OLHARES CONTEMPORÂNEOS SOBRE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA COMO POLÍTICA CURRICULAR DA FORMAÇÃO DOCENTE1 CLAUDILENE MARIA DA SILVA23 Resumo O artigo objetiva discutir os olhares de professoras e professores em formação sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a promulgação da Lei nº 10.639/03. Metodologicamente, trabalhamos com a produção escrita de professoras e professores em formação inicial e continuada, elaboradas em dois processos formativos vivênciados no estado de Pernambuco. O procedimento metodológico realizado foi a análise documental. No tratamento e organização dos dados adotamos a análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2007). Na leitura dos documentos das professoras e professores em formação inicial evidenciamos o entendimento do grupo sobre o contexto de surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas possibilidades de contribuir para a superação do racismo no espaço escolar; com o grupo em formação continuada ganham destaque as dificuldades apontadas para a implementação da temática em suas práticas docentes. Os resultados indicam que a inclusão da temática nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento aos docentes em formação inicial ou continuada, embora ainda enfrente dificuldades de diversas ordens. Palavras chave: Formação docente; política curricular; ensino de História; cultura afrobrasileira. Abstract The aim of this article is to discuss believe of teachers and student of the teacher training college on the teaching of history and Afro-Brazilian culture in Brazil, 12 years after enact Law 10.639/03. Methodologically, we had worked with the written production of teachers in initial and continuing education, developed in two formative processes experienced in the state of Pernambuco in Brazil. The procedure was the documentary analysis. Treatment and organization of data, we adopted the content analysis from the perspective of Bardin (2007). Reading the documents of the teachers in initial training evidence understanding of the group of emerge the context of the Law 10.639/03 and their ability to contribute to overcoming racism in Brazilian school. The group of teachers in continuing education has highlighted the difficulties pointed to bring about the thematic in their teaching practices. The outcomes of the research indicate include of the theme in school curriculum no longer causes so much strangeness for teachers in initial or continuing education, although still face difficulties of various orders. 1 Trabalho originalmente apresentado como comunicação oral no VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros (as), na cidade de Belém do Pará – Brasil, entre 29 de julho e 02 de agosto de 2014. 2 Doutoranda em Educação; Programa de Pós -Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco/ Núcleo de Formação de Professores e Prática Pedagógica; Estudos financiados pela FACEPE. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 109 Key words: Teacher training; curriculum policy; history teaching; African-Brazilian culture. Introdução Aprendemos com Paulo Freire (2011), que sendo uma prática social, a educação ou o agir educativo de cada povo ou nação, pauta-se pelas condições e necessidades postas em seus contextos e em seu tempo. Estudos realizados por Gatti, Barreto e André (2011) sobre as políticas docentes no Brasil apontam que as novas realidades contemporâneas, preocupadas com a educação como um direito humano e entendendo o direito à educação como o direto à diferença (inclusive curricular) solicitam um novo perfil docente e incidem diretamente nos currículos que circulam tanto nas escolas, como nas instituições formadoras. Gatti, Barreto e André (2011) afirmam que os modos de gestão do currículo, constitui uma das maneiras por meio das quais a política docente se efetiva, se materializa, ganha vida. As autoras apontam indícios de que o currículo é um território em disputa social, e que esta disputa pode ser percebida inclusive a partir da concepção de currículo defendida por cada uma das partes interessadas. Nos referenciais nacionais, embora se busque responder a demanda social de inserção de questões como pluralidade cultural, gênero e sexualidade, meio ambiente entre outros temas atuais, o currículo ainda é estruturado de forma dicotômica e hierárquica. De um lado estão as áreas do conhecimento e de outro os temas transversais. Ao contextualizar as questões sobre políticas curriculares da diversidade e políticas da igualdade, no conjunto das políticas de formação docente do governo federal, Gatti, Barreto e André (2011) põem em evidência, a tensão existente entre esses dois campos e a predisposição do Ministério da Educação (MEC), em romper com o dualismo e ofertá-las de forma articulada, em que pese o fracasso dessa articulação, identificado na análise das autoras. Todavia, a oferta de políticas focais para a população negra incide diretamente na oferta de políticas universais, uma vez que esta população constitui a maioria da população brasileira e que a literatura pertinente revela que as práticas racistas na escola são um obstáculo para a aprendizagem de alunas e alunos negros/as, quando não os Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 110 afasta desse espaço. específicas não Por outro lado, consideramos que a oferta dessas políticas se destinam apenas as populações específicas que beneficiam diretamente. Sejam elas voltadas para as relações de raça, de gênero, de sexualidade, de geração, de inclusão ou qual quer outra subjetividade humana, destina-se ao benefício de toda a população brasileira. O que se busca é que