1 DIÁRIO DE CAMPO: O REGISTRO COMO INSTRUMENTO ANALÍTICO E REFLEXIVO NA INICIAÇÃO À PRÁTICA DOCENTE Tacicleide Dantas Vieira Jackeline Rebouças Oliveira Orietadora Maria da Penha Casado Alves Departamento de letras - UFRN A escrita é uma aliada à memória. No caso da produção de um diário de campo, a escrita torna-se o registro da memória. Nas páginas dos diários de professores em formação inicial, dialogam as múltiplas vozes que fazem do espaço escolar tão heterogêneo e complexo. O PIBID, enquanto programa promotor da iniciação à docência, tem oferecido experiências a nós bolsistas que há pouco mais de um ano preenchem as folhas de um diário confidente de nossos planos e metas, expectativas e frustrações, surpresas e conflitos. Escrever acerca da nossa ação nos permite refletir sobre ela, sopesar avanços e estagnações, reavaliar constantemente nossa prática. Ao fazermos a releitura das cenas que protagonizamos ou assistimos, as diversas vozes do “eu” e do “outro” ressoam, permitindo-nos olhar distanciadamente e recuperar fatos para analisá-los criticamente. Nesse sentido, o presente trabalho se propõe a apresentar o diário de campo como instrumento valioso para a análise e a reflexão na/da prática docente, considerando as escrituras de bolsistas PIBID. Para tanto, utilizaremos como referenciais teóricos Bakhtin (1997), Machado (1998), Zabalza (1996), a fim de subsidiarem nosso enfoque da escrita diarista. Palavras-chave: PIBID, prática docente, diário de campo. Introdução Esse trabalho tem como objetivo apresentar o diário de campo visto como instrumento valioso para análise e reflexão da prática docente. Para tanto, consideramos a escrituras dos bolsistas do projeto institucional de iniciação à docência (PIBID). Esse programa visa potencializar a formação inicial de professores por meio de ações, experiências metodológicas e práticas inovadoras que qualifiquem o ensino. O PIBID é coordenado pela professora da Dra Maria da Penha Casado Alves, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e suas ações se desenvolvem na Escola Estadual José Fernandes Machado. Orientamos nossos estudos, sobre o nosso próprio diário de campo na concepção de Bakhtin (1997) A respeito do conceito da exotopia, um lugar afastado, mas não distante da situação, sendo assim, o excedente de visão é uma posição a partir da qual o sujeito vê o mundo com certo distanciamento o que dar condições de ver elementos que a proximidade não daria. É esse distanciamento que nos permite direcionar nossa prática enquanto bolsista. Um outro conceito que nos auxilia a compreender a importância do diário é o de Machado (1998) que diz ao lado dessa 2 função de busca de conhecimento, a produção diarista aparece, frequentemente, como uma forma de fazer um balanço das próprias ações. É nessa perspectiva de busca de conhecimento da nossa prática como bolsistas e professores em formação inicial, que procuramos mostrar a importância do diário, para recomposição de nossas atividades, uma vez que ele possibilita recuperar tudo que fazemos. PIBID: da iniciação a docência a reflexão da prática através do diário de campo Atualmente a formação inicial e continuada de professor tem passado por mudanças estudos apontam um modelo de prática reflexiva, no qual o professor tem que construir seu saber através experiências vivenciadas em sua prática docente e ser capaz de refletir sobre ela. Freire afirma que: “[...] na formação permanente de professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. (FREIRE, 1996, p.39)”. Assim, o professor precisa refletir sobre o seu trabalho sempre se posicionando criticamente na hora de tomar decisões e questionar sua prática, procurando mudar sua maneira de atuar. No dizer de Alarcão: [...] Os processos de formação implicam o sujeito num processo pessoal, de questionação do saber e da experiência numa atitude de compreensão de si mesmo e do real que circunda. É efetivamente a postura de questionamento que caracteriza o pensamento reflexivo [...] nenhuma estratégia formativa será produtiva se não for acompanhada de um espírito investigação no sentido da descoberta e envolvimento pessoal e é esta uma das ideias que deve estar na base do conceito de professor investigador (ALARCÃO, 1996: 81). O professor tem que trabalhar pensando nesse ambiente heterogênio que é a escola procurando solucionar os problemas desse cotidiano escolar, para isso, ele deve direcionar seu olhar