DESVIOS ORTOGRÁFICOS EM REDAÇÕES DO ENSINO MÉDIO E RESULTADOS FONÉTICOS E FONOLÓGICOS Nícia de Andrade Verdini Clare [email protected] Há alguns anos atrás, realizei uma pesquisa de desvios ortográficos, examinando redações de alunos de uma escola estadual e de uma escola particular, ambas situadas na Tijuca. Embora a faixa etária dos alunos fosse praticamente a mesma, notei desvios muito mais freqüentes na escola estadual do que na particular, o que me levou a concluir que, na escola particular, o ensino foi feito com mais apuro. É claro que se somam a isto as questões de ordem social. Mas vamos aos fatos: Examinadas as redações, verifiquei que alguns fatos se repetem com mais freqüência. O acento, por exemplo, quer seja agudo, circunflexo ou grave, não é dominado pela maioria. Isto nos leva a pensar que, se tal desconhecimento persistir, os acentos acabarão pertencendo apenas aos dicionários e às gramáticas. Na prática, haverá uma tendência a aboli-los. O fenômeno da crase é desconhecido da maioria que passa a usar o acento grave indicativo indiscriminadamente, revelando que não se estabelece a relação preposição mais artigo (ou pronome). Regras de emprego de maiúsculas e minúsculas são desconhecidas principalmente entre alunos da escola estadual. Há extrema dificuldade entre o emprego de a preposição, há do verbo haver e à, contração de preposição com artigo. As formas verbais tem e têm, respectivamente relativas ao singular e ao plural, tendem a igualar-se, sendo a concordância apenas determinada pelo contexto. A oscilação e/i, o/u é freqüente, sofrendo constante processo de assimilação. Os fonemas /r/, ( brando e forte) e /l/ , na qualidade de líquidos, apresentam traços de vocalismo e de consonantismo, como sabemos. Essa instabilidade leva-os a processos de dissimilação, assimilação e metátese freqüentes. Desvios gráficos no uso de c, ç, s, ss, como representantes do fonema /s/, são várias vezes observados, mostrando que o usuário da língua afasta-se do convencional, se lhe aprouver. Tendências não só à aglutinação como também à deglutinação estabelecem a diferença entre a língua falada – onde o fenômeno só é identificado pela pausa ou ausência dela – e a língua escrita, quando o aluno sente a necessidade de aglutinar a palavra clítica ao vocábulo fonológico que se lhe segue. Por outro lado, seguindo processos analógicos, faz a deglutinação, especialmente do a de determinados radicais, encarando-o como se artigo fora. As letras s e z, g e j também são usadas indiscriminadamente para representar, respectivamente, os fonemas alveolares e palatais sonoros. A ressonância nasal – arquifonema /N/, para Mattoso Câmara – é representado tanto pela letra m como pela n, sem a menor preocupação com o convencional. Fato curioso foi a observação de um novo tipo de acento que marca, não a intensidade da sílaba tônica, mas, sim, a abertura da vogal, geralmente de sílaba inicial. Nota-se a absorção do u semivogal, monotongando o que seria um ditongo, mas, por outro lado, verifica-se também a inclusão desse u, como semivogal, para evitar encontros desagradáveis (caso de pessoua por pessoa). A falta de pingos nos is e jotas é constante, representando um desleixo de escrita. Outro fenômeno que se repetiu foi a apócope do –r- final, morfema modo-temporal de infinitivo, algumas vezes alterando a prosódia dos vocábulos. Palavras longas que portam dígrafos geralmente apresentam variantes. É o caso de coincentizar por conscientizar. No caso dos proparoxítonos, síncope da sílaba postônica é comum: invocro por invólucro. O proparoxítono é evitado a todo custo. Em medilcre por medíocre, temos a substituição da sílaba vocálica o pelo /l/ travador de sílaba, evitando o hiato e criando, assim, um ditongo fonético. Passemos, agora, à exibição de alguns exemplos retirados das redações: 1 – enteder – variante de entender. Ocorre a desnasalização do fonema /e/, da segunda sílaba, em conseqüência de uma provável dissimilação em relação à sílaba inicial; 2 – corrigí-los – por corrigi-los – Acento indevido no i do oxítono, quando a regra determina que só sejam acentuados a, e, o. A intenção é conferir maior intensidade à sílaba tônica. 3 – na quilo – por naquilo- Talvez por associação ao substantivo quilo, o aluno provoque a deglutinação, isolando a preposição como se fosse resultante de em+a e não de em + aquilo. O sentido do pronome demonstrativo se perde e a mensagem fica truncada. O problema é morfológico, fonológico e semântico. 4 – pradrão – variante de padrão. O /r/ epentético é resultado de um processo de assimilação em relação à sílaba seguinte. Sendo /r/ um fonema líquido, portanto instável, representa, não raro, o segundo fonema de um grupo consonantal. Havendo já um grupo consonantal na tônica, o aluno recriou-o na pretônica. 5 – oque – variante de o que. Sendo o uma palavra clítica, sem status fonológico, há uma tendência a aglutiná-lo ao pronome interrogativo que se segue. 6 – as vêzes – por às vezes. O aluno não percebeu o fenômeno da crase que introduz a locução adverbial feminina. Por outro lado, acentua vezes, acento diferencial já abolido na lei de 1971 no caso dos homônimos não homófonos. 7 – desintiresse – variante de desinteresse. Ocorre uma dissimilação e> i em relação à sílaba tônica. Sendo a vogal da sílaba tônica média, ocorre um alteamento da vogal pretônica para estabelecer o contraste. 8 – comecei – por comecei. O emprego da cedilha revela desconhecimento da regra que recomenda não usar cedilha antes de e ou i. Nesse caso, o fonema é o mesmo: /s/- fricativo, anterolingual, surdo, oral. O problema é apenas gráfico. 9 – descobri – por descobrir. A apócope do r final é românica. Pertence à deriva da língua, considerando-se, principalmente, sua realização através de numerosos alofones. Na linguagem oral, o r final só é pronunciado em situações formais. 10 – diciplinada – variante de disciplinada. A omissão do s é facilmente explicável, uma vez que se trata de letra diacrítica que forma o dígrafo junto ao c. O problema é apenas gráfico sem conseqüências fonéticas ou fonológicas. 11 – espassosa – variante de espaçosa. A troca da cedilha pelo dígrafo é puramente um desvio gráfico, uma vez que o fonema permanece o mesmo. 12 – seje – variante de seja. Trata-se do presente do subjuntivo do verbo ser. Ocorre um fenômeno de assimilação. O a , morfema flexional modo-temporal do presente do subjuntivo, nos verbos de 2ª e 3ª conjugação, é assimilado pelo e da sílaba anterior. Em posição final, transforma-se no arquifonema /I? pela neutralização entre médias e altas, com predomínio das altas. O desvio, aqui, cria um problema de ordem mórfica, contrariando o sistema. 13 – véspera/ véspera – por véspera. Desconhecendo a regra de acentuação dos proparoxítonos e, principalmente, a identificação da sílaba tônica, nota-se assistematização no emprego de um acento ao acaso ou a falta do mesmo num único texto. O valor prosódico da palavra só é recuperado pelo contexto. 14 – coneto - por cometo. Ocorre um processo de assimilação por influência do t da sílaba final, que é dental, como o /n/. 15 – cordenador - variante de coordenador. Ocorre o fenômeno da crase entre os dois os, reduzindo as duas sílabas iniciais a uma só. A crase nada mais é do que um fenômeno de assimilação total, tornando mais fácil a pronúncia. 16 – pará - por para. Por analogia provável com o nome do estado brasileiro, o aluno acentua a preposição para, criando um desvio fonológico que pode prejudicar a mensagem. A prosódia é alterada de paroxítono a oxítono. 17 – afim de – variante de a fim de. O aluno desconhece a locução prepositiva e confunde a fim com afim, adjetivo. Por outro lado, a falta de status fonológico da preposição conduz à tendência de aglutiná-la. 18 – sempri – por sempre. Os fonemas /i/ e /e/ costumam sofrer oscilação. Tratando-se do /e/ final, átono, gera-se uma neutralização das médias em favor das altas e surge o arquifonema /I/. O aluno escreve foneticamente. 19 – com sigo – por consigo (verbo conseguir). O aluno provoca a deglutinação por analogia com a preposição com. O problema é fonético – fonológico (gera uma pausa e apresenta comprometimento semântico), gráfico e morfológico. 20 – oculpar – variante de ocupar. Há duas explicações plausíveis para o l de oculpar: uma de cunho analógico; outra em nível fonético. Por analogia com o verbo culpar, teria surgido oculpar; outra hipótese seria a necessidade de um apoio, considerando-se que as duas sílabas eram livres e a primeira formada apenas de uma vogal. Daí, o desenvolvimento de um l velar como o /u/ que o precede.