se repensem as bases das relações étnico/raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional no Brasil. O que caracteriza a importância da implementação dessas políticas curriculares, portanto, da formação de professores sobre tais temáticas específicas. Dentro desse contexto, a última década tornou-se palco do desencadeamento de uma série de processos e ações educativas, de diversas ordens e nos diversos níveis de ensino, com vistas à implementação da legislação educacional brasileira4 , no que se refere à inclusão da educação para as relações étnico-raciais e do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares. Algumas dessas ações foram fomentadas, estimuladas e/ou financiadas pelo MEC por meio de editais5 . Nas pesquisas e estudos que se preocupam com essa questão6 a formação de professoras e professores ganha centralidade no debate, aparecendo em duas perspectivas: ora como maior obstáculo a ser enfrentado, ora com uma estratégia relevante para garantir o sucesso do processo de implementação da legislação. Os resultados dessas pesquisas revelam a importância dos processos formativos na constituição da prática docente, discente e gestora da instituição escolar, tanto na sua dimensão inicial, quanto na dimensão continuada. Diante da realidade descrita propomo-nos a refletir sobre a formação docente referente à temática da história e da cultura afro-brasileira no Brasil, 12 anos após a promulgação da Lei nº 10.639/03. Nosso interesse é conhecer os olhares de professoras e professores em formação sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira na atualidade. Metodologicamente, trabalhamos com a produção escrita de professoras e professores em formação inicial e continuada. O grupo em formação inicial é oriundo de 4 Em 2003 é promulgada a Lei nº 10.639 que introduz na Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da educação Nacional, o Art. 26A que determina a obrigatoriedade do ensino do estudo de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Em 2008, a promulgação da Lei nº 11.645 altera o mesmo Art. 26A, estendendo a obrigatoriedade para o ensino de histórias e culturas dos povos indígenas. 5 Ver Gomes (2009); Gatti, Barreto e André (2011). 6 Silva (2009a, 2009b); Oliveira (2011); Gomes (2012); Gonçalves e Silva (2013) entre outros. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 111 dois cursos de licenciatura (Educação Física e Ciências Biológicas) em uma instituição particular, que seguindo as recomendações do MEC para garantir uma boa avaliação conceitual dos cursos, incorporou em 2011 a matriz curricular das licenciaturas a disciplina denominada “Educação e Cultura Afro-Brasileira”. As produções desse grupo foram 19 avaliações dissertativas respondidas por esses sujeitos e utilizadas como instrumento de verificação da aprendizagem dos conteúdos ministrados na referida disciplina. O grupo em formação continuada atua nas redes públicas de ensino de 05 cidades do estado de Pernambuco e participaram do curso de extensão “Educação das Relações Étnico-Raciais”. Brasileiros da O curso foi oferecido pelo Núcleo de Estudos Afro- Universidade Federal Rural de Pernambuco (NEAB/UFRPE) e financiado pelo MEC. As produções desse grupo foram 05 diagnósticos da realidade das escolas nas quais estão inseridos, sobre a temática das relações étnico-raciais. Escritos em equipes, os documentos possuíram o objetivo de subsidiar o planejamento das aulas do curso, no módulo “Metodologia para Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino da História e da Cultura afro-brasileira” e orientar as ações do grupo em suas realidades. O procedimento realizado foi a análise documental e utilizamos como fonte as avaliações dissertativas e os diagnósticos produzidos em ambos os processos formativos. Para o tratamento e organização dos dados adotamos a análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2007), por meio da análise temática. O artigo está organizado em três sessões: na primeira parte realizamos uma discussão teórica por meio da qual buscamos enfatizar os 12 anos da Lei 10.639/03, como construção de uma política de educação para as relações étnico/raciais no Brasil, texto no qual as categorias política curricular e formação docente ganham relevo. Na segunda e terceira partes trazemos os resultados da análise da percepção das professoras e professores em formação inicial e continuada, respectivamente, sobre a implementação do ensino de história e cultura afro-brasileira na atualidade. 12 anos da Lei nº 10.639/03: construindo uma política de educação para as relações étnico/raciais no Brasil. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 112 As iniciativas educativas empreendidas pelo Movimento Social Negro Brasileiro, ao longo da história do país, são indícios de que esse movimento social sempre considerou a educação escolar como um portal poderoso para ascensão social de seu povo. Além de promover os seus próprios processos de escolarização, reivindicou e continua a reivindicar a inclusão da população negra na escola pública em todos os níveis de ensino. Entretanto, como se sabe, o espaço escolar é marcadamente discriminatório para essa população, resultando num aproveitamento desigual e exigindo-lhes maior grau de empenho para que consigam atingir o sucesso escolar (PAIXÃO, 2008). Ao perceber que o tipo de política educacional adotado no Brasil desconsiderava a população negra, a atuação do movimento negro brasileiro no século XX elegeu a educação como uma forte bandeira de luta e buscou evidenciar a necessidade de introduzir o estudo da História da África nos currículos escolares; discutir o papel da