a serviço do bem, a dor é permitida como instrumento de felicidade. Assim, como em Ti, depois da paixão a ressurreição. Tudo é ordem em uma harmonia sublime. Tal como Tu já nos mostraste como sucederá para o mundo, assim também a minha dor cumpriu a sua redenção. Na redenção, não Te vejo mais coroado de espinhos, sangrando na crucificação, na primeira fase que é de sacrifício do corpo-matéria, crucificado, em que o homem, ainda todo carne, se detém demasiado e permanece ainda. Mas vejo-Te na segunda fase, a mais alta e vital da redenção, que é a ressurreição no espírito, ressurreição em que o homem, ainda pouco evoluído, muito pouco assimila e compreende. Vejo-Te, pois, imensamente diverso de ontem. Vejo-Te emerso da dor, em um esplendor de glória, de beleza e de potência, projetado na amplitude dos céus. Esplendes e irradias, todo feito de luz. És o sol da vida. A Tua chama aquece e nutre o universo. Neste esplendor, aqui no Alverne, onde agora me encontro presente em espírito, Te viu Francisco, aqui onde está escrito: ―Signasti, Domine, Hic servum tuum Franciscum, Signis Redemptionis nostrae‖23. Nesta alegria, como se acabou a Tua dor, ó Senhor, deve ter fim, pela mesma lei que Tu nos mostraste, toda dor, a dor do homem, a dor do mundo. ◘ ◘ ◘ Na mata em derredor do sacro monte do Alverne, canta a voz das grandes árvores meditativas, projetadas para o céu, a voz das minúsculas criaturas aladas que aí se aninham. Mais além canta a voz do homem ocupado nos labores da terra, canta a voz das rochas e das águas, das nuvens e dos ventos em tempestade, e tudo domina o canto imenso dos céus. Tudo é festa. Os sinos anunciam para o mundo a Tua ressurreição. E Tu sobes glorioso no esplendor do sol. A Tua ordem triunfa. É a vitória final do bem sobre o mal. O meu destino se cumpre. Eis-me junto a Ti, Senhor, última meta. As trevas da noite se desfizeram, a névoa se diluiu ao sol. Tu me apareces intensamente mudado, vestido assim de glória, visto nesta outra margem da minha vida, depois de uma caminhada bem longa e dolorosa. Vejo-Te, não mais aflito, mas amorosamente reclinado ao meu lado, para dizer-me: ―Estás fatigado. Apoia a tua cabeça em meu peito e repousa‖. Mas, vencedor do mal, Tu me dizes, como ao bom ladrão, porque com ninguém mais tenho semelhança: ―Amanhã estarás comigo no paraíso‖. É a Tua resposta aos meus votos, repetidos por dez anos seguidos. Tantas outras coisas depois me dizes, em linguagem não humana, no segredo da alma. Mas estas não se podem repetir, porque não seriam compreendidas. Estas não se devem dizer, permanecem encerradas no segredo do Eterno! ◘ ◘ ◘ Assim cheguei junto a Ti, Senhor, peregrino de amor e de paixão. De todos os amores humanos, o Teu foi que venceu. A Ti só se pode amar. Através da tempestade, cheguei à Tua paz. As chamas do Teu incêndio me envolverão e não me deixarão mais. A dor me salvará. Bendita sejas, irmã dor, que nos redime. Agora sei o que Tu querias de mim, Senhor. Não mais chora, não mais treme a minha alma, mas triunfa na Tua alegria. A paixão está superada na ressurreição. Assim como a Tua dor foi minha, assim também agora é minha a Tua felicidade. Tu estás comigo, Senhor, e não mais me deixas. E Ele me diz: ―Vai, diz aos homens que não se sofre em vão. Vai, lembra 23 ―Assinalaste aqui, ó Senhor, o teu servo Francisco com os estigmas da nossa redenção‖. (N. do A.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS aos homens o caminho da redenção. Que saibam sofrer e, sofrendo, compreender. À medida que compreenderem, o círculo se alargará e a dor se suavizará. A luz de Deus bate às portas de sua alma e pede para entrar, mas eles a mantêm hermeticamente fechadas. Abram-nas ao amor fraterno, que Deus entrará. O homem deve aprender qual ser livre e pode, pois, aceitar ou repelir como quiser. Mas ai de quem odeia os outros, porque envenena a si mesmo. Ai de quem se encerra no cárcere de egoísmo, porque barra para si próprio o caminho das fontes da vida, isola-se e se estiola em direção à morte. Vai, ensina ao mundo esquecido, desviado em busca de falsas miragens, os verdadeiros caminhos da alegria. Sê sacerdote do espírito e oferece também o que sabes, porque de mil ofertas nasce a nova civilização‖. Eis que, enquanto me afasto do Alverne para tornar aos mesmos misteres do mundo azafamado, uma última visão se me depara. Também aqui, como lá em Assis, o drama do mundo e o drama de Cristo se conjugam. Assim como Cristo ressuscitou, a vida ressurge da moderna e imensa catástrofe. Outros golpes virão, porque o homem é obstinado. Mas, além deles, também para o mundo, há a sua ressurreição. A fé, a lógica profunda da vida no-la indicam. E tal como me liguei à dor do mundo na hora de sua paixão, estou ligado agora à sua alegria na hora da sua ressurreição em espírito. Nela reviverei. No bem e na felicidade dos outros estará o meu paraíso. E isto será a plenitude da minha meta atingida. Um paraíso ocioso, egoísta e solitário, não é paraíso. Adeus, santo monte do Alverne, adeus... Retorno lá embaixo ao meu árduo trabalho, no mundo azafamado. Tudo aqui embaixo é tempestade: egoísmo, ódio, agressão. A fúria das paixões devasta esta pobre terra, que poderia ser um jardim. Aqui embaixo, o belo sonho vivido se torna utopia, e ao canto de Deus responde um grunhido feroz e satânico. Mudo é o espírito, extinta é a chama da fé e da esperança. Vive-se em um pressentimento de catástrofe universal, sem que se saiba evitá-la. A terra está enregelada sob um manto de dor. Nem mesmo o céu se vê mais sorrir do fundo deste inferno, e a terra parece prestes a abrir-se, ávida por tragar o homem, que se tornou fera e criatura do mal. Dentro de mim está a visão do real. Sim! O velho mundo realmente está no fim. É o fim deste mundo. Mas um outro surgirá dele. Eu vi realmente a terra florir. XII. CRISTO AVANÇA Depois de haver observado o fenômeno místico em um caso individual, observemos a sua dilatação no mundo da hora atual. Todo período histórico possui a sua moda, que é a forma de manifestação de suas atitudes mentais. A corrente dominante de nosso tempo tem sido o materialismo, com todas as suas consequências em todo campo. Como se explica hoje, no entanto, que bem no meio desta corrente que tudo penetrou, nasça entre nós a moda das paixões, dos milagres e, nas massas, surja uma tão imprevista e difundida paixão de sentimento religioso? Os fatos provam, pois, a tese por mim amplamente sustentada há tempo, de que nós nos encontramos no ponto de maior declive da onda involutiva, e que é justamente deste ponto que se inicia a ascensão. Essa ascensão parece hoje inacreditável para quem enxerga apenas superficialmente, mas ela invadirá todo o horizonte de amanhã, configurando a realização daquela ideia que parece utopia no momento e pela qual eu luto: ―A Nova Civilização do Terceiro Milênio‖. Como é possível que hoje, em pleno materialismo, assistamos à intensificação de movimentos religiosos de massas? É difícil provocá-los artificialmente desta maneira. Eles são espontâneos. Eles não obedecem a nenhum comando de dirigentes humanos. As leis da vida seguem um plano lógico e entram em função no momento adequado, sem se preocuparem com longas explicações, visando apenas conseguir os seus objeti- 117 vos. A concepção materialista fez crer aos dirigentes que a opinião pública se pode hoje fabricar mecanicamente, em série, por meio do radio e da imprensa. Não é verdade. Existem correntes de pensamento independentes, que escarnecem de semelhante indústria. A vida nos mostra que, em momentos decisivos, a alma coletiva caminha por si, independente do habitual controle dos dirigentes em qualquer campo. No momento atual, efetivamente, ideologias hedonistas importadas tendem à formação de uma ordem bem diversa de ideias, baseada no interesse e no bem-estar material. Como explicar, no entanto, que semelhante propaganda, em vez de atrair com seu utilitarismo, tenha obtido o efeito exatamente oposto, colocando-nos, ao invés, frente a um inegável despertar religioso? Este, por sua vez, não é apenas o difícil produto desejado pela Igreja, mas sim algo mais profundo, além do quanto possa querer um indivíduo, uma autoridade ou as próprias massas humanas, que apenas lhe obedecem. E como pode ele, nos eventos históricos, assumir de inopino uma direção tão imprevista? Observemos um fato. Em 1939, quando eu já sentia os temores da guerra desde 1932 (tudo publicado), ninguém temia essa guerra, razão pela qual nela nos precipitamos com a inconsciência de criança. Hoje, quando o horizonte não é tão sombrio como então, todos vivemos sob o temor de uma nova guerra. Provirá este sentimento do temor de uma nova guerra ou será mais a recordação da última, tão recente? Estará este despertar religioso conexo à tão difusa psicose de guerra? A Terra está surgindo aos olhos do homem como qualquer coisa de infernal e inabitável, então ele procura refúgio alhures, em Deus. E ei-lo a fitar o céu, Cristo e os Santos, em outro mundo. E à Terra, apontada pelo materialismo como paraíso imediato e seguro, mas que, de fato, tornou-se um inferno, voltam-se as costas. Tal desespero impele o homem a buscar a verdadeira vida alhures. É assim que as forças do mal colaboram para o triunfo das forças do bem. Tudo isto é lógico, mas não termina aqui. O insucesso do materialismo, com a falência das suas promessas, é clamoroso e o atingiu em profundidade. Isto todos compreenderam. O mundo sente que o materialismo o traiu e o repudia. O mundo, precipitado na dor, viu o verdadeiro rosto de Satanás, antes oculto atrás das falsas promessas. E então? Eis aí o germe da reação e o primeiro impulso em uma nova direção, no sentido oposto, espiritual. É assim que a onda da vida, depois de uma descida tão grande, volta a subir após atingir o fundo. O mal operado pelo materialismo foi grande, mas o homem é livre e deve provar para aprender. A lição foi dura e feriu a nossa carne. Não é fácil esquecer, quando se derramou sangue. Algo de imenso e novo deve maturar, porque Deus não nos fez sofrer em vão, mas apenas para o nosso bem. As leis da vida querem que tudo rume enfim para o bem, que o mal se transforme em bem, nisto tudo respeitando o livre arbítrio humano. Que sucede, pois, hoje no mundo? Verifica-se uma inversão de rota. Essa inversão se inicia nas massas da maneira mais elementar: o sentimento religioso. Hoje, isto pode nos parecer fanatismo. Mas, amanhã, subirá até aos mais evoluídos, até aos dirigentes, que serão atraídos. Dar-se-á um refinamento no sentimento e na manifestação, haverá uma consolidação através da razão e da ciência, que, em forma bem mais evoluída, conferirá novo aspecto à humanidade. Essa renovação não pode provir dos dirigentes de hoje, porque eles não se encontram evoluídos o bastante, em todos os campos, para poder assumir a direção de uma renovação do mundo no sentido espiritual. A renovação se inicia naturalmente pelas multidões, em forma primitiva, como primitivas são estas também. Ela se comporta como a maré, como uma inundação que sobe lentamente, em silêncio, invadindo tudo, sem alarido, sem propaganda, sem armas nem conflitos, mas sempre subindo. Não provém, como habitualmente, do exterior, de coações, partidos, hierarquias ou classes dirigentes; não é fundamentada em meios econômicos nem ori- 118 ASCENÇÕES HUMANAS entada pela vontade humana. É de dentro que ela provém, das almas, de uma necessidade instintiva, de uma ordem de Deus, que fala tacitamente aos corações e os arrasta. Suas vias e métodos estão invertidos, nos antípodas dos humanos ora vigentes. É estranho! Essa maré crescente do bem é mantida e impelida pelos impulsos do mal! A fase materialista gerou um espírito de luta. O princípio egoístico em que se baseia é cisão satânica e acarreta, implícita no sistema, uma crescente e contínua destruição, que irremediavelmente o leva para o desmoronamento final, única solução. O conflito humano entre ideias e interesses é hoje tão intenso, que a vida não pode mais suportá-lo, o que torna fatal ele explodir e, com isto, resolver-se e exaurir-se. O homem não aguenta mais. Daí a revolta. No fundo da atual descida involutiva da onda histórica há um vértice negativo, um ponto crítico, de máxima tensão, em que o edifício de forças, formado segundo aquele sistema, em direção separatista-destrucionista, não pode deixar de precipitar-se e desmoronar fragorosamente. A ressurreição em direção à vida, que não pode acabar, está implícita e é fatal. Eis aonde vai terminar este primeiro sintoma atual do despertar instintivo do sentimento religioso das massas. Homens e governos, toda a autoridade humana na Terra, foram até agora, em geral, prevalentemente egoístas. A luta dominante pesou sobre eles, exigindo-lhes que pensassem antes na própria defesa. Em todo campo, mesmo espiritualmente, a vida teve que forçosamente basear-se na luta e na imposição. De resto, as multidões eram um verdadeiro rebanho inconsciente, e se fazia mister não só ensiná-las, mas igualmente impor-lhes aquilo que deveriam crer, pensar e fazer, sem direito a juízo, porque este levaria à anarquia. A necessidade