crítico sobre sua prática docência. É nessa perspectiva de melhoria da prática a partir da reflexão que foi proposta, pela coordenadora do PIBID do subprojeto de língua portuguesa, a adoção de um diário cuja função seria registrar tudo fazemos e observamos na escola, expondo de forma crítica nosso ponto de vista. O diário de aula se constitui, portanto, uma ferramenta de investigação e reflexão da nossa prática, um confidente valioso que permite através da memória recuperar tudo que fazemos. No entendimento de Canetti (1965 apud MACHADO, 1998, p.31) “[...] o aspecto positivo que encontra na manutenção do diário é o de ele possibilitar a fala consigo mesmo, ou com o outro “eu”, que é, nas suas palavras, o interlocutor cruel”. Dessa forma, podemos dizer que o diário por ser um gênero íntimo nos dá condições para falar de nós mesmo, refletir sobre os fatos que presenciamos e as experiências vividas na sala de aula, de forma espontânea e crítica. Ainda na perspectiva de reflexão, utilizamos o olhar exotópico de Bakhtin (1997) que é a posição a partir da qual o sujeito vê o mundo com certo distanciamento, o que lhe permite perceber elementos que a proximidade não permitiria, assim, a partir dessa exotopia, desse olhar sobre si mesmo, passamos a nos conhecer melhor, questionando algumas de nossas atitudes no ambiente escolar e na própria sala de aula. Nesse sentido, acerca desse olhar exotópico Backitin afirma que: Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar 3 no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstancias – todos os outros se situam fora de mim. A exotopia concreta que beneficia só a mim, e a todos os outros a meu respeito, sem exceção, assim como o excedente de minha visão que ela condiciona, em comparação a cada um dos outros (é, corretivamente, una certa carência – o que vejo do outro é precisamente o que só o outro vê quando se trata de mim, mas isso não é essencial para o nosso propósito pois, em minha vida, a inter-relação “eu-o outro” é concretamente irreversível (Bakhtin, 1997: 44). Ao fazermos a releitura das cenas que protagonizamos ou assistimos com base no olhar exotópico, encontramos o outro de nós mesmos, pois esse distanciamento possibilita o autoconhecimento, contribuindo bastante para redirecionarmos nossas atividades. Esse excedente de visão, esse outro que habita em nós, encontra-se na leitura de cada página do diário. Assim, o diário tem se constituído uma ferramenta muito valiosa, pois suas páginas trazem narrativas de experiências vivenciadas no ambiente tão heterogêneo como a escola. No diário registramos os gêneros trabalhados, os exercícios, as dificuldades de alguns alunos e também as dificuldades que enfrentamos nesse ambiente desafiador. Podemos sintetizar a importância do diário nas seguintes palavras de Zabalza: [...] uma função em que as representações do conhecimento humano se modificam e se reconstroem no processo de serem recuperados por escrito. As unidades de experiência que se relatam são analisadas ao serem escritas e descritas de outra perspectiva, vêem com uma luz diferente (Zabalza, 1994: 95). Pela citação, podemos ver que a escrita diarista é bastante importante, uma vez que ajuda recuperar todas as atividades desenvolvidas, permitindo recompor os planos e aprimorar nossa prática. Desse modo, podemos dizer que a adoção do diário de campo como instrumento de reflexão e investigação tem sido de fundamental importância para nós bolsista do PIBID, pois tem possibilitado reavaliar nossa prática e rever nosso planejamento. Análise do diário: conhecimento da prática por meio da releitura do diário A seguir, apresentaremos os registros que estão nos diários, como somos treze bolsistas atuando em turmas de 1º ,2º e 3º do anos do ensino médio, nos turnos vespertino e noturno, optamos nomear o diário com x e y escolhemos os diário aleatoriamente. Procuramos observar nessas escritas diaristas nosso próprio olhar exotópico, esse olhar quando estamos distantes da sala de aula, os questionamentos do outro “eu” sobre as atividades de sala e o que poderia ser feito para mudar. Nesta tarde foi iniciado a escrita do gênero lenda urbana. Os alunos não mostraram dificuldade em desenvolver suas histórias. Creio que essa aceitação e participação deve-se, em grande parte, á essência incomum do gênero, um trabalho ousado esse o que nos propomos. Nesse relato da bolsista x, percebemos que trabalhar com o gênero