professora e do professor na descolonização do ensino; e considerar a aprendizagem pela prática cultural como elemento importante para o sucesso do processo de ensino/aprendizagem da população negra7 . O início do século XXI é marcado pela transformação, ainda que lenta, das antigas reivindicações dos movimentos negros em políticas públicas. No âmbito da educação, a promulgação da Lei nº 10.639, em 9 de janeiro de 2003, é uma conquista histórica desses movimentos (SILVA, 2009a). A partir das reivindicações de acesso da população negra à instituição escolar e da inclusão da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares, os movimentos negros brasileiros problematizaram a existência de valores e práticas discriminatórias na escola, principalmente quando essa instituição nega a existência da diferença em seus domínios. Revelou a heterogeneidade da escola e enfatizou a história de luta e resistência da população negra (uma vez que a escola apenas oferecia a história de sua escravidão) e a centralidade da cultura nos processos educacionais do povo negro. De acordo com Nilma Gomes (2010, p. 04): Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a solução de todos os males, porém, ocupa um lugar importante nos processos de produção de conhecimento sobre si e sobre “os outros”, contribui na formação de quadros intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo mercado de trabalho como critério de seleção de uns e exclusão de outros. 7 Proposições resultantes dos debates realizados no VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste, realizado no Recife, em julho de 1988. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 113 É nesse sentido que compreendemos o processo de instituição da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira como parte do embate histórico empreendido por este movimento em busca de caminhos possíveis para a construção e o fortalecimento de uma identidade étnico-racial positiva para a população negra no Brasil. Ou dito de outra forma, como resultado das lutas do Movimento Social Negro contra o racismo existente na sociedade brasileira. A alteração da LDB 9394/96 pela Lei nº 10.639/03, como lembra Gonçalves e Silva (2013 p. 2) “trata-se de uma política curricular de reconhecimento e de reparação de desigualdades”. E não por outro motivo, 10 anos após a institucionalização da política ainda são muitas as dificuldades elencadas pelos secretários de educação, como anuncia Gomes (2010), para dar corpo à gestão da diversidade em seus sistemas de ensino. Tais dificuldades embora sejam indicativas das disputas e negociações permanentes em torno da construção do texto e das vivências das práticas curriculares, também apontam para o desconhecimento dos documentos que regulamentam a Lei – o Parecer nº 03/2004 e a Resolução nº 01/2004 –, ambos emitidos pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Neles encontramos orientações fundamentais para a implementação e consolidação da política curricular. O Parecer CNE/CP 03/2004 foi elaborado sob a responsabilidade da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva8 , a partir de ampla consulta a diversas pessoas e grupos do Movimento Social Negro, Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, professores que desenvolvem trabalhos sobre a temática das relações étnico-raciais (GONÇALVES E SILVA, 2006 apud GOMES, 2009). O documento oferece caminhos possíveis para que os sistemas de ensino tenham parâmetros e condições de efetivar os preceitos da Lei nº 10.639/03. Explicita os princípios orientadores da política educacional e faz recomendações para a formação de professoras e professores, a forma e os conteúdos que devem ser abordados, a necessidade de investimentos em pesquisas, bem como a produção e aquisição de materiais didáticos. 8 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é reconhecida ativista e intelectual da causa negra. Pesq uisadora das relações étnico-raciais e africanidades brasileiras, é professora titular de Ensino -Aprendizagem das Relações Étnicorraciais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integra o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros/UFSCar. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 114 Por sua vez, a Resolução CNE/CP 01/2004 fundamentada no referido parecer, institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que devem ser adotadas pelas diversas instituições de ensino, inclusive aquelas que atuam em programas de formação inicial e continuada de professoras e professores. Destaca que o cumprimento das referidas diretrizes será considerado na avaliação das condições de funcionamento das instituições de ensino. Apresenta os objetivos de cada uma das temáticas em questão, aponta as atribuições de cada ator dos sistemas de ensino e indica possíveis parceiros para subsidiar e trocar experiências com os sistemas e estabelecimentos de ensino na implementação da política, tais como: os grupos do Movimento Social Negro (inclusive grupos culturais), as instituições formadoras de professoras e professores e os núcleos afro-brasileiros de estudos e pesquisas. Como é possível notar essa política curricular propõe-se a modificar a escola, mexendo com a estrutura da instituição, uma vez que exige a mudança de atitude dos atores da comunidade escolar em seus mais diversos níveis de atuação. Ainda segundo Nilma Gomes (2009, p. 40): Com avanços e limites, a Lei 10.639/03 e suas diretrizes curriculares possibilitaram uma inflexão na educação brasileira. Elas fazem parte de uma modalidade de política até então pouco adotada pelo Estado brasileiro e pelo próprio MEC. São políticas de ação