T E O R I A D O DIREITO Hélcio Corrêa 86 O DIREITO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO LAW AS AN AUTOPOIETIC SYSTEM Geailson Soares Pereira RESUMO ABSTRACT Examina o Direito sob o prisma da Teoria dos Sistemas Sociais, com o intuito de mostrá-lo como um sistema autopoiético. Expõe a visão clássica da sociologia como insuficiente para explicar o atual e complexo estágio social no qual está inserido o Direito. The author assesses law in the light of the Social Systems Theory, with the aim of presenting it as a autopoietic system. He shows the inappropriateness of the classic sociological view to explain the current and complex social stage in which law lies. PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS Teoria do Direito; sistema autopoiético; Teoria dos Sistemas Sociais; Sociologia Jurídica; Niklas Luhmann. Law Theory; autopoetic system; Social Systems Theory; legal Sociology; Niklas Luhmann. Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 86-92, out./dez. 2011 O que o Senhor está fazendo, está tudo errado, mas tem qualidade. (J. Habermas sobre Niklas Luhmann) 1 INTRODUÇÃO Vários são os prismas pelos quais se pode estudar o direito. Este trabalho busca demonstrar a compatibilidade entre o direito e a teoria dos sistemas proposta pelo sociólogo e jurista alemão Niklas Luhmann, porquanto que, para ele, a sociedade é formada por vários subsistemas sociais com funções específicas, sendo o direito um desses sistemas. O paradoxo gira em torno de saber se é o direito um sistema autopoiético, haja vista a existência de defensores do seu caráter assistemático. Outrossim, objetiva-se, de modo geral, expor e contrastar a evolução tortuosa do termo “sistema” no direito desde a Antiguidade para, posteriormente e de forma específica, esclarecer em que consiste a nova perspectiva ou modelo sistêmico no qual será inserido o direito. É que a complexidade do atual estágio evolutivo da sociedade não mais permite enxergar, como outrora foi possível, o estado gregário de forma unitária e harmoniosa. Porquanto um direito simples e relativamente concreto é algo do passado, resta procurar soluções com o intento de explicar esse novo paradigma jurídico-social. 2 O ALVORECER DO TERMO SISTEMA1 A palavra sistema não é unívoca. Carvalho (2009) preleciona que o termo sistema, como a maioria das palavras, padece do vício da ambiguidade. Nesse palmar, Losano (2008, p. 4) perscrutou e chegou à conclusão que vários são os sinônimos referentes ao termo sistema empregados no decorrer dos séculos. Os principais, oriundos do latim e sem pretensão de exaurir a semântica do termo, são: systema, compages, compago, collectio, compositio, concretio, congregatio, caterva, coetus, conturbernium, factio, globus, manus militum, turma, congruere, congruitas, struere, construere, structura [...]. Ainda de acordo com o italiano (2008), existiam, no grego clássico, quatro significados básicos do termo “sistema”. Entre os quatro, dois possuíam significados técnicos; eram usados na métrica e na música. Doutro flanco, dentre os dois significados atécnicos existia um assaz genérico, referindo-se a qualquer forma de agregação, como uma corporação de artesãos. O segundo termo atécnico, referia-se à ordem do mundo social e natural. Nesse sentido, havia uma comparação entre caos e cosmos sendo, esse último, adjetivado como um conjunto. Naquela época, o termo - sys-istemi já transmitia a ideia de algo composto ou construído, conquanto não apresentasse as características de ordem e unidade da forma como entendemos hoje. Os romanos, embora não tenham possuído um direito construído sistematicamente, aplicavam técnicas de hermenêutica como a dedução e a lógica nas soluções que davam aos conflitos de sua época. do capitalismo. Ao se debruçarem sobre o tema, alguns estudiosos perceberam a necessidade de uma bifurcação no sistema jurídico, dividindo-o em dois modelos que, de forma sucinta, analisaremos a partir desse momento. 2.1 O SISTEMA EXTRÍNSECO E O SISTEMA INTRÍNSECO Na Idade Média, os juristas imaginavam o Direito como um sistema extrínseco, fruto da construção intelectual do jurista. Essa forma foi, segundo Losano (2008, p. 103, 113), idealizado por Christian Wolff no dealbar do séc. XVI, porque o sistema deste autor é externo, ou seja, apto a receber qualquer conteúdo. O sistema extrínseco funcionava como ponto de chegada, como uma construção intelectual que coloca ordem numa realidade caótica, [...] o fim a que tende a atividade do estudioso (LOSANO, 2010, p. 2). É que o sistema Os romanos, embora não tenham possuído um direito construído sistematicamente, aplicavam técnicas de hermenêutica como a dedução e a lógica nas soluções que davam aos conflitos de sua época. Sustenta Losano (2008) que o termo “sistema” chegou ao direito por influência dos bizantinos, apesar de a legislação passar, desde o século II a.C., por um processo de ordenação. A função desse sistema era expor o material jurídico. Nesse palmar, a palavra sistema foi, tomando de empréstimo as palavras de Tércio Sampaio (2010, p. 147): historicamente localizada na Idade Média. A palavra [sistema] introduz-se no pensamento jurídico só no século XVI e torna-se um termo técnico no século XVIII, com grande repercussão no século XIX até nossos dias [...], pois a concepção do ordenamento como sistema é consentânea com o aparecimento do Estado moderno e o desenvolvimento extrínseco, segundo Bonavides (2010, p. 108), refere-se ao trabalho intelectual de que resulta um conjunto ou totalidade de conhecimentos logicamente classificados, segundo um princípio unificador. Nos escólios de Amaral (2008) e Losano (2008), Rudolf Von Ihering foi o grande responsável por mostrar o Direito como sistema intrínseco; nesse modelo, a lógica já não decorre do jurista, mas da própria estrutura interna do objeto. Deveras, o sistema intrínseco, segundo Losano (2010), é o ponto de partida do estudioso do direito, situando-se na estrutura ínsita do objeto a ser estudado. Sua lógica decorre do próprio sistema enquanto objeto. Tomando de emprésti- Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 86-92, out./dez. 2011 87 88 mo as palavras de Losano (2010, p. 2), o sistema é um sistema interno ao objeto estudado, isto é, a lógica está ínsita no próprio Direito, à espera da revelação. Jhering defendia ser impossível compreender o direito fora de sua concepção sistemática. Nesse arrimo, Larenz interpreta que a função sistemática da ciência do Direito, a que, em comparação com a histórica e a interpretativa, JHERING atribui um “nível superior”, consiste aqui em desmontar cada um dos institutos e as correspondentes proposições jurídicas nos seus “elementos lógicos”, em destilar estes últimos na sua pureza e me deles extrair então, através de combinações, tanto as normas já conhecidas como normas novas [...] O contributo inquestionável da Jurisprudência dos conceitos foi a elaboração de um sistema conceptual-abstrato, que era construído de acordo com o princípio da subordinação de conceitos cada vez mais especiais aos de extensão muito ampla [...] (LARENZ, 1997, p. 31, 230) É nesse palmar que Amaral (2008) inculca que, diante da nova realidade construída, o Jusracionalismo ofereceu ao direito privado europeu sua mais significante contribuição: a ideia de que direito não era um simples amontoado de normas, mas algo unitário, isto é, um sistema normativo. da sua unidade a indispensável relação das partes com o todo, de modo que cada parte atua de forma única e indispensável ao funcionamento do todo, do sistema, esse funcionando como peça de comando. Entretanto, não houve uma evolução na teoria dos sistemas de forma crescente e linear, desde o seu surgimento no grego clássico. De fato, houve modificações na ideia de sistema no decorrer dos séculos, verdadeiros altos e baixos quem culminaram na crise e ressurreição da ideia de sistema no direito. 2.2 A CRISE E A RESSURREIÇÃO DA CONCEPÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO Com o advento das superestruturas marxistas, o termo “sistema” no Direito caiu em desuso. Isso se deu em virtude de Marx pregar que as superestruturas sociais tinham como viga mestra a infraestrutura econômica, reduzindo, por consequência, o Direito a uma dessas estruturas. A concepção clássica de sistema no direito entrou em profundo declínio, chegando ao ponto de Nietzsche afirmar ser uma fraude a tentativa de se mostrar um sistema. No intento de superar a crise, a ressurreição da concepção de sistema valeu-se de quatro principais correntes contemporâneas que, apesar de surgirem nos meandros das ciências naturais, imputaram grande influência A teoria sociológica do direito gizada por Niklas Luhmann, ao enfatizar o aspecto estrutural e funcional daquele, pode ser a chave para a resolução de questões teóricas dos sistemas sociais hodiernos. Ao perscrutar sobre o Direito como sistema na década de 1980, Wilhelm Canaris (2002) chega à conclusão de que é preciso distinguir entre os diferentes conceitos de sistema, haja vista o Direito ser uma ciência também valorativa ou axiológica. Para esse jurista (2002), as duas características basilares que medram em cada um dos conceitos são a unidade e ordenação. Esta visa mostrar um estado de coisas propriamente apreensível dentro dos limites da racionalidade que tenha por sustentáculo a realidade enquanto permite que o sistema não se disperse, tornando-se desconexo. Nesse sentido, observa Larenz (1997) que o sistema tem como alicerce nas ciências sociais (BONAVIDES, 2010). No escólio de Bonavides (2010), a primeira teoria é a Teoria Geral dos Sistemas, fundada por Bertalanffy e procurou, em meados do século passado, reunir e aglutinar o que existia sobre sistema. Teve como problema o apego ao formalismo exacerbado, priorizando a forma e a organização e relegando o conteúdo do sistema ao segundo plano. Dando prosseguimento ao seu raciocínio, Bonavides (2010) ensina que a segunda teoria foi a Teoria Sistêmica Cibernética, cujo pai foi Norbert Wiener. Para aquele autor, houve inicialmente a revelação da similitude entre as estruturas técnicas e biológicas, orgânicas e Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 86-92, out./dez. 2011 mecânicas, para então ser estendida a mesma configuração ao sistema social. Essa teoria sofreu pesadas críticas em virtude de tentar “coisificar” as fronteiras da realidade. David Easton foi o responsável pelo advento da terceira teoria, oriunda do campo da Ciência Política, que teve grande aceitação, e pelos termos inputs/ outputs. Segundo Bonavides (2010), os primeiros (inputs) são tudo que entra no sistema alimentando-o, enquanto os segundos (outputs) representam a produção do sistema. Nessa concepção sistemática, o feedback tem papel fundamental para a vida do sistema, pois ele permite que se faça ajustes no interior da estrutura de acordo com as novas necessidades sistêmicas. A última das teorias que revigorou a teoria dos sistemas foi a da ação social. Fundada pelo sociólogo Talcott Parsons, destaca-se por tentar extirpar do âmbito das Ciências Sociais algumas antinomias e dualismos, dentre os quais corpo/mente, sociedade/natureza e sujeito/objeto. Ao desenvolver sua Teoria dos Sistemas, Luhmann2 (2009), parte do funcionalismo estrutural de Parsons. Deveras, inexiste estudo que possa ser denominado de “teoria geral de sistemas”3, muito embora esse tenha sido o intuito, em meados do século passado, da Teoria Geral dos Sistemas (Society for General Systems Theorie). A insigne associação tentou, conforme Luhmann (2009), produzir uma teoria dos sistemas partindo da junção e combinação das publicações relativas ao tema. Apesar de não conseguir sucesso absoluto em virtude do aparecimento de novos obstáculos, o trabalho foi bastante proveitoso e contribui para o desenvolvimento de estudos na área, pois, a partir da década de 1940, a sociologia começou a dispensar olhar especial sobre a Teoria dos Sistemas. Assim, nessa época, surgiu a teoria que serviria como espeque da obra de Luhmann. Talcott Parsons elaborou a teoria do sistema da ação (action is system), pela qual não há como separar “sistema” de “ação” porquanto ambos formam um todo indissociável. 3 A TEORIA DOS SISTEMAS PROPOSTA POR LUHMANN A teoria sociológica do direito gizada por Niklas Luhmann, ao enfatizar o as- pecto estrutural e funcional daquele, pode ser a chave para a resolução de questões teóricas dos sistemas sociais hodiernos. Luhmann (2005) defende que a sociedade é composta por vários sistemas sociais comunicativos. A comunicação na teoria luhmanniana é o operador central dos sistemas sociais, de modo que a não comunicação entre eles é impossível. O direito faz parte dos sistemas sociais. Mas, antes de adentrarmos no estudo da autopoiesis do direito, é indispensável o esclarecimento dos pontos fundamentais da teoria do mestre alemão. 3.1 O SISTEMA E OS SUBSISTEMAS Diante das novas complexidades sociais surgidas na pósmodernidade, a ideia de sistema social único começou a ruir, permitindo que se admitissem novos sistemas e ambientes dentro da sociedade. No escólio de Luhmann (1983, p. 45), com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Dessa forma, Río (2007) bem observa que a teoria de Luhmann parte do pressuposto de que a sociedade moderna é um sistema mundial de grande complexidade com diversos sistemas que geram condições para si próprios e para os outros ao seu redor. É embasado nesse ponto de vista que Luhmann (1983) lembra que não é mais possível observar a sociedade sob o prisma da sociologia clássica proposto por Marx, Maine, Durkheim e Weber, daí a necessidade de, segundo Trindade (2008), romper com a doutrina cartesiana, pois era preciso ver o todo e não apenas a parte, as funções e não somente os elementos. Luhmann ensina que há vários outros sistemas4 menores dentro do sistema social, como por exemplo, o político, econômico, educacional, religioso, etc. Todos fazem parte de um sistema macro, o social. O entorno do sistema ou ambiente é formado por outros vários sistemas ou subsistemas. Segundo Luhmann, tanto a clássica divisão entre sistemas aberto/fechado, assim como a distinção parte/todo proveniente da física são inúteis. Nesse sentido, enuncia Trindade (2008) que, se um sistema totalmente fechado é impossível, o aberto é inútil; daí a importância de o sistema ser autopoiético. Para Bertalanffy (1977, p. 262): a ciência social tem de tratar com seres humanos no universo da cultura criado por eles [por que] o homem tem valores que são mais do que biológicos e transcendem a esfera do mundo físico. Portanto, as teorias convencionais da física não se aplicam a sistemas abertos como os são os organismos vivos, pois quando se trata de sistemas sociais, contingências surgem a cada instante, obrigando o sistema a interagir com o ambiente, seja recebendo ou enviando novas informações. A contingência é, segundo Luhmann (1983, p. 45), o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas [...,ou,] perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos. Luhmann ensina que há vários outros sistemas menores dentro do sistema social, como por exemplo, o político, econômico, educacional, religioso, etc. Todos fazem parte de um sistema macro, o social. Porque, como observa Queiroz (2003), a função do ambiente é produzir irritações, perturbações no interior do sistema. A remodelação da ideia de sistema aberto/fechado pelo conceito de autopoiesis foi uma das principais mudanças na teoria dos sistemas propostas por Luhmann. 3.2 SISTEMA E AMBIENTE 3.3 O ENCERRAMENTO OPERATIVO DE MATURANA Luhmann (1990) afirma ser a teoria dos sistemas a diferença entre sistema e meio5. É o próprio sistema quem opera como observador aplicando a si mesmo a diferenciação entre sistema/ambiente, de modo indutivo e interno. O sistema se autodiferencia observando e determinando sua diferença com relação ao ambiente, daí este não ser menos importante do que aquele. É que os sistemas, ensina Carvalho (2009), estão imersos em um mundo gigantesco, que os circundam e recebe a denominação de ambiente. Ensina o alemão (1990) que não existe sistema sem um meio que o circunde, mas este não determina aquele. Há uma afirmação que vale para todos eles: a complexidade do ambiente extremamente maior que a do próprio sistema, daí ser possível afirmar que, quando o sistema reduz complexidade torna-se, ao mesmo tempo, mais complexo. A ideia de sistema pressupõe a de fronteira. Essa fronteira, como ensina Bechmann & Stehr (2001), serve para fazer a distinção do que está fora/dentro do sistema. No entanto, essa fronteira não é espacial, pois se refere apenas às operações realizadas pelo sistema. Em outras palavras, mormente quando se trata de sistemas psíquicos e sociais, é uma fronteira operacional e não espacial. Logicamente que, para Luhmann (1990), aquilo que está além da fronteira, que não constitui elemento do sistema, é o seu ambiente. Luhmann, inicialmente foi acusado por Habermas de “decisionista”, mormente em decorrência da obra Sociologia do Direito (v. I e II). A partir da crítica habermasiana, Luhmann buscou o conceito de autopoiese em Maturana e Varela, assim como o termo “encerramento operativo” e, no tentame de explicar a unidade do sistema, surge o conceito de “encerramento operativo”. Conforme o sociólogo (2009, p. 102), o encerramento operativo estabelece que a diferença sistema/meio só se realiza e é possível pelo sistema [...] o ponto cardinal desse preceito teórico reside em que o sistema estabelece seus próprios limites, mediantes operações exclusivas [...]. Em outras palavras, é o sistema quem determina o que é meio e o que é ambiente. Partindo da teoria do encerramento operativo, Luhmann distingue os sistemas em sistemas técnicos e sistemas de sentido: Os primeiros são praticamente fechados a causalidade, e somente em determinadas circunstâncias reagem aos estímulos provenientes do meio [...] [ Já os sistemas de sentido] têm a particularidade de poder estar referidos ao meio e de reproduzi-lo dentro de si mesmos (re-entry), sem que tenham de produzir efeitos causais. (LUHMANN, 2009, p. 106, 107). Para Luhmann (2009), é mediante o encerramento operativo que o sistema observa o ambiente por meio de suas operações internas, adquirindo conhecimento e fazendo com Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 86-92, out./dez. 2011 89 que suas estruturas particulares possam ser construídas e transformadoras destas. Enquanto produz as operações, o sistema não mantém contato direto com o meio; ele apenas o observa e o conhece com de suas operações internas. 3.4 A AUTO-ORGANIZAÇÃO E A AUTOPOIESIS DOS SISTEMAS 90 Como consequência do encerramento operativo, surgem duas novas questões. Em primeiro lugar, Luhmann (2009) afirma que os sistemas não possuem, ab origine, suas próprias estruturas, sendo obrigados a construí-las. Nas palavras de Luhmann (2009, p. 116) o sistema só pode operar com estruturas autoconstruídas: não pode haver importação de estruturas. Essa construção se dá no interior do próprio sistema e, em virtude disso, surge o que denominamos de “auto-organização”. Em segundo lugar, não é dado ao sistema criar as operações que bem entender, mas somente aquelas que são permitidas de início. Em outras palavras, Luhmann (2009) afirma que as estruturas e operações têm em comum o fato de que o que se aplica a uma se estende a outra. Surge a medula da teoria luhmanniana: a autopoiesis6, que é definida como a produção das operações sistêmicas na própria rede operacional. mediata con el fuego, los terremotos, las radiaciones espaciales, o con las prestaciones perceptivas de una conciencia particular. (LUHMANN, 2006, p. 67) Outro fator essencial em Luhmann (2009) sobre a autopoiesis é que não há como dispor de meio termo e, por conseguinte, um sistema não pode ser mais ou menos autopoiético. Mas não se deve jamais confundir autopoiesis com autarquia ou subordinação. Marcelo Neves (1996) faz crítica construtiva à teoria autopoiética, ao defender que, em países periféricos, o direito seria alopoietico (alopoiesis é a reprodução a partir de estruturas externas ao sistema). Para Villas Bôas Filho (2009), o problema não está na reprodução a partir de estruturas externas, mas no excesso de demandas que, nos países periféricos, fazem com que o sistema jurídico atue além da sua capacidade, pois a corrupção está presente em qualquer lugar do mundo, inclusive nos países onde o direito seria, em tese, autopoiético. 3.5 O ACOPLAMENTO ESTRUTURAL Após o advento da autopoiesis, surge mais um problema acerca do entendimento da Teoria dos Sistemas. A questão refere-se, particularmente, a como se dar a relação entre sistema e ambiente, haja vista que os sistemas são ambientes uns A remodelação da ideia de sistema aberto/fechado pelo conceito de autopoiesis foi uma das principais mudanças na teoria dos sistemas propostas por Luhmann. Villas Bôas Filho (2009) lembra que a autopoiese proposta por Luhmann não se prende a categoria vida, haja vista ser muito mais abstrata, porquanto um sistema autopoiético é aquele que, a partir de suas próprias estruturas, se reproduz e se desenvolve, mas jamais poderá suprimir a si próprio (LUHMANN, 2005). Portanto, para Luhmann (2006), não há como os sistemas se reproduzirem de outra forma que não seja por suas próprias estruturas. Um exemplo disso é que o sistema da linguagem só pode se modificar com a comunicação, e não fatores estranhos: Sus propias estructuras pueden construirse y transformarse únicamente mediante operaciones propias. Por ejemplo, el lenguaje sólo puede modifcarse con la comunicación y no de forma in- para os outros. Partindo do pressuposto afirmado pela autopoiesis de que os sistemas não possuem liberdade para produzirem o que bem entenderem por suas operações, a Teoria dos Sistemas depara-se com o novo obstáculo, visto que a teoria da evolução baseada na causalidade não é suficiente para explicar os novos paradoxos existentes na relação sistema/ambiente. Maturana (apud, LUHMANN, 2006) mais uma vez contribui, de maneira ímpar, ao criar o conceito de acoplamento estrutural para explicar a relação sistema/ambiente. Luhmann (2003) ensina que o acoplamento estrutural garante a simultaneidade de eventos entre o sistema e o meio, mesmo que não haja sincronismo7. Deveras, há estorvos de sicro- Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 86-92, out./dez. 2011 nização entre os subsistemas, em virtude da complexidade da sociedade atual. As mudanças são muito rápidas e enquanto um subsistema se adapta a contingência, outro não consegue o mesmo feito. Luhmann (2006) exemplifica como acoplamentos estruturais a relação entre direito e a economia que ocorre com o contrato e propriedade privada; outrossim, também há, pela Constituição, o acoplamento entre direito e política; entre a política e a economia, o acoplamento estrutural se dá por meio do imposto e do tributo. A própria linguagem permite o acoplamento estrutural entre sistemas psíquicos e sistemas sociais. Nesse sentido, é o acoplamento que especifica que não pode haver nenhuma contribuição do meio capaz de manter o patrimônio de autopoiesis de um sistema. O meio só pode influir causalmente em um sistema no plano da destruição (LUHMANN, 2009, p. 130). Nessa toada, Léon Del Río (2007) lembra que, conquanto haja certa indiferença entre os subsistemas sociais, há interdependência entre eles. Assim, a economia necessita das decisões oriundas da política ao mesmo tempo em que também precisa das habilidades oferecidas pelo subsistema da educação; necessita das regras do direito, entre outras contribuições de outros subsistemas. Por isso, Luhmann (2006) defende que o acoplamento estrutural trabalha selecionando e restringindo o número de estruturas com as quais um sistema possa realizar a autopoiesis, de modo que, somente por suas próprias estruturas, o sistema determine suas operações. O sistema seleciona aquilo que pode ser tido como importante para as estruturas internas do sistema, trabalhando de modo que a vontade do meio não as modifiquem. Em outras palavras, prevalece a vontade do sistema frente a do ambiente. Apesar de o ambiente provocar irritações ou perturbações no sistema, ele não consegue enviá-las de forma direta para o interior do sistema, porquanto a irritação deste é sempre criação de suas próprias estruturas internas, muito embora aconteça após ocorrerem no ambiente e ingressarem no sistema só depois de dada a permissão. Em outras palavras, para Luhmann (2009), o sistema poderá, internamente, rejeitar ou aceitar a irritação, demonstrando controlar a situação e não ser controlado por ela. 3.6 OS CÓDIGOS BINÁRIOS E A QUESTÃO DOS PROGRAMAS DOS SISTEMAS Cada subsistema social que seja autor referencialmente fechado possui um código binário próprio responsável pela seleção dos inputs/outputs. Para Luhmann (2005), esses códigos variam de uma relação para outra, porquanto que o código binário dos meios de comunicação é a informação/não informação, enquanto outros sistemas possuem diferentes códigos binários. Sobre os códigos binários do direito, Marcelo Neves (2008) exemplifica que estão presentes, dentre vários, a consideração/ desprezo na moral; o verdadeiro/falso na ciência; o belo/feio na arte; o ter/não ter na economia; o poder/não-poder na política. O sistema do direito é diferenciado dos demais sistemas, porque assim como cada um deles, possui uma linguagem, um tipo de comunicação prescritiva e um código binário próprio. Este é o lícito/ilícito8. Nesse ritmo, Carvalho (2009) enuncia que uma linguagem somente torna-se jurídica a partir da seleção e do tratamento jurídico a ela conferida pelo código binário e programas do sistema. Esclarecendo o que seriam esses programas, Neves (2008) afirma que a reprodução do sistema jurídico se dá com a Constituição, leis, atos da administração, contratos, decretos e da jurisprudência dos tribunais, todos programas daquele sistema. 3.7 A QUESTÃO DA OBSERVAÇÃO E DA COMPLEXIDADE LUHMANNIANA A teoria tradicional dos sistemas afirmava que estes necessitavam de um sujeito observador externo para observar o sistema. Na nova Teoria dos Sistemas, Luhmann (2009) afirma que a observação é uma operação que se realiza dentro ou fora do próprio sistema, dado que ele pode observar-se internamente como também observar outros. O autor destaca a observação de primeira e segunda ordens. No caso da primeira ordem, um observador observa o sistema enquanto que, na segunda, temos um segundo observador que observa o primeiro, fazendo com haja a observação da observação. A realidade do mundo, ensina Queiroz (2003), somente pode ser apreendida pela observação de segunda ordem. Nesse caso, há aumento da complexibilidade como decorrência do fato de que o observador vê aquilo que o primeiro não consegue ver: o ponto cego. Assim, essa segunda dimensão da observação consiste em ver o que o outro não enxerga. ao mesmo tempo que transforma a si mesmo, no labor prédeterminado de suas estruturas internas. Luhmann (2003, p. 32) perscruta que toda resistência (e consequentemente, toda mudança) toda composição, deve ser produzida no sistema, e isto através da operação que dispõe o sistema. Não há, com outras palavras, nenhuma determinação estrutural que provenha de fora. Somente o direito pode dizer o que é direito. Nesse palmar, Luhmann (2009) afirma que o direito tem a força de reconhecer, produzir e resolver conflitos através da complexidade do sistema jurídico. Deveras, sob esse prisma, o direito é um sistema normativamente fechado e cognitivamente aberto. A nova concepção de Luhmann não mais coloca o direito no plano do ser/dever-ser. A ideia central agora do sistema jurídico tem como baluarte o código binário do lícito/ilícito, porque o todo, o universal, não pode ser construído, olvidando-se o que está sendo negado. A unidade é a própria diferença e é cons truída a partir dos opostos (QUEIROZ, 2003). Para Luhmann (2009), é mediante o encerramento operativo que o sistema observa o ambiente por meio de suas operações internas, adquirindo conhecimento e fazendo com que suas estruturas particulares possam ser construídas e transformadoras destas. Assim, no sopeso do fechamento normativo e abertura cognitiva do sistema jurídico, Neves (2006) ressalta que o paradoxo referente à justiça volta-se para a complexidade do sistema jurídico, mas sem olvidar a consistência de suas decisões. Nesse intento, verdadeira obra prima são as palavras de Trindade (2008, p. 66) acerca do tema: É nesse sentido paradoxal, do ser fechado porque é aberto e do ser aberto porque é fechado, que o direito – sob a ótica luhmanniana- é capaz de reconstruir um novo sentido para o direito a partir do próprio direito. É a partir de suas próprias estruturas, o direito faz o acoplamento estrutural com outros sistemas, filtrando e absorvendo aquilo que é necessário para suas estruturas desenvolverem a autopoiesis. Nesse processo, o sistema usa seu código binário para bloquear, pelo fechamento operativo e sem isolar-se do meio, as perturbações provenientes do ambiente ou de outros sistemas. Luhmann (2003) observa que o direito é um sistema que opera ligado a auto-observação. Pela diferenciação entre sistema e meio (respectivamente autorreferência e heterorreferência), o sistema se reproduz com suas próprias estruturas. 4 O DIREITO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO O direito nasceu com o intuito de resolver conflitos. Apesar de ser esse o seu papel principal, ele não é o único, pois o direito é erguido no conflito e vive do conflito. A partir da Idade Moderna, o direito chega a tal ponto de evolução que se torna capaz de, além de solucionar, prever conflitos. Desse modo, o direito não apenas pacifica conflitos como também os cria mediante suas estruturas internas no processo de autopoiesis, porquanto se diferencia do meio ao mesmo tempo em que influencia e é por ele influenciado. O direito como sistema autopoiético transforma a realidade 5 CONCLUSÃO A sociedade complexa hodierna não mais se permite explicar, a partir da clássica doutrina positivista, mas sim a partir da visão da sociedade como um todo projetada pela teoria dos sistemas. Dessa forma, é possível, partindo da teoria dos sistemas autopoiético, enxergar a adequação à complexidade por um direito que, a cada dia, se torna mais dinâmico. Em virtude da existência das complexas estruturas presentes nos sistemas sociais, o direito é sim um sistema autopoiético por vários motivos. Como sabemos, o sistema jurídico Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 86-92, out./dez. 2011 91 92 seleciona com suas estruturas somente aquilo que for relevante para suas operações internas. Desse modo, ele é um sistema fechado pelo fato de a autopoiesis ser responsável pela sua autorreprodução e de o código binário não permitir que ruídos entrem no sistema. Em outras palavras, estruturas externas não produzem o direito. O fechamento do sistema significa, antes de tudo, autonomia e não isolamento. Mas o direito é também um sistema aberto por selecionar, no ambiente, com o fechamento operativo, acoplamento estrutural e código binário, as mensagens necessárias à reprodução por suas estruturas internas. A proposta do direito alopoiético em países periféricos sob o argumento da corrupção não é a melhor solução, pois corrupção há em qualquer lugar do mundo. Por outro lado, o excesso de demandas judiciais com o escopo de efetivar, na maioria das vezes, direitos sociais, faz com que o sistema trabalhe sobrecarregado, embora isso, por si só, não quebre a autopoiese jurídica. Logo, se o sistema jurídico é paradoxalmente fechado normativamente, aberto cognocitivamente e se reproduz a partir de suas próprias estruturas, não há como negar seu caráter autopoiético. NOTAS 1 Mostrar a ideia de direito como sistema na obra de todos os grandes nomes da jurisprudência ao longo da história ultrapassa o limite desse trabalho. Para um longo estudo sobre a noção de sistema no direito, dos gregos à atualidade, remetemos o leitor aos três volumes de Mario G. Losano (Sistema e estrutura no direito). 2 Luhmann foi aluno de Talcott Parsons na Universidade de Havard, no início da década de 1960. 3 Na verdade, antes de Luhmann, Ludwig Von Bertalanffy foi o pai da locução Teoria Geral dos Sistemas. Na obra de Bertalanffy (1977), estuda-se até mesmo a diferença entre sistemas abertos e fechados, inclusive sobre a entropia. 4 O próprio Luhmann ora se refere a esses novos sistemas como subsistemas, ora como sistemas. 5 O termo alemão Umwelt pode ser traduzido para o português como meio, ambiente ou entorno. Marcelo Neves (2008) e Villas Bôas Filho (2009) o traduzem como ambiente. Usaremos um ou outro, pois não observamos nenhum problema de semântica porquanto ambos se referem a parte externa do sistema. 6 O termo autopoiesis é criação dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela e Luhmann o incorporou a sua Teoria dos Sistemas. No entanto, há discordância entre os chilenos e Luhmann em alguns pontos da Teoria dos Sistemas. Em um desses pontos, Luhmann afirma que os seres vivos não pertencem aos sistemas sociais, constituindo apenas aspectos do ambiente. Para Maturana, não há como perceber o homem fora dos sistemas sociais. 7 Esse fator é importantíssimo, principalmente quando se trata do sistema jurídico. Como sabemos, o meio é sempre mais complexo do que o interior do sistema. Basta vermos a quantidade de demandas que surgem todos os dias sem que o judiciário tenha uma resposta. As lacunas na lei, principalmente ontológicas, são preenchidas hoje, mas amanhã pode surgir outras. O ideal (filosófico, porém, impossível) seria um sistema sempre mais complexo do que o meio e não um sistema refém das vicissitudes sociais. 8 A tradução do termo da língua alemã para o português não é unívoca. O “Recht/Unrecht” é o termo usado por Luhmann e, alguns autores, o traduzem como direito/não-direito, fato considerado absurdo por Marcelo Neves (2007) no prefácio da nona edição da obra A constitucionalização simbólica. REFERÊNCIAS AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. rev.,atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas. Trad. de Francisco M. Guimarães. 3. ed. Petrópolis, Vozes, 1977. BECHMANN, Gotthard & STEHR, Nico. Niklas Luhmann: tempo social. Trad. de Marina H. G. Mac.Rae. Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 185200, nov. 2001. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. CANARIS, Claus-Wilhelm. 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