de unidade implica a sujeição de consciências em todo campo. Não se podia pretender uma ação por convicção da parte de massas incapazes de possuir outro valor senão os do ventre e do sexo. Mas, hoje, o homem começa a procurar compreender, querendo entender por si. Diante da mentalidade moderna, que está mais apta a funcionar por persuasão espontânea do que por aceitação obrigatória, perde cada vez mais valor o princípio de autoridade, que já foi útil uma vez, mas pode ser prejudicial agora. Quem, no entanto, poderá coagir os dirigentes – instintivamente levados a repousar nas suas posições de comando, tão trabalhosamente conquistadas – senão a troante voz da vida, que investe contra eles, falando através das multidões? Essa voz os perturba, mas como poderia falar de outra maneira a vida, se as outras portas estão fechadas? Só então eles, para salvar as próprias posições, procuram as reparações, obedecem e se modernizam. Os dirigentes são assim conduzidos pela vida, que tudo dirige. Desse modo, tudo se move, também eles, ainda que por último, e a vida avança. O homem desperta hoje, através da dor, para uma nova maturidade. Ai de quem não se dá conta disto! Não se resiste ao crescimento do espírito, centro da vida. O ideal dos dirigentes, em qualquer campo do passado, foi a vitória sobre outros seres humanos por meio de rivalidades, lutas e superações sem fim. O herói da raça foi o guerreiro agressivo, o ideal foi a conquista, a grandeza consistiu no domínio pela sujeição. Harmonia e cooperação no mundo eram inconcebíveis na prática, uma utopia. Estamos hoje em uma grande reviravolta, na qual o homem, cansado de suportar os efeitos coletivos da sua universal ferocidade, conceberá um novo ideal, biologicamente mais rendoso. O seu herói não será mais um imperialista como Júlio César, Carlos Magno, Napoleão, mas sim aquele que, concebendo o mundo como uma unidade harmônica e cooperante, só agir em função disso. Todavia não era possível atingir isto senão hoje, quando o mundo tende a reunir-se sob um só governo, com os meios de comunicação multiplicando as relações e permitindo uma fusão antes impossível. Também se tendia à unidade no passado, mas a excessiva involução da época não a permitia senão por aproximação. Pietro Ubaldi Tudo isto parece irrealizável hoje. No entanto o mundo está reduzido a apenas duas ou três grandes unidades. O fato destas se armarem para destruir-se mutuamente prova que elas não podem deixar de decidir a supremacia absoluta do mundo, em uma fatal pugna eliminatória pelo último campeonato. Isto trará a unidade e, portanto, o fim das guerras. A unidade não pode ser conseguida por pacifismos teóricos ou desarmamentos simulados, mas somente pela vitória final de um só, escolhido pela vida através da seleção natural, que se efetua por intermédio da luta sem piedade; seleção de apenas um, biologicamente escolhido como o mais cotado das qualidades necessárias, que demonstre nas provas ser o mais capaz. Com isto, a era dos conflitos, depois de um terrível crescendo, exaurir-se-á e a nova era poderá então nascer, a era da harmonia e colaboração, a nova era do conhecimento e do espírito. Todas as energias do mundo, demográficas, bélicas e econômicas, giram em torno destes princípios. Toda raça, toda nação serve a estes princípios de acordo com a própria forma. No entanto a ideia fundamental, que avança em meio a tão diferentes processos e manifestações exteriores, é o retorno de Cristo e a verdadeira atuação do evangelho na Terra. Até agora, tem havido aí mais pregação e teoria do que prática, mas Cristo avança. Por este motivo, as primeiras manifestações se dão como expressão religiosa das multidões. Estes movimentos religiosos populares constituem o primeiro e verdadeiro sintoma do futuro. As próprias forças do mal são utilizadas pela vida para este retorno de Cristo. Ele se encontra no centro da nova civilização; é a grande potência da nossa ascensão humana. Ele é o princípio do amor que concretizará a nova unidade. Esta não será apenas de diretivas sociais e interesses, mas também de fé e religiões. Em Cristo, meta final, exaurir-se-ão e se extinguirão todos os atuais conflitos humanos. Da tumba do materialismo, Cristo fará ressurgir na humanidade, com Ele, a nova luz da percepção e consciência espiritual. A grande força que faz pressão através de tantos conflitos atuais, para resolvê-los e vencêlos, é Cristo. Ele inspira alguns elementos isolados, mais próximos a Ele, e os faz falar. Ele fala no instinto das massas, orientando-as de maneira inesperada para novas formas de consciência. A vida não pode deixar de responder ao apelo de Cristo. O mundo sabe que, entre os homens, não pode haver um salvador e o espera do céu. E o Cristo libertador se aproxima. Clama por Ele o desesperado grito de dor da humanidade dilacerada, igualada que está no sofrimento, sem distinção de classes, credos ou de raça. Já se abrem as vias espirituais para Sua presença entre nós. Tudo está pronto e evidente nos eventos, e não há quem possa pará-los. Tudo, mesmo o mal, abre o caminho para Ele. Esperemos com alegria a final e fatal apoteose do bem. XIII. UMA ESTÁTUA SE MOVE (Santa Maria dos Anjos – Assis, 14 de março de 1948). Precisemos agora melhor as nossas observações, localizando-as em um caso particular 24. Quando acontece um fenômeno reconhecido como milagroso, todos acorrem para ver e julgar. Um caso fora do comum, que parece situado além dos limites ordinários das leis da vida, nos chama a atenção para o sobrenatural. Frente ao extraordinário, somos levados a procurar a solução interpretativa que mais corresponde à nossa própria forma mental, instintos e necessidades, mas, às vezes, também aos interesses coletivos, e não só individuais. Nesta interpretação influem, pois, não só a natureza de cada tipo biológico, mas também a da raça e dos eventos de um particular momento histórico, que podem fazer pressão sobre este juízo. Este, por conseguinte, é resultante também de fatores psicológicos interiores. 24 Este capítulo é extraído de um artigo do mesmo autor, publicado em ―La Nazione‖ de Florença, em 4 de agosto de 1948. (N. do A.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS Mas eis que, ao lado do juízo dos indivíduos e da coletividade, dado pela corrente formada pela maioria, existe também um outro: o juízo da ciência e da autoridade. Há indivíduos diferenciados, que observam o fenômeno munidos de cultura, de métodos racionais, de instrumentos científicos e também de autoridade espiritual. Tal observador não é instintivo ou fanático. Ele procura, por todos os meios de que dispõe, ser objetivo, buscando ser racional e prudente. É lógico, pois, que o indivíduo e a multidão apelem, em última análise, para a ciência e a autoridade. Mas isto não impede que os primeiros influenciem estes últimos, fazendo pressão sobre eles na direção a que pende a psicologia coletiva do momento, a qual arrasta mais ou menos a ―todos‖. Do lado oposto dessa tríplice ordem de espectadores, isto é, indivíduo, multidão e ciência-autoridade, está o fenômeno, seja ele a aparição de Lourdes, de Fátima, ou outra qualquer. No caso presente, trata-se da enorme mole da estátua de Santa Maria dos Anjos. Move-se ou não se move? Para muitos, ela se move. Eis o que multidões vão ver para julgar, deduzir, comover-se, crer ou não, cada qual segundo o seu temperamento. Alguns realmente não veem. Por que eles não veem? Um movimento real da matéria, situado na matéria, todos veem se não forem cegos. Mas quem tem olhos para ver, vê segundo precisas leis óticas. Parece, pois, que aqui deva intervir outro fator, mais sutil, além das leis óticas. Qual é ele? Já coligimos os vários elementos do fenômeno. Se este, por um lado, refere-se à matéria, por outro lado concerne às três unidades psíquicas – a cada uma e a todas conjuntamente, com recíproca influência – que se encontram no extremo oposto do próprio fenômeno. Este, assim, está situado, em parte, no campo das leis físicas e dinâmicas do mundo exterior ao homem e, em parte, no campo das leis psíquicas e espirituais do mundo interior do próprio homem. Daí uma consequência importante. Quem observa apenas o lado físico, ignorando o psicológico, não vê mais do que a metade do fenômeno, e nada vê quando o fenômeno físico, segundo o exame objetivo, é inexistente. Façamos a aplicação. Diz-se que foram colocados aparelhos sismográficos na estátua e que estes nada registraram. Esta é a primeira fase, a mais elementar e material da observação. A Igreja, em tais fenômenos de sua jurisdição, de acordo com a lógica, não recorre à hipótese do assim chamado sobrenatural e miraculoso, senão depois de excluída toda e qualquer explicação que possa ser dada pelas leis normais da física, conhecidas por nós. A precedência cabe assim à ciência e ao seu materialismo. Mas, se, por tal método de indagação, nada se encontra nesta primeira e mais baixa ordem de fenômenos, então é evidente que, se não quisermos permanecer alheios, impõe-se que abandonemos a sabedoria da matéria, que nada mais pode nos dar, e apelemos para a ciência do espírito, capaz de, com outros métodos, permitir-nos um juízo sobre uma outra ordem de fenômenos. A primeira observou, por todos os seus meios, se existe ou não uma oscilação física e se é possível, segundo as suas fórmulas, dar uma explicação do fenômeno. Foram exercidos controles de caráter elétrico e ótico, mas tanto os eletroscópios, como os galvanômetros ou a imagem fotográfica nada revelaram. Excluídas as causas físicas – elétricas, óticas etc. – foram descartadas também as causas radiantes. Todo controle no sentido de descobrir uma causa física ou dinâmica teve resultado negativo. Logo, na realidade objetiva, situada no mundo das leis cientificamente conhecidas, a estátua não se move. Para os aparelhos de registro, desprovidos do lado espiritual, que está na alma humana, o fenômeno não existe. Neste ponto, o fenômeno foge à ciência atual, que deve retirar-se, declarando a própria incompetência. Entramos agora, aqui, em um campo inteiramente diverso. A ilusão ótica também está excluída, tratando-se de um fenômeno coletivo e objetivo, de movimentos parciais e intermiten- 119 tes, visíveis de qualquer ponto, próximo ou distante, independentemente de fatores atmosféricos. Entramos então no campo das ciências psicológicas. Mas estas também não conhecem a técnica de funcionamento da personalidade humana. Elas permanecem no campo nervoso e central, com uma psicologia superficial, que não atinge as profundezas do espírito. Os termos psicose, alucinação etc., são mais palavras do que conceitos, mais complicações do que explicações. Neste ponto então, justamente quando se deveria começar a explicação científica do caso, como acima dizíamos, não se enxerga mais nada e penetra-se em cheio no sobrenatural e miraculoso, no mistério inexplicável. O fenômeno, desta maneira, nos foge para o incognoscível, autorizando, desta maneira, os incréus a negá-lo. Ora, Deus nos deu a mente para usá-la com o raciocínio, e não para renunciá-la. E relegar o problema como inexplicável não é conclusão para a mente, mas sim fracasso. Não se quer com isso contrariar o ato de fé e de sentimento com que as massas, por instinto e intuição, tudo resolvem de improviso, o que evita cair no fanatismo – perigo oposto ao da incredulidade – criando fatos e milagres por fantasia. Não queremos de modo nenhum renunciar à fé, mas apenas ser, sem ingenuidade nem fanatismos, verdadeiros crentes, isto é, acreditar em plena consciência e com a solidez da razão clara. Se o fenômeno indubitavelmente existe e se a sua objetiva realidade não está, como demonstram os controles, situada na estátua, essa realidade deve estar em alguma outra parte. Ora, o milagre não é menor se a sua sede for transferida de um movimento físico, espiritualmente sem nenhum valor, a um movimento de almas. Aqui é o caso de se crer então que os aparelhos sismográficos, se tivessem sido postos na alma das multidões ao invés de na estátua, teriam registrado oscilações normais. Mas a ciência não possui sismógrafos capazes de registrar tais movimentos. Deve-se mesmo acreditar que as máquinas fotográficas, se pudessem gravar a imagem psicológica espiritual da estátua na alma dos observadores, teriam registrado imagens bem diversas das estáticas. Mas tais máquinas fotográficas não existem. É certo que, se o fenômeno não é solúvel no plano físico, deve sê-lo no espiritual. É certo também que existem realidades interiores, sólidas e objetivas, poderosas e resistentes, tanto quanto as exteriores, se não mais. Não é mais fácil mudar a forma de uma montanha que a de um tipo de personalidade? Com tudo isto, exauridas todas as hipóteses científicas, a realidade objetiva do fenômeno permanece e se apoia em fatos tão sólidos quanto os da realidade exterior, que parecem negálo. Deixemos a matéria entregue às suas leis. O espírito não tem necessidade dela, a não ser, quando muito, como ponto de referência para fixar a atenção e as ideias. Mas a causa, o motor, não está na matéria, e sim no espírito. Em um artigo não é possível expor mais do que as conclusões. Neste caso, o movimento não é de caráter físico, mas está repleto de sentimento e de significação moral, qualidades ignoradas na matéria. Observa-se na estátua um arquejar doloroso, as mãos se estendendo como por amor, enquanto a coroa e toda a matéria circunstante permanecem imóveis e indiferentes. O fenômeno, pois, projeta-se também na matéria, mas está e tem origem nas almas, mesmo que estas tenham a necessidade de representá-lo em uma realidade exterior, onde pode ser reconhecido e encontrado. Toda a técnica das imagens corresponde a esta lei. O fenômeno não é menos extraordinário por isso. Ao contrário, justamente por estar situado nas almas e revestir-se de um caráter espiritual, representa a via lógica e natural da comunicação do homem com as forças superiores da divindade. O fenômeno se torna realmente miraculoso, quando pensamos que este contato das massas com Deus é tão poderoso e de tal ordem, que o movimento espiritual invade mesmo a matéria e a arrasta consigo. E é isto o que confere a esta, no fenômeno, a parte de efeito, e não como se acreditou, a de causa. 