Sinthoma e Escritura
Eduardo Alfonso Vidal
"É certo que no estado atual de coisas, vocês são todos e todas
e cada um tão inconsistentes quanto seus pais, mas é
justamente pelo fato de estarem tão inteiramente suspensos a
eles que vocês estão no presente estado."
J. Lacan-R. S. I.
Ao sintoma se lhe supõe querer dizer alguma coisa. Essa suposição, quando
feita pelo analisante, pode ser o inicio lógico de uma cura. O analista é suposto saber ler o que o sintoma quer dizer, suposição indicativa de que o sintoma é, antes
de mais nada, uma escritura. Freud procede a comparar o sintoma ao monumento, uma inscrição traduzida no equívoco d'alingua. Assim, Charing Cross se eqüivale ao sintoma como marca da perda e se transmite como a cifra da última parada do cortejo da Cherie reine (Charing)sem que os londrinos sequer suspeitem o
enigma que ele perpetua. O neurótico é como o londrino apressado que nada
sabe desse lugar marcado da cidade pelo qual passa tantas vezes. O sintoma é
um ciframento dessa ordem que não espera a revelação de uma significação. O
analisante pode querer ver-se livre do sintoma. Freud orienta no sentido de que
na análise, mais do que esperar a sua remoção, o paciente aprenda a identificar
no seu sintoma a importância e a estrutura. É uma formação (Symptombildung)
que compromete o sujeito na sua divisão e compreende tanto as instâncias que o
determinam como o efeito, isto é, o sintoma mesmo. O discurso analítico dá o estatuto ao sintoma: o que de mais Real o sujeito sofre. Dele provem a dimensão do
sentido. A análise aponta ao analisante o sentido de seu sintoma. O sentido tange o sexual que está no cerne do acontecimento traumático sofrido pelo sujeito.
Freud procede a analisar o cerimonial obsessivo, tão sem-sentido para quem o padece e, porém, tão preso na trama do sentido que desconhece. Freud avança na
direção de estabelecer o sentido sexual da estrutura. O que é do sexo não se inscreve como relação o que não é equivalente a que não haja relação ao sexo. O sintoma responde a pontos de impasse da não-relação como o revelam os atos obsessivos de duas pacientes: uma, no lugar da mancha de tinta vermelha que denuncia a impotência do marido, a outra, no losango geométrico de duas almofadas, tentando separar a relação sexual dos pais. Da insistência de certos sintomas
poderia determinar-se um tipo? O dito sintoma típico revela sua produção na estrutura, que é de linguagem, mas não há modo de estabelecer um mesmo senti116
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do. O sentido é o que difere .Operar no sentido exige do analista não saber nem
imaginar algo já preestabelecido. O sentido do sintoma aponta para o particular
da experiência de cada sujeito. "O sentido de um sintoma reside, como nós o provamos, na relação com a experiência (Erleben) do doente."1
Chegar a um ponto de sentido implica em que se faça buraco; enquanto algo
é da ordem da Urverdrãngung no Simbólico, algo foge ao sentido, nunca terá
sentido. Decifrar o texto de sintoma não dissipa o enigma . O discurso em que o
sintoma se extende toma seu sentido do que foge. A distinção estabelecida por
Frege entre Sinn et Bedeutung é essencial na operação do analista. O que Frege
considera sentido é algo diferente da idéia de representação ou imagem que o
sujeito se faz de um objeto. O sentido é objetivo. Um nome tem sentido (Sinn): é
o modo como um objeto se apresenta através da palavra. A referência - também
traduzida por significação - (Bedeutung) do conceito é aquilo ao que o nome se
refere: o objeto. Portanto, o sentido não indica nenhuma subjetividade. Freud determinou que o sentido aponta à coisa sexual inconsciente. Transcrevemos
Freud:
A possibilidade de atribuir, por meio da interpretação analítica, um sentido aos
sintomas neuróticos, constitui uma prova irrefutável da existência — ou, se vocês quiserem, da necessidade de aceitação- de processos psíquicos inconscientes."... "Não somente que o sentido dos sintomas, via de regra, é inconsciente;
mas que existe também entre o que é inconsciente e a possibilidade de existência dos sintomas uma relação de substituição(Vertrefung).2
Proceder na dimensão do sentido não é "matar a charada" mas produzi-la.
Prefigura-se no texto freudiano a dimensão da ex-sistência a partir da qual o
sintoma persiste e se propaga. É dela que o discurso analítico se sustenta e, na
medida que o Real não possa ser inteiramente suprimido, isto é, que o sintoma insista, há chance de que não caia no esquecimento, como é o destino da verdade.
Freud se interroga sobre os princípios em que se baseia a efetividade clínica
da psicanálise. A remoção de certos sintomas que uma análise produz não deve
confundir-se com o término dela.
"Certos processos psíquicos que poderiam ter se desenvolvido normalmente
até chegar à consciência tiveram interrompido ou perturbado seu curso por
uma causa qualquer, e, obrigados a permanecer inconscientes, deram origem
ao sintoma."3
Adverte logo contra a crença ilusória na facilidade do trabalho analítico:
...Saber(W/ssen) e saber não é o mesmo; há modos diferentes de saber que
não são do mesmo valor psicológico. IIy a fagots et fagots, disse, uma vez, alguém em Molière. O saber do médico não é o mesmo do doente e não pode
produzir os mesmos efeitos. Quando o médico comunica ao doente seu saber
não há resultado. Não, isso é incorreto e deve dizer-se. Ele não obtém o resultado de suspender os sintomas mas um outro, o de dar inicio à análise cujos pri-
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meiros sinais são freqüentemente as manifestações de contradição. O doente
sabe, então, algo que até o momento não sabia, o sentido de seus sintomas, e
sabe-lo é tão pouco quanto antes. Constatamos, portanto, que há mais de um
modo de ignorância. Há de se alcançar uma certa profundidade de nosso conhecimento psicológico para que se nos mostre em que consistem as diferenças. Mas nossa proposição de que os sintomas desaparecem com o saber acerca de seu sentido, permanece, pois, correta. Acontece que o saber deve basear-se na transformação interna do doente, transformação que só pode ser
causada através de um trabalho psíquico com alvo determinado. Nos encontramos aqui ante o problema a que logo se resume para nos à dinâmica da formação do sintoma.
O saber sobre o sintoma não pode ser confundido com seu sentido. A comunicão de um saber não é só ineficaz, é incorreta. Porem esse erro pode precipitar
a entrada em análise ao reconhecer-se que há um sentido do sintoma, embora
esse sentido se ignore. Ainda, em outro tempo lógico, saber o sentido não implica na redução do sintoma: é preciso um trabalho de transformação subjetiva .
Pois, o sentido do sintoma é implicado na própria dinâmica de sua formação.
A formação de sintoma remete ao ponto primordial que é a implicação do organismo na estrutura da linguagem. O sintoma é o efeito do fato que o corpo
fala. O sentido se diferencia do significado e da significação. O sentido não é
alheio ao modo de ciframento do sintoma, isto é, sua formação. O corpo é marcado em relação aos significantes inconscientes. Freud discutia nos seus primeiros textos a delimitação da zona histerogêna — que antecipava a erógena, como
a parte do corpo que se goza — como borda feita pela linguagem sobre o corpo,
diferindo do saber da anatomia: é o braço, entre a manga e a luva. O sintoma
provém da intrusão do significante inconsciente, enquanto registrado simbólico,
no campo do Real. Trata-se do significante sem-sentido que intervém na economia do gozo. O sintoma testemunha que algo não anda bem para o sujeito. Isso
que sofre, padece, lastima é indicação de um gozo obscuro cuja determinação
está em outro lugar, produzido pela psicanálise como discurso: o inconsciente. O
sintoma mostra que nesse lugar há um gozo — os significantes copulam — e que
cada um goza do inconsciente a sua maneira. Radica aí a efetividade, a de escrever com as palavras, graças aos equívocos que cada língua permite, uma alíngua
específica, uma formação que compromete o corpo e a satisfação.
O sintoma foi introduzido como substituição de uma satisfação malograda.
A substituição se situa na retórica da metáfora com o efeito de sentido que dela
resulta. O ensino de Lacan, tende a delimitar o sentido entre Simbólico e Imaginário, em relação à ex-sistência do Real. O sentido do sintoma toca o Real e Lacan se
pergunta se haveria algo do Real no inconsciente. A utilização do nó borromeo
pretende fazer operar o analista com o limite da metáfora. O nó, dirá Lacan, não
é modelo nem suposição. É uma proposição que se mostra no lugar em que algo
do Real não pára de procurar sua inscrição na linguagem. O nó borromeo é, nesse sentido, Real. Com ele a ex-sistência pode ser figurada, mas não metaforizada.
A ex-sistência se ordena do esvaziamento de gozo a ser localizado no ponto de
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cunhagem (coinçage). 0 nó de três é o mínimo necessário para que a experiência
analítica se sustente a partir do Real. Três é R, letra com que escreve o Real, na
orientação R. S. I.
O Simbólico se reduz à função de buraco, sem o qual não há enodamento
que se faça. O inconsciente, no seu limite, é o ponto irredutível do Urverdrãngt,
do recalcado originário. O inconsciente é situável no intervalo pulsátil, numa hiância que se abre para fechar-se logo depois. Sua localização no nó borromeo é entre a consistência da corda que fecha o buraco do Simbólico e a borda produzida
pela reta ao infinito. Diz Lacan: "A corda é o fundamento do acordo. E, para fazer
um salto, direi que a corda se torna, assim, o sintoma daquilo em que o Simbólico
consiste."5
O inconsciente se figura entre a consistência e a ex-sistência do Simbólico,
onde pulsa a insistência do Um próprio da linguagem.
Não há substância atribuível ao significante. Há, no entanto, um gozo suposto entre significantes, na tensão de aspiração do recalque originário. Do insondável, do irrecuperável no gozo d'alíngua, o significante se faz letra. O inconsciente
consiste em significantes passíveis de se escreverem, um por um, em letra. O sintoma, na prática analítica, é determinado pelo inconsciente enquanto instância
da letra. Sua função é de suporte da borda pulsátil por via de escritura. O sintoma
é escritura; ele efetiva a repetição da letra no inconsciente, que não cessa de escrever... o impossível da relação sexual. Ele responde de modo selvagem, diz Lacan, aos pontos de suspensão no discurso do que do Real é impossível de se escrever. Isso, ele o escreve rateando, errando de conta, de zona, mas escrevendo,
pois, é necessário que se escreva. O sintoma determina o sentido da clínica na
medida em que eleja escreve desde sempre, antes de concluir, empurrado pelo
Real traumático, a que, cegamente, responde. Selvagem resposta ao gozo não
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fechadas constituindo rodelas, não fazem nó. Não há relação entre dois. Que isso
se mantenha unido depende de uma terceira consistência, a do Imaginário, que
faz manter juntos Simbólico e Real. Três já é uma solução a inexistência de relação de dois.
A relação sexual é da ordem do impossível e o falo ali é contingência, que reduz o que é do sexual no ser falante ao regime do encontro. Três é o enodamento
borromeano; eleja é uma solução que opera como "suplência" à relação de dois
que não há. Nesse sentido, Lacan podia dizer que seu nó de três portava de modo
implícito a função do Pai, que Freud explicitava com uma quarta consistência.
A consistência é o que permite fazer o nó. A consistência está em correspondência com o Imaginário que registra os efeitos da imagem na constituição de
um corpo para o ser falante. Pois "a consistência é para o fala-ser, para o ser-falante o que se fabrica e se inventa. Na ocasião é o nó enquanto foi trançado."9 O
próprio enodamento, essa invenção devida à consistência, supre o que ex-siste
no Real. A consistência ata em três, com o nó de três, o que, por estrutura, é forcluído.
No seminário "Le sinthome", Lacan persegue a função de um novo Imaginário, que instaure o sentido. Esse sentido está fora do Real, é excluído dele.
A orientação do Real, no meu temário, forclui o sentido. Digo isto porque me
perguntaram ontem se haveria outras fordusões diferentes daquela que resulta da forclusão do Nome do Pai. É certo que a fordusão tem algo de mais radical já que a forclusão do Nome do Pai é, afinal de contas, algo leve."10
São varias as questões suscitadas por este texto. A forclusão é mais radical e
atinge o sentido. Não se trataria de uma generalização da forclusão mas do ternário, do nodal, como resposta à forclusão. O Nome do Pai é um modo de suprir
à falha do Outro. Sua forclusão acarreta a psicose como efeito. Há outras soluções que a estrutura produz para fazer frente a essa radical forclusão introduzida
por Lacan. Que outros modos de falhas e enodamentos são produzidos na função de responder ao gozo do Outro, localizado entre Imaginário e Real?
