Latusa digital – N° 12 – ano 2 – março de 2005
Sinthoma e fantasia fundamental
Stella Jimenez*
A palavra sinthoma aparece na obra de Lacan relacionada às psicoses, quando
ele toma James Joyce como seu exemplo princeps. No entanto a situação se
complica quando tomamos as neuroses. E, se queremos articular sinthoma
com fantasia fundamental, temos que nos apoiar em casos de neuroses.
Partirei de quatro questões:
1. Qual é a diferença, se ela existir, entre sintoma e sinthoma?
2. Quando se fala do final de análise como identificação ao sinthoma se está
falando de identificação com algo que se percebe ter sido, ou com algo que se
é? É válido falar do final de análise como identificação ao sinthoma?
3. Como devemos nos posicionar em relação ao sinthoma: como algo que deve
ser preservado na direção do tratamento, ou como algo do qual temos que
liberar o sujeito?
4. Em sua primeira aula do curso “Peças soltas”1, Jacques-Alain Miller diz que,
na análise, temos que construir uma função para o sinthoma. Podemos nos
perguntar: essa função tem que ser construída na análise ou ela já estava, por
assim dizer, em função?
*
Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação
Mundial de Psicanálise (AMP).
1
MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana III. 6 (2004-2005), “Pièces detachées”, aula 1,
17 de novembro de 2004. Inédito.
1
Tentarei aprofundar cada uma dessas questões, que são intimamente
relacionadas entre si.
Primeira questão
A partir de minha leitura do Seminário 23: O sinthoma, eu havia concluído,
fazendo um paralelo com a psicose, que sintoma é aquilo de que o sujeito se
queixa, e sinthoma, aquilo que estrutura a vida psíquica, o que amarra os três
registros. Ou seja, o sintoma é curável; o sinthoma não. Concluí que o
sinthoma é um equivalente do Nome-do-Pai, já que, a partir do Seminário 23,
o Nome-do-Pai passa a ser degradado à indignidade de um sinthoma. Que, à
diferença da psicose, na neurose o Nome-do-Pai e/ou sinthoma está presente,
senão desde o início, pelo menos a partir da resolução do Édipo ou, no mais
tardar, a partir do início da puberdade. E que o sinthoma tem íntima relação
com a fantasia fundamental, ou seja, com a maneira singular e pulsional de
cada um fazer existir a relação sexual. Isso é: ele teria íntima relação tanto
com o Édipo quanto com o além do Édipo, por sua relação com a fantasia
fundamental. Que o sinthoma está presente nos sintomas dos neuróticos, mas
de maneira pouco clara, tal como a fantasia fundamental, e que uma das
tarefas de uma análise seria a de que o sujeito pudesse articulá-lo.
Mas o Seminário sobre o sinthoma é muito ambíguo em relação a isso. As
palavras sintoma e sinthoma são usadas quase indistintamente. Lacan diz,
num determinado momento: “O sintoma ou o sinthoma, como vocês queiram”.
Lendo as primeiras aulas do curso que J.-A. Miller está ministrando atualmente
em Paris, podemos ter uma idéia mais clara da complexidade da questão. Miller
começa trabalhando a possibilidade de que a palavra sintoma passe a ser
substituída na alíngua lacaniana pela palavra sinthoma – nesse sentido, seriam
a mesma coisa o sintoma da queixa e o sinthoma –, já que o uso de cada
2
palavra colocaria o acento em algo diferente. Assim, em sua segunda aula2, ele
estabelece as seguintes correlações:
Joyce
sinthoma
gozo
alíngua
redução
elo do nó
buraco
____
____
____
____
____
____
____
Freud
sintoma
verdade
linguagem
interpretação
significante
traço
Ou seja, o conceito de sinthoma se refere ao gozo, enquanto o de sintoma
fazia alusão a uma mensagem. Da mesma maneira, o sinthoma denuncia a
alíngua, enquanto o sintoma ainda preservava a estrutura da linguagem. A
operação analítica correlativa ao conceito de sinthoma seria à de redução do
gozo, enquanto o instrumento, quando Lacan usava a palavra sintoma, era a
interpretação. Ao falar “sinthoma” se estaria falando de elo do nó borromeano
e de buraco, enquanto, ao falar “sintoma”, se estaria falando de significante e
traço.
Assim, o conceito de sinthoma implicaria em uma nova maneira de se pensar o
sintoma. O sintoma era pensado inicialmente por Lacan como interpretável,
como veículo de uma verdade mentirosa. A palavra sinthoma assinala que ele
é ininterpretável, que quanto mais é interpretado, mais ele é alimentado.
Então, a partir do Seminário 23, ao usar a palavra sintoma se estaria fazendo
referência ao conceito de sinthoma, com todas as suas correlações.
Mas na quinta aula do mesmo curso, J.-A. Miller dá outra reviravolta na
questão: “No fundo, qual é a diferença entre sinthoma e sintoma? É que o
sinthoma
designa
precisamente
aquilo
que
do
sintoma
é
rebelde
ao
inconsciente, aquilo que do sintoma não representa o sujeito, aquilo que do
2
Idem, ibidem, aula de 24 de novembro de 2004.
3
sintoma não se presta a nenhum efeito de sentido”3. Esse argumento nos
permite fazer uma releitura do quadro da segunda aula: já não se trata de
substituição de um conceito por outro, mas sim de que o sinthoma estaria
presente no sintoma da mesma maneira que a letra está presente no
significante, sendo portanto, em sua essência, irredutível ao significante.
Segunda questão
Dominique Laurent, em seus depoimentos sobre seu final de análise4, diz ter
cifrado o Real do gozo – S( A ) – com o nome “Rainha da Noite”, e o lugar do
pai com o nome “Rei Sol”. E que esse ciframento seria o sintoma, que ela
escreve sem th. O gozo estava relacionado a um “eu mordo” e ainda a um “eu
morro” (jogo de palavras em francês) que interpretava sua oralidade, expressa
até o momento em anorexia e mutismo Ter chegado a esse ciframento a teria
levado a um efeito subjetivo último “ao qual se poderia dar um valor de
identificação. Isto conduziria a dizer: eu sempre fui isso”.5
Já Xavier Esqué só usa o termo sintoma ao se referir ao analista-sintoma, mas
fala de um consentimento em reconhecer seu ser no mais singular do gozo
pulsional. 6 Nesse caso trata-se do olhar, que era revestido de um “im ber be”,
como sinônimo de “mocoso”.7
Em ambos os casos o sujeito “percebe” sua identidade, seu “ser” nessas
modalidades de gozo pulsional. Mas a questão permanece: o sujeito pode se
3
Idem, ibidem, aula de 15 de dezembro de 2004.
4
LAURENT, D. “Desidentificação de uma mulher”. Em: Opção Lacaniana, n° 29, dezembro de
2000. E no adendo a este texto publicado em: Opção Lacaniana n° 30, abril de 2001.
5
Idem, ibidem. Em: Opção Lacaniana n° 30, p. 22.
6
ESQUÉ, X. “O êxtimo empurra”. Em: Opção Lacaniana n° 42, fevereiro de 2005, p. 56.
7
“Im-ber-be” soa em espanhol como “In-ver-ve”, e “mocoso” quer dizer ao mesmo tempo
“garoto” e “melequento”.
4
separar dessa identidade ou não? No segundo caso, ele deve encontrar um
outro uso para ela?
Terceira questão
Na primeira aula do Seminário: O sinthoma, Lacan diz que a única arma que
temos contra o sinthoma é o equívoco significante. Pôr em jogo o equívoco
significante pode liberar do sinthoma.8
Lembrando o caso de Xavier Esqué, no qual o sintoma, ou sinthoma, poderia
ser: “gozar sendo visto como um mocoso”, podemos pensar que a análise deu
conta disto, e foi por meio do equívoco do “es que” com “se que” que esse
sintoma começou a ser mobilizado.9
Na psicose a resposta a essa questão é clara. Nós, psicanalistas, devemos
saber reconhecer o que está fazendo função de sinthoma, ou seja, o que
mantém amarrados os registros, e devemos preservá-lo. Ou então ajudar o
sujeito a construir esse quarto elo, ali onde essa função não está presente.
Talvez também devamos preservar o sinthoma na neurose, mas só até que o
sujeito não necessite mais dele. E para não necessitar mais dele – aprendemos
isso com Lacan – a condição é poder servir-se dele.
Quarta questão
A palavra função é multívoca. Em primeiro lugar, função significa utilidade,
serventia. Nesse sentido, é possível ver claramente a utilidade do sinthoma na
psicose:
8
LACAN, J. O Seminário 23: O sinthoma, Aula de 18 de novembro de 1975. Inédito.
9
ESQUÉ, X. Op. cit., p. 54.
5
Estabelecer um laço com o Outro (laço social) e, simultaneamente, domesticar
esse Outro, fazer com que esse Outro seja suportável.
Fazer suplência à inexistência da relação sexual.
Fazer existir o Outro sexo – A mulher, geralmente.
Localizar o gozo indizível.
Será que, nas neuroses, a utilidade do sinthoma é a mesma? Fazendo
suplência à inexistência da relação sexual, o sinthoma seria equivalente à
fantasia fundamental.
Função é também função matemática, diz Lacan em RSI: “Qual é a função do
sintoma? Função deve ser entendida como o f da formulação matemática, f(X),
sendo x aquilo que do inconsciente pode ser traduzido por uma letra”.10
Mas é necessário distinguir a função do sinthoma do uso que o sujeito pode
fazer dele. Lacan fala do uso lógico e ético do sinthoma: é um ser ético aquele
que, a partir de ter reconhecido a natureza do sintoma, não se priva de usá-lo
logicamente, até atingir o real, no fundo do qual não se tem mais sede.11
Lacan dá dois exemplos desse ser ético (héretique): Joyce e ele próprio. Joyce
teria usado ética e logicamente a literatura até atingir seu Real, o fora-dosentido da lalíngua. Lacan considera que o Real é seu sinthoma, e ele o teria
conduzido ao o nó borromeano.
Uma análise conduzida ética e logicamente também faz isto: usa o sintoma
logicamente – levando em conta a sua função matemática – e, por meio da
10
LACAN, J. O Seminário, livro 22: RSI, aula de 14 de janeiro de 1975.
11
LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma, aula de 18 de novembro de 1975. Inédito.
6
operação de redução, permite ao sujeito atingir o Real, o fora-do-sentido, a
inexistência da relação sexual. Nesse momento é possível prescindir do
sinthoma, porque o sujeito consegue se servir dele.
O sujeito também pode se servir do sinthoma para diferentes utilidades, por
exemplo, fazer uma obra ou dar um testemunho de final de análise.
7
Download

Sinthoma e fantasia fundamental