BARREIRAS: FORMAÇÃO OU GRUPO? (CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE GEOMORFOLÓGICA DO LITORAL SUL DA BAHIA E DAS “CHAPADAS” DO JEQUITINHONHA) Caio Mário Leal Ferraz1; Roberto Célio Valadão2. Programa de Pós-Graduação em Geografia, IGC-UFMG ([email protected]); 2 Departamento de Geografia, IGC-UFMG. 1 Abstract The geological and geomorphological literature presents works in which the stratigraphy, chronology and occurrence area of the sedimentary coverings of the Barreiras Group is discussed, even though there still remains some controversial aspects related to its stratigraphical hierarchy and chronology. Few sedimentary registers of this group are recognized in the continental interior and many of these are mentioned under distinct nomenclatures. The current work starts of the principle that the São Domingos Formation, Pliocene aged, which covers some plain-topped morphologies (“chapadas”) located on the middle course of River Jequitinhonha – northeast of Minas Gerais –, is correlated to the inferior sequence of the Barreiras Group. In this context, geomorphological inquiries turned to the understanding of the landform’s evolution and dynamics during the neocenozoic have used the coverings of the Barreiras as an element of chronological calibration of denudational events related to the elaboration of planning surfaces. The data presented in these works suggest that the Barreiras is composed of two distinct sedimentary sequences, individualized by a erosive discontinuity and, in some areas, an angular discontinuity. These sequences - formations? - would present particularitities to its chronology, stratigraphy and depositional environment. Palavras-chave: Desnudação, sedimentação, estratigrafia. 1. INTRODUÇÃO O Grupo Barreiras (Bigarela & Andrade, 1964; Amador & Dias, 1978; Saadi, 1985; Valadão, 1998) tem sido referenciado na literatura geológica como uma seqüência deposicional continental, de gênese fluvial e idade mio-pliocênica, que apresenta ampla distribuição geográfica ao longo da fachada sublitorânea e litorânea brasileira, abrangendo áreas que se estendem desde a desembocadura do Rio Amazonas – Estado do Pará – até a região costeira do Estado do Rio de Janeiro (IBGE, 1987). Inúmeros trabalhos de caráter geológico e geomorfológico têm fornecido dados de ordem cronológica, estratigráfica e acerca da distribuição espacial das seqüências desse grupo. No entanto, permanecem controversos conhecimentos relativos à hierarquia do Barreiras quanto a sua posição enquanto formação ou grupo, o que implica em discussões acerca da sua estratigrafia. Além disso, poucos registros desse grupo no interior continental, geralmente isolados e de pequena extensão, são tratados na literatura. Outras seqüências neocenozóicas cronocorrelatas freqüentemente são mencionadas sob nomenclaturas distintas, a exemplo da Formação São Domingos que capeia “chapadas” cujas altitudes chegam a 1000 m, no médio vale do Rio Jequitinhonha – nordeste de Minas Gerais –, descrita por Guimarães (1951), Pedrosa-Soares (1981) e Saadi & Pedrosa-Soares (1991) como sedimentos argilo-silto-arenosos que preenchem paleocanais fluviais ou ainda na forma de seqüências lacustres continentais, de idade pliocênica (Saadi, 1995). Nesse sentido, o objetivo desse trabalho é apresentar contribuições oriundas da geomorfologia que auxiliem no entendimento das ocorrências desse grupo no interior continental, na sua importância como elemento de calibração cronológica da evolução do relevo, hierarquização estratigráfica, ambientes deposicionais e cronologia, bem como avaliar o contexto tectônico vigente durante sua deposição. 