Comunicação e história:
aproximações
Maximiliano Martin Vicente
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros
VICENTE, MM. História e comunicação na ordem internacional [online]. São Paulo: Editora
UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 214 p. ISBN 978-85-98605-96-8. Available from
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COMUNICAÇÃO E HISTÓRIA:
APROXIMAÇÕES
“A história é êmula do tempo, repositório
dos fatos, testemunha do passado, exemplo do
presente, advertência do futuro.” (Miguel de
Cervantes)
História do presente, história imediata ou história a debate? Afinal, como relacionar comunicação-história e, mais especificamente,
em razão das nossas pesquisas, jornalismo e história? Essas perguntas
incomodam, mas têm de ser respondidas, pois constantemente aparecem, levantando dúvidas, equívocos ou mal-entendidos. Embora,
no passado, o tempo presente e o imediato fossem relegados dos
domínios da história, ambos aparecem e são aceitos, há algum tempo,
como terreno fértil para os historiadores. Essa conquista, no entanto, não é fruto de modismos acadêmicos, e sim de um movimento
profundo, renovador, amadurecido, que busca inserir o presente
nos domínios da história. No capítulo anterior, intencionalmente,
apontávamos algumas versões nas quais encontrávamos elementos
de convergências entre diversas interpretações de correntes históricas
mais contemporâneas e as possibilidades de diálogo com a comunicação. Todavia, não se pode afirmar que essa relação seja pacífica ou
que não mereça um aprofundamento mais detalhado.
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Existe uma nítida separação entre a história do tempo presente, a história imediata e a história a debate. A diferença entre elas
incide no estabelecimento do tempo necessário, entre o historiador
e o fato, para poder constituir uma interpretação, ou seja, elaborar
uma narrativa capaz de ser aceita como tal. A história do tempo
presente, nesse ponto concreto, embora em alguns momentos pareça
ser confusa, reconhece a necessidade de se ter uma temporalidade,
um distanciamento do fato para resgatar o maior número possível
de componentes do cotidiano, úteis para reforçar interpretações
decorrentes de uma estrutura concatenada, só perceptível com o
passar do tempo. Entretanto, defende a não aceitação de uma periodização padrão, na qual se inseririam temas e assuntos díspares
num espaço de tempo longo e recheado de acontecimentos das mais
diversas naturezas. Isso não significa que se quebrem ou alterem os
métodos e os procedimentos do historiador em relação ao seu objeto
de estudo. Aceitar e defender temas ignorados ou esquecidos pela
historiografia pode ser solucionado sem grandes traumas desde que
se adotem procedimentos conhecidos pelos historiadores. Afinal,
a própria evolução histórica já comprova esse desenvolvimento de
temas e métodos peculiares a cada momento e a cada período.
A história do presente, em razão desse imperativo, segue os procedimentos de qualquer pesquisa histórica. O historiador do presente
tenta restaurar a evolução dos acontecimentos numa duração que permita compreender por que o processo chegou à situação atual. Nesse
sentido, ele se dedica a descrever as estruturas cujas transformações
dão conta do surgimento de fatos ou fenômenos cuja origem, muito
provavelmente, se situa sempre em médio ou longo prazo. Assim,
a história do tempo presente tem um recuo temporal significativo.
Contudo, é aceito que ela seja feita diante de seus atores. E porque o
presente é sempre fugaz, os limites do tempo presente precisam ser
revistos continuamente.
O mesmo não pode ser dito em relação à história imediata e à
história a debate. Ambas defendem a coetaneidade como forma de
tratar a história. Nessas duas concepções, a atualidade e a apropriação
de todos os recursos ao alcance do pesquisador seriam o lócus e o
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modus operandi no qual exercita seu ofício. Os meios de comunicação,
aceitos como instrumentos nos quais se manifestam os problemas
a serem estudados, espelhariam uma realidade passível de crítica e
de intervenção por parte dos historiadores. Mais ainda, coincidentemente, alguns dos seguidores dessas propostas navegaram nos
dois campos, no da história e no da comunicação, principalmente
no jornalismo. Dessa forma, o historiador tem relação direta com o
tema, tornando-se, ele mesmo, um ator social da própria história,
sem que seja necessário estabelecer um espaço entre os fatos e suas
interpretações. Observa-se, dessa maneira, a coincidência de procedimentos entre essas abordagens e a comunicação.
Assim, a história imediata e a história a debate têm um papel
social que tanto complementa a história do tempo presente quanto
levanta matérias para as pautas das mídias. Falar do imediato, tal
como visto por essas interpretações, significa aceitar o historiador
conectado com as questões prementes de seu tempo. Ele não apenas
busca entendê-las e explicá-las, mas também transformá-las. Exercita o protagonismo nos processos históricos e, mesmo diante dos
perigos de fazer uma análise por demais subjetiva, não hesita perante
os riscos provenientes dessa reflexão. A busca pela verdade histórica,
ainda que impossível de se concretizar inteiramente, continua a ser
o guia desse historiador. A autêntica justificação da história, tanto
para a imediata como para a história a debate, não consistiria em
imortalizar pessoas, tampouco em satisfazer a curiosidade intelectual
de certos saberes enciclopédicos, menos ainda em abastecer museus
e colecionadores de antiguidades. A história faz parte da maneira
como os seres humanos explicam seu próprio lugar e seu mundo.
Pode ajudar as pessoas a verem onde se encontram e aonde deverão
chegar, aceitando, com isso, o engajamento do historiador nas causas
sociais do mundo em que vive.
O comum a todas essas abordagens reside na aceitação de que
o historiador se encontra imerso num mundo concreto, com suas
peculiaridades e singularidades manifestas nas estruturas socioeconômicas, políticas e culturais configuradoras de um tipo de realidade
com a qual depara e convive cotidianamente. Os questionamentos
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oriundos da sociedade afetam também o historiador e, de certa maneira, colocam interrogações com as quais é obrigado a lidar. Por isso,
cada época acentua determinados temas em detrimento de outros.
As diferenças apontadas anteriormente não respondem às indagações iniciais deste capítulo. Evidenciam a impossibilidade de
equiparar essas interpretações, o que não deve ser visto como algo
adverso ou irreversível. Ilustram, claramente, a impossibilidade de
se realizar uma escrita que contemple a história do presente e a história imediata ou a história a debate. A questão temporal as coloca
em situações, se não antagônicas, pelo menos bem distantes para
poder estabelecer um consenso. Assim, não se pode simplesmente
juntar as abordagens de cada uma para “criar” uma nova maneira de
apresentar a história que nos permita vinculá-la com a comunicação
ou com o jornalismo.