lendas urbanas foi uma experiência inovadora que deu certo, recuperando essa experiência 4 através da nossa escrita no diário, levaremos para outra turma com a mesma perspectiva de que certamente a turma aceitará de forma positiva. Expomos o filme “os narradores de javé” e levamos o conto “piabinha” de Luiz Vilela. Achei que deveríamos ter explorado mais os contos da tradição oral, ou seja, diferenciar os contos que íamos trabalhar dos da tradição oral, afinal é disso que trata o filme os conhecidos “causos”. Poderíamos ter levado contos de Câmara Cascudo e apontar as diferenças do conto “piabinha. Nesse exemplo, podemos observar que bolsista y, repensa a prática se posicionando diante do que poderia ter feito para acrescentar aos alunos, ela percebe que deveria ter levado contos da tradição oral para que eles pudessem diferenciar dos literários. É nessa releitura do diário que percebemos o que faltou e que pode ser feito para melhorar a prática docente. Começamos trazendo a apresentação do jornal como suporte no qual veicula diversos gêneros, mostramos os mais recorrentes e focamos nos dois que serão escrito e rescritos. Os alunos prestaram atenção, na medida do possível, mas creio que o tema precisa ser revisado posteriormente, a estrutura da reportagem, bem mais complexa, parece ter ficado um pouco vago. A bolsista x percebe a complexidade do gênero reportagem e tem consciência que deve ser feita uma nova revisão. É o diário que nos faz recuperar todas as nossas ações dentro e fora da sala de aula. Dessa forma, procuramos melhorar nossa prática, trazendo sempre atividades que possa ajudar na aprendizagem do aluno. Finalmente finalizado o trabalho com os gêneros jornalístico, tivemos algumas dúvidas quanto a escolha do próximo. Cogitamos trabalhar algo em poesia, mas nos vimos sem tempo para preparar um bom material, deixamos a poesia para o último trabalho e escolhemos o conto, seguindo na sequência narrativa. Observamos nesse comentário da bolsista x, que os bolsistas reveem seus planos com relação ao próximo gênero a ser trabalhado. Eles percebem que o tempo que dispõe é pouco para obter material para trabalhar com poesia, então, decidem trabalhar com contos. Nesse primeiro momento, observei os alunos embaraçados diante da folha em branco, o clássico “não saber como começar”, verificamos as dificuldades repassamos a proposta e discutimos o que pode ser feito, a exploração da imaginação. Aconselhamos também que amadurecessem suas ideias, pensassem no que continuar a explorar no momento da produção. Aqui a bolsista x vê a grande dificuldade que os aluno têm diante de uma folha em branco, portanto, tem logo a inciativa de repassar outra proposta de atividade e discutir com os alunos o que podem fazer para melhorar o desempenho na hora de escrever. Quando nos vemos diante de um problema e tomamos uma decisão certa é reflexo de experiências anteriores que deram certo. 5 Quando escrevemos em nossos diários, o eu daquele momento é um: são bolsistas relatando seu próprio trabalho docente, dessa forma, o ambiente e a situação permitem um olhar, porém, ao nos afastarmos dessa escrita para reler o que escrevemos o eu é outro, portanto, o olhar é diferente é de leitores reflexivos, que conseguem perceber todas as dificuldades dos alunos e da prática em si, é essa exotopia, esse olhar distanciado, que possibilita o autoconhecimento e reavaliação constante do que fazemos, procurando melhorar nosso trabalho. Conclusão Pela análise das produções dos diários de aula dos futuros professores de língua materna, bolsistas do PIBID, concluímos que o diário tem sido uma ferramenta valiosa para reflexão da prática docente e a ressignificação do ensino de língua materna na sala de aula de rede pública, uma vez que é um caminho de retorno para si e para o outro, de acompanhamento e de crítica, pois ao reler nossos diários conseguimos recuperar tudo que fazemos. O diário de campo tem nos proporcionado ser investigadores de nossa própria prática permitindo rever nossos planos, isso acontece através da exotopia, desse olhar distanciado. Referências ALARCÃO, I. Ser professor reflexivo – formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto Alegre: Porto Alegre, 1996. BAKTHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MACHADO, A. R. O diário de leituras: introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ZABALZA, M. A. Diários de aula. Porto/Porto: Porto, 1994.