BOLA DE CAPOTÃO
Finalmente chegara o dia.
Era a estréia da bola de capotão que Dodô ganhou do Nando, num daqueles Natais que
foi passar lá na Conquista, mas que para todos os efeitos quem dera foi o Papai Noel.
Natal bom era quando Nando ia passar na Conquista, onde morava Maria do Rosário,
Zé Chiachio, Dito, a Fia (Maria Inêz), Zé Marcos e Dodô.
Geralmente trazia outros colegas da Refinações de Milho Brasil e vários produtos da
empresa que seus funcionários ganhavam de brinde. E nem havia Cesta Básica e muito
menos Cesta de Natal.
O mais gostoso de todos era o Karo. Mel industrializado. Delicioso!!!
Literalmente todos se lambuzavam, fazendo valer o ditado de que “quem come mel pela
primeira vez, se lambuza”.
Para os amigos do Nando passar uns dias na Conquista era como se estivessem noutro
mundo.
Nunca tinham dormido em colchão de palha. De manhã, nem queriam se levantar de tão
gostoso que achavam.
Só quando Maria do Rosário perguntava se queriam tirar leite das vacas, se levantavam
esbaforidos, para realizar o que pra eles era uma proeza.
Residência sem energia elétrica, achavam fantástico. Talvez por causa das sombras que
as lamparinas projetavam nas paredes, dando um ar fantasmagórico.
Andar a cavalo, nem sabiam como e por onde montar. A sorte é que a Castanha nem se
incomodava.
Até o vira latas – Titiu e o gato da Maria Inêz se divertiam com os visitantes. Arnaldo
passava horas catando pulgas nos dois. Animais domésticos e sem vergonha, até
cochilavam no colo dos visitantes. Bastava coçar a barriga do Titiu ou do gato que um e
outro se punha de pernas pra cima e assim ficavam.
Mas naquela manhã, Nando, Arnaldo, Vitor e Rabelo quando viram a alegria de Dodô
pegando a bola de capotão, em cima da sua alpargatas rodas, no pé da árvore de Natal,
já programaram, pra tarde, um jogo no terreiro.
- De jeito nenhum !!! resmungou Dodô agarrando seu presente.
- Vamos sim. Vamos estrear esta bola hoje à tarde. Vamos ver quem é bom de bola,
sentenciou Nando.
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- Não vai mesmo, retrucou Dodô.
- Esta bola vou estrear no sábado, depois do catecismo, com a minha turma. Estamos
cansado de jogar com bola de meia. Se quiserem, vamos jogar com uma bola que fiz
com três meias velhas da Lene. Enchi de palha de milho com um pouco de terra. Até
parece uma bola de capotão de verdade.
- Ei moleque!!! Tá regulando esta bola? Trouxe de São Paulo, quer dizer, Papai Noel te
deu é pra jogar. Não é pra ficar guardada!!! advertiu Nando.
- Não e não, né mãe? A bola é minha e jogo quando quiser. Vamos jogar com a bola de
meia. Garanto que teus amigos nunca jogaram com bola de meia. Assim, ensino pra
vocês como se joga bola. Garantiu Dodô.
- Este vai ser o melhor center alfo. Previu Zé Chiachio alertando Nando e sua turma.
- Que nada, pai. O Dodô não sabe de nada. Não vai acertar um chute com a bola de
capotão .... Respondeu Nando.
- Não, não, não, Nando. Este aí é bom de bola mesmo. Chuta com os dois pés. Dribla, é
rápido. Lá em São Paulo, quando tinha só oito anos, o pessoal do Estrela da Saúde
queria que ele jogasse no meio dos adultos. Pra falar a verdade, teve um homem do
Jabaquara, lá de Santos, que queria levar o Dodô pra jogar lá. A questão era a distância.
E tinha que ir duas ou três vezes por semana. O ônibus demorava duas horas pra ir e
duas pra voltar de Santos. Ia gastar muito dinheiro. E a Maria também não queria. Não
deixou.
- E se é assim, então vamos ver. Se você for bom mesmo, te levamos pra São Paulo. Vai
jogar do Palmeiras. Entusiasmou Rabelo.
- De jeito nenhum. Se for pra jogar, só jogo no São Paulo, né pai?
- Ih, ih, ih, tá mascarado o moleque. Brincou Alexandre.
- Vamo jogar com a bola de meia. Vô chamá o Zé Roberto e o Juca. Jogamos nós três
contra vocês quatro. O pai joga pra nós. Se vocês ganharem, deixo jogar com a bola de
capotão e vou jogar no Palmeiras; escarneceu Dodô.
Bem, resumindo, os paulistas não viram a cor da bola. Dodô, Zé Roberto e Juca deram
um baile nos quatro marmanjos. Pai só assistia, dando risadas.
- Falei pra vocês. Este moleque vai ser o melhor center alfo do Brasil!!! Profetizou, de
novo, Zé Chiachio.
E a bola de capotão ficou guardada a sete chaves, durante uma semana. Pelo menos
duas vezes por dia, Dodô ia lá no seu esconderijo, abraçava, acariciava e embrulhava de
novo num pelego velho. Ninguém sabia onde estava a bola.
E durante a semana a notícia se espalhou.
3
Só se falava na estréia da bola de capotão, depois do catecismo, na rua de baixo, atrás da
Casa Paroquial.
Sábado Dodô botou a bola numa mucuta, embrulhada no pelego e foi pro catecismo.
Se todos os sábados compareciam no catecismo de dez a quinze crianças, neste dia, lá
estavam dezoito moleques e dezenove meninas.
Ninguém prestou atenção na catequese de Maria Augusta. Os meninos só cochichavam
sobre a bola.
Padre Alberto mal tocou o sino, dando o catecismo por encerrado, a meninada toda saiu
alvoroçada pra rua debaixo.
As meninas encostaram no muro, a espera do jogo.
Dos moleques, todos queriam jogar; fazer parte de um time.
Dodô tirou seu troféu da mucuta, mostrando a bola de capotão novinha pra todo mundo.
- Que beleza, agora temos bola de verdade!!! Gritou Nenê do Zé Cancio.
Todo mundo queria pegar a bola. Todos estavam ávidos pra fazer embaixadas, chutar,
cabecear.
- O Jackson não vai jogar. Ele nunca vem!!! Gritou Luiz Bengalô.
- Num tem problema. Bota ele num gol. Disse Marcinho.
- Então o Nadinho fica no outro gol. Sugeriu Zé Vicente.
- Como é que vai ser o par ou impar? Perguntou Fernando Passos.
- O de sempre, né Fernando. Os dois melhores tiram par ou impar. O Dodô e o
Marcinho. Eles não podem ficar no mesmo time. Nove de cada lado. Sugeriu Paulo
Sampaio.
Formados os times, relembradas algumas regras básicas, ia começar a partida. Sol a
pino.
- Vira oito e acaba dezesseis!!! Nosso time joga sem camisa. Falou Dodô.
E foi o jogo do ano, talvez do século.
Até quem passava pela rua, dava uma espiada no jogo e passava a assistir. Dos poucos
fords existentes na cidade, os que pretendiam passar, desviavam pela rua de cima, para
não interromper o jogo.
Dezesseis a quatorze pro time do Dodô.
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Duas horas da tarde, terminada a partida, todos foram se refrescar na torneira do tanque
da Casa Paroquial. As meninas foram embora. Dos dezoito jogadores, restaram dez.
Dodô segurava sua bola com carinho.
- Vou dar uma lavada nela. Tá cheia de poeira. Disse Dodô.
- Não, não molha ela. Vai estragar!!! Advertiu Paulo Sampaio.
- Que nada. Essa bola não estraga se molhar. Ocê não vê lá no campo do Siô Afonso
quando chove? Num acontece nada com a bola. Lembrou Marcinho.
- Vamos continuar. Vamos formar novos times. Vira seis, acaba doze. Agora o time do
Marcinho joga sem camisa.
Jogo duro. Empatado em cinco a cinco. E num contra-ataque fulminante, no momento
em que o time do Marcinho ia desempatar a partida, a bola parou nos pés do Seu
Juvêncio Praxedes que impediu o gol salvador, com o auxílio da sua famosa bengala.
- Assim num vale!!! Foi gol!!! Oh seu Juvêncio, não pode atrapalhar desse jeito !!!
Esbravejou Marcinho.
- Aqui não é campo de futebol. Ocês estão atrapalhando a rua. E de quem é esta bola?
- É minha vô!!! gritou Dodô. Ganhei do Papai Noel!!!
- E ocê acredita nesta besteira moleque? Que tá fazendo na rua? A Maria e o Zé não ti
dá educação?
- Oh Seu Juvêncio, é só um jogo de bola. Hoje é sábado. Saímos do catecismo. Lembrou
Fernando Passos.
- Oh vó. Papai Noel me deu a bola é pra gente jogar. E a mãe e o pai não falaram nada.
E o Senhor não tem nada a ver com isso. E me dá minha bola!!! Reclamou Dodô.
- É por isso qui ocê tá malcriado moleque. E vão todo mundo embora. Aqui não tem
mais jogo. Esbravejou Juvêncio Praxedes tirando do bolso seu canivete de picar fumo.
- Péraí seu Juvêncio. O que o Senhor vai fazer? Resmungou Nenê do Zé Cancio. Essa
bola agora é nossa, né Dodô?
- Isso mesmo, vô. Devolve a bola, senão vô contá pra mãe. Advertiu Dodô.
- Isso é pra vocês aprenderem seus moleques de rua. Cortou a bola de capotão,
exatamente nas costuras. Vendo a câmara sair pelo corte, enfiou o canivete e estoura-a.
Não contente, apunhalou a bola diversas vezes e atirou-a no meio do mato.
- Seu véio rabujento. Vou contar pro meu pai, pra minha mãe e pro Nando. Disse Dodô
com os olhos cheios de lágrimas.
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- Ocê trata de ir embora pra tua casa. Pode ir contar pra quem ocê quiser. Neto meu que
vai ser adevogado, num fica jogando bola na rua. Ameaçou Juvêncio Praxedes,
continuando sua caminhada.
Desolados, alguns dos jogadores ainda queriam vingança contra o velho, mas ninguém
se atreveu.
Fernando Passos entrou no mato e pegou o que restara da bola.
- Vamos levá ela pro Seu Pedro sapateiro. Quem sabe ele dá um jeito. Acho que ainda
dá pra aproveitar. De qualquer jeito, vai ficar melhor do que bola de meia.
De volta, pra casa, após contar o acontecido, a desolação foi total.
Os amigos do Nando queriam pegar o velho, sem saberem de quem se tratava.
- Vou dizê umas boas pra esse véio desgraçado; esbravejou Zé Chiachio, mas foi
desaconselhado por Maria do Rosário.
Os amigos do Nando prometeram outra bola de capotão, para o próximo Natal.
Ainda não chegaram: o Natal, o Papai Noel e nem outra bola.
Autor: Dr. Jobachi
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