Se aceitamos esse impasse, corremos o risco de tornar inútil nosso
trabalho, uma vez que ele pretende mostrar que, apesar das diferenças, urge estabelecer uma aproximação entre a história e a comunicação em razão de suas semelhanças e por estarmos numa sociedade
cada vez mais midiática. A questão, portanto, se não se rejeitam essas
abordagens históricas do tempo presente, história a debate e história
imediata, seria esboçar um percurso no intuito de estabelecer itens
comuns e convergentes a todas essas visões. Pensamos que, dessa
tentativa, resulta um movimento interessante no qual o jornalismo
e essas correntes podem dialogar, trocar experiências e realizar um
intercâmbio frutífero e útil para a sociedade. O debate dos anos 1970,
entre a história-narrativa e a história-problema, tal como entendido
por Furet (1989, 2001), pode abrir possibilidade de aproximação e
contribuir para realizar pontes para aparar as diferenças.
Não pretendemos realizar uma análise exaustiva das contribuições de
Furet, nem muito menos defender suas posições políticas pessoais
das quais discordamos radicalmente, apenas destacamos o caminho
sugerido por esse autor como alternativa para superar o impasse
descrito anteriormente. Se a divergência se centra na questão do
tempo, nada melhor do que incorporar a noção de tempo sugerida
por Furet (1989, p.55), na qual se supera a visão clássica entendida
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como uma série de descontinuidades que adquirem sentido à medida
que se elabora a narrativa. Nessa visão mais clássica do que seria a
construção da história, de acordo com Furet, ocorre uma situação
preocupante na medida em que o historiador forçaria a construção
da continuidade mediante a narrativa para a qual ele realiza a seleção dos acontecimentos que lhe interessam. Nessa ótica, a maneira
de se narrar a história só seria compreensível na medida em que os
fatos mostram seu desfecho final. Essa questão nos leva a entender
a narração como uma reconstrução de uma experiência vivida num
espaço de tempo, no qual o historiador se coloca numa situação de
ruptura em relação ao fato narrado. Segundo Furet (1989, p.83):
A significação desse tipo de história vincula-se com a sua localização no texto da narrativa analisada como reconstrução de uma
experiência de vida no eixo do tempo, mas não se trata de um objeto
“intelectualmente construído” que recebe uma significação a partir
da análise de suas relações com outros objetos comparáveis, no
interior de um sistema.
Essas observações, mesmo que feitas na década de 1970, são bastante animadoras na medida em que nos permitem aceitar o trabalho
histórico como a reconstrução e a reinterpretação dos acontecimentos, independentemente do tempo cronológico no qual aconteceram.
Assim, sempre o historiador estará reescrevendo o fato histórico, sem
que isso implique a perda do rigor com as provas que vão aparecendo.
A narrativa histórica nada perderá, pois com ela os acontecimentos
revelam novas facetas e o conhecimento histórico se aprofundará.
O tempo surge como elemento decantador de interpretações e não
apenas como fator cronológico no qual se alocam os acontecimentos
e se estabelecem as periodizações.
Podemos afirmar que, desde essa perspectiva, se uma das tarefas
básicas do historiador se refere à investigação das transformações no
tempo, ele precisa fornecer também critérios plausíveis que justifiquem a permanência e a validade de conceitos de passado, presente e
futuro, legitimando determinadas articulações entre eles. Em outras
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MAXIMILIANO MARTIN VICENTE
palavras, precisa questionar, antes de tudo, as ferramentas intelectuais usadas, que orientam a sua visão e as escolhas preferenciais
em relação aos modos de representação, uma vez que mudariam
de época para época. O historiador precisa assumir a sua condição de
construtor dos fatos que constituem os seus objetos de investigação
(Furet 1989, p.57).
Justamente por aceitar a reinterpretação do passado e por sofrer
influências dos dilemas do momento em que vive, as observações de
Furet permitem avançar no procedimento de aproximação do historiador como alguém que dialoga com os tempos e problemas da época
em que vive sem que isso ocasione rupturas temporais. Agora, tal procedimento seria insuficiente para justificar por que o historiador e o
comunicador social devem dialogar e elaborar uma agenda para aprofundar seus procedimentos na (des)construção social da realidade.
Um bom caminho que pode ajudar a entender suas especificidades e,
consequentemente, estabelecer rumos de aproximação e de soluções
benéficas para ambos é entender como se processa a elaboração de
sua narrativa. Efetivamente, na maneira de apresentar resultados
reside o campo de aproximação entre a história e o jornalismo. Talvez
seja necessário lembrar as afirmações de Burke (1992) já apresentadas neste livro e que evidenciam essa aproximação, mas visando
à construção e ao entendimento, não para enfatizar as diferenças.
Considerando as abordagens de Peter Burke (1992), os anos 1980
foram marcados por profundas crises, principalmente econômicas
e culturais, que obrigaram os historiadores a rever seus posicionamentos anteriores, mais preocupados com as macroestruturas do
que com as microestruturas. Os projetos da micro-história surgiam
como possíveis respostas para entender o particular, o interesse por
histórias instantâneas, contadas em perspectivas multivocais, como
meios de esclarecer estruturas e atitudes mentais, esperanças, expectativas e experiências de vida para as quais a história não conseguia
interpretações adequadas.
Assim, continuando com as observações de Burke, nos anos
1990, a narrativa apontava possibilidades de interpretação de algumas dessas particularidades. Na verdade, essa opção não afastou a
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consideração pelas macroestruturas, só que se verifica uma integração
entre narrativa e análise. Claro que ele alerta para a necessidade de se
definir claramente o tipo de narrativa a ser adotada pelo historiador.
Não seria, prossegue Burke, algo que valorizasse a descontinuidade
temporal ou a ruptura cronológica, próprio da literatura ou da narrativa ficcional. Sugere que essa volta da narrativa deve acentuar a
criticidade do historiador sem perder o foco da dialética passado/
presente. Defende que o historiador precisava analisar os acontecimentos a serem relatados, a partir da posição de um observador
posterior, assumindo que a sua voz se limita a ser uma entre outras
que caminham de outras áreas de conhecimento nessa direção. Os
historiadores deveriam desenvolver suas próprias técnicas ficcionais
para suas obras factuais (Burke, 1992, p.337-41).