120 ASCENÇÕES HUMANAS As multidões acorrem, veem, choram, convertem-se. A matéria da estátua, de per si muda e inerte, modela-se assim em uma forma de pensamento e exprime uma ideia superior de santidade, de bondade e de fé. Esta ideia, que é viva nas almas, torna viva a estátua inerte. Esta forma de vida a faz mover-se por vias interiores, que podem mesmo chegar a atingir a solidez das leis físicas. Faz também com que ela fale, e a alma docemente ouve. Mas não é a estátua que fala. É a voz de Deus que se fez ouvir pelas almas, por vias interiores, através de um meio sensório aparente, necessário para firmeza e atenção dos espíritos habituados a perceber quase somente os estímulos dos canais exteriores. Então a alma das multidões ouve a Mãe de Cristo dizer-lhe: ―Na hora tremenda que te aflige e que tu, no teu instinto, sentes aproximar-se pavorosa, eu aqui estou para te proteger com o meu amor. Vem a mim. Crê. Vem, eu te salvarei‖. Isto corresponde também aos profundos instintos da vida, pois esta, nas horas apocalípticas, recorre às ideias mães da estirpe e às forças biológicas salvadoras, que não são destruidoras, como no homem-conquistador, mas sim conservadoras, como na mulher-mãe. Desta maneira inicia-se o colóquio entre Deus e as multidões. Os dois interlocutores se falam e se aproximam cada vez mais. É a hora histórica tremenda que aguça nas massas a sensibilidade para o divino. A tragédia está nas almas. O temor da aproximação dos sem Deus provoca, por natural lei biológica de reação, uma automática frente de resistência dos homens que estão ou estarão com Deus. Assim, pois, de acordo com o que se é, vê-se ou não o fenômeno. Cada um de conformidade com a própria alma. E isto é lógico, porque não se trata de uma visão dos olhos, mas sim da alma. Só assim tudo se explica: tanto a imobilidade física da estátua, como o seu movimento espiritual, invisível para muitos, porque inexistente em sua alma. Explicase, desta maneira, como tais fenômenos, antes tão raros, verificam-se repetidamente agora, nestes momentos tão calamitosos. Deixemos, pois, à matéria o que é da matéria, para dar assim ao espírito o que ao espírito pertence. E é no espírito que devemos venerar o milagre de Deus, que se faz sentir tangivelmente presente em momentos tão excepcionais. XIV. SINAIS DOS TEMPOS25 Lancemos o olhar em derredor. Hoje, em nosso mundo, impera o materialismo, que, na prática, significa racionalismo, egoísmo, força bruta, destruição e dor, estados conexos e ligados entre si numa cadeia fatal, até ao fundo. Isto é natural, porque o materialismo representa a filosofia do involuído, que não sabe apelar senão para os instintos bestiais, pois que não pode compreender mais do que isso. Ao materialismo se contrapõe o espiritualismo, que possui características opostas e pode ser denominado, quando elevado, a filosofia do evoluído. Essas duas atitudes do pensamento humano se defrontam hoje, no mundo, em luta desesperada, uma das formas da luta entre o bem e o mal. E cada uma, consoante a própria natureza, põese de um ou de outro lado. É evidente que, quando se fala de ideologias num período de materialismo – e nunca se falou tanto delas como hoje – isto não pode ser senão por espírito de mentira, que faz parte dos métodos do involuído. Outra interpretação não se pode dar à propaganda de ideologias que hoje se observa, quando a substância que apoia a maior parte desses estandartes é bem diferente: é a voracidade do lobo, é o mais desapiedado egoísmo, é o espírito avassalador de domínio, seja do indivíduo, da família ou da nação. O pendor para mentir hoje está tão difundido, 25 Este capítulo e alguns dos seguintes foram, pelo mesmo autor, tratados em artigos publicados em 1948-49, em revistas italianas e estrangeiras. (N. do A.) Pietro Ubaldi que já não interessa mais qual seja a ideologia. Tanto isto é verdade, que o conteúdo delas consiste apenas na mesma coisa: mentir, conquistar, dominar. De tudo isto nasceu uma extraordinária recrudescência da luta pela vida. O racionalismo mal disfarça a realidade bestial, em que o lobo, não importa em que forma social, alia-se a outro lobo apenas porque a união faz a força, tornando mais fácil vencer e pilhar. Formam-se, assim, as associações de interesse que mantém ligadas em unidades compostas algumas classes de indivíduos, não importando sua categoria ou tipo biológico, nem os objetivos aparentes apregoados ou o lugar na Terra onde tudo isto se passa. Essas diversas formas são aparências de um mesmo problema substancial, que é a luta, o ataque e a defesa, que se tornam mais fáceis se executados em grupo. Não importa, pois, se esses agrupamentos possuem características e objetivos religiosos, econômicos, políticos etc. Se reduzirmos todas essas diversas formas à sua nua realidade biológica, então compreenderemos que, atrás de todos estes princípios que deveriam educar o indivíduo, está na realidade o homem, buscando submetêlos a si mesmo e adaptá-los às suas necessidades, que são antes de mais nada biológicas, isto é, de um animal que quer viver. Nesse estado de coisas, tendendo cada vez mais ao caos, onde ―homo homini lupus‖26, em vão busca-se no mundo um poder, uma autoridade superior que restabeleça a disciplina, sem a qual não são possíveis a paz e o bem-estar. As nações procuram unir-se, como fazem os homens nas classes sociais, com o fim de atacar e defender. Formar-se-á um espírito de grupo, não mais apenas de indivíduos, mas de nações, sólido porque utilitário. A psicologia da alcateia de lobos estender-seá dos indivíduos aos povos, que se coalizarão em classes dominantes, como acontece antes no seio de qualquer nação. Os fenômenos sociais são compreendidos apenas quando vistos pelo que realmente são, isto é, fenômenos biológicos particulares. Mas, ainda que as unidades em luta se tornem cada vez mais vastas, isto não basta para formar um poder superior a todos, sempre parciais e terrestres. Superior quer dizer melhor pela inteligência, capacidade e bondade. Isto existe no super-homem, no homem de gênio, no herói, no santo. Mas estes são extremamente escassos, portanto agem isolados, insuficientes para a formação de um grupo, além disso não se coadunam com a psicologia do domador, indispensável para a formação da alcateia de lobos, necessária para dominar. Mesmo que os materialistas não saibam, porque não podem compreender (dado que essa é a psicologia do involuído), esta inteligência ou poder diretor central existe, mas não reside na Terra, por isso não é passível de agressão nem destruição. Ela é Deus, ainda que a esta palavra tenhamos de dar apenas um sentido científico, de mente e vontade diretoras da vida. Não há motivo para desencorajamento se falta a diretriz humana. Quando ela existe, em verdade é muito relativa. De resto, não faz falta e, na maioria das vezes, seria prejudicial, como vemos. Nem por isto a história é destituída de senso ou caminha ao acaso. Ainda que os chefes frequentemente nada saibam do pensamento de Deus, esse pensamento, que não se vê nem é acessível ao involuído rebelde e destruidor, não deixa de guiar tudo, ainda que numa ação deletéria para este último, mas com finalidade de construir o bem. Quem vê em profundidade, onde o materialismo involuído não alcança, não se alarma e diz: tende fé. O que quer que suceda, Deus tudo sabe e tudo orienta para o melhor. As iniquidades são de superfície, visíveis apenas aí. Deus trabalha por baixo, na intimidade das coisas, para ressurgir sempre contra todos os assaltos. Por isso é verdade que a vida sempre vence a morte. Se na profundeza está Deus, silencioso e perene criador, na superfície está o mal, rumoroso, destruidor e encerrado no tempo. O mal naturalmente se contradiz, e nenhuma psicologia é 26 ―O homem é o lobo do homem‖. (N. do T.) Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS mais contraditória do que a racionalista moderna. Hoje acredita-se ser possível chegar à posse através da destruição, à alegria pela semeadura da dor, ao bem-estar por intermédio da guerra e do ódio de classe. Mas, para possuir, é necessário ordem e disciplina, em vez de rebeldia. Para progredir, é necessária a sábia obra construtora dos melhores, e não dos piores, dos pacíficos, e não dos delinquentes; é imprescindível paz e segurança. Mas como é possível enriquecer por meio de agressão e furto recíprocos? Este processo resseca as fontes de toda riqueza, que só pode nascer do trabalho pacífico e da confiança. Não é mais lógico aspirar ao bem-estar por uma elevação geral do nível econômico através de um trabalho concorde do que esperar melhoramentos de uma destruição alternada e improdutiva? As armas preparam o deserto e a morte, não o bem-estar e a vida. Remedeia-se, então, pedindo um esforço que visa um paraíso futuro, não aquele apregoado e utópico dos céus, mas sim real, na terra. E se escarnece do paraíso celeste, conquistado por esta realidade. Mas este tem pelo menos a vantagem de ser uma promessa sem controle, porque se mantém no outro mundo, enquanto já se via que o paraíso terrestre ninguém conseguia cumprir. Por este motivo, poucos são ainda os que creem em fenômenos semelhantes. Embora a ciência e o progresso tenham caminhado, a dor, se não cresceu, pelo menos não diminuiu. Que descrédito! Se tais promessas materialistas do paraíso terrestre foram logo compreendidas e aceitas, a razão está em que elas se dirigem aos instintos animais do homem. A via, a princípio, como para todas as vias do mal, é fácil. Mas esses instintos não raciocinam e exigem satisfação. Desde que esta falte, verifica-se a revolta. O animal morde quando se vê maltratado, e o involuído, que é presa do materialismo, é feroz. Uma fé que origine esperança em qualquer coisa que supere a miséria cotidiana e a insatisfação humana e salve o homem da desesperação das más horas, é necessária a ele. A fé possui essa função biológica de defesa, de resistência e de recuperação. É uma verdadeira força para a luta, mesmo material. Destruir essa fé é perigoso, porque então se desarma a vida dentro da dor. Que meios fornece o materialismo que possam compensar a perda de tais defesas? Que dizer, então, quando a compensação oferecida, o paraíso terrestre, animalesco e vegetativo, não se realiza mais e, mesmo que se verifique, a alma, como é natural, não se encontra satisfeita com ele e procura outro? Mesmo atingindo o bem-estar material, sabe-se que nem só de pão vive o homem. É difícil saciar o homem, ainda que lhe dando todo o bem-estar. Quando, pois, além disso, dissemina-se a luta e, por conseguinte, a dor, associando-se a uma filosofia ateia, o absurdo é evidente. Sim, porque nunca é tão necessária a fé como na dor. Quem semeia a dor, ainda que seja ateu, justamente porque semeia a dor, compele a uma fé em um paraíso situado algures, porque, sem uma esperança de felicidade, cá ou lá, não se vive. Isto é instinto. Quem, pois, destrói Deus, para imperar com a agressão, abre as vias do céu, que conduzem a Deus. Somente a ingenuidade do involuído pode acreditar que uma fé se possa destruir com a força. Oprimindo-se, cria-se a fé, porque esta satisfaz a ânsia de pregar. Ouvi dizer: a este as coisas na terra devem ter andado mal, para que se tenha voltado com tanto fervor a Deus. Nesse erro caíram os imperadores romanos, perseguindo os primeiros cristãos, e caem os perseguidores de todos os tempos. Para cada mártir caído, nascem cem novos crentes. Mas a reação das massas pode assumir a direção oposta quando se trata de involuídos. A dor pode, ao invés de elevar, embrutecer. Neste caso costuma-se atirar-lhes um cibo de ódio, e a posição de domínio se salva, instigando-os contra uma presa humana cada vez maior. É um pedaço de pão que se dá a expensas alheias, como primeira realização terrestre do paraíso prometido. Porém a via é perigosa. Como todas as vias do mal, é fácil apenas no inicio, transformando-se em catastrófica no fim. Ela torna necessária uma inexaurível coorte de vítimas, 121 que