2. A ÁREA INVESTIGADA A área investigada se localiza no nordeste do Estado de Minas Gerais e extremo sul do Estado da Bahia (Figura 1A). O substrato litológico da área é composto por rochas arqueano-proterozóicas de variado grau metamórfico, destacando-se litologias do Supergupo Espinhaço e Grupo Macaúbas a oeste; complexos migmatitogranulítico e graníticos, na porção central; e coberturas neocenozóicas do Grupo Barreiras, a leste. Grandes lineamentos de direções principais NW e NE distribuem-se ao longo da área (Figura 1B). De modo sucinto é possível identificar três unidades de relevo na área. A primeira unidade é caracterizada pelas elevações da Serra do Espinhaço e “chapadas” da sua borda oriental. A leste das “chapadas” ocorre unidade caracterizada por modelado de intensa dissecação fluvial estruturalmente controlada, no qual estão presentes pontões graníticos distribuídos em quase toda a sua extensão. A porção sublitorânea apresenta modelado caracterizado por interflúvios tabulares extensos, esculpidos nas seqüências do Grupo Barreiras. Esses interflúvios são recortados por vales largos, alguns deles de fundo chato, sendo freqüentes linhas de drenagem tectonicamente orientadas (Figura 1C). 3. A GEOMORFODINÂMICA MESOCENOZÓICA DA ÁREA INVESTIGADA A partir da análise das unidades de relevo existentes na área foram destacados três níveis altimétricos: (i) “chapadas” de cimeira, cujas altitudes médias correspondem a cotas de 1000 m, localizadas no flanco oriental da Serra do Espinhaço; (ii) “chapadas” de topos basculados, que apesar de apresentarem elevações máximas que ocasionalmente alcançam os 1000 m, caracterizam-se por um basculamento para NW, chegando a apresentar cotas 650 m; e, (iii) tabuleiros sublitorâneos, que apresentam modelado rampeado em direção ao litoral, exibindo gradiente que decresce da cota média de 300 m até o nível marinho. As “chapadas” de cimeira são representadas por feições de topos planos ou suavemente ondulados, de orientação NE, delimitadas por escarpamentos vigorosos (Figuras 1C e 2). O divisor hidrográfico que delimita os vales dos rios Jequitinhonha, a oeste, e Araçuaí, a leste, é constituído por uma “chapada” alongada no sentido SW-NE, que apresenta escarpamentos festonados pela drenagem estruturalmente controlada por lineamentos de mesma direção. As coberturas que as capeiam são representadas, majoritariamente, por Latossolos vermelhoamarelos profundos, que apresentam níveis laterizados e cascalheiras compostas por quartzo e blocos de xistos alterados, em profundidade geralmente superior a 2 m e espessura variável. Segundo Valadão (1998), tais características geomorfológicas representam remanescentes da Superfície Sul Americana, que teria sido resultante de um aplanamento iniciado durante o Aptiano, alcançando expressiva extensão geográfica na fachada oriental brasileira. Mais a leste, remanescentes dessa superfície, fragmentados pela incisão fluvial, apresentam-se basculados para NW, em direção ao vale do Rio Araçuaí. Coberturas neocenozóicas da Formação São Domingos estão presentes nos topos de algumas dessas “chapadas”, em altitudes nunca inferiores a 650 m (Figura 2). A composição faciológica dessa formação é caracterizada por sedimentos continentais pliocênicos, de composição argilo-silto-arenosa, cuja origem esteve ligada ao preenchimento de canais fluviais (Pedrosa-Soares, 1981; Saadi, 1995). Normalmente apresentam estratificações plano-paralelas, embora localmente estratificações cruzadas estão presentes nos níveis arenosos, entre os quais é comum a ocorrência de seixos e blocos de quartzo, organizados em camadas de geometria lenticular, contendo, também, seixos de quartzo arredondados (Saadi, op. cit.). Em virtude da ocorrência desses sedimentos, Saadi (op. cit.) concluiu que a Superfície Sul Americana teria sido rebaixada tectonicamente e formado o piso do Graben de Virgem da Lapa (Saadi & Pedrosa Soares, 1991) e que as seqüências desse grupo estariam correlacionadas, nessa latitude, aos sedimentos costeiros do Grupo Barreiras, uma vez que o abatimento tectônico dessa superfície teria levado a uma grande atenuação do gradiente topográfico com relação ao nível do mar. Esses dados indicam que, durante o Mioceno, a elaboração da superfície Sul Americana teria sido interrompida em função de atividades tectônicas distencionais, relacionadas às reativações tectônicas do Mioceno Superior, ao qual Valadão (1998) atribui o início da elaboração da Superfície Sul Americana I. O posicionamento altimétrico da Formação São Domingos nos topos de “chapadas” é atribuído a soerguimentos posteriores à sua deposição (Saadi, 1995), possivelmente ocorridos durante o Plioceno, marco que define o encerramento da elaboração do aplanamento miocênico (Valadão, op. cit.). Em síntese, a Superfície Sul Americana teria sido localmente afetada por movimentações tectônicas distensivas, responsáveis pela nucleação do Graben de Virgem da Lapa, no qual ocorreu a deposição da Formação São Domingos. Assim como no interior continental, foram analisadas, na fachada sublitorânea, as coberturas nas quais o relevo aplanado e rampeado em direção ao litoral foi modelado. Esse nível topográfico foi elaborado sobre rochas arqueanoproterozóicas de médio a auto grau metamórfico, bem como sobre coberturas do Grupo Barreiras. A pedogênese que alterou o substrato pré-cambriano desenvolveu, comumente, Latossolos vermelho-amarelos profundos, que apresentam níveis laterizados, ao passo que sobre as coberturas neocenozóicas ocorrem Latossolos amarelos que exibem encrostamentos lateríticos interrompidos pela dissecação fluvial. Essas características geomorfológicas conferem identidade a uma superfície de aplainamento modelada na fachada sublitorânea (Figura 2), que em virtude da época de deposição do Grupo Barreiras, tem sua idade atribuída ao Pleistoceno. A partir do soerguimento pliocênico, essa superfície evoluiu através da dissecação da Superfície Sul Americana, fragmentada tectonicamente, através dos principais eixos de drenagem – rios Mucuri e Alcobaça – viabilizando a deposição da seqüência superior do Grupo Barreiras, na fachada sublitorânea. 4. RELAÇÕES ENTRE A GEOMORFODINÂMICA CONTINENTAL E AS SEQÜÊNCIAS DEPOSICIONAIS NEOCENOZÓICAS A deposição do Grupo Barreiras que, segundo Amador & Dias (1978) teve início no Mio-plioceno, envolveu a deposição de sedimentos oriundos do manto de alteração que capeava os remanescentes da Superfície Sul Americana. A desnudação mecânica dessas coberturas foi acentuada a partir do soerguimento generalizado ocorrido no Mioceno, o qual afetou a porção continental adjacente à fachada sublitorânea (Valadão, op. cit.). À mesma época, a nucleação do Graben de Virgem da Lapa teria rebaixado, localmente, a Superfície Sul Americana à posição de piso desse graben, atenuando o gradiente topográfico a altitudes próximas do nível de base geral. As seqüências deposicionais da Formação São Domingos são resultado da sedimentação de materiais provenientes do manto de alteração que capeava os remanescentes daquela superfície que permaneceram em cotas altimétricas elevadas, figurando, portanto, como áreas fonte de sedimentos. Esses dados indicam que as seqüências pliocênicas do Grupo Barreiras e da Formação São Domingos possuem, em comum, a idade de deposição e as áreas de proveniência de seus sedimentos. Além disso, as suas características faciológicas demonstram similaridade composicional e estratigráfica, o que levou Pedrosa-Soares (1981) e Saadi (1995) a indicarem uma continuidade geográfica durante a deposição dessas seqüências, o que torna as ocorrências da Formação São Domingos correlacionáveis às do Grupo Barreiras em cronologia e ambiente deposicional. Valadão (1998) interpreta que as seqüências basais do Grupo Barreiras se relacionam ao aplanamento miocênico – Superfície Sul Americana I –, que teria fossilizado, na fachada sublitorânea, os remanescentes da superfície mais antiga. A elaboração desse aplanamento teria sido interrompida apenas no final do Plioceno, quando um soerguimento significativo da fachada sublitorânea foi responsável pela interrupção dos condicionantes geodinâmicos sob os quais se processou a evolução da superfície miocênica. Durante o Pleistoceno, por sua vez, a elaboração da superfície sublitorânea esteve intimamente associada à deposição da seqüência superior do Grupo Barreiras, que lhe confere identidade. Uma vez que esse aplanamento é correlacionado ao soerguimento pliocênico, a seqüência superior desse grupo fossiliza a Superfície Sul Americana I. O fato da seqüência mais recente desse grupo recobrir um aplanamento pretérito sugere uma descontinuidade entre a seqüência basal e a superior do Grupo Barreiras, essa última atribuída ao Pleistoceno por Amador & Dias (1978). Essa interpretação é reforçada pelo fato de que a seqüência superior desse grupo teve deposição iniciada a partir do soerguimento atribuído ao Plioceno Superior por Valadão (1998), bem como se relacionou a regressões do nível marinho ocorridas nesse mesmo período (Bigarela & Andrade, 1964; Suguio et al., 1985). Em função disso, duas seqüências deposicionais do Grupo Barreiras podem ser identificadas, bem como um intervalo temporal entre os seus eventos deposicionais pode ser apontado – Mio-plioceno para o Barreiras Inferior e Pleistoceno para o Barreiras Superior (Valadão, op. cit; Amador & Dias, op.cit.). Nesse contexto, a Formação São Domingos é crono-correlata apenas à seqüência inferior do Grupo Barreiras. Uma vez que a seqüência pliocênica desse grupo se apresenta separada de sua seqüência superior por uma descontinuidade erosiva – relacionada à Superfície Sul Americana I – e por um intervalo temporal significativo, sugere-se o posicionamento hierárquico do Barreiras como Grupo, já que podem ser identificadas duas formações de idades e ambientes deposicionais distintos. 5. CONCLUSÕES Duas superfícies de aplainamento foram identificadas na área investigada, sendo a Superfície Sul Americana (Valadão, 1998) representada por seus remanescentes que constituem “chapadas” na área da bacia do Rio Jequitinhonha, capeadas localmente por coberturas neocenozóicas da Formação São Domingos, e uma superfície na fachada sublitorânea, recoberta pelo Grupo Barreiras. A Formação São Domingos é cronocorrelata à seqüência inferior do Grupo Barreiras, sendo possível compará-las do ponto de vista faciológico e estratigráfico. Ocorrências dessa formação que capeia topos de “chapadas” basculadas para NW foram soerguidas tectonicamente durante o Plioceno Superior, em momento posterior ao preenchimento do Graben de Virgem da Lapa, de idade miocênica. A seqüência superior do Grupo Barreiras foi depositada a partir da dissecação dos remanescentes da Superfície Sul Americana em função do soerguimento pliocênico, cuja intensidade pode ser inferida em até 300 m, a partir da profundidade da dissecação fluvial que fragmentou, topograficamente, seus remanescentes. Partindo-se do princípio que após a sedimentação da seqüência pliocênica do Grupo Barreiras e da Formação São Domingos houve continuidade na elaboração da Superfície Sul Americana I, na fachada sublitorânea, é plausível presumir que exista uma discordância entre a seqüência basal e a deposição do Barreiras Superior, de idade pleistocênica. Nesse caso, pode-se atribuir ao Barreiras, do ponto de vista hierárquico, a categoria de Grupo, atribuindo-lhe duas formações: uma inferior, de idade miopliocênica e outra superior, de idade pleistocênica. 6 - AGRADECIMENTOS Agradecemos ao CNPq pelo fomento às atividades de pesquisa que viabilizaram a elaboração desse trabalho. 7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADOR, E. & DIAS, G.T.M. 1978. Considerações preliminares sobre depósitos do terciário superior no norte do Espírito Santo. An. Acad. Bras. Ciências, 50(1):121-122. BIGARELA, J.J. & ANDRADE, G.O. 1964. Considerações sobre a estratigrafia dos sedimentos cenozóicos em Pernambuco (Grupo Barreiras). Universidade de recife, Arquivos do Inst.Ciên. Terra, Recife, 2:2-14. GUIMARÃES, D. 1951. Arqui-Brasil e sua evolução geológica. Bol. D.F.P.M./DNPM, Rio de Janeiro, (88):1-341. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. 1987. Folha SE 24 Rio Doce: geologia, geomorfologia, pedologia vegetação, uso potencial do solo. 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