Inicialmente, devemos destacar que qualquer narrativa, tanto
histórica como jornalística, representa um saber objetivo ou subjetivo do mundo. Tanto os historiadores como os jornalistas elaboram
narrações de determinados fatos que adquirem sentido após serem
descritos, construindo uma lógica compreensível e reconhecida pelos
outros como válida e elucidativa. Assim, atribuem-se sentido e significações às coisas e aos atos que passam a fazer parte do nosso universo
justamente por evidenciar um saber estabelecido pelo narrador. O
encadeamento e a sequência arquitetados por aquele que elabora as
narrativas interligam o passado, o presente o e futuro.
As narrativas elaboradas pelos meios de comunicação, normalmente, referem-se a acontecimentos considerados reais, ou seja,
aqueles que de fato acontecem e que acabarão incluídos em gêneros como reportagens, documentários ou notícias, e aqueles mais
próximos da ficção, como telenovelas, filmes ou outros programas
voltados mais para o lazer e entretenimento. Em alguns momentos,
essas narrativas comunicacionais se interligam e acabam misturando, por exemplo, fatos reais com ficcionais. Essa mistura, muitas
vezes intencional, visa prender a atenção do público motivado pela
sequência de episódios nos quais se mistura realidade com ficção,
criando um sentido peculiar capaz de despertar interesse por temas
ou situações das mais diversas áreas.
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Já na história, a narrativa procura elaborar a reconstrução dos
fatos, incorporando crenças e valores destinados a dar veracidade
à sua descrição. Para isso, aquele que tem contato com a narrativa
histórica precisa encontrar na sua leitura argumentos plausíveis que
justifiquem a interpretação do historiador. Olhando para as diversas
correntes ou escolas historiográficas, verificam-se formas diferentes
de construir as narrativas. Apenas como exemplo, as visões mais
tradicionais elaboravam sequências em que a descrição procurava
retratar os fatos tal como eles aconteceram, o que hoje é aceito como
tarefa impossível de ser conseguida.
A narrativa em história, mais especificamente, observa e interpreta como os discursos sociais dominam as dimensões do tempo
no qual aconteceram os fatos, garantindo, assim, a construção de
relações elaboradoras de práticas sociais específicas a cada momento.
Esses discursos são, antes de tudo, formas de intervenção mediante
as quais o historiador ordena o tempo, descreve as redes sociais e
cunha uma lógica portadora de sentido específico. A criação da narrativa histórica é o momento no qual o historiador, na condição de
pessoa responsável pela elaboração dessa interpretação, determina
as classificações, a posição dos fatos, dos homens, das ideias e onde e
quando se consolidam as justificativas que ele considera convenientes
para criar sua versão.
De alguma maneira, esses procedimentos podem ser observados
na narrativa jornalística. Ela ocorre também em contextos peculiares
e específicos, e usa recursos, normalmente mais amparados nas estratégias narrativas do texto, destinados a cativar seus receptores. A
organização narrativa do discurso midiático não é aleatória, portanto
realiza-se numa conjuntura claramente determinada e procura originar determinados efeitos bem específicos. No discurso jornalístico, os
jornalistas servem-se de estratégias textuais que interferem na organização do texto, pois se utilizam de códigos, articulações sintáticas
e pragmáticas, além de outros recursos da linguagem, que levam a
uma interpretação por parte do destinatário ou receptor.
Novamente, verificam-se aproximações entre a narrativa jornalística e a histórica, uma vez que, por suas construções, as duas
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tornam-se meios pelos quais ambas exercitam a interpretação destinada a influenciar o seu destinatário final. Suas práticas não são apenas
relatos representativos, mas sim elaborações socioculturais nas quais
se reconstituem fatos e versões portadores de uma lógica carregada de
intenções e valores manifestos nas crenças de quem elabora o texto. A
realidade recriada adquire, então, nova estrutura, clímax e desfechos
prontos para serem absorvidos pelos públicos-alvo, que, dessa forma,
passam a incorporar esses conhecimentos para construir sua sociabilidade. Aceitando que a narração não é neutra, fica, então, um alerta no
sentido de atentar para alguns cuidados necessários quando se pretende decodificar as intenções do narrador, seja jornalista, seja historiador.
Se nenhuma narrativa é ingênua, as análises dos textos devem,
portanto, compreender as estratégias e intenções textuais do narrador
e a maneira como o leitor reinterpreta esses códigos neles contidos.
Da perspectiva da história, um historiador que tem contribuído
para valorizar a narrativa é Peter Gay (1990). Embora ele reconheça
que a narrativa da história se assemelha muito ao estilo literário,
interessa-nos, aqui, resgatar algumas das suas contribuições esclarecedoras para entender como o historiador deve se conduzir na hora
de escrever. O estilo que o historiador desenvolve, lembra Gay, não
representa unicamente uma questão estética, mas sim uma forma
de mostrar um conhecimento com seus valores e ideologias. Desse
modo, num sentido mais amplo, a forma de descrever os fatos revela
mais do que a cultura em que o historiador está inserido. Ela explicita
a própria maneira como o historiador concebe a apreensão do real
(Gay, 1990, p.20-1). Essa observação de Gay enfatiza a necessidade
de aproximar os esquemas narrativos próprios do gênero literário e
da comunicação com a história. Coincide com aquilo que já tínhamos
apontado anteriormente no sentido de dizer que a escrita serve para
organizar conteúdos e dar sentido a determinados acontecimentos.
Vale a pena salientar que, entre os historiadores, essa questão não
fica livre de algumas críticas. A mais importante diz respeito a considerar o texto e as análises textuais como únicas formas de entender e
reconstituir a história. Assim, por exemplo, segundo Chartier (1994,
p.110), “mesmo que escreva de uma forma ‘literária’, o historiador
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não faz literatura, e isso pelo fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em relação ao passado
do qual ele é vestígio”.
Peter Burke (1992) referenda essa opinião e é taxativo ao sustentar
que a historiografia não avançará muito, caso se engaje nessas práticas
literárias. Ao efetuar uma aproximação entre a narrativa histórica e
a jornalística, Burke assinala alguns pontos de convergência. Destaca o método de narração regressivo, muito utilizado nos romances
modernos e que pode auxiliar o historiador a ressaltar para o leitor
a pressão do passado sobre as sociedades, na medida em que a retomada de eventos e estruturas sociais anteriores reforça os laços entre
o presente e o que aconteceu antes dele. A literatura também oferece
subsídios para que o historiador mostre ao leitor que sua obra não é
reflexo de uma verdade acabada e, muito menos, que o historiador
desenvolve uma função neutra.