se devem despojar para serem dadas em pasto. O sistema da luta de classes é o mais antiprodutivo e pode transformar-se em verdadeiro parasitismo. Arrisca-se, com ela, a chegar a uma reação ou, realmente pior, à destruição do trabalhador – pacífico produtor – e, consequentemente, de todo o bem-estar. O sistema está ligado à necessidade de ampliar cada vez mais a área de destruição em que ele trabalha. Como as guerras, esse sistema está unido à força e à necessidade de conquistas sempre novas que o justifiquem. Essa necessidade está implícita na própria natureza do sistema e, por isso, o tornará cada vez mais feroz e agressivo no exterior, férreo e desapiedado no interior, isto é, antissocial e antivital, levando-o a um desequilíbrio biológico que lhe acarretará, em um determinado ponto, fatalmente, uma ruptura e a ruína. A espantosa irracionalidade do racionalismo moderno não alcançou esta verdade elementar: opressão, extorsão, violência, são forças negativas, que, por isso, se destroem e jamais poderão construir, porque essa função construtiva só se pode encontrar nas forças positivas, que são a convicção, a colaboração, a confiança. O racionalismo não compreendeu que o materialismo é um impulso negativo, que tende à destruição de tudo, inclusive de quem o pratica. É verdade que ele acredita poder prescindir da alma, negando-lhe a existência. Mas o homem permanece um ser com alma. Ele não é um número, uma máquina de produção, um cálculo econômico. É um ser humano. As construções do racionalismo moderno são construções contra as quais a vida se rebela. E a vida esfrangalha tudo que lhe constitua obstáculo. Certas leis que representam o pensamento e a vontade de Deus não podem ser plasmadas por nenhum poder humano. É necessário que o espiritualista veja todos os aspectos da vida e não se limite à repetição estereotipada das fórmulas da sua religião ou grupo, quaisquer sejam elas. Existem hoje males gigantescos nesta nossa época convulsionada, são problemas formidáveis, mas eles já foram denunciados, sentidos, investigados e enfrentados com vigor e nova fé. O materialismo é um assalto que invade toda a nossa vida, opondo-se às forças do espírito. Mas esse assalto serve justamente para despertá-lo e desenvolvê-lo. Jamais nasce tanta fé como nos tempos de descrença, nem se formam tantos mártires e heróis como sob a opressão. Os dois movimentos, pois, de autodestruição do materialismo e de reação do espírito, concorrem para a mesma meta. Não se aflijam os bons, porque são os mais fortes. Carlyle dizia no Sintomas dos Tempos: ―A verdade é que quem possui uma sabedoria imensa, uma verdade espiritual ainda desconhecida, é mais forte não do que dez mil homens, mas sim do que todos os homens que não a possuem. Ele os supera com uma força eterna, angélica, como que empunhando uma espada forjada na harmonia dos céus, uma espada à qual não poderá eficazmente resistir uma couraça ou uma torre de bronze‖. É necessário que o evoluído, que é mais inteligente, observe as vias do mal e os métodos do involuído. Este, para dominar, permanece encerrado em um sistema que o torna um projétil lançado para a autodestruição. A organização dos involuídos, para manter-se com a força, que é o seu meio, atrai e deve cercar-se dos piores elementos da sociedade, destituídos de inteligência, de cultura e de piedade. Que rendimento se pode obter deles? Tal organização deve temer o despertar do senso de humanidade que está na alma deles, e não o embrutecimento que possa destruir a alma. O nosso tempo procura fabricar homens em série, o homem-máquina para produção (o grande produto da moderna técnica científica), no qual não é o espírito que comanda a máquina para os seus fins superiores, mas é a máquina que sujeita o espírito. É necessário atentar para esse homem, que é imagem de Deus, ligado por Satanás à máquina. Seguindo Satanás, o mundo moderno conseguiria inverter este meio de libertação, tornando-o um instrumento de escravidão. A vida possui limites de resistência e incríveis meios de reação. Quan- 122 ASCENÇÕES HUMANAS tas almas agonizam, asfixiadas pelo materialismo moderno? Qual é o seu limite de resistência? Quando se despedaçarão elas no desespero? E que reação nascerá deste desespero? Eis os males recentes da história, o imponderável que se negligencia, a invisível ação de Deus! As dores se somam, montanhas de mortes se acumulam, a vida ulula desesperada, porque foi traída com as promessas do paraíso da ciência materialista. Quando irromperá o equilíbrio? É a vida que dirige a história, e ninguém pode resistir à vontade da vida, que não quer morrer. Ela não morreu no tempo e não pode morrer agora. A força bruta tenta conter cada vez mais a maré da reação. Mas esta sobe, sobe tácita e constante. Em um dado momento atravessará e romperá os diques. Será a destruição apocalíptica da fase atual. Hoje, estamos na era da mitra e da bomba atômica, na era da destruição. Uma certa percentagem de destruição e de mortes justifica-se com a vitória, que pode transformar a carnificina em sacro holocausto. Mas, além de um certo limite, frente a frente com a catástrofe, não há idealização de morte e martírio que valha. A morte aparece, então, na sua verdadeira e horrenda luz, e a vida se rebela; além de um dado limite, não há vitória que possa compensar e justificar as perdas, nem tornar razoável e útil o sacrifício. Este então se torna assassínio ou suicídio. Ora, quando um sistema, para manter-se, coliga-se à necessidade de um sacrifício crescente, o limite da destruição deve cedo ou tarde chegar. Refazer os passos não é mais possível, porque seria necessário tragar toda a dor e morte semeadas, neutralizando-se com renovada alegria e vida. Faz-se mister, pois, avançar, e avançar sempre para o abismo. É terrível não se poder parar, não se poder retroceder. Nas vias do mal, como nas do bem, marcha-se sempre até atingir o fundo permitido pelo sistema, e o progresso em tal caminho se faz cada vez mais perigoso, difícil e catastrófico. O método implica uma função destrutiva, e a destruição chama a destruição. ―Abyssus abyssum invocat‖27. Cada vez mais. É um afundamento satânico de tudo. E para que serve tudo isto? Deus o sabe, e a vida o expressará. Certamente, o presente serve para forjar o futuro, pois, de outro modo, não poderá ter sentido. E é para isto que serve, mesmo quando, na mente dos homens, ele pareça feito unicamente para si ou para destruir o futuro. De tantas imensas construções ideológicas, sociais, econômicas e religiosas de hoje, talvez não reste senão algo de secundário, atualmente ainda não previsto na verdade. São muitos os secretos fins da história, ignorados pelos homens. A vida revoltar-se-á contra a máquina e buscará viver livre no espírito. A ciência com que a orientação materialista quis trair o mundo inverter-se-á para demonstrar a alma e Deus e nos guiar, pelas vias do espírito, para a evolução. Desprovido da coesão resultante dos ideais e metas superiores, o atual movimento materialista, traído pela força e pela riqueza em que acredita, desagregar-se-á. Homens que não acreditam no sacrifício e no amor fraterno – valores que levam à compensação – saltarão à garganta de outros homens idênticos. O utilitarismo conduz à traição. Homens e povos criam no seu pensamento e ação um sistema de forças que, depois, os domina. Esse sistema é uma nêmese que pesa sobre o mundo moderno. Foi desejado e, daí por diante, é fatal, até o fundo. As religiões do ódio organizado, o método da destruição científica, uma semelhante psicologia absorvida e vivida em ação por tanto tempo, devem produzir os seus frutos, sem possibilidade de evasão. Até quando a força bruta das armas bastará para suprir a falta de inteligência para compreender que a vida social não se pode realizar sem confiança e colaboração? Um sistema baseado na violência não pode passar de instrumento de destruição, sem nenhum valor como meio construtivo, e deve, pois, fatalmente dissolver-se no caos. Na prática, isto significar uma perda progressiva. Como se pode ver aqui, a teoria de que o mal é 27 ―Um abismo atrai outro‖. (N. do T.) Pietro Ubaldi fatalmente levado à autodestruição pelo seu próprio sistema não é apenas filosófica, mas sim uma realidade prática. Satanás, mesmo quando opera racional e cientificamente, trabalha sempre em perda, ainda que dispondo de todos os meios de riqueza, astúcia e força. No balanço final, a colheita dos esforços despendidos é uma traição. Satanás não paga senão em moeda falsa. Isto é dado pelo seu sistema. Apostar no mal é um mau negócio. Este é o calcanhar de Aquiles do mundo moderno, verdadeiro colosso de pés de barro. O complexo racionalismo do nosso tempo está excessivamente carregado de cultura e por demais encerrado na mecânica da sua lógica para compreender uma causa tão simples. Apoiar o próprio poder nos involuídos; apostar nos piores, nos extratos inferiores da sociedade, iludindo-os que sejam os senhores, quando antes deveriam ser educados para aquilo que não sabem fazer; não ter em defesa senão mandíbulas de lobo e procurar as soluções do problema no ventre aberto do próximo – isto tudo não pode acarretar senão a ruína. A salvação e o futuro só podem estar no oposto disso, isto é, no apoio aos evoluídos, na aposta nos melhores, nas camadas não econômica mas sim biologicamente mais avançadas, que têm consciência do duro encargo a assumir; em ter como defesa a justiça e procurar a solução dos problemas no bem do próximo. Tudo isto é assim porque nenhum homem, por mais poderoso que seja na Terra, pode impedir, com uma situação invertida e artificial, que a vida queira e busque uma solução dada pelo tipo mais inteligente, mais trabalhador e produtivo, mais apto a colaborar, confraternizando em sociedade. Concluindo, saudamos, na forma do pensamento e da ação que o materialismo nos deu, um instrumento de Deus para nos abrir as portas da nova civilização do espírito. XV. O ATUAL MOMENTO HISTÓRICO Olhemos mais uma vez em nosso derredor. No atual momento histórico existem dois estados: um aparente, superficial e transitório, que é visto por todos e constitui a base de julgamento da maioria; outro real e profundo, dado pelo eterno desenvolvimento das coisas. O primeiro é de destruição, miséria, mentira e ódio – um estado bestial, involuído. Aí, os melhores, que, por serem os mais evoluídos, conquistaram os valores mais elevados da vida – que não são os materiais, única meta dos involuídos, mas sim os espirituais, bens preciosos e poderosos – são hoje perseguidos e deslocados pelos piores. Hoje é exatamente a hora do mal, cuja característica é a negação e a subversão. Assim, os melhores se tornaram perseguidos, quase que obrigados a esconder-se, enquanto os piores conquistaram tudo. Mas é natural que os revolvimentos necessários para passar de um estado de equilíbrio a outro, evolutivamente superior, sejam também convulsivos. É natural que, para passar de um estado de legalidade ao de uma legalidade mais completa e perfeita, seja necessário atravessar uma fase de ilegalidade, que depois se refaz e coordena em uma nova ordem. Também durante a Revolução Francesa, que teve os seus fins históricos e sociais, verificou-se a ascensão da escória. Mas, visto não corresponder a um valor intrínseco, é uma posição falsa e, por conseguinte, não pode durar. Então, em qualquer revolução, ou seus filhos demonstram estar à altura da posição conquistada, ou é a própria revolução que os mata, como matou Robespierre e seus companheiros na França. Mas o que, inversamente, encontramos em profundidade? Toda a verdade, pela lei do dualismo universal, não está completa se não for vista em seus dois temas antitéticos e contraditórios, dos quais ela se compõe na totalidade. No outro extremo do fenômeno histórico atual, que aparece na superfície, temos um estado oposto, de preparação subterrânea, de espera e maturação. Assim como se diz que sob a neve está o pão, também é sob a tempestade que estão amadurecendo os germes de uma nova civilização. Para Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS compreender isto, seria necessário conhecer não só as leis históricas mas também as leis biológicas, pois delas a história humana não é mais do que apenas uma parte. Quem compreendeu essas leis não discute mais com os homens, que, em geral, não sabem o que fazem nem por que fazem. Discute, isto sim, com as leis biológicas que os movem, leis às quais eles, que tanto creem comandar, não fazem mais do que obedecer, movidos, mais ou menos lúcidos e conscientes, pelos instintos, que são as forças por meio das quais as leis os manobram. Isto porque o caminho da história não se faz ao acaso, não está entregue ao capricho ou vontade dos povos e muito menos de seus dirigentes. Quem faz a história são as correntes de pensamento coletivo, que são inconscientemente sentidas e expressas pelas massas. E os dirigentes serão tanto mais capazes quanto melhor souberem sentir essas correntes, interpretá-las, exprimilas, encarná-las. Mas, se eles quiserem seguir outra via, substituindo-se às profundas impulsões biológicas, para desviá-las do caminho, elas se rebelarão e se libertarão deles como de um trambolho. O poder, para manter-se, não pode possuir finalidades egoísticas individuais ou de classe, visando domínio, deve representar em vez disso uma função biológica e ser compreendido como uma missão a serviço da vida, caso contrário ela reagirá, fazendo qualquer poder humano desmoronar. Eis então que, no fundo das coisas, há algo bem diferente; estão aí o pensamento e a vontade diretora de Deus, que não são apenas transcendentes nos céus, mas também imanentes em nós e em nossas coisas, presentes com a sua incessante obra criadora. Na direção da história há, portanto, uma outra obra, bem diferente da pobre e ignorante sapiência humana. Há a sabedoria de Deus. Que isto seja de grande conforto aos melhores, mais evoluídos, hoje expulsos e esmagados. Quem está habituado a olhar com humildade e amor, pedindo e entregando-se a esse pensamento divino que tudo rege, constata experimentalmente a existência de uma lei de ordem e de amor que está no centro das coisas, que as alimenta e as mantém em vida, mesmo deixando que na periferia, na forma e na matéria, dominem a desordem e o mal. Assim como nas grandes tempestades oceânicas, a poucos metros abaixo da superfície das águas, observa-se a calma, também verifica-se na história, sob o grande rumor das revoluções, da queda das classes sociais e dos tronos, do desmoronamento das enormes construções políticas, a calma das grandes leis da vida, que, lentas mas seguras, vão preparando o futuro. Futuro garantido, como garantida é a primavera, que deve (pelas leis da vida) trazer consigo a germinação das novas massas. Não podemos, de fato, presumir que a continuação da vida seja confiada aos homens e aos seus expedientes. E, se ela sempre triunfou e triunfa sempre, como o demonstra o fato de haver chegado até aqui, isto se dá justamente porque ela é protegida por essa sabedoria divina, que a guia, a nutre e a mantém. Abordemos agora a parte mais importante da questão. O que é que a sabedoria das leis biológicas e, por conseguinte, também históricas e sociais nos está preparando para o futuro? A história jamais caminhou uniformemente, mas sempre por ações e reações, por impulsos e contrachoques, progredindo no tempo não como um rio canalizado em margens feitas pelo homem, mas como um curso d‘água que, deixado livremente vagar pela planície, por ela serpenteia da maneira que o seu dinamismo lhe permite. Este processo de ação e reação contraria o que presume o cálculo das probabilidades, de modo que amanhã pode suceder o contrário de hoje. Essa é a lei da vida, que não está baseada na continuação indefinida de estados idênticos e constantes, mas sim na compensação de contrários e no seu equilíbrio. Sabemos que a oscilação entre contrários, isto é, entre um extremo positivo e um extremo negativo, em que cada fenômeno se inverte no seu oposto, é a base da luta, da evolução e da própria percepção. O fato mais inverossímil e fantasioso pa- 123 ra o observador superficial, hoje dominante, é, pois, exatamente o mais verossímil e lógico para o observador profundo. Por isso nos encontramos precisamente em uma noite que precede um novo dia, pois, na vida, é exatamente a noite que prepara o dia; é a morte que anuncia o renascimento; é o mal, a destruição e o martírio que anunciam o bem, a construção e o espírito. Encontramo-nos no fundo do vale da onda histórica, que deve necessariamente, depois, reascender, como tornam a subir todas as ondas. Conclusão: caminhamos para uma nova civilização do espírito, para a nova civilização do Terceiro Milênio. Trata-se agora de saber como se conseguirá essa nova civilização. Naturalmente, porque é nova, ela deverá estar, por razões de equilíbrio e compensação, nos antípodas do que hoje denominamos a nossa civilização. Não se trata de retoques do que é velho, de novas ordenações políticas, com a habitual substituição, para vantagem de novas figuras ou classes; não se trata de continuar, mas sim de iniciar outra, com princípios diferentes. Expô-los aqui é tarefa muito grande para um capítulo. Bastam-nos alguns acenos. Os atuais valores que se projetam acima do nível comum pertencem mais ao plano animal do que ao plano que deveria ser humano. O homem atual é involuído, é mais animal do que homem. Hoje vale a força e a astúcia. A honestidade e o mérito, valores superiores, têm importância mínima. A bondade e a inteligência voltada para o bem são as qualidades menos úteis na vida social de hoje e chegam a ser mesmo nocivas. Hoje, a importância é medida pela capacidade de prejudicar ou pela utilidade extraída, e não pelo valor propriamente . Isto acontece justamente porque a balança dos juízos humanos, mais que de um ser superior, é a de um animal. Hoje, o poder não é compreendido como uma função biológica, cumprindo missão a serviço do povo, mas sim como uma conquista com objetivos de vantagem individual, como qualquer outro meio. A seleção biológica de um tal tipo, tido como o mais forte, corresponde a estados primitivos, involuídos. A evolução impõe a passagem para formas de luta e de seleção biológica mais elevadas, dirigidas à formação de um tipo menos inconsciente, menos egoisticamente isolado. A vida caminha para a formação de grandes unidades coletivas humanas, em que é necessário compreensão e colaboração, e não mais subjugação e proveito. A época do senhor e do escravo já passou. Marchase para novas formas de liberdade, que, porém, não significam, como acredita o homem de hoje, abuso e licença, mas sim uma nova disciplina, mais elevada, uma ordem mais férrea e uma consciência capaz de compreender a utilidade disto e obedecer, ainda que seja por espírito utilitário. Hoje se crê no número. Basta uma maioria, não importa de que elementos, para formar uma verdade, um direito, para estabelecer uma norma de vida, uma lei. Ora, como pode a quantidade fazer a qualidade? Não podemos formar nem ao menos uma única unidade reunindo um número de zeros, mesmo que seja infinito. Isto é elementar. Hoje, a matéria é tudo. Ela é apenas meio, mas foi elevada a fim. A riqueza é o objetivo da vida. Troca-se o continente pelo conteúdo. O trabalho material vale mais do que o intelectual. O que decide na difusão de uma ideia não é o seu valor, mas a posse de meios materiais que podem difundi-las. As opiniões fabricam-se mecanicamente. Basta possuir a imprensa e o radio. A grande floração de meios de que se enriquece a nossa pseudocivilização mecânica e utilitária, nos fez esquecer o melhor. Eles absorveram toda a nossa atenção, sujeitaram o nosso espírito, invadiram tudo, substituindo-se a tudo e pretendendo bastar a tudo. Mas já sentimos o vazio terrível que está em nós, a carência de diretivas, porque sentimos cada vez mais que somos incapazes de dirigir esses meios, sempre mais poderosos. E o perigo é grave, porque, se não soubermos dirigi-los com sabedoria, eles constituirão, em nossas mãos, um instrumento de destruição universal. Isto o mundo já viu e fez nestes anos. Basta continuar um pouco ainda 124 ASCENÇÕES HUMANAS nesta loucura, e a humanidade será destruída ou, pelo menos, reduzida ao estado de barbárie. Dir-se-á, porém, que, para alcançar isto, urge um novo homem, consciente, justo, o que foi e será sempre uma utopia. Ora, a história nos mostra com frequência que é justamente a utopia que será a verdade de amanhã. Um exemplo disso é o cristianismo. Além do mais, há um fato positivo: a evolução. É necessário evoluir. Essa é a lei da vida, que sempre fez pressão no íntimo das coisas, não só para se manifestar, mas também para subir a manifestações sempre mais perfeitas. Luta-se tanto, sofre-se e experimenta-se, mas tudo por esse motivo. O amanhã deve, por lei, superar o presente. Ademais, o homem atual alcançou um ponto crítico em que, não sendo possível continuar com os velhos sistemas, impõe-se uma mudança de rota. Os poderes hoje em suas mãos são muito superiores àqueles que ele possuía no passado. Isto implica a necessidade de uma proporcional sabedoria, para saber como empregá-los bem. O homem que possui a bomba atômica não pode agir com a mesma inconsciência e psicologia de ferocidade empregada pelo guerreiro medieval, que não dispunha senão de uma lança ou pouco mais. Com essa psicologia, o homem moderno destruiria a humanidade. Como se vê, a utopia de uma nova civilização não se apoia em sentimentos de bondade e de altruísmo. Conhecemos o homem, sabemos o que se pode obter dele e quais são as molas que o movem. Faz-se, pois, apelo ao terror que lhe inspirará a perspectiva certa da autodestruição. Faz-se depois apelo ao seu senso utilitário. Pede-se somente que o novo homem seja suficientemente inteligente para poder compreender a enorme vantagem que pode advir para todos da valorização do fator moral e espiritual na vida social, porque só assim se pode obter paz, confiança e aquela segurança que é a única garantia de qualquer fruição do fruto das próprias fadigas. Se não se compreender isto, é inútil reconstruir. Com a psicologia do homo homini lupus, com o sistema do revólver em punho, pode-se também fazer um inferno para os demônios e para os danados que vivem na Terra e um purgatório para os justos, que assim se apressarão para procurar mundos melhores. Mas, na Terra, para quem nela trabalha, nela possui e prolífera, só haverá desesperação. É necessário compreender verdades elementares, entender que, quando se semeia violência e mal, não se pode colher senão violência e mal; que a reconstrução não se pode operar senão recorrendo-se ao trabalho, o ato criador pelo qual o homem se torna operário colaborador de Deus; que não convém jamais fazer mal aos outros, porque quem faz o mal nunca o faz aos outros como parece, mas o faz realmente a si mesmo. Há leis na vida. Para se obter determinados resultados, como por exemplo o nosso bem-estar, é imprescindível seguir normas. Cada ato tem as suas normas, como cada fim tem o seu caminho para ser seguido. Todos nós desejaríamos viver em um jardim, porém não deixamos de contribuir para fazer um campo minado. Que poderemos esperar, então? Mas cada um pensa que vencerá e se refará à custa do vencido. Não! Os vencedores não vencem desta forma. Apenas desempenham, através da sabedoria divina, uma função biológica diferente daquela dos vencidos. Funções opostas, que se devem compensar e equilibrar para consecuções comuns, que a vida colima para todos, em formas diferentes e segundo as diferentes capacidades. O homem do futuro deverá ser mais inteligente, a tal ponto que possa superar as ilusões psicológicas e não cair nos erros a que estas induzem. Concluímos agora nosso pensamento. O materialismo, fruto dos últimos séculos, fruto espiritual e material, já deu todo o seu rendimento. Como filosofia, já se esgotou e agora é posto à margem pela vida. Como técnica, deixou um produto útil, que é o domínio sobre as forças naturais, postas em parte a serviço do homem. Este resultado útil é o produto do nosso tempo e vai ser transferido (reduzido, porém, de fim que é hoje a meio Pietro Ubaldi que será amanhã) ao seio de uma nova civilização, de tipo diferente. A nossa já atingiu os seus fins. A nova atingirá outros, mais elevados e complexos, servindo-se dos produtos do trabalho executado pelo nosso tempo. A vida hoje diz: basta por este lado. E acrescenta: operemos a compensação, completando o edifício pelo outro lado. Um vazio tremendo se formou exatamente do lado espiritual. É, na multidão, uma atrofia perigosa para o equilíbrio, uma carência patológica que urge remediar. E as forças da vida se apressam hoje a preencher a falha, convergindo a sua ação precisamente nessa direção, semelhantemente ao que fazem na defesa orgânica. Essas forças se propõem agora a construir o novo homem do espírito. Atualmente nos encontramos na profunda noite da matéria. O mundo está desorientado, sem guia e com muito pouco senso. O espírito parece morto. Não existe mais arte. A música é um pandemônio de rumores irritantes. Hoje, a vida está tentando a construção de novos e grandes organismos coletivos, especialmente daqueles que têm por célula o indivíduo, nas colossais unidades biológicas. Este novo ser, do qual as massas constituem o corpo, ainda vaga incerto à procura da sua alma diretora, como se fora um antediluviano monstro paleontológico. Aturdido pelo rumor de quem mais grita e fere os sentidos e os seus instintos, desconfiado e crédulo, arredio e esperançoso, rebelde e fraterno, esse corpo social das massas, ainda informe, procura auscultar no seu instinto a longínqua voz da vida, seu único guia. E a vida está pronta para gritar nesse seu instinto uma palavra nova, e as massas estão prontas para ouvi-la e segui-la. Jamais como hoje, entre tanto esfacelo e atabalhoamento, os espíritos estiveram tão preparados para se incendiar sob o influxo de uma palavra ardente, feita de verdade verdadeira, sentida, vivida, dita com seriedade. E a esperamos. Virá ao certo. Disto cuidam as sapientes leis da vida. XVI. UMA PARÁBOLA Existiam muitos homens em uma certa terra, e cada um deles, segundo a própria natureza, elaborou um plano de vida. Um se propôs a triunfar no mais baixo e primitivo plano da vida, tornando-se rei segundo a lei da fome e da egoísta conservação individual, isto é, vitorioso no mundo econômico dos bens e na posse da riqueza. Para isto, tudo sacrificou. Não viu outra coisa, nada mais quis e de nada mais se ocupou. E nesse campo venceu. Trabalhou de corpo e alma, sem tréguas, em prol dessa única meta. Casou-se pelo dinheiro, subordinandolhe o amor. Não teve filhos. Como fruto do seu esforço, obteve extraordinário bem-estar. Chegou a ser mesmo estimado e respeitado, mas porque era rico e poderoso, e só por isto. Como reflexo, ganhou igualmente autoridade honrarias e louvores. Mas foi pouco amado e, na realidade, foi apenas invejado. Durante a vida, muitos lhe invejaram as riquezas e procuraram arrebatá-las. Na velhice, muitos desejaram seu fim, para apoderar-se dos seus bens e desfrutá-los. Ele morreu sem filhos, rico e só, nem amado nem pranteado, e, mercê do fruto dos seus sacrifícios, outros gozaram. Tal foi a sua vida. Mas ele não tinha possibilidade de escolha, porque era esse o seu tipo biológico, e não podia explicar-se porque era assim. Um segundo se propôs a triunfar em um mais elevado plano da vida, tornando-se rei segundo a lei do amor físico e da conservação da raça, isto é, o vitorioso no mundo biológico da multiplicação da carne. A proteção dos filhos e da família o compeliu ao mesmo trabalho e argúcia do primeiro homem, mas com uma finalidade que transcendia a sua própria pessoa, dado que esta se dilatara a ponto de compreender em si todo o grupo família, do qual ele era o centro. Casou-se por amor, teve muitos filhos, lutou, sacrificou-se por eles, trabalhou de corpo e alma, sem descanso, por essa sua única meta. E nesse campo venceu. Foi por eles amado, mas o seu patrimônio e o seu trabalho não Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS bastaram para tanta gente, e a pobreza dominou em seu lar. Teve grandes afetos mas pouca estima, e nenhuma honraria, porque não era rico e poderoso. Durante a vida não foi muito invejado. Na velhice, ninguém desejava a sua morte, porque nada havia a herdar. Morreu pobre, mas amado e pranteado. Tal foi a sua vida, mas ele não tinha possibilidade de escolha, porque esse era o seu tipo biológico, e não podia explicar-se porque era assim. Um terceiro homem se propôs a triunfar em um plano ainda mais elevado da vida, tornando-se rei não segundo as leis da fome e do amor, mas segundo a lei da evolução, isto é, de conservação e criação dos valores morais que regem a vida. Quis ser o vitorioso no mundo espiritual, do amor fraterno, do bem e da justiça. Tudo sacrificou para isto. Nada mais viu, outra coisa não quis e só disso se ocupou. Não cuidou de bens materiais e não se casou. Lutou, trabalhou de corpo e alma, sem quartel, em prol dessa única meta. E neste campo venceu. Porém ele foi espoliado por todos e empobreceu. Não teve filhos nem afetos e vagou solitário e triste. Não desfrutou de estima ou honrarias, porque era humilde e pobre. Durante a vida foi desprezado, quando muito deplorado. Mas ele lutou pelo bem do próximo e sacrificou-se pela justiça e pela verdade. Por toda a parte, difundiu luz e amor em derredor de si. A gente que em público o desprezava, intimamente o admirava. Por ocasião de sua morte, não deixou mais que as próprias dores, mas acabou amado e pranteado por todos. Foi compreendido e venerado após a morte, e reviveu no amor de uma grande família, a família dos seus filhos espirituais. Tal foi a sua vida. Mas ele não tinha possibilidade de escolha, porque tal era o seu tipo biológico, e não podia explicar-se porque era assim. Esses três homens haviam trabalhado em três níveis diferentes, cada qual segundo uma das três leis biológicas fundamentais, que alicerçam o funcionamento da vida e se exprimem pelos três instintos: 1) a fome; 2) o amor; 3) a evolução. Essas três leis, assim expressas, são os três planos ascensionais do edifício biológico do nosso mundo, onde cada um dos três tipos situa-se segundo sua natureza e com uma correspondente e diferente função. O homem da primeira lei pensa na conservação individual, com o egoísmo. O da segunda lei pensa na conservação coletiva, com a reprodução. Mas nem um nem outro cuida do progresso, de que só se ocupa o homem da terceira lei. Nós os vemos agir desorganicamente, como é o caso do mundo de hoje. São rivais e mantém-se separados. Cada qual possui a sua personalidade, o seu instinto, a sua função, a sua recompensa, cada um agindo por sua própria conta. As atividades ainda não estão coordenadas. Cada um dos três tipos se acredita tudo e é levado a operar com espírito de exclusivismo e domínio, ainda que, à medida que o homem evolui, passe da primeira à segunda e desta à terceira posição, superando assim a posição precedente inferior. Por isso cada um, permanecendo no próprio plano, encontra aí a recompensa que lhe cabe. O separatismo não impede a justiça. No primeiro caso, a recompensa foi medida e restrita ao usufruto pessoal dos bens; no segundo caso, dilata-se mais, polarizando-se na vida dos filhos; no terceiro caso, ampliou-se ainda mais e foi além, alcançando a vida espiritual da coletividade. Porém, quanto menos imediato e restrito for o resultado, tanto mais se expande e dura. Cada um obteve segundo o critério de seu tipo, plano evolutivo de ação e função biológica. As leis da vida são sempre justas, mas, no estado de separatismo que oferece o mundo humano egoísta e involuído, elas não podem funcionar senão isoladamente. Esses três homens morreram e passaram. Depois de vários milênios, retornaram ao mundo, que, entrementes, havia progredido de modo a conduzir a mente humana ao ponto de compreender o evangelho e aplicá-lo seriamente, como prática individual e cooperação social, realizando aquela coordenação fraterna de toda atividade, somente com a qual se pode realizar na Terra um bem-aventurado reino dos céus. Cada um dos três 125 homens voltou ao mundo com as qualidades do seu tipo biológico e, dado que não podia manifestar-se senão como era, tornou a agir como antes, isto é, procedendo de acordo com a natureza da sua função. Porém, encontrando-se em um mundo mais evoluído, agora podiam funcionar organicamente. Então o primeiro homem, utilizando a sua qualidade de trabalhador e a sua capacidade técnica, tornou-se um produtor útil, não apenas para si, mas também para a sociedade. As condições mais conscientes da vida do novo mundo não mais o constringiram a sacrificar tudo para poder alcançar a realização de sua personalidade; o rendimento das suas qualidades no cumprimento de sua função pôde realizar-se plenamente em benefício de si próprio e dos outros. Ele se tornou assim o rei do mundo econômico dos bens e extraiu dele benefício para si e para todos. Foi também estimado e honrado, não porque era rico e poderoso, mas sim porque era capaz de poder formar e conservar a riqueza que possui valor coletivo. Ele pôde assim desfrutar também o amor dos outros, porque a riqueza que antes dedicara a si, agora a dedicou também aos outros. A sua morte não foi esperada para que se apossassem dos bens, que agora já eram de todos. Ele representava um valor útil à sociedade e era verdadeiramente estimado, não pelo que possuía, mas pelo que valia e produzia, por isso morreu amado e pranteado. O segundo homem tornou-se o rei do amor terreno, utilizando o espírito adquirido de sacrifício e de dedicação à família, a sua capacidade de economia, de parcimônia e de trabalho fecundo, não no campo diretivo, mas no executivo. Ele representou a carne honesta e pacífica, que, animada do espírito de bondade ativa, fez frutificar a terra e as fabricas, multiplicando as coisas com a sua atividade abençoada por Deus. Assim, a carne, ávida de multiplicar-se, como quer a vida, não foi constrangida a maldizê-la e a resvalar para o vício e para o mal. Então reproduzir-se e multiplicar-se não constituiu mais um delito ou um perigo, e sim alegria de viver. Mas tudo isto foi possível porque quem possuía a capacidade diretora, organizadora e economicamente genética, não mais monopolizou apenas para si o fruto das próprias qualidades, reservando o seu rendimento em vantagem da coletividade. Então, o amor são e fecundo não se tornou uma couraça ou dissimulação; a família não representou mais um peso insuportável, qual agrupamento de lobos esfaimados, prestes a destruir os vizinhos; a classe operária não mais se arvorou em uma dinamite pronta a explodir em revoluções. Assim também esse tipo de homem pôde, recebendo o que lhe faltava, dar o que possuía. Morreu tranquilo, sabendo que o futuro dos filhos estava assegurado. O terceiro homem, segundo o seu tipo e capacidade, tornouse ainda esta vez, o rei do mundo espiritual, o vencedor segundo a lei da evolução. Atingiu assim, com as suas qualidades, um maior rendimento para o progresso coletivo, podendo manifestálas em um mundo então fraternalmente compreensivo! Quantos atritos, mal-entendidos e dores profundas evitados; quanto auxílio na mais facilitada possibilidade de multiplicar, por meios técnicos e econômicos, a expressão de si mesmo, para que a luz e o conselho, o amor e a bondade chegassem a todas as partes. Quanto tempo e energias ganhos e, por conseguinte, quanto maior rendimento espiritual, ao poder libertar-se do inadequado e ingrato trabalho de ter de se ocupar de bens materiais. A negligência pela riqueza não produziu mais as desastrosas consequências de antes. Ele não foi roubado nem se empobreceu; pelo contrário, não lhe faltou o necessário, que considerou mesmo demasiado, ele que era a negação personificada da avidez. Naturalmente era já tão rico em um nível superior, que não sentiu necessidade, na Terra, de tomar do fruto do trabalho alheio mais que o mínimo indispensável. Quem é do espírito já possui a medida das coisas. Ele não foi desprezado e aviltado, porque negligenciava a posse. O estado de mais elevada consciência do mundo estava finalmente em grau de apreciar um homem pelos 126 ASCENÇÕES HUMANAS valores espirituais, e não mais pelo critério da força ou da riqueza. Desta maneira, ele foi compreendido e estimado. Não aceitou honrarias, que não lhe serviam, mas, com infinita alegria, viveu essa nova atmosfera de simpatia, que afetuosamente o aquecia e lhe enchia a triste solidão de antanho. O desenvolvimento da gratidão, a concreta manifestação da resposta da vida ao seu impulso na forma de confraternização com as suas criaturas espirituais, a confirmação exterior da consciência íntima da própria utilidade coletiva, proveniente de um consenso amplo, não só multiplicaram, para o bem dos outros, os recursos e rendimentos dele, mas também o transformaram num homem satisfeito, feliz de ser um trabalhador do espírito, em plena eficiência, e não mais num peregrino ou mártir, operário da dor. Ele não foi assim obrigado a esperar pela morte, para atingir nos outros a realização de si mesmo e dos seus ideais de bem. O que é que tivera tanto poder para alterar a posição desses três homens? Apenas uma atitude da alma, um fraternal espírito de compreensão e colaboração. Essa é a chave da felicidade que está no reino dos céus. E este espera apenas uma forma de boa vontade dos homens para descer à Terra. No fundo, cada um, segundo o seu tipo biológico, não pede senão para realizar-se a si mesmo. Trata-se de uma sã e fecunda lei biológica. Mas, hoje, essa realização, para poder efetuar-se, deve assumir formas involuídas, violentas e caóticas. Desse modo, a utilidade fornecida pelo rendimento da própria personalidade não pode ser conseguida senão à custa de sacrifícios e danos individuais e coletivos. Assim, portanto, na terra está o inferno, e o reino dos céus está longe. E os homens de boa vontade são raros e esmagados. Bastaria muito pouca coisa para tudo melhorar: ao invés de combateremse, os homens deveriam auxiliar-se reciprocamente! Por esta parábola se vê como estes três tipos biológicos, segundo os quais é possível agrupar os homens, podem, somente com a mudança da sua conduta recíproca, sem modificar sua capacidade e atividade, transformar-se de modo a obter-se um maior rendimento para cada um e para todos. Isto significa criar a alegria e eliminar a dor. A evolução só pode levar-nos à felicidade. E tudo isto está explicado pela presente parábola. XVII. A DESORIENTAÇÃO DE HOJE Continuemos a descer das místicas alturas atingidas atrás, para vagar agora em nosso mundo, observando-lhe as condições atuais. Já dissemos no princípio do Capítulo X, ―Paixão‖, que nos encontramos, aqui, na fase descendente do fenômeno da personalidade oscilante, o que leva o autor a ver as verdades mais materiais da Terra e a focalizar, com respeito a elas, a própria psicologia. Uma das principais características do nosso tempo é a desorientação, qualidade negativa, expressão da atual fase involutiva. Enquanto a palavra de ordem do nosso tempo se mostra nas diretivas conceituais de razão e análise, a da época que se seguirá será de intuição e síntese. Se atentarmos para a palavra dos nossos homens de pensamento, observaremos que, apesar de estar ela carregada de erudição e ciência, sendo complexa e difícil, falta-lhe a orientação da suprema simplicidade da sabedoria e do verdadeiro. É uma complicação crescente, em marcha para o caos babélico, em que, no fim desse século, encerrarse-á, mesmo no cérebro do dirigente, a nossa assim chamada civilização, para que, desta decomposição possa nascer uma nova civilização, baseada em outros princípios, sustentada por outros cérebros, próprios de um tipo biológico diferente. O corpo social desta corrente de pensamento, que já exauriu o seu ciclo e completou a sua tarefa, com a atual civilização, está se desfazendo. Nesta decomposição, prosperam todos os princípios patogênicos que têm função biológica de acelerar a destruição. Em todo campo, hoje, tudo é destruição. Mas é na putrefação do corpo morto que a vida depõe a semente das suas Pietro Ubaldi novas formas. Os grandes criadores, portanto, nascem e operam agora, lançando essa semente. A civilização futura não é muito compreensível aos espíritos de hoje. Pela observação de algumas formas mentais do nosso mundo atual, verificamos que este, se é indiscutivelmente muito forte no campo da desorientação e da destruição, é, por outro lado, fraquíssimo no campo da compreensão. Como é possível dirigir povos, provocar e desencadear guerras, legislar, impor isto ou aquilo, agir em qualquer campo sem ter compreendido o que seja a vida e a morte, a finalidade de cada coisa, o próprio plano do universo? O instinto, que tudo guia, basta para o bruto, mas, ainda que, em grande parte, o homem esteja embrutecido, o problema da vida se tornou atualmente muito complexo para que esses instintos possam bastar. No mundo político, social, econômico, religioso e cultural, movemo-nos em um mar de contradições. Falamos de matéria, espírito, eletricidade, justiça, liberdade, direitos e deveres etc., sem compreender o que exatamente sejam e sem saber colocar cada conceito no seu devido lugar, como parte integrante de um plano que logicamente tudo englobe. Na cultura, somos muito fragmentários e divergentes, perdidos em particularidades e em sutilezas inconcludentes. No campo prático mata-se e rouba-se, agindo-se para o bem ou para o mal sem saber a exata consequência das próprias ações. E não o sabe nem quem faz o bem nem quem pratica o mal. Apenas névoas. Existe a fé, mas a fé não é exata, é vaga. E a razão de muito pouco vale. É imperativo esclarecer e demonstrar tudo, para que o homem possa compreender tudo seriamente. Estranha transformação está sofrendo o materialismo! Escava e escava na matéria e eis que encontra o espírito, que havia negado. E as religiões, que clamam pelo triunfo porque veem na ciência uma confirmação, encontrarão uma alma individualizada, designada com aqueles termos e conceitos que antes lhes pareciam tão adversos e demolidores. Hoje, todos se encontram divididos, sem conhecer a verdade pela qual lutam. Quem realmente luta pela verdade, que é una, simples e única, não pode estar dividido. Quem está dividido está nas seitas, nos partidos, nos agrupamentos e interesses humanos, no próprio egoísmo, mas não na verdade. Quanto ainda estamos longe de a haver compreendido. A unidade está no amor recíproco, filho da compensação que ainda falta. Deus e a vida estão na unidade. No exclusivismo e separatismo está Satanás, isto é, a involução e a morte. O ridículo e o horror da nossa atual situação serão compreendidos pelas gerações futuras. Então se verá a imensa estupidez de matar, porque se concluirá que não se mata uma pessoa destruindo-lhe o corpo. Os chamados mortos permanecem junto a nós, mais vivos do que antes e, segundo foram por nós tratados, assim também nos tratarão. Aqueles que se arvoram em juízes e justiceiros não o são senão por um momento, em que desempenham, para fins que ele mesmos ignoram, uma dada função biológica. Eles serão, por sua vez, de acordo com o que fizeram, julgados e mesmo justiçados. O papel de rico e pobre é instável, e o de vencedor e vencido é, como nos demonstra a história, transitório para os povos. As revoluções quase sempre devoram os próprios autores e filhos. Quem utiliza a espada perecerá pela espada. Trata-se de equilíbrios de forças, equilíbrios que, obedecendo a leis invioláveis, resolvem-se em esquemas que o homem ignora e contra os quais nada pode. Como é efêmero para quem quer que seja, em tal ordem de coisas, proclamar vitória. Os próprios imperialismos, dissimulados sob mascaras diversas, sempre iguais, não constituem senão uma forma de obediência à Lei, que concede a palma ao vencedor apenas para lhe confiar o encargo de, dominando, coordenar, nutrir e permitir a evolução de outras nações menores. E estas, pela mesma Lei, deixam-se dominar, nutrir, guiar e instruir, até se tornarem adultas, para então rebelar-se e se tornarem, como se diz, livres. É o mesmo fenômeno vivido pelos novos rebentos que crescem sobre o velho tronco, nutrindo-se da sua ruína. Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS Sempre o mesmo esquema: dualismo, centro e periferia, núcleo positivo e elétrons negativos que giram em seu derredor, pai e filhos. Crescidos os filhos, os pai nada mais tem a fazer. O mesmo se passa com as nações imperialistas. E todos sempre servos da mesma lei, todos enquadrados no desenvolvimento dos ciclos históricos do tempo. É fatal. Mas, hoje, não estamos numa época de compreensão e sabedoria. As ideias são magras e poucas, frequentemente erradas; há trevas nas mentes e enormes vácuos. Que terríveis provações serão necessárias para se chegar a compreender apenas pouca coisa. Mas é necessário, porque não se pode conquistar a sabedoria com o esforço alheio, mas apenas com a própria dor. Assim progride lentamente o caminho da história. O destino é um desenvolvimento lógico, e, quando se lhe conhecem todos os elementos, visto que o efeito está fatalmente ligado à causa, pode-se prever o futuro para o indivíduo e para os povos. Então a história está toda no presente e o tempo assinala por si só a sucessão de quadros conhecidos; então também o tempo, dimensão que a intuição supera, estagna no pensamento e tudo aparece permanentemente no presente. O problema está em se conhecer todos os elementos componentes do sistema de forças formado pelo eu individual ou pelo eu coletivo do povo. Hoje se age ao acaso, em geral por interesses materiais e imediatos, pouco se cuidando do depois, que se ignora. Ouçamos as últimas palavras de Buda aos seus discípulos: ―Semeia um pensamento e colherás uma ação. ―Semeia uma ação e colherás um hábito. ―Semeia um hábito e colherás um caráter. ―Semeia um caráter e colherás um destino‖. Hoje, sabe-se pouco ou nada da realidade do imponderável, onde se registra tudo quanto pensamos ou fazemos e de onde tudo renasce. Mas hoje domina o involuído, tipo biológico que vive na periferia e não procura o poder senão na matéria, na força e no dinheiro. O evoluído de amanhã viverá mais em demanda do centro e procurará o poder no espírito, no mérito, na convicção das almas. Ele será mais rico, porque estará mais vizinho da fonte da vida, que está no interior, no centro: Deus. Então, a conquista imperialista pela guerra será substituída pela conquista das almas, pelo exemplo, pela iluminação, pela paz. Que imensos continentes inexplorados serão alcançados pela ciência e pela mente de amanhã! É a descoberta da verdade do espírito, e não o utilitarismo de hoje, que cumprirá o encargo de arredar todas as barreiras do medievalismo espiritual que ainda nos asfixiam dentro do exíguo âmbito de suas paredes. O pensamento moderno ainda está encerrado em castelos torreados, que fazem guerra entre si. O futuro forçará as portas e derrubará os muros. A vida está a céu aberto. As arquiteturas lógicas do passado são agora prisões, e não casas. Quando se houver experimentalmente provado aquilo que agora a intuição me diz, isto é, que o espírito é um organismo de forças individualizáveis por onda, frequência e potencial, e que a sua vida se exprime em oscilações dinâmicas ou vibrações de um comprimento de onda que se situa além dos raios ultravioletas, então se poderão construir aparelhos rádioreceptores de tais ondas, que revelarão o pensamento incorpóreo humano e super-humano. Então se poderá fazer mecanicamente tudo aquilo que hoje poucos sensitivos o fazem, sós e incompreendidos. Para se penetrar cientificamente no mundo do espírito, é necessário atingi-lo através da decomposição do sistema dinâmico nas zonas de máxima frequência, assim como, para atingir o mundo da energia, se decompôs o sistema atômico da matéria nas zonas mais evoluídas, mais velhas e mais complexas. No fundo da matéria, além da energia que já encontramos nela, encontraremos o espírito. Isto é lógico e análogo no físio-dínamo-psiquismo trino-monismo do universo. As descobertas já feitas serão, comparadas com as do amanhã, coisas pueris. Eis o imenso futuro. 127 XVIII. O ERRO DE SATANÁS E AS CAUSAS DA DOR Observemos alguns dos grandes erros do nosso tempo, devidos à sua desorientação. Uma das graves consequências do pecado mortal dos nossos tempos – o orgulho – é a incompreensão do problema da dor, do seu porquê e dos seus fins. Em nossa Terra, hoje, uma parte tende a infligi-la a uma outra parte, que vive sob a angústia dela. Assim os piores, os involuídos, mais ferozes, não se cansam de organizar aquilo que pode fazer sofrer tantos outros, que formam a outra parte da humanidade e, ainda quando não cheguem a sofrer, vivem sob a psicose do terror de vir a sofrer. Acreditou-se que tudo isto poderia ser justificado por meio da teoria da seleção do mais forte. Mas esta é a força do bruto, que se sobrepõe a todos pelo próprio egoísmo. Não se pode compreender que proveito de um tal forte possa tirar a vida, em virtude da base social já atingida no nosso planeta! Respondamos a pergunta: como é possível existir uma semelhante condenação de dor em um mundo regido por uma lei divina, que é perfeita, boa e justa? Certamente, nada poderemos compreender se não houvermos concluído por aquilo que todos os fenômenos revelam, isto é, que uma lei regula tudo. Se não estabelecermos uma conexão do nosso estado presente com a série de fatos precedentes que se ocultam em nosso passado e se, antes, não decifrarmos o enigma do nosso destino individual e coletivo, não poderemos decifrar o enigma da nossa dor. O princípio de seleção do mais forte abandona o vencido à dor, sem nada explicar das causas e finalidades do seu sofrimento. Mas, para quem compreendeu, não é possível acreditar que isto não possua uma razão e um objetivo. Nasce assim a dúvida de que, em um regime de ordem, como é indubitavelmente o universo, o fraco esmagado, o vencido na luta pela vida, não seja na realidade um inferior derrotado para ser eliminado, porque, efetivamente, é um indivíduo que paga o seu débito à justiça divina, enquanto que o vencedor vence apenas momentaneamente, visto que, se não fizer bom uso da sua passageira posição, pode suceder-lhe que venha por isso a endividar-se, tendo de pagar caro amanhã uma vitória de que abusou. Que seleção dos mais fortes, qual nada! Vê-se por aí a que aberração pode conduzir a concepção materialista hodierna que regula o mundo. Na realidade, as coisas se passam muito diversamente. Aqui, devemos relembrar alguns conceitos já expostos. Comecemos por Deus. Se bem que seja impossível definir o infinito e, na sua essência, Ele permaneça para nós um superconcebível, a sua lei, que O exprime e que nós vemos funcionar a cada passo em todos os fenômenos, diz-nos claro que Ele é ordem, justiça, bondade, amor. Mercê da inteligência diretriz e vontade construtiva dessa lei, em que se manifesta a presença de Deus em todas as coisas, nós e tudo o mais nos encontramos imersos em uma atmosfera continuamente saneadora e criadora. Na verdade, queiramos ou não, Deus está realmente presente em toda parte, a todo o instante. Esta é a potência interior que rege a vida e as coisas, e, se ela cessasse, tudo desapareceria subitamente. Todos podem dizer: ―ela está presente no meu organismo, pois regula seu desenvolvimento e suas funções, que não são, por certo, produtos do meu querer e da minha consciência. Está presente no desenrolar do meu destino, cujos acontecimentos coordena para um fim, ainda que eu o ignore em particular‖. Ela está presente no encadeamento da história, cujos eventos guia para contínuas superações, fazendo o homem progredir segundo a lei da evolução; está presente no ritmo que caracteriza e define todos os fenômenos, do mundo físico ao mundo moral, fazendo do universo uma sinfonia. Deus está presente como disciplina de cada instante no movimento universal, disciplina da qual nasce a bandeira que, no campo do espírito, significa felicidade. Quando tivermos compreendido isto, deveremos compreender que Deus está sempre tão presente e operante em nós, que, 128 ASCENÇÕES HUMANAS de modo nenhum, podemos nos separar d'Ele. Dado que Ele é amor, só Ele representa para nós a felicidade, cuja via está, pois, escrita na divina lei e cuja consecução só é possível seguindo esta, isto é, fazendo nós o que entendemos por vontade de Deus. É difícil fazer com que o homem comum, subjugado pela ilusão dos sentidos, compreenda que a felicidade, ao invés de se encontrar na satisfação destes, consiste na adesão à vontade divina. É necessário que ele comece a observar e compreender a lei de Deus. Nós carregamos conosco o germe e o instinto da felicidade, que é também um nosso direito absoluto. Por que, pois, estamos tão longe de atingi-la? Será talvez, como poderia dizer o cético, devido a um refinamento tantálico de crueldade por parte da chamada bondade divina? Não! É por um refinamento do amor de Deus para com as suas criaturas. O universo está baseado em dois princípios: amor e liberdade. Tudo o que existe, inclusive nós mesmos, mantêm-se a todo o instante porque o Deus transcendente dos céus está presente e ativo, isto é, imanente em toda a sua plenitude. Ele, pois, se encontra também aqui na Terra a lutar e a sofrer conosco. O amor, que tudo gerou, tudo sustém e regenera a cada momento. Mas Deus não nos ama apenas, porquanto Ele nos quer livres, e nos quer livres como Ele, isto é, feitos à sua imagem e semelhança, elevados à dignidade de seres que possuem uma consciência para saber o que fazem e poderem escolher livremente a via que preferem, entre o bem e o mal. Observemos esses dois princípios. Do princípio de amor deriva o de dualidade, pelo qual toda individuação da existência é dada por duas metades inversas e complementares, que se atraem e se completam, e não se satisfazem enquanto não se fundirem na unidade. Em todo plano, desde o mais material até o mais espiritual, encontramos sempre esse mesmo princípio, que, em essência, é o amor. Isto se verifica desde o mínimo particular até ao máximo: Deus e Criação, tudo segundo o esquema dualista. Deus e a Criação, em todas as suas infinitas formas, os dois termos contrários e complementares, o perfeito e o imperfeito, o absoluto e o relativo, o centro e a periferia, atraem-se e tendem irresistivelmente a unir-se, e não se satisfarão enquanto não se fundirem na unidade. Deus e criatura são, por conseguinte, feitos para amar-se. E a criatura, pela mesma lógica do sistema, não pode encontrar felicidade senão em Deus. Explicar isto ao homem atual, filho dos sentidos, fazê-lo compreender que a felicidade deve consistir em amar um superconcebível ou, pelo menos, a tremenda abstração que é Deus, é empresa difícil. Isto deriva do exagero do conceito do Deus transcendente, o que conduz ao erro contrário de ter então que humanizá-Lo, reduzindo-O a uma reprodução antropomórfica, que a bondade divina nos perdoará. Deus é também imanente em todas as suas criaturas. Podemos assim nelas, que são a Sua manifestação, sempre encontrá-Lo e amá-Lo. Nelas, podemos verificar como Deus pensa e age, como dirige e faz mover o funcionamento orgânico do universo. A lei pela qual Deus se exprime não é um segredo e, mesmo na Terra, é sensível. A própria ciência esbarra com ela a cada instante e a perscruta cada vez mais, procurando aprofundar o seu conhecimento. Toda descoberta científica só é absoluta para o homem, porquanto é uma lei eterna, já feita por Deus. Não nos faltam, pois, maneiras de encontrar Deus também na Terra. E, para a nossa felicidade, O encontraremos sobretudo no mundo moral, derivando deste aspecto da Lei todos os sábios preceitos. Nas relações sociais, ela diz: amor, ou seja: ―ama o próximo como a ti mesmo‖. Eis a chave da felicidade. Eis o meio prático para se fundir em Deus, atingindo-O através das Suas criaturas. Eis como se realizam, até às suas últimas consequências práticas, em nosso mundo, o princípio do amor. Observemos agora o princípio da liberdade. Ele é princípio absoluto, inviolável, precioso dom, porém constitui arma de dois gumes, que, se mal aplicada, pode resolver-se em grande Pietro Ubaldi dor. Aqui, o problema do amor se complica com o da liberdade, pois que, sendo o homem livre, pode refutar o amor e escolher o ódio, preterir o bem e preferir o mal, ainda que, desta maneira, recuse com Deus a felicidade e aceite a dor com Satanás. A liberdade é, pois, um dom perigoso, porém necessário para que o homem não seja um autômato, mas sim um ser que busca espontaneamente Deus, como requer o amor, que não pode e não deve ser forçado; um ser que conquista, livremente experimentando, essa consciência de si mesmo e a sabedoria da vida que Deus pôs na Lei, que o homem obedece vivendo. Deus, pois, deixa ao homem a liberdade de amá-Lo ou repudiá-Lo. Não o constringe. Ele quer ser amado espontânea e livremente, não por coação, mas por compreensão. Quer que o reconheçamos como Ele é – Pai bom e previdente. Como proceder então, nessas condições, para persuadir de tudo isto um ser que é livre e quis escolher as vias do mal? A intervenção de Deus onipresente é indireta. Ele então se afasta do pecador, não se vinga ou pune, como se costuma dizer, porque tais conceitos são absurdos em Deus, mas apenas se nega. Na verdade, não é exatamente Deus que se nega, porque Ele continua a proteger e assistir ao rebelde, mas é este que, em si mesmo, negou a Deus. Ora, Deus é a fonte da vida, e quem O nega, de qualquer forma, nega a si mesmo, expelindo-se da vida real e permanecendo então abandonado a si mesmo, fora da Lei. A Lei não pode manter em suas fileiras ordenadas um núcleo de desordem, um semelhante bubão pestífero, e o isola, como igualmente faz no plano orgânico para qualquer foco de infecção. O rebelde mantém-se então sob o jugo da lei que o seu eu, que se substituiu a Deus, pretendeu criar para si e, portanto, permanece na miséria da sua ignorância. A consequência é desarmonia e, por conseguinte, dor. Se Deus não estivesse sempre pronto a operar indiretamente a salvação do pecador, esse seria o caminho da sua destruição. Essa revolta do homem livre e a sua consequente queda na dor não é um sonho, mas uma realidade. Nisto se baseia a vida humana e o destino do homem. Este destino nos é narrado, desde a pré-história, pelo mito da queda dos anjos capitaneados por Lúcifer; pela narração bíblica de Adão, que, tendo comido o fruto proibido da árvore do bem e do mal, foi expulso com dor do paraíso terrestre; depois, pelas vicissitudes do filho pródigo que, reduzido à situação de saciar a fome com bolotas para porcos, volta arrependido, sendo perdoado pelo pai, e assim por diante. Nos tempos modernos, esse destino de revolta e de dor é uma realidade tangível que o mundo deve viver. O motivo do passado e do presente é sempre o mesmo: o ser é livre, mas, quando se rebela e abusa da sua liberdade, surge então a necessidade da dor. Porém não de uma dor pura e simples, uma ideia estéril em si mesma, mas sim uma dor que não possui e não pode possuir outro sentido senão o de instrumento de redenção, isto é, de uma dor que nos reconduza a Deus e à nossa felicidade. Eis a dor que não é vingança ou punição, nem apenas injustiça indiferente, mas sim ato de amor de um Deus cioso do nosso bem, ansioso para que nós, por contínuas superações, nos decidamos evoluir, para nos tornarmos assim aptos à união com Ele, em seu amor, como é o Seu ardente desejo. Eis que surge assim a ideia central da história do mundo: a redenção. Eis como a dor se santifica e se sublima como força criadora que nos conduz a Deus. Eis o significado da paixão de Cristo. Estamos, assim, bem distantes e bem mais acima do conceito terreno da dor, que marca o insucesso do ser vencido na luta pela vida. Assim sendo, ainda quando a dor nos fere, Deus continua sempre bom. Nada devemos jamais temer da parte d'Ele. Mesmo no erro, ele está perto de nós e nos auxilia a conquistar a nossa felicidade, ainda quando a nossa insensibilidade e ignorância clamam pelo azorrague. Tal método foi querido por nós e, mal nos elevemos um pouco mais, desaparece, porque então ele deixa de ser necessário. Mas, dado o nível em que vivemos, Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS ele prova sempre o amor de Deus, ainda que assumindo essa forma severa, contudo necessária. Ele prova o desejo de Deus de nos atrair para nos unirmos a Ele, de nos fazer felizes em uma felicidade que não pode estar senão nele. Na dor que redime, na dor onde se compreendeu sua grande função, sente-se o amor de Deus, que a mitiga e a adulçora, até torná-la o alimento do santo; sente-se que Deus envolve a alma na Sua ação salvadora, confortando a dor com o amor. Sente-se então, ainda que sofrendo, que Ele bate às portas da alma para poder entrar, trazendo vida e alegria; sente-se que Ele não pune, mas que faz pressão para nos erguer até Ele, onde, e só onde, poderemos ser felizes. Esta dor, que, na primeira fase mosaica, foi definida como vingança e punição, revela-se em nossa fase, mais evoluída, como um ato de amor, um dom providencial de Deus, que Ele nos envia somente para nos fazer compreender o erro cometido e que, tão logo tenha completado a sua função educadora, não tem mais razão de existir. Desta maneira, o homem experimenta a vida e constrói, através dos seus ensaios e consequências, a própria consciência, aprendendo que é necessário saber agir com justiça e disciplina, como está escrito na Lei. Quando tivermos compreendido isto, estaremos reunidos a Deus e seremos felizes. Então a dor, sem causa que lhe dê nascimento, não terá mais motivo de existir. A vitória sobre a dor não se obtém, pois, atirando-a com ódio sobre o próximo, infligindo mal a outrem, mas rebatendo as suas causas com causas contrárias, isto é, irradiando bem e amor. Na Terra, inversamente, acumulam-se as reações maléficas, que se fortificam por meio de um vesgo senso de justiça, pretendendo santificar a vingança. Desta maneira fez-se a vida depender apenas da força e do predomínio, quer moral quer econômico. Assim, acreditamos nos libertar da dor, mas, ao invés, constatamos que ela aumenta. As culpas, então, aumentam, e a Terra, tornada lugar de pena, transforma-se no reino do mal. Então impreca-se contra Deus, culpando-O. Mas a causa está no homem e é a fatal consequência do seu espírito de revolta e de sua ação tresloucada. A dor é naturalmente a providência de Deus e constitui a única via de redenção e salvação. Esta tão vasta dor humana deve ecoar bem longe dos restritos confins terrestres, chegando até criaturas colocadas muito acima de nós, mais aprimoradas, que, por amor, vêm juntar-se a nós, auxiliando-nos, por todas as formas, em nosso esforço de redenção. Por intermédio delas, parece que o próprio Deus padece da nossa dor e, com isto, queira unir-se a nós, numa comunhão fraternal de amor. Por certo, Ele está presente em qualquer estado do ser, tanto na alegria como no pesar. A paixão do Cristo e a cotidiana repetição do seu sacrifício no rito eclesiástico não nos dizem exatamente isto? Porque, em verdade, no grande vínculo do amor, nós estamos n'Ele e Ele está em nós. A grande lei da vida é o amor. Em toda manifestação, jamais devemos seguir o caminho do egoísmo, que divide, mas o do amor, que unifica. Só este último nos conduz a Deus e à alegria. Não devemos resistir a Deus, à Sua potência onipresente; não devemos rebelar-nos com o orgulho, mas tornar nossa a Sua vontade. Não é possível fugir de Deus. Ele é a atmosfera que todo o universo respira e de que tudo se nutre e vive. De Deus não se foge, e a Deus não se pode destruir. Estar com Deus significa participar da Sua potência. Estar contra Deus significa estar perdido em um deserto de trevas. Sem Deus, nem mesmo o pecador pode viver, e, se ele continua vivendo, isto significa que Deus ainda opera nele. O remorso e a dor exprimem a necessidade de reencontrá-Lo. A revolta à Lei, obstáculo à atuação Dele, gera um pequeno atrito na contínua obra criadora de Deus. A Lei não muda, mas algo no universo deve sofrer. Esta rebelião origina uma convulsão em alguma parte. O plano da Lei é tornar o homem livre e consciente colaborador da divina obra da perene criação, um operário, um ministro de Deus. Como podemos maldizer uma dor que nos permite voltar 129 a ser elementos desta ordem, que nos reconduz à harmonia com a Lei, para participar da grande obra de Deus? Como temer uma dor que nos constringe permanentemente a subir? A nossa insatisfação frente a qualquer conquista humana exprime essa necessidade de ascensão. O plano da vida é nos conduzir para as grandes unidades. É necessário, pois, que o egocentrismo humano se dilate no altruísmo. Está no instinto do nosso tempo a alegria da superação mecânica dos limites de esforço e tempo, superamento das ilusões da nossa atual fase de vida. Com esse superamento, tudo tende a uma unificação maior. A vida social avia-se hoje, mais do que nunca, a funcionar por grandes unidades. Devemos procurar, em todo campo do pensamento e da atividade humana, tudo o que unifica, evitando tudo o que divide; insistir sobre os pontos que possam favorecer a coligação, fugindo de todos aqueles que podem determinar cisão. As vias de Deus são as que tendem à unificação. O progresso se realiza percorrendo-as. Tudo o que nos divide e nos isola, qualquer forma de separatismo, ainda que procedamos em nome de Deus e da