O termo "sinthoma" é introduzido com uma grafia que se impõe a partir da
elaboração topológica da função da suplência. Com Joyce, Lacan formaliza o
"sinthoma" na sua função de corrigir, de fazer a reparação da estrutura no mesmo lugar onde se produz o erro do nó. A operação de Joyce consiste em fazer de
sua escritura um "sinthoma",—até o ponto de torná-la ilegível—identificando-se,
como o artífice, a ele. O nó Joyce — o ego com função de produzir uma prótese
para o Imaginário deficitário—ilustra que algo se escreve e não se dá a ler. um sintoma cujo cerne é inanalizável, um artifício indispensável na sustentação do sujeito no campo do Outro. Que ensinamento extrai a psicanálise da escritura de Joyce?
O sinthoma está ali onde não há equivalência sexual, como o demostra a posição dá mulher como sinthoma do homem que difere do que um homem pode
significar para uma mulher: algo pior, da ordem de uma devastação. Ele faz ex-
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sistir a relação, pois é no sinthoma que se sustenta o Outro sexo. Dessa radicalidade do sinthoma talvez não haja cura. O ato analítico confronta com essa verdade
incurável. Lacan indica aí um termino lógico para uma análise. O sinthoma está ali
separado do saber inconsciente e não procura no analista um complemento. Do
sinthoma haveria conhecimento: aquilo que cada um conhece melhor, sem que o
ser falante possa muito bem dizer o que do Outro sexo se conhece. Logo depois
Lacan dirá que conhecer seu sintoma é a forma de saber fazer com, de saber manipulá-lo. Não é um saber mas um ato que tem alguma ressonância com o modo
com que cada um se vira com a sua imagem, na medida que ela faz o corpo, habituando-se a suportar a estranheza própria à irrupção do Real. O final da análise é
saber fazer aí com o sintoma, precisamente aí onde a relação sexual não se inscreve e a imagem só de maneira precária, porem consistente, mascara a função
dos orifícios do corpo. Seria, então, essa a maneira de utilizar o sintoma logicamente, isto é, na ética que decorre do discurso analítico que, rejeitando a posição
cínica, possibilite atingir seu Real. Sinthoma é o resto da análise daquele que se
deparou com a inexistência do Outro, o signif icante de sua falta, S (A), e fez disso
nó irredutível.
A questão de se a psicanálise é um sintoma social pode então ser deslocada:
é do analista identificar-se ao sintoma como resposta do Real. Em que se sustenta
essa identificação? No rateio de gozo do ser falante escrito pela letra, não encontraria ela seu suporte? A letra é promovida a partir do discurso analítico a referente que muda o estatuto do sujeito. "Que se apoie sobre um céu estrelado e não
somente sobre o traço unário para sua identificação fundamental..."11 Não se
trataria, então, da letra no sentido de Joyce-a letter, a litter — essa fixão de gozo
que não se lê nem se dá a ler mas busca escrever um litoral?
Talvez, por esse pedaço de Real a psicanálise, mesmo intransmissível, continue a transmitir-se e aspire a não se tornar apenas uma verdade esquecida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S., "Der Sinn der Symptome" (O Sentido dos Sintomas) in Vorlesungen
zur Einführung in die Psychoanalyse, G. W. Vol. XI, S. Fischer Verlag. p. 278.
2.
"Die Fixierung an des Traume, das Unbewuste" (A Fixação ao Trauma,
o Inconsciente) in Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, op. cit., p.
288.
3. Ibidem,
4. Ibidem, p. 290-291.
5. LACAN,)., 'Le Séminaire R. S. /.* in Ornicar?, lição de 21/01/75. Bulletin périodique du Champ Freudien.
6. Ibidem, lição de 11/02/75.
7. Ibidem, lição de 21/01/75.
8. Lacan, J. R.S.I., versão inédita, lição de 11/02/75.
9. Ibidem.
10. LACAN, ]., "Le Séminaire Le Sinthome" in Ornicar?, lição de 16/03/76, op. cit.
11.
"Lituraterre" in Ornicar? n. 41, Paris, Navarin.
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BIBLIOGRAFIA
LACAN, J., "Le Symptôme in Conférences et Entretiens dans les Universités NordAméricaines", in Scilicet. 6/7, Paris, Seuil.
"Conférence de Génève sur le Symptôme", in Le Bloc-Notes de Ia Psychanalyse-5, Génève.
"La Troisième", in Petits Écrits et Conférences.
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