Burke acredita que a historiografia vem renovando suas formas de
elaborar a escrita. Para ele, a atual ênfase na forma do discurso histórico é mais bem compreendida quando o próprio ato de narrar e de se
posicionar perante a narração começa a ser analisado historicamente.
Passar de uma certa narrativa para um conhecimento histórico exige
alguns cuidados. Esse deslocamento deriva de visões e concepções
envolvidas na decodificação do que seja o real e do posicionamento
ideológico e político do historiador.
De qualquer forma, deixando um pouco de lado essas observações, não se pode negar que a preocupação do historiador com a
sua escrita é fundamental. Se considerarmos as reflexões de Michel
de Certeau (1982) sobre as especificidades da narrativa histórica,
segundo as quais essa é, ao mesmo tempo, um relato sobre o passado
e um lugar de enunciação vinculado a técnicas de saber vigentes em
um determinado corpo social, a narrativa e o uso das técnicas da
escrita assumem um papel importante na medida em que permitem
articular mais claramente ao historiador e ao seu objeto de pesquisa
os fenômenos históricos.
As narrativas históricas contemporâneas não podem perder de
vista seu compromisso com a reconstituição baseada em uma busca
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pela verdade. Não aquela verdade absoluta, mas uma verdade passível de alterações e de constantes reconstruções. Afinal, a historiografia pode ser concebida como um movimento constante de releituras
do passado, o que não significa que haja um acúmulo ou progresso do
saber histórico, e sim uma sequência de reinterpretações narrativas
do passado que são passíveis de perdas, equívocos e revisões. O saber
histórico se atualiza constantemente, interferindo nas construções
passadas e na forma como se estabeleceram determinadas formas
de apresentar os acontecimentos.
No jornalismo, as narrativas trabalham mais com o jogo de linguagem, com as ações estratégicas de significação das palavras no
contexto, visando estabelecer um diálogo argumentativo entre os
sujeitos. Por essa razão, a narrativa dos jornais não se realiza mediante a análise de textos isolados, mas sim do jornal como um
todo. Uma foto ao lado de um texto pode, eventualmente, dar um
sentido oposto ao que se poderia esperar em razão do lead ou da
chamada realizada. Ainda, vale a pena pensar, mesmo entendendo
o jornal como a materialização da notícia do dia, que alguns fatos
acabam se projetando no tempo, sendo veiculados por vários dias,
ou mesmo meses, dependendo de sua repercussão. Nesses casos,
a narrativa demanda a leitura de todas as matérias publicadas, de
maneira fragmentada, para poder ter o sentido dado pelo jornal ao
fato estudado. Essa nova síntese, acumulada no decorrer dos dias,
representa uma nova história, exigindo outra síntese mais completa
do que aquela percebida diariamente, podendo, inclusive, modificar
o objeto observado.
Outro cuidado importante a ser levado em consideração na narrativa jornalística diz respeito à identificação dos conflitos abordados,
uma vez que neles se materializam as rupturas, as descontinuidades e
as anomalias tratadas pelos jornais. De certa forma, pode-se afirmar
que é em cima do conflito que se desenvolve a trama dos jornais.
Eles, na sua continuidade, abrem as possibilidades de novas sequências e episódios, mantendo viva a narrativa, cativando os leitores
curiosos com o desfecho do acontecimento. A “ação individual dos
jornalistas” é perpassada pela “ação (talvez maior) dos diretores dos
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veículos”, bem como pelas ideologias vigentes, o que a torna menos
“individual”. Essa intervenção externa (ideologicamente marcada)
de patrões e sociedade pode tanto se sobrepor quanto se confundir
com as “intenções subjetivas” (ressalvadas abaixo). No caso de “se
confundir”, o jornalista “pensa” que age a partir de suas intenções
subjetivas, mas essas intenções são ajustadas à empresa e ao contexto
ideológico em que se insere, até mesmo inconscientemente.
Como o fato interfere na sociedade, gerando desequilíbrios e
mostrando uma situação de conflito, a narrativa encontrada nos jornais revela o jogo entre os interesses envolvidos, dando ao jornalista
uma função importante por tornar de interesse público fatos que
passariam despercebidos pela grande maioria da população. Evidentemente, cada descrição imagina uma reconstituição particular dos
fatos, mas se conecta com um todo, motivo pelo qual a autonomia
detida pelos jornalistas também apresenta limites claramente marcados pelo compromisso com a verdade, a ética, o reconhecimento
e a aceitação dos seus leitores. Os fatos saltam sobre o leitor, que,
dificilmente, se deixará levar por uma realidade construída que ele
considere alheia ou sem repercussões para seu cotidiano ou universo
cultural. Talvez, por esse motivo, os textos dos jornalistas apresentem
as vozes de fontes envolvidas nos episódios descritos no intuito de
mostrar credibilidade.
Entretanto, os personagens, tal como vistos na narrativa dos
jornalistas, costumam ser individualizados. Em determinados contextos, eles ofuscam o próprio fato, em parte, pela excessiva atenção
e destaque dados por esses profissionais. Mas, se a intenção é entender como se elabora a narrativa dos jornais, prestar atenção a esses
mecanismos ajuda na hora de decodificar seu papel na sequência dos
fatos, inclusive fazendo a análise de como se construiu a imagem
desse personagem nas páginas do jornal. Nunca é demais lembrar
que os leitores realizam projeções dessas pessoas, podendo alterar
ou recriar sentidos não desejados a partir do papel dado aos atores
na construção das narrativas.
Dessa maneira, as narrativas jornalísticas podem conter intenções
subjetivas, justamente por serem escritas por pessoas, motivo pelo
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qual essa ressalva tem que ser levada em consideração na análise
da descrição elaborada pelo jornalismo. Ou seja, cabe salientar a
necessidade de descobrir os dispositivos usados pelo jornalista para
criar argumentos. Nessa tarefa de desmistificação e de decodificação,
alguns pontos merecem ser levados em consideração.
Um dos principais consiste em ter em mente que os textos dos
jornais procuram provocar o efeito do real, ou seja, tentam fazer que
os leitores interpretem as informações como verdadeiras. Por isso
sua ênfase na apresentação de fatos atuais, deixando de lado, muitas
vezes, a contextualização que daria mais sentido às suas afirmações.