afirmativa voltadas para a valorização da identidade, da memória e da cultura negras. Ao considerarmos que o racismo antinegro constitui elemento estruturador das relações sociais e institucionais que foram estabelecidas no Brasil, podemos concluir que, por consequência, a política curricular do ensino de história e cultura afro-brasileira propõe modificações para a estrutura da própria sociedade brasileira. Partindo desse princípio, não será difícil compreender o nascedouro das dificuldades vivênciadas e enfrentadas no exercício de sua implementação. Como assinala Gonçalves e Silva (2013, p. 2): Uma sociedade cuja herança da colonização europeia é valorizada não como um dos componentes da cultura nacional, mas como aquele em que todos deveriam privilegiadamente se pautar, os descendentes de europeus estão convencidos de que os valores, conhecimentos, tradições que herdaram de seus avós migrantes são universais. E nesse sentido, a política põe em evidência o questionamento ao modelo único de escola e dentro dele, a seleção e hierarquização dos conhecimentos curriculares, bem como as “dificuldades frequentes de pessoas de diferentes pertencimentos étnico-raciais, Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 115 notadamente brancos e negros, indígenas e não indígenas conviverem em relações de igualdade e respeito” (GONÇALVES E SILVA, 2013 p. 2). Motivo pelo qual, como sugere Oliveira (2011), ela é um instrumento que pode criar as condições para a transformação das relações de subalternidade na educação brasileira, pois se propõe a ampliar o foco dos currículos, assumindo novas abordagens interpretativas sobre a identidade nacional, com alguns pressupostos não-eurocêntricos. Nesse processo, a formação docente ganha papel relevante, uma vez que “o desafio de contar e aprender uma história outra e fazer dela um elemento de novas perspectivas políticas, epistemológicas e indenitárias nos processos educacionais” (OLIVEIRA, 2011, p. 11) não está mais apenas a cargo dos movimentos negros, mas de todos os profissionais da educação. Todavia, concordamos com o autor que este continua sendo um campo de disputas, conflitos e negociações. E, portanto, “a produção de novas enunciações e espaços de enunciações” dependerá durante muito tempo ainda da capacidade de luta e organização coletiva da população negra brasileira para dar materialidade à intencionalidade da Lei e suas diretrizes. Gatti, Barreto e André (2011), afirmam que as preocupações com a educação, com a formação de professores e suas condições de trabalho aparecem como uma questão importante na sociedade atual, exatamente por que resultam das “demandas e das pressões de variados grupos sociais” (p. 13). Ao lado do Movimento Social Negro e do Movimento Social Indígena, os Movimentos Sociais do Campo, destacados no trabalho de Maria do Socorro Silva (2009), se constitui exemplos dessas demandas e pressões. Convidando-nos a refletir sobre os sentidos e significados de uma educação contextualizada, Socorro Silva (2009) identifica e reconhece os Movimentos Sociais do Campo como protagonistas da construção e desenvolvimento de práticas pedagógicas voltadas para a educação do campo, inclusive no que se refere à elaboração de um marco jurídico específico para essa educação, assim como dá visibilidade e audibilidade às Escolas do Campo e suas práticas, temáticas como bem lembram Gatti, Barreto e André (2011), ainda silenciadas no âmbito da formação de professores e da prática pedagógica. Assim, uma das contribuições da autora para este campo de pesquisa é exatamente o questionamento ao modelo único de escola que não mais condiz com a realidade e as necessidades contemporâneas da educação brasileira, nem no campo e nem na cidade. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 116 Todavia, as novas exigências ao trabalho docente e entre elas a obrigação de dar conta das diferentes diversidades, ainda assustam e incomodam docentes e outros profissionais da educação que habitualmente foram preparados para lidar com a igualdade e não com a diferença. É nesse contexto que desejamos conhecer os olhares das professoras e professores em formação sobre a implementação da política curricular que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira. A Lei Nº 10.639/03 na Percepção de Professoras e Professores em Formação Inicial 12 anos após sua Promulgação Na leitura dos documentos produzidos pelas professoras e professores em formação inicial buscamos evidenciar o entendimento do grupo sobre o contexto de surgimento da Lei nº 10.639/03 e suas possibilidades de contribuir para a superação do racismo no espaço escolar. Identificamos três dimensões de referência à compreensão do contexto que são apresentadas pelo grupo em suas respostas: (1) o reconhecimento da luta do movimento social negro;(2) a repetição do discurso legal sobre a temática; e (3) o reconhecimento da diferença cultural entre os povos. Cabe ressaltar que estas respostas foram produzidas em situação de avaliação, que tinha como fonte de inspiração as vivências e os textos discutidos ao longo da disciplina. Portanto, tendem a refletir o entendimento construído ao longo desse processo formativo. Compreender o contexto de promulgação da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira como reconhecimento da luta do movimento social negro, expressa o protagonismo desse movimento social, mas também revela a solidão da população negra na luta antirracista no Brasil, como é possível notar nas falas que seguem: Uma conquista histórica para o Movimento Negro Brasileiro, que tanto lutou para ela ser obrigatória no contexto da escola. (PFI 3) O surgimento dessa lei partiu de muitas batalhas travadas pelos negros em busca de um ideal, uma identidade, do reconhecimento histórico de seu povo e sua importância no âmbito social, demostrando seus interesses para uma adequação antirracista nos s eus direitos como qualquer cidadão. (...) É um marco que se faz necessário e de extrema importância para o entendimento histórico que precisamos ter sobre essa realidade. (PFI 7) Ainda que considerando a solidariedade e comprometimento de pessoas e grupos antirracistas de outros pertencimentos raciais, que foram/são aliados do Movimento Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 117 Negro nesse processo, como já afirmamos em trabalho anterior, não se pode negar que as preocupações com as relações que se desenvolvem entre a educação e a questão étnico-racial fora do âmbito do Movimento Social Negro são muito recentes (SILVA, 2009b). Outra ideia importante que esta compreensão do contexto revela é o entendimento de que a atuação do movimento social negro incidiu na construção da política pública de educação, como mostra uma das professoras: “essas leis foram formadas através de grupos, onde cada grupo tinha o objetivo de defender sua etnia. Passam a vigorar no Brasil com o intuito de minimizar o preconceito, o racismo e a discriminação” (PFI 1). Uma ideia que dialoga com o trabalho de Maria do Socorro Silva (2009), quando em seus achados a autora reafirma a Educação do Campo como conquista de um direito, originária dos movimentos sociais do campo, os quais conseguiram implementar práticas pedagógicas local e nacionalmente, transformando-as em política educacional. Aponta, portanto, para um contexto político/temporal no qual, por meio de suas diversas formas de organização e luta, as demandas dos movimentos sociais específicos vão ganhando contornos de política pública. Uma segunda dimensão do contexto encontrada nas respostas do grupos em formação inicial é a repetição do discurso legal sobre a temática. Aqui é importante destacar que quando falamos em discurso legal, não estamos nos referindo apenas e especificamente ao que diz a legislação sobre o assunto, mas também ao que pode ser considerado como o “politicamente correto” sobre o contexto de surgimento da Lei, como é possível verificar no texto que segue: A lei aborda o contexto das relações étnico-raciais brasileiras, como política educacional de promoção da igualdade racial, incluindo a questão étnico -racial nas metas educacionais. Com uma abordagem de se ter um discurso sem distinção, chega -se a escola onde tudo começa a ser distinguido para que sejam compensados processos desiguais entre a população brasileira. (PFI 6) Em que pese nossa fonte documental tratar-se de uma avaliação, chama nossa atenção o fato de algumas professoras e professores trazerem uma síntese sobre o assunto tal qual os textos discutidos e utilizados para inspiração, sem demostrar suas compreensões sobre o contexto, já que o instrumento avaliativo solicitava o seu entendimento. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 118 Por fim, a terceira dimensão apresentada sobre o contexto de surgimento da política curricular em questão indica o reconhecimento da diferença cultural entre os povos, entendido como necessidade para possibilitar o diálogo entre culturas, conforme os textos a seguir: O contexto geral vem do pensamento de ensinar para combater o racismo dentro do currículo escolar e mostrar, de forma geral, que podemos ter culturas diferentes, mas não existem culturas superiores (PFI 4); Surgiu a partir do interesse ao conhecimento histórico e cultural dos nossos ancestrais, tornando mais claro a nossa miscigenação racial e cultural, valorizando mais o conhecimento e estudo da nossa cultura (PFI 5); Esta compreensão do contexto se aproxima do que o militante afro-equatoriano Ruan García tem se referido como o conhecimento casa a dentro. Segundo Walsh (2007), Garcia utiliza essa expressão para designar os processos internos das organizações e comunidades para construir e fortalecer um pensamento e um conhecimento próprios. Para o afro-equatoriano, sem conhecimentos próprios não podemos construir a interculturalidade. Se não temos conhecimento casa a dentro, não podemos dialogar com outros conhecimentos casa a fora9 . No que se refere às possibilidades da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira contribuir para a superação do racismo no espaço escolar, as professoras e professores em formação inicial são unanimes: acreditam que o conhecimento sobre as culturas permite construir novas visões de mundo e, portanto, construir novas visões sobre o racismo, o preconceito e a discriminação racial, ainda que reconhecendo os limites e morosidade da Lei nesse processo, como é possível notar: Sim, as pessoas têm que entender que todos nós descendemos de alguma cultura, e a diferença entre culturas não nos torna diferentes. A forma certa de tratar disso é exatamente essa, ensinando as culturas . (PFI 4) Creio que sim. Pois tendo um conhecimento de nossas culturas e origens, veremos que nossa formação cultural, social, religiosa e “racial” parte de uma grande mistura de povos e culturas. Com o estudo das culturas teremos um conhecimento cultural maior e um respeito a mais com as diferentes culturas, “raças” e credos . (PFI 5) Sim, pois os indivíduos passam a ter o conhecimento da cultura e sendo assim passa a ter uma nova visão sobre o preconceito e o racismo. (PFI 1) 9 Alguns autores/as afro-brasileiros, como Célia Azevedo, têm se referido a esses mesmos processos com os termos “da porteira pra dentro” e “ da porteira pra fora”. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 119 A lei é um excelente passo para o início da “extinção” do preconceito racial. (...) O conhecimento é a chave para acabar com a ignorância. Entretanto, querendo ou não o preconceito racial vai ser muito difícil de se extinguir. (PFI 2) Consideramos importante destacar a ideia contida nesta última fala sobre a implementação da política curricular como passo inicial. De acordo com a resposta do professor, é possível inferirmos que embora o conhecimento seja importante nesse processo, ele não conjuga todos os elementos necessários para a produção de práticas e comportamentos antirracistas. Compreensão que dialoga com os achados de nossa pesquisa (2009a), na qual as professoras entrevistadas consideraram que as atividades por elas desenvolvidas no trato às relações étnico-raciais na sala de aula contribuem para a superação do racismo no espaço escolar, embora sejam mínimas considerando a grandiosidade do problema, e necessitem de aprofundamento. Parece-nos, portanto, que o que está em xeque quando se questiona a capacidade de mudança a ser produzida pelo conhecimento sobre a cultura afro-brasileira é a forma como ele está sendo oferecido. Ou seja, é a qualidade desse conhecimento que está sendo disseminado no espaço escolar. Aspecto que podermos melhor aprofundar ao analisarmos a percepção das professoras e professores em formação continuada sobre a implementação da temática no espaço escolar. História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no Espaço Escolar: a percepção de professoras e professores em formação continuada Uma primeira leitura dos dados da realidade escolar produzidos pelas professoras e professores em formação continuada logo nos revela as aproximações que podem ser feitas entre os diagnósticos apresentados10 . Guardadas as devidas singularidades, há semelhanças entre as realidades das escolas, que se localizam na periferia de grandes cidades, na região central de cidades menores, ou em suas áreas rurais. Os alunos são apresentados, em sua maioria, como sendo das camadas populares ou de baixa renda, possuindo pouco acesso a atividades de lazer e em alguns casos desenvolvendo tarefas para contribuir com o orçamento familiar ou compartilhando as 10 Documento escrito sobre a realidade escolar nas quais os profissionais estão inseridos. Produzido em equipe e com a finalidade de apresentar um olhar diagnóstico sobre as relações étnico-raciais em cada espaço. O roteiro de elaboração foi sugerido pelas professoras formadoras do curso e serviu para orientar as suas aulas. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 120 responsabilidades domésticas com seus familiares. Em relação ao pertencimento racial, são descritos, majoritariamente, como negros e negras (pretos/pardos), embora boa parte não se percebam assim. Para o aprofundamento da análise três temáticas ganharam destaque: (1) a percepção dos docentes sobre as relações étnico/raciais na escola; (2) a existência ou não de atividades relacionadas a história e cultura afro-brasileira e africana; e (3) as dificuldades encontradas para a implementação do trabalho pedagógico. No que se refere às relações raciais na escola, notamos que ainda existe resistência para o enfrentamento a questão posta. É difícil para os profissionais reconhecer a existência de manifestações de preconceito, discriminação e racismo em seu espaço escolar. E quando há o reconhecimento, essa percepção aparece quase sempre na relação entre os estudantes como indica o depoimento a seguir: “Entre eles não percebo a discriminação direta, ou seja, nunca ouvi os chamarem de negros ou soltar piadas, pelo menos em sua maioria” (D3). O conflito é quase sempre negado. Quando aparece no texto, é como uma ação que excede a regra, conforme descrito no diagnóstico 4: “Há um certo respeito às diferenças, em parte pelas regras estabelecidas pela escola, mesmo assim acontece esporadicamente casos de preconceito (são raríssimos)”. De acordo com os diagnósticos, a maior parte das escolas não possuem um trabalho sistemático em relação à implementação do ensino de história e cultura afrobrasileira e africana, ou mesmo sobre as relações étnico-raciais. Em uma instituição o trabalho é realizado de forma pontual e solitária, dentro da sala da professora ou professor, em outra a temática nunca foi discutida, conforme a afirmação a seguir: “nunca houve um trabalho voltado para o tema das relações raciais. Não há profissional que aparentemente se interesse pelo tema. A gestora não interfere e nem opina para que a temática seja desenvolvida, embora apoie qualquer iniciativa de professores” (D2). Há também o caso das escolas nas quais os profissionais afirmam a existência de algum trabalho coletivo, conforme podemos ver: Houve um projeto que envolveu alunos, pais, sociedade corpo docente etc. com o objetivo de conscientizar e valorizar os elementos da cultura afrodescendente e indígenas e também apresentar a Lei 10.639/03 fazendo valer seus direitos e valores. (D1) Durante o ano de 2012, além das discussões na disciplina Direitos Humanos, realizamos oficinas com a temática, e um café filos ófico com o tema “racismo”, foram debates muito interessantes. (D4) Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 121 Nestes casos, as atividades são pontuais e as referências são feitas em relação ao tempo passado, em que pese ambos os diagnósticos afirmarem que as escolas desenvolvem um trabalho que acontece periodicamente: “todos os profissionais trabalham a temática bimestralmente nas salas de aula, com debates, pesquisas, mural etc.” (D1); possuindo o envolvimento de todos os professores e em todas as áreas de conhecimento: “a escola trabalha esse tema não somente nas ciências humanas, mas em todas as áreas do conhecimento. O estudo desse tema está inserido no planejamento da escola”. (D4) Todavia, não apresentam maiores detalhes que possam nos ajudar a encontrar a consistência do trabalho em questão. Existem ainda escolas que tiveram instituída uma disciplina específica sobre a temática na matriz curricular de sua rede de ensino, mas que reconhecem que o trabalho desenvolvido é ainda “inicial e tímido”. “A partir do ano de 2011, foi inserida na matriz curricular a disciplina sob a denominação “História das Culturas Afro e Indígena”, e vem sendo abordada sem o devido entusiasmo (...) infelizmente ainda não avançamos o desejável na abordagem da temática” (D5). No caso dessa rede de ensino o documento ainda acrescenta que a disciplina é ministrada pelos professores de história do Brasil e estes profissionais “desde o início reclamam a falta de ajuda pedagógica para melhor conduzir os conteúdos propostos”. Embora apresentem algumas notícias de atividades desenvolvidas, a maior parte dos diagnósticos: a) Não deixa evidente a existência de um trabalho sobre a temática; b) Não traz os elementos da ação; e c) Não discute as circunstâncias nas quais a temática foi, ou não foi inserida na escola. Quando enfocamos as dificuldades encontradas para a implementação do trabalho pedagógico. Os problemas apresentados são muito parecidos e alguns já bem conhecidos e discutidos nesse contexto: falta de formação para os profissionais, falta de material didático, falta de parceiros para a realização do trabalho, falta de apoio da gestão escolar, entre outros. Além desses problemas, o processo de construção identitária dos sujeitos que compõem o espaço escolar é lembrado como uma dificuldade para a implementação da temática, como é possível notar neste relato: “O tema não é facilmente desenvolvido porque a escola tem professores e alunos (maioria) negros, mas que não se declaram negros, não são receptivos com o assunto e não tentam desenvolvê- lo” (D2). Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 122 Entretanto, um aspecto merece destaque: diz respeito à forma como as professoras e professores veem a relação entre o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana e as religiões de matriz africana. De forma geral, a ligação estabelecida entre estes dois campos aparece como sendo a grande dificuldade a ser enfrentada na implementação de um trabalho sobre a temática. As professoras e professores afirmam que: [são dificuldades] A falta de aceitação dos educadores e educandos, a associação feita entre a cultura afro e o candomblé e a rejeição por parte dos evangélicos. (D1) As maiores dificuldades em trabalhar tal temática está no preconceito velado que ainda existe na nossa sociedade como um todo, e também na formação cultural das famílias que fazem parte da escola. Mas o ponto mais crítico dessa discussão é a religião. (D4) Como já indicamos em trabalho anterior (SILVA, 2009a), as religiões de matriz foram (e ainda são) sistematicamente apresentadas à população brasileira como práticas demoníacas, associadas à bruxaria e à loucura, causando medo naqueles que não a conhecem). A depreciação dessas práticas religiosas configura-se como uma forma de manifestação do racismo, uma vez que é fundamentada pela classificação de “coisa de nego”, que neste caso possui a conotação de “coisa do mal”. Consideramos que esta é uma situação bastante delicada, pois múltiplos são os casos de preconceito religioso que acontecem no espaço escolar. De forma que a associação entre cultura afro-brasileira e religiões de matriz africana têm servido como justificativa para a rejeição da abordagem da temática no espaço escolar. Entretanto duas considerações merecem ser feitas: a primeira é que como destaca o diagnóstico 2, “na prática, não se pode confirmar 100% a rejeição do assunto, uma vez que nunca foi abordado nem desenvolvido por ninguém”. A segunda é que as religiões de para ensinar matriz africana são a base da cultura afro-brasileira. E dessa forma, história e cultura afro-brasileira os profissionais da educação de fato precisam se aproximar desse campo temático, não como sistema religioso, mas como manifestação cultural dos povos negros. Considerações Finais As aproximações da produção das professoras e professores em formação, seja ela inicial ou continuada, apontam indícios de que 12 anos após a instituição da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, a inclusão dessa temática Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 123 nos currículos escolares já não causa tanto estranhamento. Ou seja, parece-nos que esta realidade é indicativo de que, embora a Lei ainda não esteja sendo implementada em todas as escolas, ou aconteça de forma vulnerável em alguns contextos, existe um debate público instalado sobre esta questão na sociedade brasileira. Nenhuma professora ou professor que participou do nosso estudo questiona, por exemplo, se existe ou não existe racismo no Brasil, como acontecia há alguns anos. Em seus discursos aparece inclusive a cobrança em relação ao ensino de história e cultura afro-brasileira ainda não ser vivenciado pela maioria das escolas. Em sintonia com uma formação específica, esses docentes construíram um discurso sobre a importância da inclusão da temática no espaço escolar, embora ainda apresentem dificuldades para vivenciar esse currículo. O que é indicativo de que estamos vivenciando um momento de mudança, de transição. Tomando a grande quantidade de atividades, programa, projetos e ação que foram desencadeadas pela legislação e pela política curricular para o ensino de história e cultura afro-brasileira (entre as quais se encontram os processos formativos que constituíram o universo desse estudo), parece-nos que não de forma tranquila, mas a disputa curricular está instalada na sociedade brasileira e no interior das escolas. Entretanto, a perspectiva epistêmica dessas ações educativas nem sempre apresentam distanciamentos significativos das práticas eurocêntricas que produziram a suposta inferioridade da população negra no Brasil. Situar a formação docente no mundo contemporâneo apresenta-se como uma possibilidade para avançar nesse processo. Um mundo que se caracteriza fundamentalmente como um espaço de trocas, disputas e negociações permanentes (entre pessoas e grupos), sejam elas políticas, econômicas, sociais ou culturais. Um mundo, como afirma Nestor Canclini (2009), que cada vez mais reconhece e afirma as identidades, as subjetividades e/ou as diferenças, mas mantém intactas as desigualdades. Nesse mundo, a problematização de questões conceituais vinculadas a prática docente e a produção do conhecimento histórico acerca da temática, nos parece constituir desafios atuais a serem enfrentados no campo da formação de professoras e professores, tanto inicial quanto continuada. Consideramos que não basta a incorporação de conteúdos relativos à temática nos currículos escolares, sem uma ampla reflexão sobre para que ensinar, por quê ensinar, o quê e como ensinar sobre educação das relações étnico-raciais e história e Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 124 cultura afro-brasileira. Uma questão fundamental para não corrermos o risco de continuar reproduzindo a subalternização da população negra, nos parece ser a reflexão sobre a perspectiva epistemológica que irá orientar a educação e o ensino. De qual África, de qual afro-brasileiros, de qual cultura e de qual história falamos? Nesse caminho, a explicitação e apropriação de princípios orientadores da atuação pedagógica poderá constituir uma relevante estratégia. Percebemos que a formação de professoras e professores (tal qual a vivenciamos hoje) possui elementos que podem possibilitar uma incidência na prática docente, mas não dá conta de incidir na inteireza da prática pedagógica, aqui concebida como define Souza (2009): uma prática institucional, constituída pelas dimensões docente, discente, gestora e epistemológica. A atuação docente, no que se refere à educação das relações étnico-raciais e ao ensino de história e cultura afro-brasileira, ainda acontece de forma voluntária e isolada, muitas vezes sem ultrapassar os limites da sala de aula. Investir em estratégias que estimulem uma ação coletiva e institucional, além de fortalecer os trabalhos individuais já existentes poderá evitar a descontinuidade e vulnerabilidade da ação pedagógica. Referênciais BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto e Augusto de France. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2007. BRASIL. Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 2003. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004. CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, Desiguais e Desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. GATTI, Bernadete; BARRETO, Elba; ANDRÉ, Marli. Políticas Docentes no Brasil: um estado da arte. Brasília: UNESCO, 2011. GOMES, Nilma Lino (Org). Práticas Pedagógicas de Trabalho com Relações Étnico-Raciais na Escola na Perspectiva da Lei 10.639/03. Brasília: MEC; UNESCO, 2012. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 125 __________. Diversidade Étnico-Racial, Inclusão e Equidade na Educação Brasileira: Desafios, Políticas e Práticas. Trabalho apresentado no GT 21 da 33ª Reunião Anual da ANPEd, Caxambu – MG, 2010. __________. Limites e Possibilidades da Implementação da Lei 10.639/03 no Contexto das Políticas Públicas em Educação. In: PAULA, Marlene; HERINGER, Rosana (Orgs.). Caminhos Convergentes: Estado e Sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, ActionAid, 2009. GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz. LEI Nº 10.639/2003 – 10 ANOS. In: Revista Interfaces de Saberes – Nº 13 – V 1 – 2013. FREIRE, Educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011. OLIVEIRA, Luiz Fernandes. Histórias da África e doa Africanos na escola: tensões políticas, epistemológicas e indenitárias na formação docente. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, p. 1-18, São Paulo, julho 2011. PAIXÃO, Marcelo. A Dialética do Bom Aluno: relações raciais e o sistema educacional brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. SILVA, Claudilene. Professoras Negras: construindo identidades e práticas de enfrentamento do racismo no espaço escolar. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009a. _________. O Processo de Implementação da Lei Nº 10.639/03 na Rede Municipal de Ensino do Recife. In: AGUIAR, Márcia Ângela da S. (Org.) [et all ]. Educação e Diversidade: estudos e pesquisas. Recife: Gráfica J. Luiz Vasconcelos Ed., 2009b. SILVA, Maria do Socorro. As Práticas Pedagógicas das Escolas do Campo: a escola na vida e a vida como escola. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009. SOUZA, João Francisco. Prática Pedagógica e Formação de Professores. BATISTA NETO, José; SANTIAGO, Eliete (Org.). Formação de Professores e Prática Pedagógica. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. WALSH, Catherine. Interculturalidad, colonialidade y educación. Revista Educación y Pedagogia, Medellín, Universidade de Antioquia, Facultad de Educación, vol. XIX, núm. 48, p. 25 – 35, Mayo –Agosto, 2007. Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 01 – 2014/ pág. 126