Dessa maneira, uma das tarefas fundamentais do analista dos textos
dos jornais diz respeito à capacidade de identificar os recursos usados
para dar os efeitos de realidade ao que escreve. De alguma forma,
essa narrativa promove a identificação do leitor com o conteúdo publicado, motivo pelo qual algumas figuras de linguagem prevalecem
na narrativa dos meios impressos.1 A importância de destacar essa
questão se encontra na finalidade mesma da notícia, ou seja, no grau
de receptividade que lhe pode atribuir o receptor exposto aos recursos
linguísticos, com desdobramentos na compreensão da matéria com
a qual tem contato.
A forma como se escreve a história tem reservas em relação aos
recursos linguísticos empregados na elaboração da narrativa. A rejeição maior com esse procedimento se assenta na corrente positivista
que, preocupada em atribuir cientificidade à história, desconfiava do
1 A literatura especializada destaca as seguintes figuras de linguagem: verbos
prospectivos, de sentimento, negativos, de conselho, de advertência; no uso
de adjetivos afetivos, potenciais ou adjetivos de possessão; no uso de substantivos estigmatizados como terroristas, radicais, pivetes; nas exclamações,
interrogações, comparações, ênfases, repetições e reticências, mais comuns no
noticiário do que se pensa; nas figuras de linguagem (metáforas, sinédoques,
sinonímias, hipérboles); nas ironias e paródias, que abrem âmbitos de significação; nos conteúdos implícitos, nas implicações de advérbios como “apenas”,
“de novo”, “só”, “ainda”, comuns nas manchetes; nas pressuposições e tantos
outros recursos linguísticos e extralinguísticos que proliferam na linguagem
jornalística verbal e audiovisual. Destacamos, especialmente, o texto de Motta
et al. (2005).
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uso da retórica ou de outras figuras de linguagem difíceis de serem
aceitas como construtoras de objetividade nos relatos elaborados
pelos historiadores. Claro que esse empenho e rigor no procedimento
de sua profissão, próprio do positivismo, procurava dotar os historiadores de objetividade e transparência nas suas afirmações, o que
viria a ser contestado ao longo do século XX pelas correntes que nele
se consolidaram, algumas delas já vistas anteriormente. De qualquer
forma, o isolamento e a pureza pretendidos pelos positivistas não
vingaram, abrindo-se possibilidades de aproximação com as manifestações literárias, artísticas e dos meios de comunicação de massa,
entre os quais se encontravam os jornais.
Aqui não pretendemos avaliar como essa aproximação se deu,
mas enfatizaremos as convergências, por considerarmos que nelas
encontraremos pontos de aproximação entre a história e as formas
de se escrever na comunicação e no jornalismo em particular. Para
Paul Ricoeur (1994, p.214), a narrativa se justifica por ser própria dos
historiadores a descrição de uma sequência de ações e experiências
representadas dentro de um determinado tempo e lugar. Nesse sentido, a aceitação da narrativa como forma de explicitar e mostrar um
acontecimento contribui como uma ferramenta a mais para apresentar, com riqueza de detalhes, determinadas situações que perderiam
significado, restringindo a narração ao caráter meramente científico.
Adotar uma sequência de fatos implica para o leitor – seja no
jornalismo, seja na história – realizar um esforço de compreensão
da trama construída. Em ambos os casos, trata-se de acompanhar
o raciocínio elaborado por aquele que narra e compreender que o
evento inicial leva a um desfecho final definitivo. Tanto a escrita da
história como a encontrada nos meios de comunicação impressos
passam pela organização desse fio condutor que une os acontecimentos, até aqueles visivelmente discordantes, a fim de conferir sentido
a um todo maior que não é uma soma de elementos, mas, sim, um
conjunto coerente que expressa opiniões e sequências inteligíveis.
Os personagens que compõem essa trama seguem ordens diferentes,
pois o historiador narra os feitos veiculados ao âmbito do privado e do
público, e o jornalista, de maneira muito semelhante ao historiador,
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traz à esfera pública pessoas ou situações que poderiam muito bem
passar despercebidas sem sua ação investigativa.
Mesmo estudando questões tão divergentes como temas atinentes
às relações das pessoas, das classes ou dos Estados, a narrativa, seja
histórica, seja jornalística, é imprescindível para mostrar o desenrolar dos fatos sociais. Ricoeur (1994, p.217), referindo-se à história,
vai mais longe nas suas propostas para evidenciar a necessidade da
narrativa, chegando a afirmar que, mesmo quando o objetivo do
historiador é falar de tendências e correntes, a narrativa seria o meio
pelo qual se cria a unidade orgânica das ideias de cada uma, de modo
que tais tendências e correntes também figuram como personagens
de uma história que deve ser acompanhada ao longo da sucessão de
acontecimentos que a formam. O mesmo se pode dizer do jornalismo
e de suas teorias.2
Nesse sentido, a ideia de Paul Veyne (1983) de que a escrita da
história passa pela armação de uma intriga encontra respaldo. Para
Veyne (1983, p.48), os fatos não existem isoladamente, motivo pelo
qual a construção da narrativa histórica não passaria de um ato humano, em que a concatenação obedece a uma lógica objetiva destinada
a realizar ligações e explicações de determinados acontecimentos.
Nessa perspectiva, a narrativa, construída pelo historiador, representa interesses e objetivos que espelham a crença de quem escreve,
por ser ele quem decide o que deve ser inserido ou excluído na sua
escrita. O ato de escrever, portanto, resultaria numa prática na qual o
historiador ou o narrador insere elementos considerados importantes
sem se pensar que ele teria a possibilidade de inventar ou desconsiderar suas fontes. Resulta dessa visão a probabilidade da aproximação
entre a história e o jornalismo na medida em que ambos apuram o
estilo, usando os recursos de linguagem que em momento algum
deve desviar o foco final, ou seja, construir uma narrativa explicativa,
interpretativa e fundamentada em fatos ou fontes.
Assim, pode-se afirmar que a narrativa histórica foge da simples
elaboração de sequências de acontecimentos e valoriza a maneira
2 Sobre essa trajetória e essa perspectiva, ver Marcondes Filho (1993).
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MAXIMILIANO MARTIN VICENTE
como se lavraram os processos resultantes nesses eventos. Nessa
reconstrução e no modo de elaborar sua narrativa, o historiador
escolhe a forma mais apropriada, assemelhando-se ao processo
jornalístico por ter que desenvolver um enredo, uma trama com um
seguimento capaz de recriar uma interpretação sólida, inteligível, de
tal forma que não seja uma mera crônica. Trata-se de uma operação
também de linguagem, pois demanda uma harmonização e criação
que se encontram facilmente na literatura. A compilação dos fatos,
em função dos elementos apresentados nas linhas anteriores, torna
o saber histórico público passível, portanto, de receber críticas e
reformulações.
Vale a pena salientar que a narrativa histórica nem sempre é
predefinida pelo historiador. Ela depende muito do tema e da crença ideológica e ética com a qual o pesquisador se alinha. Aliás, não
seria exagero dizer que, normalmente, esses princípios se sobrepõem
aos estéticos ou artísticos. De alguma maneira, com o jornalismo
acontece algo parecido, pois a trajetória da notícia, desde que sai das
mãos do jornalista até sua publicação, sofre adequações que podem
alterar até o próprio sentido dado inicialmente por esse profissional.
O importante, tanto para a história como para o jornalismo, é evitar
o engessamento da escrita ao modelo preconcebido.
Da mesma maneira que os escritores têm à sua disposição um
vasto leque de gêneros e estilos a partir dos quais tornam suas obras
singulares e únicas, o historiador cria um “estilo” no qual encontra
referenciais para poder expressar suas ideias. A singularidade e a
originalidade de uma obra histórica estão justamente na articulação
estabelecida pelo autor entre todos os elementos de sua narrativa, o
que inclui o conteúdo, o tipo de explicação dos fatos, os pressupostos ético-ideológicos, bem como o gênero do enredo. Cada ciência
utiliza estruturas narrativas para mostrar seus resultados, mas é bom
destacar que só as narrativas não produzem os efeitos esperados. No
caso da história, um componente que foge ao fazer do historiador diz
respeito à ficção ou ao caráter fictício da narração. Os fatos acontecidos sempre devem estar presentes na hora de escrever, mesmo que
neles seja possível estabelecer uma trama ou apresentar determinadas
HISTÓRIA E COMUNICAÇÃO NA NOVA ORDEM INTERNACIONAL
109
consequências. No jornalismo, é bastante comum recorrer a esses
procedimentos para tornar o fato mais acessível para seus leitores.
Cardoso & Malerba (2000) mostram uma polarização entre os
historiadores com relação ao seu ofício. De um lado, estão os que
assumem um viés mais pessimista, por verem a impossibilidade de
se trabalhar com a veracidade das narrativas, e, de outro, aqueles
que caminham no sentido oposto, ou seja, defendem que a narrativa
histórica, fundamentada em critérios já amplamente aceitos e testados, não é um simples artifício literário. Pessoalmente, parece-nos
bastante apropriado não negar que a narrativa da história possa se
apropriar de aspectos fictícios e literários, mas sempre seu aporte
deve ser útil para o avanço da sociedade. A criação e o uso de recursos
para se expressar, mesmo sendo de outras áreas de conhecimento,
no caso da história, nunca deixarão de ter tido uma materialização
que precisa ser reinterpretada e adequada às indagações de cada
época. Quando o historiador mostra os acontecimentos, ele está ao
mesmo tempo dando uma explicação destes, e essa explicação não
está pronta e acabada nos próprios documentos, motivo pelo qual
ela precisa ser reinventada.
A forma de escrever no jornalismo e na história não deve levar a
pensar que ambos têm características ou procedimentos semelhantes.
Em determinados momentos, o jornalismo e a literatura trabalham
com possibilidades, com ensaios sobre como aconteceu ou poderia ter
acontecido. A história não pode se dar a esse luxo, pois as fontes e os
demais elementos presentes na sua narrativa estabelecem condicionantes concretos que em nada se aproximam das tramas novelescas
ou dos outros procedimentos encontrados nos mais diversos produtos
da mídia. Isso não quer dizer que ambos não possam ter um diálogo e
se inspirar mutuamente. Na opinião de Ricoeur (1994), o historiador
aponta as razões pelas quais na reconstituição do passado um fato
tem mais peso que outro. Nos produtos midiáticos, a construção
se submete à finalidade desejada, não tendo, necessariamente, um
compromisso com a reconstrução dos fatos. Justamente por trabalhar
com a multiplicidade interpretativa dos acontecimentos, a forma narrativa histórica adquire liberdade em relação aos recursos narrativos.
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MAXIMILIANO MARTIN VICENTE
A narrativa histórica exerce, essencialmente, uma ação explicativa
por meio da qual aproxima o leitor do fato descrito e interpretado.
Por isso pode-se afirmar que uma narrativa bem desenvolvida deveria
obrigatoriamente apresentar a função de explicação. Como lembra
Ricoeur (1994, p.216), para compreender o porquê da conclusão
de uma história é preciso acompanhá-la não como se se tratasse de
uma argumentação lógica cujo desfecho é, pelo próprio mecanismo
silogístico, obrigatório. É conveniente seguir todos os episódios
que compõem a intriga em direção a um final não previsível que se
explica retrospectivamente por meio dos eventos que o precederam.
A narrativa do historiador inclui tantos fatos quanto necessários para
que o leitor consiga acompanhar a trama a ser explicada.
Mas nem sempre os encadeamentos dos fatos históricos ou jornalísticos são coerentes a ponto de proporcionar uma compreensão
aceitável. Ciente desse limite, o historiador pode, eventualmente,
recorrer aos recursos ficcionais, desde que a finalidade do tema
abordado não se perca nesses elementos. Já no jornalismo, seria
prudente realizar o percurso inverso, ou seja, recorrer à história para
contextualizar o leitor. O que não pode ser esquecida é a relação
entre a história e o jornalismo com a sociedade. Nela, o historiador,
pela sua escrita, ajuda na compreensão do passado ao mesmo tempo que esclarece determinados episódios nem sempre presentes no
cotidiano da sociedade. Nesse ponto, a comunicação e a história,
na medida em que constroem versões, coincidem, embora possam
seguir caminhos diferentes. Nem toda literatura e tudo que se veicula
nos meios de comunicação podem ser vistos apenas como entretenimento. Não são poucos, por exemplo, os escritores que fizeram de
suas obras verdadeiras ferramentas de combate em nome de causas
que transcenderam as discussões puramente estéticas, tornando-as
dessa forma questões de crucial importância para as sociedades em
que viveram. Cabe então aos historiadores e a outros profissionais que
mantenham contato com a sociedade se aproximarem mais para ver
onde podem estabelecer diálogos e onde essa aproximação torna-se
mais complicada.
HISTÓRIA E COMUNICAÇÃO NA NOVA ORDEM INTERNACIONAL
111
As maneiras de elaborar as narrativas levam à compreensão das
grandes interpretações sobre os fatos e, em momento algum, caem
no vazio. Compreender as deficiências sociais serve para estabelecer
análises mais acertadas e, pensando na sociedade atual – midiatizada
como falávamos –, resulta quase impossível elaborar diagnósticos
apenas do ponto de vista de um ramo do saber. Se a opção de adotar
formas distintas de interpretar os contextos sociais permite entender
como essas conjunturas atribuem significado às particularidades
supostamente atípicas, revelando o seu significado mais abrangente
e, consequentemente, o seu ajustamento a um sistema, também é
possível imaginar que outros fenômenos estranhos pelas suas manifestações apontam as deficiências do sistema no qual nos encontramos inseridos. Assim, parece-nos que a soma de componentes, tal
como apresentados nas diversas interpretações da história, e a forma
de apresentar esses fatos apontam para um campo de análise bastante
frutífero tanto para o historiador como para o jornalista.
Acreditamos que é desnecessário destacar que essa maneira de
abordar determinados acontecimentos está ainda em construção
e que não representa unanimidade. É possível vislumbrar ainda
a história como totalidade sinalizada pela articulação do passado,
presente e futuro e a apresentação de fatos totalmente desarticulados
sem que apresentem ligação clara com qualquer contextualização.
Isso se encontra tanto na história como no jornalismo. Agora, quando
as duas realizam uma escrita sedimentada nos seus procedimentos
mais conhecidos, tanto as pessoas como as conjunturas aparecem devidamente matizadas e especificadas com sentido de fácil apreensão
pelos membros de uma determinada sociedade. Parece-nos bastante
viável pensar numa maneira de estabelecer relações e pontos de vista
múltiplos na hora de avaliar o passado e interpretar o presente, o que
implica abrir mão de alguns posicionamentos pessoais para criar
campos de convergência.
Pelo exposto até aqui, podemos afirmar que a comunicação social
e a história, apesar de suas diferenças, realizam abordagens e interpretações que, quando dialogam, se enriquecem na compreensão
dos fatos e nas repercussões destes na sociedade. Deve-se destacar
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MAXIMILIANO MARTIN VICENTE
que tal aproximação não prima pelo voluntarismo ou por outros
posicionamentos preocupados em minimizar as diferenças existentes
entre essas áreas. Nesse diálogo interdisciplinar, como em qualquer
outro, a preservação da identidade, trajetória, metodologia e dos
demais procedimentos de cada saber é um componente impossível
de ser ignorado.
Assim, nesta altura do trabalho, iniciamos um exercício mais
concreto no intuito de exemplificar como pode ser feita essa relação.
Para isso, recapitularemos algumas das ideias apresentadas até aqui.
A questão de fundo que nos preocupou, nesses últimos anos, diz
respeito à forma como se opera a construção de interpretações sobre
fatos acontecidos na sociedade. Tanto a história como a comunicação
social partem, na elaboração de suas narrativas, de acontecimentos
considerados marcantes por terem repercussão social. Em função da
ressonância social, o jornalista e o historiador buscam explicações
fundamentadas e coerentes para serem apresentadas à sociedade.
Nessa trajetória de reconstituição, materializam-se as semelhanças
e diferenças das duas narrativas.
O jornalismo mais contemporâneo prima pelo imediato em razão da necessidade de elaborar as matérias antes do fechamento
da impressão, ou seja, trabalha com prazo determinado.3 Mesmo
assim tem de respeitar procedimentos inerentes à ética da sua profissão como a busca da imparcialidade, a consulta de fontes diversas
(o contraditório), a procura pela objetividade e pela atribuição de
sentido à informação apresentada.4 O tempo e o espaço, claramente
3 Salientamos que alguns cadernos dos jornais impressos são fechados com mais
tempo, porém o jornalista tem nas suas atribuições diárias compromissos e
funções de apresentar fatos para os quais esse tempo não existe, tornando-se
refém do fechamento do jornal, que tem hora para poder ser impresso e chegar
cedo, no dia seguinte, ao leitor.
4 Apenas para ilustrar, apresentamos alguns dos princípios do código deontológico do jornalista do sindicato dos jornalistas de Portugal:
1) O jornalista deve relatar os fatos com rigor e exatidão e interpretá-los
com honestidade. Os fatos devem ser comprovados, ouvindo as partes com
interesses no caso. A diferença entre notícia e opinião deve ficar bem clara
aos olhos do público.
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delimitados no jornalismo impresso, colocam sérios entraves aos
profissionais na hora de aprofundar e dimensionar, de maneira
adequada, os acontecimentos narrados. Já o historiador não convive
tão intensamente com a rapidez e limitação diária de ter que mostrar
resultados, o que não significa que não dialogue com o momento em
que vive. O tempo e o espaço do historiador se projetam de maneira
diferente, resultando em outro tipo de abordagem, mais elaborada
e estruturada do que as informações publicadas no jornal diário.
O historiador, contudo, não pode prescindir da leitura dos jornais e de outros meios de comunicação, sem os quais não terá acesso
aos acontecimentos que se passam pelo mundo. Por meio deles se
(re)constituem (re)interpretações ou se tem acesso a determinados
episódios de difícil compreensão. De alguma forma, o jornal liga
as pessoas com o mundo e o historiador não fica imune a tal fato.
Umberto Eco (2008), numa entrevista recente concedida ao jornal
espanhol El País, ilustra bem essa questão:
Cuál sería hoy el papel de la información? Yo creo que perdemos
mucho tiempo en plantearnos estas cuestiones mientras las generaciones
más jóvenes sencillamente han dejado de leer los periódicos y se comunican a través de SMS. Yo no puedo desprenderme de los periódicos;
para mí, la lectura de prensa es la oración de la mañana del hombre
moderno; no puedo tomar café por la mañana si no tengo por lo menos dos periódicos para leer. Pero a lo mejor somos los restos de una
2) O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a
acusação sem provas e o plágio como faltas graves profissionais.
3) O jornalista deve considerar como critério fundamental a identificação de
suas fontes. O jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes
confidenciais de informação nem desrespeitar os compromissos assumidos,
salvo se o tentarem usar para canalizar informações falsas. As opiniões devem
sempre ser atribuídas.
4) O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos, salvo quando estiver
em jogo o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende.
5) O jornalista deve recusar funções e benefícios suscetíveis de comprometer
o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional.
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MAXIMILIANO MARTIN VICENTE
civilización, porque los periódicos tienen muchas páginas, no mucha
información. Sobre el mismo tema hay cuatro artículos que a lo mejor
dicen lo mismo… Existe la abundancia de información, pero también la
abundancia de la misma información. No sé si se acuerda de mi teoría
del Fiji Journal. Yo estaba en las islas Fiji buscando información sobre
los corales para mi libro La isla del día antes, y a mi hotel llegaba cada
mañana el Fiji Journal, que tenía ocho páginas, seis de publicidad,
una de noticias locales y otra de noticias internacionales. Aquel mes
que estuve allí estaba a punto de estallar la primera guerra del Golfo,
y en Italia había caído el primer Gobierno de Berlusconi. Me enteré de
todo porque en una sola página de noticias internacionales, en tres o
cuatro líneas, me daban las noticias más importantes.
Como Internet. Acudimos a Internet para conocer las noticias
más importantes. La información de los periódicos será cada vez más
irrelevante, más diversión que información. Ya no te dicen qué decidió
el Gobierno francés, sino que te dan cuatro páginas de cotilleo sobre
Carla Bruni y Sarkozy. Los periódicos se parecen cada vez más a las
revistas que te daban en la peluquería o en la sala de espera del dentista.
Algumas considerações de Umberto Eco evidenciam questões
relevantes envolvidas nesse relacionamento entre a história e o jornalismo. De fato, além de lamentar a queda constante na leitura
dos jornais, por parte das gerações mais jovens, ressalta um tema
importante relacionado ao que se pode considerar informação, essa
sim uma preocupação vital para o historiador. Em sua opinião,
muitas partes do jornal seriam dispensáveis, mas ficar sem esse meio
de comunicação implicaria permanecer desatualizado diante de
algumas mudanças importantes que acontecem no mundo. Alerta
para a tendência de sínteses encontrada nos jornais da atualidade,
fenômeno este conhecido como jornalismo pós-televisivo por tentar
reproduzir o formato de notícias tal como se veiculam na televisão, ou
seja, curtas, diretas, sem grandes interpretações, pois o leitor, teoricamente, não teria tempo para ler páginas inteiras sobre o mesmo tema.
Como depende da informação, ela deve vir já pronta, sintetizada e
interpretada de tal forma que, lendo as manchetes, já se sabe o que
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acontece. Convém manter um distanciamento para não se tornar
refém do momento, do imediato, e elaborar uma interpretação mais
fundamentada. Mas, não resta nenhuma dúvida, sem o jornal a sensação que resta é a de permanecer ilhado, desconectado do mundo.
Se Umberto Eco reconhece a influência do jornalismo no seu cotidiano, não estaríamos exagerando ao afirmar que esse procedimento
se repete com a maioria das pessoas em qualquer sociedade. Portanto,
entendemos que a informação encontrada nos meios impressos,
independentemente de sua repercussão, ocasiona interferências
na sociedade por apresentar conteúdos desencadeadores de ideias
e debates destinados a formar opiniões entre os leitores. A atuação
social das pessoas, dessa maneira, encontra no jornal uma referência
na medida em que alimenta o diálogo, oferece versões e apresenta
determinados fatos. Nesse processo, a história entra para dialogar
e ampliar o imediato, tal como apresentado pelo jornalismo. Sua
preocupação, na construção de uma narrativa mais densa e contextualizada, resulta na necessidade de elaborar um quadro de fundo
no qual os acontecimentos do dia a dia adquirem um sentido mais
profundo e coerente. A contextualização, entre outras coisas, forma
uma totalidade importante para evitar a superficialidade muitas vezes decorrente da rapidez e velocidade com a qual o jornalista se vê
obrigado a conviver para realizar, a contento, sua jornada de trabalho.
Nesse âmbito, jornalismo e história se encontram. Ambos estabelecem pautas comuns que se enriquecem quando existe uma
aproximação real na qual se cruzam saberes e experiências peculiares
a cada área. A crítica do jornalismo de que a história trabalha com
o passado desaparece, uma vez que o passado se relaciona com a
atualidade de maneira clara e direta. O passado tem uma analogia
íntima com o presente e com a atualidade. Pela história, elaboramos
reconstituições interpretativas de modelos sociais, econômicos,
políticos e culturais que desembocam na atualidade. Resulta tão
importante desvendar o passado como interpretar o presente, o
momento atual. As posições metodológicas e ideológicas, as crenças
e as convicções pessoais, as maneiras de avaliar o momento em que
se vive formam fatores presentes na elaboração de seus trabalhos
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tanto para os historiadores como para os jornalistas. A neutralidade
em ambas as profissões não existe.
O jornalista, no exercício de suas atividades, seleciona e torna
públicos determinados acontecimentos em prejuízo de outros. A
decisão para realizar essa operação resulta dos critérios assumidos
pelo jornal e pelo que o jornalista, individualmente, considera ser
importante. Na medida em que acontece a aproximação e o conhecimento do saber histórico, não temos a menor dúvida, algumas
notícias merecerão mais destaque e virão mais contextualizadas e
mais bem estruturadas do que aquelas que não passam de meras
notas de redação. Não que as notas de redação, uma vez tornadas
públicas, não tenham seu valor. Ocorre que determinados temas e
valores construídos no passado, portanto próximos do saber histórico, e ainda presentes na atualidade, incidem mais diretamente nas
reflexões que eventualmente possam ser realizadas na sociedade no
seu cotidiano. Ou seja, a aproximação cria um campo de reflexão e
convergência que de forma alguma são excludentes.
Não pretendemos, nesta parte do trabalho, como salientávamos,
elaborar um modelo ou realizar uma aproximação na qual não se
respeitem as marcas específicas de cada ciência. Reconhecemos que
em determinados assuntos cada uma deve seguir caminhos próprios.
Ao aceitar as possibilidades de diálogo, insistimos na necessidade
de se elaborarem trabalhos nos quais se apliquem procedimentos
destinados a comprovar a viabilidade da aproximação. Essa é a tarefa
que procuraremos desenvolver nas páginas seguintes.
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Comunicação e história: