Carolina Kotscho 1 Copyright do texto © 2014, Carolina Kotscho Copyright do projeto © 2014, Editora Master Books Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. Editor/Publisher: Eliana Michaelichen Capa e projeto gráfico: Gabriela Guenther | Estúdio Sambaqui Revisão: Angela Castello Branco Ilustração do mapa: Anna Cunha Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Kotscho, Carolina Não Pare na Pista : a melhor história de Paulo Coelho / Carolina Kotscho. ... 1. ed. ... São Paulo : Editora Master Books, 2014. ISBN 978-85-63201-09-6 1. Cinema - Brasil 2. Cinema - Roteiros 3. Coelho, Paulo, 1947- 4. Escritores brasileiros - Biografia 5. Literatura brasileira 6. Não Pare na Pista, o Filme (Filme cinematográfico) I. Título. II. Título: A melhor história de Paulo Coelho. 14-05220 CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Não Pare na Pista, o filme : Filme cinematográfico : Literatura brasileira 869.93 Editora Master Books R. Jerônimo da Veiga, 45 – 3º andar – sala B – Itaim Bibi São Paulo, SP – 04536-000 tel. (11) 3078-1093 http://www.editoramasterbooks.com.br Foi feito o depósito legal. Carolina Kotscho SUMÁRIO “É preciso correr riscos, seguir certos caminhos e abandonar outros. Nenhuma pessoa é capaz de escolher sem medo.” EN TR 7 EN o çã ta 2 #0 1 #0 TA IS EV 3 #0 4 #0 7 #0 TA IS EV TA IS EV TR TR no ri eg TR EN EN TA IS EV 8 #0 5 n se re r pe 68 92 o 40 EN 5 #0 TR TA IS EV 132 EN TR 0 #1 0 #1 4 TA IS EV 158 186 EN TA IS EV TA IS EV TR TR EN EN o ir te Ro 206 12 Ap TR 224 6 #0 244 TA IS EV 257 Para Bráulio, João e Olga, por tanto amor. “O amor é a cola que gruda tudo”. Paulo Coelho São Paulo, 10 de junho de 2014 Paulo Coelho é um dos autores que mais vendeu livros até hoje. Em pouco mais de 25 anos, as histórias contadas pelo escritor brasileiro se espalharam por todos os continentes e hoje fazem parte de muitas culturas e do imaginário de todos nós. Mais do que um escritor de sucesso internacional, Paulo é um hoje autor querido e respeitado no mundo todo. O que poucos sabem é que a história de vida de Paulo Coelho, principal fonte inspiradora de sua obra, é ainda melhor do que a ficção. Como ele mesmo afirma em “O Diário de Um Mago”, seu primeiro livro, publicado em 1987, o autor viveu na realidade o que na ficção seria inverossímil. Desde a infância, a jornada de Paulo Coelho é um exemplo de determinação. Até os 40 anos, Paulo viveu intensamente, superou muitos obstáculos e mergulhou fundo em todos os dilemas e conflitos de um jovem dos anos 70 dividido entre Deus e o Diabo. Flertou com a morte, fugiu da loucura, namorou com as drogas, superou a tortura, sofreu e sorriu por amor, encontrou o sucesso com a música ao lado de Raul Seixas e perseguiu um único objetivo: ser um “escritor consagrado, lido e respeitado mundialmente”, como ele próprio definiu ainda na adolescência. Ao longo dos anos, Paulo Coelho foi testado até o limite de suas forças, mas não desviou de sua meta. Sua experiência pessoal é única, porém sua busca incessante e obstinada pelo sentido da vida é universal. Ao procurar seu lugar no mundo, o escritor encontrou respostas para aflições coletivas e conseguiu traduzir em palavras, e dividir com seus leitores, o alento de descobrir o que hoje lhe parece óbvio: só o que vale é o presente, só o que importa é o amor. 6 7 O escritor procurou a magia e a alquimia, participou de sociedades secretas, Divido com vocês neste livro as primeiras conversas gravadas em fevereiro de estudou filosofia e religiões de todas as linhas e crenças, leu muito, perdeu e re- 2010 com Paulo Coelho, Christina Oiticica e Mônica Antunes, entre Genebra e Ma- cuperou a fé. No início de sua busca espiritual, Paulo Coelho queria ser diferente dri, que serviram de base para todo o desenvolvimento do projeto, e a versão de e se sentir especial. Contudo, o que descobriu é que “o extraordinário reside no filmagem do roteiro, antes das alterações e cortes (sempre bem-vindos) da monta- caminho das pessoas comuns”. Ele diz que cada um carrega dentro de si a força gem. O livro traz também muitas fotos da produção, a linda colaboração da equipe necessária para encontrar o seu próprio destino, combater o “Bom Combate” e de talentos do filme, e a paixão e a força do trabalho dos irmãos Julio e Ravel Andra- cumprir sua “Lenda Pessoal”. Paulo Coelho está cumprindo a dele e a história de de, que viveram Paulo Coelho no filme, dois atores e duas pessoas muito especiais. Foram quase sete anos de trabalho, desde a primeira conversa por telefone sua vida prova que ele tem razão. Se Paulo ainda tem um laboratório secreto, se é verdade que aprendeu a com o escritor, em maio de 2007, até o momento de mostrar o filme pela primei- transformar qualquer metal em ouro e descobriu a fórmula do elixir da vida eter- ra vez, ainda não finalizado, para Paulo e seus convidados, em Portugal, no dia 18 na que tanto procurou, não importa. O importante é que o escritor chegou onde de março de 2014, às 18:00hs, como pediu o biografado. queria e provou para o mundo que é, de fato, um verdadeiro alquimista: tudo que Em 2007, eu ainda trabalhava com Roberto e Malu Viana no projeto da TAL - ele toca tem valor e, como Shakespeare, o escritor vai estar para sempre neste Televisão América Latina quando o telefone do Roberto tocou no meio de uma mundo, através de sua obra. reunião. Era Paulo, emocionado com o filme “2 Filhos de Francisco”, meu primeiro Mais do que um mago, como ficou conhecido, Paulo Coelho é um peregrino: trabalho como roteirista de ficção. Roberto me passou o telefone e nós come- sempre em movimento, em plena transformação, na busca de cumprir o seu çamos a conversar. E foram muitas conversas, e muitos desafios vencidos, até destino. Nesse sentido, toda viagem do escritor é uma metáfora da própria vida. que Paulo estivesse convencido a deixar que eu fizesse um filme sobre sua vida. Em “O Diário de Um Mago”, Petrus, o guia de Paulo, diz: “Quando você viaja, está Assinamos o contrato em 2009. experimentando de uma maneira muito prática o ato de Renascer”. A partir daí, foram muitos encontros, em oito países diferentes: França, Ale- Como roteirista e produtora de cinema, tenho a alegria de poder escolher os manha, Suíça, Áustria, Espanha, Itália, Turquia e Portugal. Num primeiro momen- trabalhos que faço e só consigo embarcar em um projeto quando me apaixono to, Paulo é o que se espera do mago: uma figura forte, misteriosa, única, intan- pela história. Já fui chamada de louca, por roteiristas que admiro, por topar o gível. Aos poucos, se revela um homem muito culto e inteligente, provocador desafio de lidar com pessoas de verdade para fazer ficção no cinema. O que mais e divertido. E, bem lá no fundo, descubro que ainda mora ali dentro um meni- assusta, me disseram, é justamente encontrar o limite entre a vida e a tela. no desconfiado e rebelde, apaixonado pela mulher Christina Oiticica como um O segredo, para mim, está no respeito com as duas coisas: com a ficção e adolescente, um homem com conflitos e dramas extraordinariamente comuns. com a realidade. Paulo é um personagem denso, controverso, polêmico, que vi- Descubro ali o peregrino. E descubro que a história real de Paulo Coelho é ainda veu intensamente cada momento de sua vida. Suas histórias fantásticas parecem melhor que todas as histórias que ele inventou e que fazem tanto sucesso mundo inverossímeis, mas seus dramas são absolutamente universais. Um exemplo de afora. Descubro, acima de tudo, que o segredo do sucesso de Paulo está na trans- perseverança e superação. Um grande presente para qualquer escritor. parência, na coragem e na generosidade com que, entre a ficção e a realidade, ele 8 9 divide sua história com o público. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Assim como na história de Paulo, vivemos muitos desafios para realizar o so- acontecer. E a Paulo Coelho, claro, pela coragem de dividir sua história com o mundo de maneira tão transparente e generosa. nho de fazer esse filme. Parecia realmente impossível em alguns momentos. Mas No cinema, dizemos que um personagem não é o que ele fala, é o que ele faz. se o que havia me encantado em sua história era justamente essa força de alguém E costumo dizer que isso também vale para a vida: conhecemos uma pessoa de que não desiste nunca, eu tinha que seguir em frente e só consegui graças aos fato através de suas ações e não de suas palavras. Depois de pesquisar durante muitos parceiros queridos que também acreditaram no projeto e se juntaram a esses anos todos, entre tantas entrevistas, conversas e documentos, posso dizer nós ao longo do caminho. Foram muitos encontros bonitos, com gente querida que Paulo é um desses casos raros e bonitos de alguém cujas palavras são absolu- e grandes talentos, que deram vida a esse projeto. tamente coerentes com seus atos. Posso afirmar que quando ele diz “tente outra Impossível não agradecer a Mônica Antunes e Christina Oiticica, as grandes mulheres de Paulo Coelho, pelo carinho, pelo apoio e pela confiança ao longo vez” em uma música, ou “quem não desistir da busca, vencerá” em um livro, ele sabe exatamente do que está falando. de todo o processo, e aos meus sócios Renato Klarnet e Iôna de Macêdo. Tenho Contar a história de uma vida em duas horas de filme é sempre um grande que agradecer muito também, para o resto da vida, ao diretor Daniel Augusto e desafio. E contar a história de um grande contador de histórias como Paulo Co- toda a sua equipe pela incrível parceria e pelo presente que é ver na tela, depois elho, além do desafio, é um grande prazer. Só posso agradecer sua confiança e de tantos anos de trabalho, um filme ainda mais forte e mais bonito do que eu dizer que foi uma honra ajudar a contar sua história com “Não Pare Na Pista”, um poderia sonhar. E a Roberto e Malu Viana, a Rodrigo Lowndes, Flávio Tambellini, filme sobre um homem que se fortalece diante das dificuldades, que traça seu Bráulio Mantovani, a equipe da Dama Filmes e a tanta gente que fez esse filme caminho e que, sobretudo, não desiste de seu sonho. Uma história arrebatadora que emociona profundamente e que serve de exemplo para todos nós. Carolina Kotscho Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu 10 11 Um olhar por trás das câmeras Quando recebi o convite para dirigir o filme Não Pare na Pista, senti que havia ganho um presente. Ou melhor, não só um, mas vários. Primeiro, porque a vida do Paulo é uma história singular. Na adolescência, ele tentou o suicídio, foi internado numa clínica pelos pais e sofreu sessões de eletrochoque. Mais tarde, foi parceiro do Raul Seixas, tornou-se um dos letristas de rock mais importantes do Brasil, foi preso pela ditadura militar, experimentou o paraíso e o inferno das drogas, entregou-se de braços abertos à contracultura. Não bastasse essa trajetória singular, ainda virou o escritor brasileiro mais lido do mundo, um verdadeiro superstar. Resumindo: a biografia do Paulo é não só um pela beleza, e assim por diante, que me parecem traços do que fiz até agora. A oportunidade de colocar tudo isso que estava em mim numa nova escala – isto é, num longa-metragem – é algo que sinto também como um presente, a maravilhosa contribuição de Não Pare na Pista para minha vida. Não bastasse tudo isso, ainda consegui um elenco e uma equipe sensacionais, e fui agraciado por um período de filmagens onde tudo parecia correr a nosso favor. Foi um prazer tão grande filmar que eu até hesito em usar a palavra “trabalho”. Kubrick disse certa vez que “sugerir que eu tire férias do cinema é como dizer a uma criança que tire férias da sua brincadeira”. Para mim, fazer esse filme foi exatamente assim: uma grande diversão, e espero que, de algum modo, o público tenha a mesma sensação assistindo Não Pare na Pista ou lendo este livro. Daniel Augusto (diretor do filme) convite mas também um regalo para qualquer cineasta. Além disso, ser convidado também foi um presente porque possibilitou que eu finalmente dirigisse um filme escrito pela Carolina Kotscho. Admiro muito o trabalho dela e há anos ensaiamos fazer algo juntos. Não bastasse isso, ela elaborou um roteiro cuja progressão dramática não cronológica propunha uma forma diferente de ver a biografia do Paulo, além de trazer o delicioso desafio de conciliar mais de dois tempos numa só narrativa. Terceiro, porque – permitam-me uma nota mais pessoal aqui – tenho 41 anos de idade e sinto que me preparei a vida inteira para fazer cinema. Desde criança, eu queria ser diretor de longas-metragens de ficção. No entanto, minha trajetória audiovisual até agora tinha sido de documentários e programas televisivos: isto é, marcada por trabalhos que não colocavam totalmente à prova aquilo para o qual eu sinto que realmente me preparei. Agora, como uma mistura improvável entre estreante (por ser meu primeiro longa-metragem) e veterano (por ter quase 20 anos de trabalhos audiovisuais), pude finalmente colocar em prática a parte mais essencial da minha formação. Assim, quem conhece alguns dos meus trabalhos mais pessoais, talvez reconheça em Não Pare na Pista um certo modo de olhar, uma atração pela narrativa não linear, uma maneira de enquadrar e usar as lentes, um determinado ritmo de montagem, um jogo com a música, uma busca Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu 12 13 o peregrino #01 Paulo Coelho, fevereiro de 2010 In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur, venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam. Carolina Kotscho: Pronto. Câmera ligada. A palavra é sua, Paulo. Paulo Coelho: Então, hoje é dia 11 de fevereiro de 2010. Nós estamos numa auto estrada na A1 – parece os logs do Avatar – indo para Munich. E são dez para as duas. Hoje é dia de Santa Helena Dante também, então é um bom dia para gravar isso. Eu estou aqui fazendo uma coisa que eu disse que não ia tornar a fazer, e eu sempre digo isso e termino fazendo, que é falar da minha vida. Ao mesmo tempo eu acho que se eu não falo da minha vida eu esqueço a minha vida, porque eu sou tão conectado no presente... Eu simplesmente esqueço o passado. Existe uma frase no “Manual do Guerreiro da Luz” que diz: o Guerreiro da Luz pensa antes de começar, mas quando ele começa ele vai até o final. E aí, respeitar o tempo – e respeitar o tempo não significa necessariamente, enfim, aceitar que as coisas têm que estar naquele ritmo, você tem que deixar o tempo passar. Então eu só quero fazer uma última – retiro a última – mais uma observação: eu não estou nem um pouco ansioso, claro que eu gostaria de ver um filme baseado na minha vida, mas se eu estivesse ansioso ou fissurado, eu já tinha produzido o filme. Eu não fiz isso porque eu não estou tão fissurado. 14 15 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Então, Carol, eu vou te fazer agora uma proposta. A proposta é a seguinte: saiba o que perguntar, porra! Porque eu não aguento contar as mesmas histórias! Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Não são as mesmas histórias, não. E a pergunta é por que você acha que você chegou onde você chegou? PC: Vamos lá. Por que eu acho que eu cheguei onde eu cheguei... Se eu tivesse que fazer uma escala de valores, eu diria que a primeira razão de eu ter chegado onde eu cheguei é um milagre. Eu não tenho dúvida de que eu sou, ou a minha vida toda é, produto de uma série de milagres que se conjugam no mesmo milagre. 16 Posso fazer uma analogia. Eu estou casado com a Christina há 30 anos. Acontece que nesses 30 anos essa Christina, ela virou várias Christinas, e eu idem. Então na verdade nós nos recasamos várias vezes com pessoas diferentes. Eu era aquele cara sonhador que queria chegar onde eu cheguei, depois sendo um escritor famoso, e depois também com os meus conflitos. E a Christina também mudando com tudo isso. Então, fomos seres diferentes durante esses 30 anos, mas compondo um único casamento. A mesma coisa ocorre com a minha vida – uma série de pequenos milagres que se conjugaram num grande milagre. A segunda razão, eu diria, é a minha força de vontade – não, a segunda razão é o meu talento. Eu tenho talento para o que eu faço – é um presente de Deus, mas eu tenho talento para o que eu faço. A gente põe um desejo, você sonha, e se você sonha, você pode fazer. Então se eu sonhasse ser um engenheiro, eu seria um engenheiro muito frustrado porque eu não tenho talento para ser engenheiro. Mas estava semeado no meu coração o talento de ser um escritor, e aí é tudo uma questão de perseverança – seria a terceira razão: não desistir. Uma grande diferença entre coragem e vontade é que coragem é você enfrentar um inimigo apesar de tudo, e vontade é você nunca desistir. O homem corajoso pode perder uma batalha ou perder uma guerra. O homem com força de vontade, ele sempre ganha, porque ele não desiste, ele não pode perder nunca, o final é sempre uma vitória pelo simples fato de que ele não desistiu. Então, repetindo as razões: a primeira é a bênção, o milagre, o mistério; a segunda é o talento; e a terceira é a vontade. 17 CK: E quando é que você se deu conta desse sonho? Você me disse que escreveu uma primeira redação na escola que fez sucesso... Foi nesse momento mesmo? PC: Foi. É engraçado que as pessoas não acreditem isso. CK: Eu acredito. E você acha que isso foi de fora para dentro, que isso é uma escolha de Deus? PC: Não. Eu acho que nada nesse mundo vem de fora para dentro ou de dentro para fora; essa divisão, ela é arbitrária. Tudo é uma coisa só. Nós somos o que está fora e somos o que está dentro. Então eu acho que foi uma escolha que veio de dentro para fora e de fora para dentro. O símbolo mais fácil da alquimia é uma serpente mordendo a própria cauda, quer dizer... CK: Renovação. PC: Exatamente. Então, quando eu ganhei aquele prêmio de redação, talvez não tivesse ficado tão marcado. Quando eu ganhei no colégio esse concurso de poesia, eu me lembro que eu estava naquele bonde, chovendo, passando em frente ao Jardim Botânico, e eu todo animado para dizer para a minha mãe que eu queria ser um escritor. Enfim, pela primeira vez na minha vida, eu consegui provar, a mim e aos outros, fora Veja. Não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus, tenha fé na vida. Tente outra vez . 18 19 e dentro, que eu era uma pessoa capaz. Até então eu acho que eu não tinha conseguido provar a minha capacidade em nada, absolutamente nada. A minha epifania veio do fato de ter provado que eu era uma pessoa capaz. CK: E você traçou esse caminho? PC: É impossível traçar esse caminho. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Você não traça o caminho, mas você coloca uma meta? PC: Eu coloquei duas metas: primeiro, viver de escrever. E depois, ser o escritor mais famoso do mundo. Hoje efetivamente eu devo estar entre os três mais famosos. CK: E qual é o próximo passo, então? PC: Não, aí é o caminho... CK: É porque em vários momentos na sua obra você repete esse tema: o que acontece depois da realização de um sonho? PC: Não, vem cá, o que acontece depois da realização de um sonho é ser honesto e fiel a esse sonho. Quer dizer, você, quando vira um escritor, primeiro sabe que você escreveu, você vai ser publicado e isso é uma grande responsabilidade em relação aos milhões de outros escritores que não têm essa oportunidade. Então você nunca pode dizer: ”que saco, tenho que escrever um novo livro!”. Porque você sabe que você não tem que escrever nada, ninguém te obriga a fazer absolutamente nada. Mas, por outro lado, você sonhou com isso, então a meta é ser um escritor e a partir daí é honrar esse trabalho, é continuar escrevendo apesar de tudo o que pode ocorrer nesse caminho. E é nessa que eu estou. Então se você me pergunta, eu digo que tenho que ir até o final honrando aquilo que me foi confiado, escrevendo. E não vivendo das glórias passadas. O meu sucesso presente me dá fortíssima possibilidade de sucesso futuro. CK: A gente está falando sobre o que é fora ou o que é dentro – eu concordo que é uma coisa só, mas, em muitos momentos, a gente coloca como duas coisas separadas. E as pessoas em geral colocam a culpa no outro pelas suas limitações, pelos seus fracassos. Por que você acha que isso acontece? PC: Eu acho que é difícil você segurar a barra do próprio fracasso. Você só para de colocar a culpa no outro quando você está fazendo alguma coisa que você quer, porque aí não foi o outro que te obrigou, não foi o outro que te sugeriu, não foi o outro que está 20 21 te guiando – você está fazendo aquilo que você escolheu para a vida. Por isso que as pessoas relutam tanto em fazer aquilo que elas escolheram. Porque da parte delas, não tem quem culpar; elas são responsáveis. No momento em que você se torna o rei do seu reino, e você sendo o rei do seu reino, sinto muito, mas não tem outro para dizer ou para culpar. Então eu sou o rei do meu reino. CK: E sempre foi? PC: Não, não... Nem sempre eu fui o rei do meu reino. Eu fui o rei do meu reino interior, mas o interior não existe sem... Ele não se manifesta sem o exterior. Voltando ao que a gente falou, tudo o que está fora está dentro, então tudo é uma coisa só. Então durante muito tempo o meu reino interior estava em profunda dissonância com o meu reino exterior. O reino exterior não era meu. 22 CK: E você identifica um momento de virada especifico? Um momento de tomada de consciência? PC: Identifico vários. Mas se você tiver que colocar um momento de mais consciência, é quando eu fiz o caminho de Santiago. Aí foi o momento que eu parei com tudo, e a partir de agora vou escrever, se der certo, deu, se não der certo, como dizem os franceses... Desolé. CK: Mas você contava com a possibilidade de não dar certo? PC: Não. Lembre-se que viajar é a melhor maneira de aprender e que toda viagem é uma aventura. 23 24 25 CK: Nunca? PC: Não, porque se você está fazendo o que você quer, está certo, você não tem uma escolha errada aí. CK: Eu não consigo acreditar quando você disse “não deu certo... desolé”. PC: É uma coisa tão remota... CK: Você tinha essa sensação de ver pronto? PC: Não, tampouco, e não tenho até hoje. Eu tinha só a sensação do momento presente. Isso vale até hoje; se eu estou me dedicando a escrever um livro, eu não fico pensando no que vai acontecer, como vai ser a promoção, como vai ser... CK: Não, não, eu não digo no resultado, eu digo na obra em si, na realização em si. PC: A minha vida sempre teve um sentido, mas agora esse sentido se condensou num sentido só. É o clássico mote da alquimia: dissolve e coagula, dissolve e concentra, que é um processo cíclico. Então quando eu escrevi “O Diário de um Mago”, eu me botei todo ali, e acho que quando você se bota todo ali, sei lá... você pode levar, eu já levei muitas porradas, muitas vezes custei para me recuperar. Quando eu fazia músicas com o Raul, a Sociedade Alternativa, eu estava todo ali, todo ali... apanhei. CK: Apanhou, mas ao mesmo tempo, no “O Diário de um Mago”, no “As Valkírias”, no “O Alquimista”, você se expõe muito e são obras muito fortes. PC: Claro, mas para poder te responder essa pergunta, é que eu nunca entrei numa luta pensando na pos26 sibilidade da derrota. Eu já fui derrotado várias vezes, já fui, mas quando eu estou ali, eu estou inteiro. [Paulo fica sério, pensativo. Se cala por alguns instantes e observa a paisagem branca do inverno suíço. A estrada está quase vazia e cai uma neve fina e persistente] PC: A gente recentemente pegou essa estrada aqui... Há exatamente dois meses, para ver o meu esporte favorito, que é luta, boxe. Um dos. Um dos três... CK: E quais são os outros? PC: Primeiro, futebol, segundo, rugby, e terceiro, boxe. E o lutador, quando ele está no ringue, ele não está sentindo, não é uma coisa da dor física, a dor física vem no dia seguinte. Tem tanta adrenalina ali que não adianta, você não sente a dor física. E você tem que estar ali como um lutador no ringue, você age por reflexo, você não age por pensar, ninguém tem tempo de – ”ah! ele vai bater com a mão direita e com a esquerda ele vai aparar o golpe”. Não existe isso. Você não pensa, você não pensa quando você escreve. Eu acho que você tampouco pensa muito quando você dirige, você está na estrada e... CK: Você não pensa, mas você deseja. Você deseja ganhar a luta, deseja terminar o livro, você deseja chegar no seu destino. PC: Claro. CK: O ser humano é movido a desejo. PC: Você deseja. Logo, você aprende que ser o melhor não significa que todos os outros vão estar de acordo com você. Mas eu sou o melhor. 27 CK: E como você aprendeu a lidar com isso, Paulo? PC: Eu sou o melhor; eu aprendi. Porque tudo isso me foi dito no dia 27 de setembro de 1989, quando eu já tinha publicado “O Diário de um Mago” e “O Alquimista”. E eu dizia “eu tenho que conseguir, eu tenho que conseguir, eu tenho que conseguir...”. Aí já estava pensando realmente – “porra, eu tenho que realizar o sonho de ser o escritor mais lido no mundo”. Eu estava dirigindo num vale, e veio um anjo no meu carro... CK: Você estava dirigindo onde? PC: Num vale na França. Ele sentou e falou: “Ah! Você quer isso e o engraçado é que você não sabe o que é ter sucesso não, cara... Ter sucesso é todo mundo te adorar, te achar o máximo, mas você vai apanhar muito, você vai apanhar para cacete”. E eu fiquei muito surpreso, porque a minha visão do sucesso era completamente diferente. CK: Era uma visão romântica. PC: “Todos me amam”. Aí eu fiquei tão aterrorizado com a presença do anjo... Não com a presença do anjo em si, mas com que o anjo me falou. E ele disse assim, me dava 24 horas... agora eu não posso jurar como é que foi o processo... CK: Não precisa, basta o que ficou para você. PC: Não, porque isso é muito importante, é a única área que eu não estou autorizado a mentir; nas outras áreas eu estou autorizado a mentir. Por isso que sempre eu tenho que fazer uma ressalva, enfim. Eu não sei se o anjo falou “você tem 24 horas para 28 pensar”, mas vamos colocar que ele falou isso – mas ele me contou tudo o que ia acontecer comigo, quer dizer, essa reação ao sucesso. Eu fiquei tão... Foi uma revelação tão forte, eu não esperava isso. Eu falei “você me dá vinte e quatro horas” – e seria no dia seguinte, às cinco horas da tarde. E ele falou ainda: “você vai sonhar hoje à noite, e onde você sonhar é onde você vai ter que fazer essa promessa”. E eu sonhei que eu tinha que tomar um teleférico. Veja você: eu estava ali, fazendo um caminho sagrado, onde a coisa básica era o esforço físico e tomar um teleférico parecia uma coisa tão fora de contexto. E aí, quando nós chegamos, eu fiquei pensando: porra, eu nunca tinha entendido isso, eu nunca podia imaginar isso. Aí no dia seguinte eu subi lá às cinco horas da tarde e disse: “eu tive um dia para pensar, então vamos fazer o seguinte... Eu não tenho condições de dizer. Você me dá três anos, se em três anos eu não segurar a barra... Daqui a três anos eu volto aqui, aí eu posso ou dizer ok, ou ‘fiz o que eu tinha que fazer, e agora, parei’”. Se isso foi em 1989, eu estava com quarenta e dois anos. E aí marcamos três anos depois, aí já na presença do meu mestre, com quem eu falei sempre, com quem eu sempre falo. Aí quando chegou 1990, que foi uma das porradas que você leva, eu já estava preparado. Eu só lembro de um momento de vinte minutos num hotel em São Paulo, que foi tanta porrada, mas num curto espaço de tempo aconteceu aquilo – teve a Veja, mas todo mundo bateu – Folha, Estadão, Globo, o que tinha – ninguém falou a favor, ninguém, ninguém. Aí nesse momento eu vi. Eu me lembro de ir para fora do hotel, do apart hotel; só nessa hora que eu tive 20 minutos de dúvida. Mas depois, quan29 do chegou 1992, eu fui lá com a Chris. 27 de setembro de 1992, e eu disse: “olha, eu passei dois anos aí apanhando, eu acho que eu já cumpri a minha missão, aqui damos uma parada”. E o meu mestre falou “então vamos aguardar até o dia 12 de outubro, dia de Nossa senhora Aparecida. Se você continuar achando isso, tudo bem. Mas se você não continuar, você vai adiante nesse seu trabalho”. Aí eu pensei até o dia 12 de outubro e – tem uma pequena cidade nesse lugar que se chama Argelès Gazost – “Porra, o que é que eu quero? Passar o resto da minha vida vivendo aqui nessa cidade?”. Já tinha dinheiro... “ou eu gosto desse meu combate. O que ocorre: ser apenas um profeta ou um apóstolo?”. Aí nesses doze dias, ou do dia 27 ao dia 12, eu mudei de ideia: “agora é definitivo, eu não posso subir de novo naquela montanha e negociar. A negociação foi só aquela vez. Agora não tem volta atrás, não”. CK: É isso que eu ia falar, porque você teve esse desejo muito cedo. E esse sucesso todo, depois de batalhar tanto, deve ter sido também um susto enorme. PC: Foi uma surpresa também. Não foi um susto. Prefiro dizer que foi uma surpresa, e o espanto com esse outro lado que demorou esses vinte e dois minutos, no chão desse hotel... Quer saber de uma coisa? Eles, no meu reino, eles perderam a batalha. Isso não tem importância, nunca vou dar bola e definitivamente nunca dei bola. A fé consciente é liberdade. A fé instintiva é escravidão. A fé mecânica é loucura. CK: O que te machucava de verdade nesses 20 minutos em que você pensou em desistir? Era a inveja, era a agressão, era não ser compreendido? PC: Não, eu nem sei se a palavra é “machucar”. É mais um espanto, porque machucar, nunca machucou. CK: Não? PC: Não, porque senão eu já tinha parado, nem ia lá para o encontro em 1992. Eu fiquei foi muito espantado, embora eu tivesse sido muito bem-vendido. Sempre a realidade é – e é obvio que aqui a gente está falando de apenas um lado da moeda, o lado da moeda muito mais forte é que os meus livros venderam . 30 31 CK: Mas você tinha inicialmente esse desejo da unanimidade, né? PC: Ah, claro. Mas não é unanimidade, não. Não é tanto da unanimidade, é da apreciação. E eu consegui, eu só não consegui com esses caras. Mas eu estou aqui, e as pessoas que me criticaram, cujos nomes eu tenho, porque eu sou uma pessoa absolutamente vingativa, eles não estão mais. Eu estou aqui. Veio uma nova geração. Eu guardava muito logo no início, e agora eu já nem sei quem fala mal e tal; agora eu já não guardo mais. Essas pessoas não existem no meu reino. Não é que elas não têm poder, elas têm, mas não um poder que eu dou. Elas podem me prejudicar? Podem. Fazer com que o preconceito passe para a próxima geração? Sem dúvida nenhuma. Mas eu continuo lutando, eu sei qual é o inimigo, então vamos para a frente. CK: Você falou que é muito vingativo. PC: Sou. Eu e Jesus. Jesus é tolerância zero! PC: Também, também. As listas negras proliferam. Quer dizer, se alguém que me atacou no passado e vai me pedir ajuda, eu vou ser muito gentil, não vou passar recibo, mas jamais irei ajudar. Nunca aconteceu. CK: Mas você chegaria a prejudicar essa pessoa? PC: Não há necessidade, porque prejudicar é não ajudar. CK: E você já se arrependeu de alguma vingança? PC: Não, não, não. Eu sou a mosca Que pousou em sua sopa Eu sou a mosca Que pintou pra lhe abusar CK: E qual foi a vingança mais saborosa? PC: O sucesso! O sucesso é a vingança mais saborosa que existe. É eu poder chegar para a Playboy e dizer “eu sou o intelectual mais importante do Brasil”. Deixa eles se rasgarem, e dizerem “Que absurdo! Que arrogância!”. E eu sou o intelectual mais importante do Brasil. E eu serei o intelectual mais importante do Brasil. Como disse um cara recentemente lá no Rio, “Paulo Coelho não deixará descendentes.” – é isso. CK: Então é uma vingança que te estimula? Que te faz querer ser melhor e não que te volta contra o outro? 32 33 CK: Eu falo assim, lá de trás. PC: Muito ligada a amor, nada ligada a carreira. desculpa”. As pessoas não entendiam muito, não, porque eu já era famoso. CK: Mas alguma coisa que você tenha aprendido? Com alguma vingança que você tenha feito, que você tenha se arrependido, que te transformou de alguma maneira? PC: Não, vingança não. Mas gestos errados, muitos... Por exemplo, eu já fui muito injusto. Eu fui ver um filme chamado “Flatliners” – acho que é o primeiro filme da Julia Roberts, onde quatro estudantes resolvem experimentar a morte. É o Kiefer Sutherland, a Julia Roberts, e outros. Eu saí do cinema impressionadíssimo com esse filme, porque o filme fala que as pessoas, essas quatro pessoas do filme, foram torturadas e massacradas, e essas pessoas é que vão ser os grandes demônios depois da vida. Ou seja, você morreu, está arrependido, e não tem como consertar o que você fez. Aí eu saí, fui para um bar, fiz uma lista de todas as pessoas que eu feri sem razão, e comecei a pedir desculpa, telefonando, mantendo contato. Demorou dois anos para pedir desculpa para todo mundo, porque com muita gente eu tinha perdido o contato, o telefone, ou seja lá o que fosse. CK: E era por você e não por eles? PC: Era por mim. Eu pedi desculpas. Eu agi injustamente, erradamente, eu não tinha a menor razão, e assim foi. Mas continuo eventualmente dando uns foras, mas peço logo desculpa já, bem rápido, para evitar esse carma. Agora uma coisa é isso, né – a injustiça. Outra coisa é a vingança. Não me lembro, assim, de alguém que tenha me atacado e depois tenha me pedido ajuda, porque eu acho que já declarei tantas vezes que eu tenho a minha lista negra... eu acho que é por aí. CK: A a lista era grande? PC: Não me lembro, mas devia ter uns 30 nomes, por aí. CK: E que idade você tinha, Paulo? PC: Foi em 1990 isso. Eu não sei que idade eu tinha em 1990. Aí eu pedi desculpa a todo mundo, e disse “Olha, eu não quero ser amigo, não – só quero pedir 34 CK: Você falou num anjo da morte, ao qual você se refere muitas vezes. Qual foi a primeira vez que você ouviu isso? Quando você ouviu falar do Anjo da Morte, que imagem você tinha dele? PC: Possivelmente eu tinha uma imagem que eu não tenho mais hoje. Era uma imagem muito negativa. Hoje eu acho que a morte é a sua aliada, a morte é que faz você fazer as coisas que você gostaria de fazer. Ou seja: “Eu vou te pegar!”, e você diz: “Deixa eu acabar!”. Eu acho que a primeira vez que eu ouvi falar foi em literatura, eu li alguma coisa, não lembro... CK: E era uma coisa assustadora? PC: O inferno era assustador! Não a morte, ela não. CK: Como era esse lugar horrível? Era cheio de fogo? PC: Devia ser, mas eu não me lembro, não. Mas devia ser aquilo que Jesus dizia, onde haverá choro e ranger 35 CK: Ele tinha asas? PC: Não, não era o Anjo da Morte, a figura dele. Eu estou falando do inferno. CK: Essa imagem que você falou do inferno, é uma imagem que vem da Bíblia, né? Da formação católica. PC: Acho que sim. É o diabo com rabo, é tudo aquilo. CK: Se você tivesse que desenhar, seria assim como na Bíblia? PC: Seria, seria o desenho clássico. CK: E o Anjo da Morte? Se você tivesse que desenhar, como ele seria? PC: Devia ser como um filme de terror: a caveira com a foice, a cara da morte clássica. Deus costuma usar a solidão para nos ensinar sobre a convivência. de dentes. Ranger de dentes é uma expressão muito forte, sobretudo a total e absoluta ausência de esperança. Eu acho que sem esperança de redenção. Hoje em dia, eu não vejo as coisas assim não, mas se a gente voltar para aquela época, eu via a absoluta desesperança da salvação. CK: E o Anjo da Morte tinha uma cara? PC: Não me lembro. 36 CK: E eu não perguntei, mas fiquei curiosa... O seu anjo, esse que veio no vale na França, ele tinha asas? PC: Não, não é um... Quando eu falo de anjos não é aquela figura clássica, ele era uma luz do meu lado. CK: E tinha alguma forma? PC: Não, não tinha uma forma de gente. Ou algo que o valha. Eu só vi o meu anjo lá no deserto. Quer dizer, eu já vi várias vezes, já senti a presença dele várias vezes. CK: E é uma conversa como se tivesse uma presença física ali ou é uma coisa interna, de sentimento? PC: Não, já que a gente tem que dividir, em internos e externos, é uma coisa bem real. CK: É uma experiência real, não é um sentimento? 37 PC: É feito eu estar conversando com você. Eu ouço as palavras, eu respondo, tanto é que eu discuti com ele, né! CK: E é uma voz? PC: É uma presença e também uma voz, é uma presença de luz, embora nem sempre seja uma presença de luz. CK: Mas é uma voz que você identifica, né? Não é uma voz que vem de dentro de você? PC: Não. É uma voz que vem de fora de mim. Normalmente não tem ninguém perto. Por exemplo, quando eu quero falar quando estou caminhando com a Christina, eu ando mais rápido. Aí eu posso falar e escutar. CK: E se outra pessoa estiver perto de você, vai escutar você falando sozinho. É isso? PC: Vai achar que eu estou falando sozinho. CK: E você já passou por essa situação? PC: Deixa eu pensar... Acho que não. Eu não lembro. Esses contatos precisam de muita intimidade, num momento em que você está sozinho. Agora eu já passei muitas coisas por situações ditas milagrosas, de sentir a presença, de ver tudo isso e aí eu já estive com outras pessoas. CK: Você já dividiu a sua história muitas vezes por meio dos seus livros, com os seus leitores, em alguns momentos como não-ficção e depois como ficção. Mas é claramente você ali atrás, é você falando diretamente com o seu público. PC: Sem dúvida. 38 CK: E a ficção de alguma maneira permite ir mais fundo no que você quer dizer? Você sente isso? PC: Sinto. Por exemplo, eu tenho um compromisso de não mentir nessa área, mas eu posso por exemplo condensar. A ficção te dá essa liberdade, mas na essência, naquilo que eu vou falar, eu não posso pisar na bola, entendeu? O que está ali tem que ser exatamente, quer dizer, o conteúdo tem que ser a minha experiência e a informação que eu vou passar. CK: Eu acho que você se expõe de uma maneira muito explícita, muito corajosa – eu acho muito corajoso alguém que se expõe e divide com o outro essa experiência. PC: É porque ela não é única. Nós somos todos reflexos da mesma luz. Voltando ao Alquimista, tudo é uma coisa só, tudo é uma ilusão. Quando eu entro em certos estados, certo transe... O mais recente que eu me lembre assim, foi em Zurich, quando a gente foi passear lá, cinco, seis anos atrás. Quando você tem aquele momento... Tum! Você vê que nada faz sentido, que tudo faz sentido. Entende o que eu quero falar? Quer dizer, você olha tudo, é tão estranho ver carro, ver casa, ver pessoas na rua, tudo aquilo parece para você um filme de ficção científica, porque a realidade não é essa, ou o que é a realidade? Então você tem esse momento de conexão absoluta e total. Você é todo mundo e todo mundo é você. Você não é nada. É muito confuso, porque são momentos de intensa revelação. CK: E são momentos que você busca, ou alguma vez você foi surpreendido? 39 PC: Não vêm na hora que você está buscando, não. Eles vêm quando eles querem vir. Você pode, vamos dizer... Tem três graus: você pode passar para um primeiro grau, quando você conversa com você mesmo, com a tua parte desconhecida, apenas pela tua força de vontade. Aí nesse ponto você vai para o segundo grau, que seria a conversa com o mundo invisível, que já é mais complicada, mas obedecendo alguns rituais que existem para isso, você consegue. Agora esse momento de revelação absoluta só vem quando quer, você não consegue provocar – nem sei também, eu nunca tentei, mas eu acho que eu não conseguiria provocar, além do mais porque não é uma coisa muito agradável, porque te deixa despido de toda... de tudo que é o teu referencial, o seu espaço, o tempo, o seu ego. É um momento em que você deixa de ser absolutamente, tudo deixa de ser o que é. CK: Mas tem uma criatividade muito grande nas crianças também. PC: Não é criatividade; é tudo verdade. Depois é que a gente começa a separar a mentira da verdade. Tampouco é fantasia. Depende do que você entende por fantasia. Nunca podemos deixar que cada dia pareça igual ao anterior porque todos os dias são diferentes, porque estamos em constante processo de mudança. CK: E você acha que quem não tem essa doutrina, não tem os rituais, não tem uma formação, não tem o estudo, chega nessa experiência por meio do contrário disso? Pela simplicidade? PC: Às vezes as pessoas simples, elas estão em constante contato, só que elas acham aquilo tão normal, tão natural. O que para a gente é uma grande revelação para elas é o cotidiano. A experiência que eu tive de morar no interior da França, conviver com o agricultor, com o lavrador... Você vê que as pessoas ali são iguais à gente: querem morar na cidade. Não existe essa coisa da pureza absoluta. Mas eu acho que, por exemplo, uma criança tem isso naturalmente, só que ela não se dá conta, ela acha aquilo muito normal, conversa com anjo e acha natural. E a gente dizendo que não existe isso. 40 41 TÍTULO #02 Paulo Coelho, fevereiro de 2010 [Depois de uma breve parada para um café com biscoitos em um posto de gasolina, voltamos para a estrada. Faz muito frio, o dia está cinza e a paisagem é cada vez mais branca.] PC: Então vamos lá. Eu tenho altas expectativas... Pode continuar. CK: Você estava falando off the records que vocês estavam brincando ontem, dois dias atrás... PC: Marchando. CK: E que vocês se transformaram naquele personagem... PC: E eu já não era mais eu, não era mais o famoso escritor, porque o famoso escritor não brinca de “um, dois, feijão com arroz” – “virando a direita, volver” – “terreno perigoso, escorregadio”. Ou melhor, famoso escritor faz isso sim. CK: É o que eu ia perguntar... Famoso escritor não faz isso sempre? PC: Faz sim. Sempre, sempre. Baixa o Erê, e o Erê... CK: E você não acha que é essa brincadeira, que é essa liberdade de poder brincar que te ajuda a contar histórias? PC: Deixa eu pensar nessa resposta... Eu acho que a liberdade me ajuda a contar histórias, mas quando eu conto histórias, por mais cômicas que elas sejam, elas são sérias. Quer dizer, eu ali não estou brincando. CK: Eu sinto que você tem muito essa preocupação, você diz que tudo é uma coisa só, e que existe uma 42 43 preocupação muito grande do que é sério e do que é verdadeiro. PC: Isso. Mas eu não falei verdadeiro, não. CK: Não. Você falou do que é mentira e do que é verdade. PC: Existem mentiras, mas verdades não existem. CK: Eu acho que existem muitas verdades. A verdade de cada um, eu realmente acredito nisso. E eu queria entender um pouco mais por que você tem tanto essa preocupação. Se isso é verdade para você, de separar as coisas, quando você diz que tudo é uma coisa só e por que a criatividade pode ser confundida em alguns momentos com a mentira? PC: Não é que a criatividade pode ser confundida com a mentira. Existem coisas que você tem que ter, digamos assim: responsabilidade. Sobretudo no meu caso, que eu sei que eu sou escutado, eu sei que eu sou escutado, então... Você está habituada a ler os meus livros e o que você não entende é que cada atitude minha é um livro per se, então qualquer coisa em que eu me posicionar é mais uma coisa que eu escrevi na minha biografia. Às vezes eu sou extremamente emocional – que foi o caso do Tony Blair, que eu chamei de criminoso de guerra. É um cara que eu tenho uma bronca pessoal. Então eu fui impulsivo quando eu declarei isso? Fui. E depois eu tenho aguentar as consequências, e aguento, porque eu já deslanchei no Twitter dizendo que ele era um criminoso de guerra. Essa ação que eu tomei, ela é um livro, ela não é uma ação isolada, ela faz parte da minha biografia. Um dia 44 eu serei julgado pelo meu livro, mas também pelas coisas que eu falei e pelas coisas que eu me omiti. Eu não vou ficar falando toda hora sobre tudo o que eu acho errado, porque senão não pararia de falar, mas eu tenho que me posicionar. Às vezes me posiciono com emoção, às vezes me posiciono com mais frieza, às vezes não me posiciono, quando eu acho que seria errado me posicionar, como é o caso do papa. Eu acho esse papa... Recentemente, quando o papa visitou Jerusalém, eu cheguei a escrever um artigo e depois não publiquei, porque achei que era errado fazer aquilo naquela hora – enfim. O meu silêncio ou a minha voz, é parte da minha biografia. Aliás o silêncio de todo mundo, e o que a pessoa fala – você pode ferir com as tuas palavras mas você pode ferir também com o teu silêncio. CK: E você, claro, hoje tem consciência da responsabilidade. PC: Isso. Eu não brinco. Voltando então à tua pergunta – eu não brinco em serviço. Por mais bom humor que eu tenha, e eu tenho, a pessoa que me faz mais rir no mundo é a Christina. Eu não brinco em serviço, não. Eu sei do que eu estou falando, sei da minha responsabilidade, se eu exagero ou deliro nela. Mas eu não brinco em serviço, não. CK: Então é essa separação que você faz quando o que você fala... PC: Vai atingir o público, eu vou falar. Hoje, por exemplo, eu adoro o Twitter. Adoro, adoro, antes de vir eu tinha que twitar, aí twitei: “o que você sonha...” – como foi a frase? “Se você pode imaginar, você pode 45 fazer”. Eu tenho cem por cento de confiança nessa frase de hoje, apesar de ser uma frase no Twitter, entendeu? Ou qualquer outra coisa que eu diga. CK: Eu não vejo a imaginação como mentira, eu vejo como ferramenta. Você acredita nisso? PC: Totalmente. Eu acho que a imaginação é a grande ferramenta, é a parte da alquimia também. A alquimia, ela não existe se ela não se projeta. A partir desse momento, e no resto da viagem, eu vou, apenas por efeito dramático, dividir realidade física e realidade Quando você quer alguma coisa, todo o universo conspira para que você realize o seu desejo. não física. Mas eu quero deixar registrado que eu não faço essa separação na minha cabeça. Mas já que eu estou dando uma entrevista, eu vou dar essa entrevista concreta. Então no meu livro “O Alquimista” muita gente – muita gente é um exagero, né? –, algumas pessoas dizem “porra, mas o cara encontra um tesouro físico, embora na verdade o tesouro seja o caminho espiritual”. Sim, o tesouro era o caminho espiritual... Mas e daí? Ele não se propôs a descobrir o tesouro físico? Ele tem que descobrir o tesouro físico. Ele não se propôs a fazer um caminho iniciático? Ele está muito mais interessado na grana do que no aprendizado. Então ele teve o aprendizado, mas não é por isso que ele vai deixar de chegar na grana, mesmo que essa grana, nessa altura do campeonato no caso do Alquimista, já não signifique o que ele está procurando. CK: Já não signifique o que significava no início, é isso? PC: Exatamente. Mas tem que ir até o final. Não foi isso que eu me propus? Então não precisa mais? Precisa sim, precisa porque foi essa a tua proposta, e isso eu posso aplicar no meu trabalho agora: preciso escrever um novo livro? Teoricamente, não. Mas preciso sim. Essa foi a minha proposta. Tenho o que dizer? Tenho. CK: E você já sabe o que dizer para o próximo? PC: Não... Sim, eu sei o que dizer. Mas ainda não sei como dizer. CK: Você já está escrevendo? PC: Não, mas sinto a angústia de que eu preciso fazer outro, mas estou esperando o sinal. 46 47 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: A gente chegou nesse ponto, e eu vou te perguntar uma coisa sobre processo de trabalho. Tenho um amigo que fala: “Deixa os dedos escreverem”. É um pouco o que você falou, quando o fazer não passa pelo racional. O seu processo é esse? Você senta para escrever e o novo livro simplesmente acontece ou você enfrenta o papel em branco e... PC: As duas coisas. Antes de escrever eu tenho varias idéias, mas só uma está pronta. Eu custo atingir . Em alguns casos, eu atinjo de primeira. Mas normalmente eu custo muito a atingir a ideia. Eu escrevo e coisa, acho que não está pronta. Aí apago, aí volto a escrever, aí tem um momento que eu sinto que conectei, aí eu vou até o final. CK: E em geral, é assim? Você já sabe o que quer dizer mas ainda não sabe como? PC: Eu tenho três ou quatro coisas para dizer, mas não sei qual delas deve ser dita naquele momento. Qual delas realmente eu já ruminei o suficiente para dizer. CK: E foi assim desde o começo? PC: Foi assim desde “O Alquimista”. No “O Diário de um Mago”, não. Eu só podia dizer aquilo, porque eu não tinha mais nada. “O Alquimista” foi assim, “Brida”... Eu não me lembro. CK: Mas e nos livros anteriores, no “Arquivos do Inferno”, por exemplo? PC: Não me lembro. CK: Você lembra se foi alguma coisa que você queria dizer, ou se você queria escrever um livro? 48 49 PC: Não, eu queria escrever um livro. CK: E você sente essa mudança olhando para trás, entre um processo e outro? PC: Quando escrevi “O Diário de um Mago”, eu queria escrever um livro. Não era uma coisa com consciência: “Eu quero escrever isso”. Era apenas: “Eu quero escrever um livro”. CK: Tinha um desejo de escrever um livro ou tinha uma necessidade de falar sobre aquela experiência? PC: Veio do desejo de aceitar o meu destino de escrever. A partir daí, as coisas mudaram e passaram a vir de uma maneira diferente. Estou pensando qual foram os outros livros que eu não... Acho que “O Demônio e a Senhorita Prym” foi um livro que eu escrevi porque eu precisava escrever um livro, e não porque eu queria falar daquilo. O resto não, o resto veio do desejo. CK: A gente ainda não tinha conversado, mas eu senti que você estava muito presente em todos os livros. E eu sinto que isso é mais explícito ainda no “Mago”, nas “Valkírias” e no “Aleph”... PC: É mais visível... CK: Mais assumido, né? Nos outros, no “Veronika Decide Morrer”, por exemplo, é a sua experiência, mas você não é o personagem. E como é essa decisão de ser personagem ou não? Você tem uma razão consciente para isso? PC: Não. O processo criativo, aí ele é misterioso. PC: Não, não é racional. Não é uma coisa “eu vou fazer assim”. Ele vai aparecendo e vai seguindo. CK: No próprio “O Vencedor Está Só”, eu sinto você ali presente. É um mundo com o qual você convive hoje em dia, que você frequentou, e a Mônica [agente do Paulo há quase 30 anos] comentou comigo que as pessoas não percebiam isso, né? Que parecia que você estava falando de um mundo que não era o seu. Por que você acha que isso aconteceu? PC: Por que as pessoas não reagiram? CK: Não. Por que as pessoas não acham que você está ali tão presente quanto você está nos outros livros? PC: Porque as pessoas me imaginam de maneira diferente. Porque eu não posso controlar a imaginação das pessoas. Eu acho que elas me imaginam como o cara que não fuma, que não come carne, que não tem amante. Às vezes, por exemplo, quando eu uso certas expressões – voltando ao Twitter, como “OMG”, que quer dizer “oh my God”, entende? As pessoas ficam muito surpresas de como é que eu uso certas expressões. Em princípio, eu sou completamente diferente, eu sou completamente diferente de tudo que as pessoas estão falando hoje em dia. Eu falo. Eu tenho profunda consciência disso, quer dizer, se hoje em dia você está falando de uma nova consciência, noventa e nove vírgula nove por cento, ou seja, todos os outros que têm voz, eles estão usando os termos que eu acho arcaicos e fora da realidade. Falam em Buda, falam essas coisas que... Porra, eu tenho a maior admiração, mas que não é a minha. Você entende o que eu quero falar? CK: Não é racional? 50 51 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Não se comunicam, né? PC: Não. Isso. E as pessoas ficam até meio deslumbradas... Tudo é muito Dalai Lama. Eu não sou Dalai Lama, e eu acho a linguagem dele totalmente superada. mais poderoso?”, como se você fosse uma máquina de marketing pessoal. É muito engraçado... Não existe o meio termo? PC: É difícil o meio termo. CK: Sobre a sua imagem pública... Quem gosta de você, os teus leitores, imaginam esse santo na Terra: que não come, não bebe, não fuma. E quem não gosta de você imagina um ser absolutamente racional, que acorda e pensa “como eu vou fazer um livro para vender milhões e ficar mais rico, ficar mais famoso, ficar CK: Claro que você não controla o que o outro imagina, o que o outro percebe... Mas de alguma maneira você construiu essa imagem, não construiu? PC: Eu não sei. Não está nos meus livros isso, não. No “O Diário de um Mago”, que foi o meu primeiro livro, eu fumo, eu bebo, eu curto. Mas como essa imagem é uma coisa muito arraigada na consciência coletiva, as pessoas criam essa imagem. Acho que hoje em dia bem menos, né? Quer dizer, cada livro meu ele é... Porra, “As Valkírias”, que você falou, é um livro que mostra o meu lado womanizer, e mesmo assim vendeu para caramba. E ninguém veio falar, ninguém ficou chocado. CK: Mas as pessoas não te reconhecem no “O Vencedor Está Só”, que está muito mais próximo da sua realidade hoje, né? PC: Não é tanto. Nunca foi. Eu acho que ali foi muito mais àquilo que eu me propus mesmo: um fiel retrato da minha realidade. Mas que não é a minha realidade, é o mundo em que eu vivo, que é bem diferente da minha realidade. A minha realidade é o interior de Genebra, o interior da França. CK: É isso que eu ia te perguntar: onde você se sente mais confortável? PC: Onde eu estou. Eu não posso me dar ao luxo de perder um minuto. Onde eu me sinto desconfortá- 52 53 vel é às vezes fazendo coisas que eu tenho que fazer, mas que não me dão muito prazer. Então digamos que hoje em dia eu me sinta mais desconfortável em hotéis. Mas se eu estou em minha casa em Paris, na minha casa no Rio, na minha casa em Saint Martin, na minha casa em Genebra, eu estou confortável. Agora hoje em dia eu viajo muito pouco. CK: E você ainda se interessa pelas pessoas à sua volta? PC: Muito, muito. Tanto é que terminada essa primeira parte, dessa entrevista, eu vou fazer uma entrevista com você. Porque eu me interesso muito por todo mundo. Aliás, qualquer conversa eu acho sempre ótimo. Eu adoro bater papo. Qualquer pessoa para mim é interessante, mas depois eu canso. Porque tem pessoas que são muito repetitivas. CK: Eu falo que o ser humano só tem um assunto que é ele mesmo: é o amor, é a morte, é o desafio, a sobrevivência. A gente pode falar disso de muitas maneiras, mas a gente esta sempre falando da mesma coisa, que é da gente mesmo. PC: E a gente traduz para a nossa geração, mais nada, o que já foi escrito. CK: E o grande desafio de quem conta uma história, seja no cinema, seja na literatura, é fazer essa ponte entre o que é pessoal e o que é universal. E tem gente que faz isso com distância e usam palavras difíceis para se fazer notar... PC: É, mas essas pessoas nunca se fazem notar. Eu acho que essas pessoas que se querem fazer notar... Quer dizer, todos nós temos um ego, né? 54 CK: É o que eu ia falar... Todo mundo quer se fazer notar: eu quero, você quer. Então o que é diferente? PC: O que é diferente é que você pode se fazer notar construindo ou destruindo. CK: No cinema sempre se fala muito que o personagem não é o que ele fala, é o que ele faz. Você não acha que isso também se aplica à vida? PC: Eu acho que se aplica a tudo, claro. Eu acho que você é sempre o que você faz. Falar é tão fácil, não? Falar é muito fácil. E é isso, essas pessoas querem se fazer notar por falar. Os famosos críticos, analistas, sociólogos, são pessoas que não participam, elas estão ali analisando. E essa análise daqui a pouco está absolutamente ultrapassada. Depois, aqueles que fizeram nunca leram esses manuais – de Napoleão a Bin Laden, ao Bush, eles vão lá e fazem, não estão nem um pouco interessados. Aí os outros vêm e analisam. Eu acho que é uma maldição, coitados – quem nasceu para analisar o que os outros fazem. Eu não estou falando de crítico não, estou falando de sociólogo, psicólogo, todas essas pessoas que dedicam as suas vidas a explicar a coisa mais inexplicável do universo, que é o ser humano. Acabo de pedir demissão de um conselho. Eu não aguento essas reuniões onde as pessoas ficam batendo papo absolutamente bizantino sobre academia. CK: E gira em torno do quê? PC: Gira em torno de nada. Quer dizer, o que eles falam? Eles falam sobre – eles se elogiam mutuamente, todos se cumprimentam o tempo todo por algo que fizeram, por algum estudo obscuro. 55 CK: E acreditam nos elogios uns dos outros? PC: Profundamente. As pessoas ali só acreditam em elogios, não acreditam em críticas. CK: A gente estava falando antes sobre o personagem ser o que ele faz e não o que ele fala. PC: Isso. CK: Olhando para trás, você acha que você sempre foi o que você fez ou em algum momento isso mudou? PC: O fato do meu diário ser tão abundante no tema significa que eu não gastava a minha energia na palavra, e sim na escrita. Quer dizer, eu não ficava dizendo “vou um dia ser conhecido, me aguarde”, essas babaquices que toda hora você ouve alguém dizendo. não só os meus pais. Até em algum momento eu devo ter dito para mim mesmo que eu não tinha futuro. CK: Você lembra desse momento? PC: Lembro, lembro bem. Porque no dia seguinte eu fui mandado embora, foi na CBS. Eu era diretor da CBS. Eu lembro que eu fui dormir uma noite com esse negócio de “ser escritor não está com nada, isso é um delírio, eu vou ser um grande executivo de gravadora”. Eu sempre pensei alto, né? “Vou ser diretor geral da CBS, presidente da CBS...”, e no dia seguinte eu fui mandado embora. Assim, assim, não tinha nada, o motivo que deram para me mandar embora foi o mais absurdo possível: uma entrevista que eu dei. O CK: Mas era um diálogo com você mesmo? PC: Era e tem que ser. Escreve aí, sofre aí. Sofre calado, mas vai para a frente. Coisa que agora falando com você eu vejo que eu escrevi muito, e nunca falei do assunto. CK: Mas você disse que você chegou a expressar isso para os seus pais e eles reagiram muito mal. Você acha que foi por isso você passou a conversar mais com você mesmo? PC: Ah, não! Meus pais tiveram zero de influencia na minha vida. Eu acho que eu dizia para todo mundo que eu queria ser escritor, talvez de sucesso, talvez não. Eu dizia assim, como eu, setecentos milhões de pessoas. Eu queria ser escritor, e sou um escritor, e sim, eu acho que falava, sim, para os meus amigos. Retiro o que eu disse, pensando melhor, eu falava sim. Claro que todo mundo me dizia que eu não tinha futuro, e 56 57 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu que acontece é que eles queriam me mandar embora e não sabiam como, e me mandaram embora. CK: E você sofreu com isso ou você ficou agradecido? PC: Eu acho que na época eu devo ter sofrido, né? CK: você chegou a acreditar que o seu desejo era ser o presidente da CBS? PC: Não na CBS, mas depois eu fiquei “Pô, como é que eu vou continuar a minha carreira na música?”. Sofri, é claro que eu sofri. Ninguém gosta de ser mandado embora, principalmente quando muito jovem ainda. Eu tinha 30 anos. Você tem uma carreira, você está chegando no cume, né? No pico. Devo ter sofrido muito, mas depois que você olha para trás... CK: Você vê o bem que isso te fez! PC: Exatamente. Embora eu ache que a derrota não faz bem, não. A derrota muitas vezes enfraquece a pessoa, demora anos para se recuperar. Aconteceu comigo. Muitas vezes a derrota leva anos para a gente se recuperar. Mas graças a Deus eu me recuperei, e continuo lutando. Sou passível de derrotas, com anos de recuperação, mas não me intimida, não me intimida. É aquilo que eu falei no início da nossa viagem: o poder da vontade é maior do que a coragem. CK: Você falou da demissão e eu volto para um outro assunto, que a gente teve antes também, que é sobre a injustiça. Você falou de quando você se sentiu injusto com outras pessoas, e ligou para elas. E o inverso, quando você se sentiu injustiçado? 58 Eu devia estar sorrindo E orgulhoso Por ter finalmente vencido na vida Mas eu acho isso uma grande piada E um tanto quanto perigosa 59 PC: Olha só... Deixa eu pensar. É muito forte colocar nesses termos. Eu nunca me senti injustiçado. Eu posso ter me sentido incompreendido, eu posso ter achado os caras uns filhos da puta, mas eu sempre vi isso muito mais como um combate. Você está brigando, você não pensa em termos de justiça, você pensa em dar porrada de volta. Só depois você vai pensar que não merecia. CK: Claro; você fez porque você quis. Você fez para você e você estava satisfeito com aquilo. PC: Mas eu gostaria que todos ficassem satisfeitos comigo. Comigo não, com o meu trabalho. Eu gostaria que o meu leitor entendesse melhor. Não entendeu. Aí é que eu digo: é um problema meu, mas... Eu me enfraqueci nesse processo. CK: Você nunca achou que você de alguma maneira tivesse feito alguma coisa errada? PC: Por aí, nunca. “O que eu fiz de errado? Por que o outro me trata dessa maneira?”. Nunca, nunca, nunca. CK: E você falou em derrotas que te enfraquecem, em que momentos você se sentiu enfraquecido por uma derrota? PC: Muitas vezes. Ser mandado embora da CBS foi uma derrota, romper a minha ligação com o Raul Seixas foi uma derrota. Porque aí foi uma coisa muito dura para mim, porque o Raul na hora em que eu mais precisei dele, ele não estava ali. Foi quando eu fui preso. Ali eu entendi que tinha acabado o amor, o entusiasmo, a entrega. Eu era um cara muito dedicado a ele. Não acabou o trabalho porque eu gostava daquilo que eu fazia, mas ele passou a ser o meu trabalho, e não o trabalho meu com o Raul. Esse momento da minha prisão foi a pior derrota da minha vida. Ser preso. O que eu podia fazer? Nada, né? Não tinha escolha, não. CK: Não: “O que eu fiz errado para que isso acontecesse, e não conseguisse o que eu desejei?”. PC: Ah! Sim. CK: Que a responsabilidade pelo seu reino é sua. PC: Mas essa é uma coisa absolutamente positiva. No fundo, é você assumir os seus erros. Não porque as pessoas disseram que isso estava errado, mas porque a coisa não funcionou. Por exemplo, “O Vencedor Está Só” não vendeu como eu queria que vendesse. Então é óbvio que eu – e eu não sou eu, eu sou uma indústria – então é óbvio que eu reflito, embora ninguém me cobre isso. Eu me pergunto “Onde foi que eu errei aí?”. Mas aí conversando até com a Mônica, tem uma coisa muito clara: eu fiz o livro que eu queria fazer. Está certo isso? Está. Deveria fazer de novo? Não. Mas pelo menos eu não menti aí, eu não perdi o respeito por mim. Só eu não perdendo o respeito por mim eu posso seguir adiante. Acho que você é derrotado quando você deixa de se respeitar. 60 CK: E até ali você sentia uma relação com o Raul muito forte? Não existia disputa? PC: Claro que existia disputa. CK: Ele aparecer mais do que você? PC: Não, nesse ponto não. Mas claro que existia disputa. Ainda bem, porque senão o nosso trabalho não durava até hoje. O que fez o trabalho ser tão forte é que nunca foi um trabalho de paz, sempre foi um trabalho de guerra. 61 CK: Mas um momento onde você queria uma música e ele queria outra? PC: Não. [Paulo de repente muda de expressão, olha as horas, parece tenso] CK: Quer que eu pare Paulo? PC: Não, de jeito nenhum, é quero rezar às seis horas, Faltam dois minutos. Todo mundo que vem me entrevistar fica me perguntando do meu cacoete, e eu falo que eu não sei se eu tenho esse cacoete de afastar uma mosca... CK: É porque eles não estão prestando atenção no que você fala. PC: Não, mas eu não tenho. Você viu eu afastando uma mosca? CK: Não. PC: Dizem que eu faço assim. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: E que te realizava. PC: Muito, muito, extremamente. CK: Dessa fase com o Raul, você falou que era uma relação de conflito... PC: Sim, de conflito. Conflito criativo. CK: Tem algum momento em que esse conflito tenha sido mais forte? PC: O conflito? Foi sempre um conflito positivo. 62 CK: Fazendo esse gesto eu não vi. Mas você pisca. Quando você está pensando você pisca um pouco mais. PC: Deve ser... Eu penso com as pálpebras. CK: Cada um tem o seu. Eu penso alto. PC: Você pensa alto, é? CK: Eu escrevo falando sozinha. PC: Eu penso alto também, mas só quando eu ando. Continuemos. 63 Vai dar seis horas. Você me dá só um minuto para rezar? São 6 horas agora. [Paulo se concentra e reza em silêncio. Ao final, faz um círculo com a mão direita sobre a cabeça] PC: Continuemos, Carol. CK: Sobre os rituais... Você parou agora às 6 horas para rezar. Você sempre buscou isso? Você acha que os rituais são necessários? PC: Para a humanidade ou para mim? CK: Para você, eu sei que é necessário. PC: Para a humanidade, eu não sei. CK: Isso é pessoal ou é um caminho que todo mundo devia buscar? PC: Acho que todo mundo tem isso, embora eu ache que nenhum caminho é um caminho que todo mundo deve buscar. Esse é um princípio meu. Agora nesse momento, eu acho que se buscasse ajudaria muito, mas não dá para convencer as pessoas, não. Porque o fundamentalismo está crescendo tanto que você nem sabe... sua responsabilidade – eu não posso fazer qualquer barbaridade hoje e depois dizer “Ah! O padre falou que eu podia fazer isso”. Realmente a Bíblia fala tudo. Se você ler a Bíblia do começo ao fim, você pode fazer qualquer negócio na Terra, inclusive o genocídio. Tem vários capítulos de genocídio na Bíblia, autorizados por Deus. Jesus é tolerância zero. Agora, isso dito, você se ater à essência – a essência é sua, mas como você não é uma ilha nesse mundo, você precisa comungar às vezes do mesmo mistério. Então Eu quero viver Nessa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo CK: Porque no fundo, todas as religiões, são caminhos diferentes para o mesmo lugar. PC: Para a mesma luz. Mas eu não acredito que a busca espiritual seja essencial. Eu acredito que a ética seja essencial. A partir daí, cada um faz o que bem entender com a sua fé ou com a sua falta de fé. A outra coisa são os rituais. Eu acho que você tem a 64 65 aí você tem que aceitar os rituais que esse caminho coletivo te propôs. O mistério coletivo chama religião. Se eu fosse muçulmano, eu estaria certamente rezando 5 vezes por dia, sempre em direção à Meca. Se eu fosse judeu, eu estaria respeitando o Shabbat, como eu respeito o domingo. Eu sou católico, eu tenho que respeitar os meus rituais. Então, no caminho coletivo, o que une as pessoas são justamente os rituais coletivos, e a revelação. E a revelação, ela depende muito de interpretação. O ritual não. CK: Mas você respeita que existem caminhos diferentes. PC: Óbvio. Eu só sou cristão porque eu nasci no Cristianismo. CK: É isso que eu ia te perguntar . Você acha que isso vem da sua educação? PC: Só vem da minha educação. CK: Ou é também uma escolha pessoal? PC: É uma escolha pessoal depois que eu experimentei um pouco de tudo. Eu experimentei o Budismo, o Hare Krishna, o Satanismo... No final, você quer saber de uma coisa? Eu nasci cristão. O que Jesus diz está em qualquer outra coisa que eu li. Por que não vou me dedicar a esse caminho, já que todos os caminhos levam ao mesmo lugar? Mas para isso eu tive que negá-lo. É importante negar para aceitar. CK: E o seu mergulho no Satanismo foi... PC: “Satanismo” é uma palavra bem hollywoodiana. Entre outras coisas, o Hare Krishna, o Budismo, o 66 Marxismo. Todas essas coisas. O meu mergulho nessas coisas sempre foi de corpo inteiro, e hoje em dia o meu mergulho é no Cristianismo. CK: E você falou disso agora como uma decisão quase racional, né? “Quer saber de uma coisa, eu nasci no Cristianismo, eu fui educado assim”. É uma decisão consciente mesmo? PC: É, é uma decisão absolutamente consciente, pensada. CK: Se ela é consciente, pensada, ela tem uma justificativa. PC: É a minha raiz, é o meu sangue. Eu acredito nessas conversões. Eu nem acredito na proposta missionária, porque só deu merda isso... A ideia de você ir e converter alguém para a sua religião justifica muitas vidas vazias, mas não justifica a mensagem daquela religião. CK: Porque a religião foi a causa de muita guerra, de muita luta por poder, causa de muita distorção e dinheiro e tudo isso. PC: Um horror, horror. CK: Isso te incomoda na religião ou não? Você consegue separar uma coisa da outra? A separação entre igreja e religião é clara para você ou não? PC: a Inquisição, as Cruzadas, as barbaridades, se isso me incomoda? Nem um pouco. Porque você vai para a origem, e aí tem duas coisas: uma, uma revelação, que são os Evangelhos; e outra, que é o mistério da missa. O resto basta você ler a vida dos papas que você vê que não é de hoje. 67 CK: Você mencionou o Papa, quando a gente parou para comer. você acredita que ele é a voz de Deus, que ele é o representante de Deus? PC: Não, não, ele é o escolhido pelo Congresso. Esse é um dogma muito recente, sem nenhum fundamento histórico. CK: Os reis também se diziam escolhidos por Deus. PC: Claro. Mas uma coisa legal que você está falando é da infalibilidade papal. Isso é uma coisa recente. Eu não posso acreditar nisso, jamais acreditaria nisso. Agora, eu acredito na transmutação do corpo, no pão e no sangue do vinho, pronto. Basta acreditar nisso. Esse ritual foi aperfeiçoado ao longo de muitos séculos, que é a missa. Eu acredito nas palavras de Jesus. CK: E você freqüentava a missa quando pequeno? PC: Ah, eu era obrigado a ir. CK: Era obrigado a ir e era uma experiência boa? PC: Era um saco. Eu queria brincar e tinha que ir à missa. Deus me livre! CK: E a leitura da Bíblia? PC: A leitura da Bíblia foi uma coisa muito boa. 68 Eu do meu lado Aprendendo a ser louco Maluco total Na loucura real... 69 TÍTULO #03 Paulo Coelho, fevereiro de 2010 CK: Do que a gente estava falando? PC: Eu estava falando que fiz uma antologia para uma editora inglesa e o sujeito ficou relativamente impressionado de eu ter escolhido tantos livros juvenis. Sabe aquele negócio que você disse em algum momento, de que “essas pessoas ficam querendo provar o que eles fizeram, isso ou aquilo”? Então, eu escolhi muitos livros juvenis, só não escolhi mais porque não tinha no catálogo da Penguin, que embora seja muito vasto, eu não pude escolher por exemplo um livro que me marcou muito que foi Sherlock Holmes. O conceito, a concepção, de Sherlock Holmes. Aí eu disse: “A verdade é que a leitura que vai te marcar para sempre é aquela leitura que você leu dos 10 aos 20 anos. E parou aí. O resto você vai ler e vai esquecer”. Sabe, todo dia eu estou lendo, mas aí você já não guarda mais. Então a leitura da Bíblia foi muito marcante. CK: E ela aconteceu entre os seus 10 e 20 anos? PC: Eu lia de criança. CK: E lia sozinho? PC: Lia porque era obrigado. CK: Mas alguém lia para você em voz alta ou não? PC: Não, eu lia aquelas histórias sagradas para criança, essas coisas todas, mas o colégio obrigava. O catecismo. CK: Que também era uma tortura? PC: Era uma tortura, mas era uma coisa em que eu era bom, então não era tão tortura. Tortura era o resto. 70 71 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Um desses livros juvenis que você fala que te marcou era “Eram os Deuses Astronautas?”. Você disse isso, mas não me disse por que ele te tocou tanto. PC: Mas antes desse livro eu já tinha lido um livro que tinha me tocado muito, que era “O Despertar dos Mágicos”, ou seja, até então eu estava preso à visão marxista da história. Se não marxista, pelo menos a visão materialista da história. Aí, quando eu li “O Despertar dos Mágicos”, eu vi que tinha muito mais coisas interessantes do que aquilo, e aí o meu universo se ampliou profundamente: alquimia, magia, sociedades secretas, essas coisas todas, coisas muito interessantes, governos ocultos, tinha muito mais sabor do que aquele negócio do Rei Luís XV e toda essa baboseira. CK: Mas não foi uma escolha simples, né? PC: O que não chegou a ser uma escolha simples? CK: A experiência que você descreve em “Verônika Decide Morrer” e tudo isso. Você chegou a ser internado, não era compreendido. Você acha que você buscou isso para fugir de um mundo no qual você não se sentia aceito? PC: Não. Você cismou com esse negócio, é a segunda vez que você fala nessa aceitabilidade. CK: Porque é isso que está nos livros, não é? PC: Se eu queria ser aceito, era pelas mulheres e não pelo mundo, entende? Para o mundo eu não estava nem aí. CK: Por que você coloca isso de ser aceito, de ser diferente? 72 73 PC: Pode ser. Eu queria mulher, posso resumir assim. Então eu era muito magrinho, não fazia esporte. Tudo isso é tolerável, agora não arranjar namorada era intolerável, é um horror. Mas o negócio da internação, pelo contrário, eu me senti um herói, vivendo ali coisas que ninguém viveu, né... Aí sim, o escritor que vive essas experiências... Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: E você diz isso, que em determinado momento você descobriu que ser maluco era bom. PC: Me dá uma grande liberdade. Isso me salvou da tortura inclusive, porque eu falei para os torturadores que eu era maluco, comecei a me torturar mesmo, a me 74 arranhar, a me bater, “não precisa se preocupar em me fazer nada não, deixa que eu mesmo faço, sou maluco”. Aí os caras levaram um susto, eu não sei o que passou pela cabeça desses caras, mas foi isso mais ou menos. CK: O que é genial, né? São as teorias que se autocumprem: você se fez maluco, você pareceu maluco para eles e aquilo te ajudou. PC: Exatamente. CK: É um pouco isso que eu falo da criatividade, de você poder brincar de soldado no meio da rua. Todo mundo pode na verdade, mas quem faz isso? 75 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu PC: Pois é. Os adultos não fazem. As crianças fazem, porque elas acreditam que são soldados, mas nessa noite eu entrei no transe, eu comecei a marchar, foi tão engraçado. Você não achou engraçado, Christina? Christina: Eu achei engraçadíssimo. PC: Porque a gente não parava de marchar no meio da rua, marchamos durante meia hora. Direita volver! Direita volver! Esquerda volver! CK: Isso eu acho que pode fazer parte da essência do filme. São essas coisas que você não precisa ter um super poder, nem uma fórmula mágica para fazer, e você não é maluco porque você faz, mas a maioria das pessoas não faria, não se sente capaz de fazer. PC: É isso que eu espero que o meu trabalho venha a mudar nesse mundo, que as pessoas se deem conta de que elas estão numa furada, numa roubada, e que o fato delas marcharem na rua não vai mudar nada, ou falarem com estranhos, não vai mudar nada, só vai dar alegria para elas. Até porque é muito difícil, entendeu? Aí eu resolvi passar do dia 20 ao dia 30 sorrindo, vou dar uma de monge budista, vou ficar sorrindo, e só pelo fato de ficar sorrindo, a vida melhora. Experimente isso, comece a sorrir. Fica tudo bem. Mesmo quando você estiver mal, mal, sorria sempre. E aí eu comecei a ver que nessa necessidade de dividir, eu twittei para as pessoas fazerem isso, as pessoas fizeram, ficaram encantadas com o resultado, depois eu esqueci, mas eu vou voltar a sorrir. 76 Christina: E tem pessoas que sorriem naturalmente, né? PC: Tem pessoas que sorriem naturalmente. A Christina é uma delas. CK: Mas tem gente que acha que não pode, ou que não deve. PC: É, que só pode sorrir quando estiver alegre. Não, sorrir é um gesto físico. [A neve que cai lá fora é cada vez mais intensa e o clima na estrada agora é tenso. Os carros começam a parar no acostamento. Interrompemos nossa conversa por alguns instantes. Paulo tenta um desvio, sem sucesso. O telefone toca e é um amigo de Munique com quem Paulo não fala há muito tempo. No instante em que passamos em frente a uma placa de retorno, o amigo dá a notícia de que a tempestade de neve em Munique é violenta. Estradas fechadas. No último segundo, Paulo faz o retorno. Coincidência, sorte, destino, sinal, aviso de Deus. Cada um chama como quer e nós agradecemos a chance de pegar a estrada de volta, em direção a Genebra, em segurança. E eu agradeço a oportunidade de passar mais algumas horas com Paulo e Chris no carro e poder chegar um pouco mais longe nessa primeira de muitas conversas. Mais uma pausa para um café com torradas e voltamos a gravar.] CK: E como foi virar escritor de verdade, ser publicado... Você se lembra desse momento? PC: “Os Arquivos do Inferno”, que foi o primeiro, eu mesmo publiquei. O “O Diário de um Mago”, graças ao Nelson Liano, o Mandarino publicou. Teve aquele 77 livro do vampiro, foi aí que eu conheci o cara, mas eu nem escrevi, foi o ex-escravo que escreveu. Mas aí veio o “O Alquimista”, que não deu certo. E não é só comigo não, muita gente quando faz a transição da não-ficção para a ficção, todo mundo quer ouvir uma história. Então quando você faz essa transição para a ficção, as pessoas já não compram. Isso daí a literatura está cheia de exemplos e realmente “O Alquimista” não vendeu. Mas aí é o que eu digo... CK: E o que o editor te disse, você lembra? PC: Lembro. Nesse meio tempo o meu mestre me mandou para o deserto, [a viagem que gerou o livro] “As Valkírias”. E eu disse: “Mas agora eu tenho que lutar aqui, eu tenho que convencer o Mandarino para continuar me publicando”. Mas ele disse: “Não, vai para o deserto. Não vai adiantar nada você ficar aqui”. Eu fui e no deserto eu ficava querendo me convencer: “Pô, Jorge Amado já vendeu x, eu posso escrever um outro livro”... Sei lá o que eu fiquei me convencendo. Mas quando eu vi o meu anjo, no dia que eu vi o meu anjo, eu senti o vento quente soprar, como se a minha prece tivesse sido atendida. Aí eu voltei para o Brasil e dito e feito. O Mandarino me devolveu o contrato, mas eu estava tão convencido, nem sei se eu estava convencido do “O Alquimista”, para falar a verdade, mas eu estava convencido que a história não acabava aí. Aí peguei os recortes dos jornais, onde tem noite de autógrafo, aqui, ali e acolá, e fui falar com o Rocco. Ele mandou passar no escritório dele, daí eu passei e ele aceitou publicar. CK: Você não conhecia ele? Você foi bater na porta? PC: Não, foi nessa noite de autógrafos que eu conhe78 ci ele. No dia seguinte eu estava lá, aí eu perguntei: “Rocco, por que foi que você aceitou?”. O livro já tinha saído e não tinha dado certo. E ele me respondeu: “Eu não sei, Paulo, essas coisas não se explicam, não”. Então eu acho que eu estava movido pela, aí sim, a sagrada chama da loucura, aquela loucura que não vê obstáculos; esse é o meu destino, eu vou adiante, de novo a vontade se sobrepondo à coragem. Falar com o editor precisa coragem, certo? Mas aí a vontade é muito mais importante. CK: E o Mandarino, você conhecia? PC: Foi o Nelson que me apresentou. E ele foi lá, editou e pronto. CK: E você ficava intimidado? PC: Não, não. Eu não dependia do editor, a não ser para editar e distribuir. O Mandarino me ensinou uma coisa muito importante. Eu fui pra ele e disse: “Meu livro não está bem distribuído”. E ele me disse: “Existe uma lei no mercado, que é a lei da oferta e da procura; se procurarem, eles vão ter”. Aí eu disse: “Está ótimo”. Aí, eu e a Christina saímos panfletando, promovendo, nada de dizer que o editor tem que arranjar, ele não tem que arranjar nada. Eu contratei do meu dinheiro uma firma de divulgação. No “O Alquimista” essa mesma firma de divulgação não quis fazer, aí foi a Christina que foi fazer. Foi bater nas portas, foi fazer tudo. Porra, se você me pergunta, existe alguma lógica nesse caminho? Só a lógica divina. Foi o que eu falei logo no começo da nossa viagem: existem os desígnios da providência. CK: E a perseverança, né? 79 PC: E a perseverança. Mas é um teste, né? Muita gente persevera, mas não consegue. Então a perseverança não é uma garantia de que as coisas vão dar certo, elas tem que estar realmente escritas; se elas estiverem escritas, você chega lá. CK: Você disse, falando da guerra, que você pode perder uma batalha, mas se você não desistir você é um vencedor. PC: Você é um vencedor, claro. CK: E isso está escrito? PC: Isso está escrito, está escrito na história, e mesmo pessoas que desistem no finalzinho, mas quando já é muito tarde para recuar, continuam sendo vencedores. Um exemplo é Jesus, que, na cruz, queria mudar de ideia, dois dias antes queria mudar de ideia, mas já não dava mais. Pediu para afastar o cálice, depois disse: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Todos nós passamos por esse momento. CK: Mas quando você diz que já está tudo escrito, você não tira do indivíduo a chance de buscar? Aquilo que a gente estava falando, de que as pessoas se acomodam? PC: Você está me perguntando sobre o eterno conflito entre o fatalismo e o destino. CK: É. Como você vê isso? PC: Você tem um caminho interno e esse único caminho é para um único indivíduo, que é você. E quando você sintoniza bem, você sabe que está no caminho certo. Mas o que acontece com a maior parte das pes80 A cada momento de nossa existência temos que escolher entre um caminho e o outro. Uma simples decisão pode afetar uma pessoa para o resto da vida. soas é que elas seguem os outros caminhos. Imagine um garfo. O cabo do garfo é o nascimento, depois um desses dentes do garfo é o caminho escolhido, e os outros são aqueles que a mãe mandou, que o pai mandou, a vó mandou, a mulher mandou; e o garfo acaba, é a morte. Então você pode escolher o dente do 81 garfo que lhe convém ou você pode escolher o dente do garfo que alguém te impôs. O teu livre-arbítrio não vai além de saltar de um dente do garfo para o outro. Quer dizer, a gente foi jantar sábado com um amigo nosso, e as pessoas são divididas em gente que é radar e gente que é bússola. O cara que é bússola, ele sabe o seu caminho, ele sabe que tem que se afastar da montanha, mas o norte está para lá; o cara que é radar está sempre jogando no impulso, para ver como é que vai receber e vai orientando o seu caminho. Eu tenho um exemplo político muito bom: o Bush era uma bússola. Se você concorda ou discorda, isso são outros quinhentos. Agora, o Obama é muito mais radar; fica sentindo ali, fica sentindo aqui. Então as pessoas acabam admirando muito mais o Bush, com a sua obstinação assassina, do que um cara que quer agradar todo mundo, que é o Obama. Então para te falar do dente do garfo, quando você está no teu dente do garfo, você pode sair e voltar, mas você sabe quando você sai e sabe quando você volta, você não se engana, meu bem. Engana os outros, mas não engana você. Parece que eu estou aqui pontificando a verdade, mas não é isso não, eu só estou falando a maneira como eu penso. e segundo, para que eu tenha segurança de que eu esteja perto da sua verdade. PC: Mas seja qual for a minha verdade, o filme sempre vai ser a tua verdade, você não concorda? CK: Vai ser a minha interpretação, mas se eu estivesse num caminho completamente absurdo, seria bom descobrir hoje. PC: É verdade. CK: Eu não quero fazer um filme contra você, nem quero descobrir um grande segredo, nem inventar um santo ou um personagem sem defeitos. Eu quero um filme que seja realmente próximo da sua verdade. PC: Claro. CK: Eu não posso te prometer o resultado, mas eu posso garantir a minha intenção. PC: Não, isso não basta. CK: Não basta o quê? PC: Você tem que garantir o resultado. A intenção é tudo o que a gente está falando. CK: Mas a ideia é essa, até porque a gente já discutiu que não existe uma verdade só. PC: Exatamente. CK: Eu acho que o resultado é consequência da intenção, do processo. PC: Você tem ou não tem certeza de que vai ser um bom resultado? CK: Mesmo porque o que me interessa é a sua verdade. Eu acho que isso vale para as pessoas, é essa coerência que é importante a gente buscar aqui. Primeiro, para que a gente esteja falando do mesmo filme, CK: Eu tenho certeza que vai ser um bom resultado. PC: Então pronto. Não perca o seu tempo dizendo da sua intenção, a intenção é como o velho ditado diz: “de boas intenções, o inferno está cheio”. 82 83 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Mas eu acredito que o bom resultado vem dessa coerência, de uma boa intenção e de um processo que esteja de acordo com isso, então é muito mais isso que eu vim buscar nessa nossa entrevista. PC: Me dá um tempo agora, entrei errado aqui... [Outro desvio e voltamos para a entrevista.] PC: São dez para as dez do mesmo dia. Esse dia que começou com uma viagem, acabou com uma viagem, estamos de volta à Genebra, é o percurso do “Alquimista”, e eu estou aqui falando para a Carolina, que para falar a verdade, até esse momento, com toda a minha astúcia em perceber o que as pessoas querem, eu ainda não entendi o que ela veio fazer aqui; ela já conhece a minha vida, e ao conhecer a minha vida, ela conhece bastante de mim. Mas eu acabo de dar uma boa definição de mim mesmo, uma das melhores que eu dei recentemente. Eu estou usando aqui a roupa do exército suíço, eu tenho um casaco do Hells Angels que eu uso agora compulsivamente para ver se envelhece. E eu sou uma mistura de Hells Angels com exército suíço. Há muito tempo que eu não me definia tão bem, e é a pura verdade: tenho toda a loucura dos Hells Angels e toda a disciplina do exército suíço. Então, a bola está com a pessoa que veio até aqui, que vai me fazer outra pergunta, evidentemente abstrata, a qual eu tentarei traduzi-la em algo mais concreto. CK: Eu só vim aqui pedir a sua benção, Paulo. PC: Está abençoada. Mas pra isso eu preciso acabar esse cigarro e daí eu te abençôo. 84 85 CK: As perguntas objetivas já fizeram para você um milhão de vezes e estão disponíveis na Internet. E você é o biografado mais transparente, mais exposto, que uma biógrafa poderia encontrar. PC: Dá muito trabalho ser opaco. Por exemplo, todo esse lado mágico foi muito mal explorado na biografia mais recente. Sem crítica à biografia. Esse lado é o lado que guia a minha vida. Aconteceu uma coisa absolutamente relevante hoje: nós estávamos em Lausanne, a gente ia sair da estrada, e em determinado momento eu queria pegar uma rua e não peguei, estava desconcentrado e avancei o sinal, avancei o sinal e não aconteceu nada. Por avançar o sinal não quer dizer nada; eu roubo jornal, eu faço uma série de coisas absolutamente irregulares, mas eu sei que de alguma maneira eu não estava vendo tudo a minha volta naquele momento, então eu poderia ter avançado aquele sinal e ter acontecido alguma coisa séria, graças a Deus não aconteceu nada, mas de novo eu senti a mão do anjo. E quando aquilo acabou eu rezei uma Ave Maria e agradeci a proteção, porque podia ter acontecido alguma coisa. Eu não vi que estava avançando o sinal e isso sempre é uma coisa séria, então eu sou uma pessoa muito guiada pelos sinais, não os sinais de trânsito, esses também, é claro, mas sobretudo os sinais de Deus. Eu sou extremamente intuitivo e extremamente racional quando necessário. E se eu tivesse que me definir, eu acho que sou uma pessoa não necessariamente em paz comigo mesmo, eu nunca estou em paz comigo mesmo e espero nunca estar em paz comigo mesmo. Ao mesmo tempo eu estou em paz comigo mesmo. Eu sou uma pessoa de muitos paradoxos, eu sou capaz de ser, ao mes86 mo tempo, deslumbrado com a magia do universo e irritado porque o dentista quer fazer um tratamento que eu não estou afim. Eu estou dando exemplos concretos, totalmente no momento presente, volta e meia vou ao dentista, eu vou lá para fazer uma coisa e ele quer fazer outra, e é claro, venço eu, você sabe quando o cara está querendo armar em cima de você, vem dizer que o dente pode dar um ataque cardíaco. Aliás, esse cigarro também pode dar, tudo pode dar um ataque cardíaco, e daí? Vou morrer. Então eu sou capaz desses dois mundos, absolutamente conflitantes e únicos, porque na nossa conversa aqui eu falei que eu não acredito nessa realidade. Eu sou, como diz a música que eu fiz há muitos anos, há mais de 30 anos, eu sou o tudo e o nada, eu sou todos esses paradoxos, eu sou os olhos do céu e a cegueira da visão. E isso não me incomoda absolutamente, isso me dá uma imensa liberdade, não ter que ser coerente, embora tenha que ser honesto, coerência no sentido de combinar a gravata com a meia, mas ao mesmo tempo procurar ter uma bússola na minha vida, ser orientada pela luz, saber que muitas vezes as trevas se disfarçam de luz. E eu agora estou num período que estou lendo sobre religiões, e ao ler muito sobre as religiões, é óbvio que você vai cair em revelações que são às vezes manipuladas, e você vai ver também que todas as religiões, todas sem exceção, aceitam esses paradoxos sem nenhum problema. Por exemplo, eu resolvi reler a Bíblia, tudo porque eu comprei um Kindle. As coisas são mais ou menos assim. E aí eu pensei: “Não tem nenhuma Bíblia aqui em casa, vou baixar uma Bíblia e vou ler”; e aí tem um momento em que a Bíblia, e isso acontece toda hora, 87 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu eu estou citando um dos mil exemplos, diz lá que o que Deus uniu na terra, continuará unido no céu. Jesus diz isso para Pedro, o que se uniu na terra, será unido no céu, e a Igreja passou a usar isso, é óbvio, para o casamento. Aí mais adiante um fariseu pergunta para Jesus: “a Bíblia diz que se você casar com uma mulher, você morrer e ela não tiver filhos, teu irmão tem que casar com ela. Vamos supor que essa mulher não tem filhos e casa com sete irmãos. E daí todos morrem e vão para o céu. Lá no céu ela vai ser mulher de quem?”. E Jesus diz: “no céu não tem isso de casamento”. Quer dizer, já aí você vê a contradição quando ele diz uma hora que une na terra e fica unido no céu, e outra hora diz que não tem nada disso. Acho que Buda tem isso também: um discípulo chega para Buda e diz: “O que eu faço para atingir a iluminação? Eu tenho que rezar muito?”. Buda disse: “Não, rezar não atinge a iluminação”. Aí, um outro cara, no mesmo dia, diz: “Buda, o que eu faço para atingir a iluminação? Tem que rezar muito?”. E Buda diz: “Muito. Tem que rezar muito”. E os discípulos ficaram horrorizados: “Você falou uma coisa para um e outra coisa para outro”. E Buda diz: “Mas a vida é assim, uma coisa é para um e outra coisa é para outro”. Então Buda não está em contradição, Buda está agindo de acordo com o estímulo da pessoa que veio para ele. Então, eu diria que eu sou esse cara com essas contradições. Você sabe as minhas qualidades, eu sou uma pessoa honesta, eu sou uma pessoa comprometida com o que eu faço, totalmente comprometida, eu sou uma pessoa leal, profundamente leal. Quer dizer, eu já tentei me livrar da Mônica. Logo no começo, hoje em dia isso é impossível, mas já tentei me livrar dela, não consegui convencê-la a pedir demissão, continuei com ela, no que fiz muito bem, mas na época eu não sabia que estava tomando a decisão mais acertada da minha vida, que era de continuar com aquela garota que não tinha nenhum experiência quando, na verdade, eu tinha tido uma proposta de uma grande agente literária do mundo inteiro. Mas aí a lealdade falou mais alto do que o interesse, para o meu desespero na época e para a minha alegria hoje. Eu teria dado um passo muito errado se isso tivesse acontecido. Então vamos lá: Eu te abençôo. Eu te abençôo pelo poder que me é conferido, e agora eu não estou falando como Paulo Coelho, mas como o mago mes- 88 89 mo, que Deus ilumine o teu coração, que Deus abra o teu coração, que está aberto para essa história, e que em cada momento de dúvida ele apareça e te oriente nessas dúvidas, que não te deixe fraquejar, nem ficar assustada. Você tem uma confiança cega, cega porque não é cega, cega porque, como diz Saint Jean de la Croix, a noite escura da alma é que te dá a iluminação. Eu dei muitos passos na minha vida e darei ainda nessa luz escura, porque no fundo, cada gesto seu, cada atitude sua, é um ato de fé, você nunca sabe quais as conseqüências. Eu acabei de citar a história da Mônica, e naquele momento e naquele café em Rubi, onde eu estava tentando convencê-la a todo custo que eu tinha uma proposta irrecusável e que ela estava com 22, 23 anos, ela era uma aposta minha, na área dela eu nunca vi um agente viver de ter um autor, ela só tinha um autor, e a Mônica dizia não. E nesse momento você deve sentir que alguma coisa deve falar mais alto, que é a tua lealdade, porque existem valores na vida, esses valores tem que ser respeitados, embora nós sempre sejamos tentados a abrir mão desses valores, mas sempre que a gente abre mão, por uma razão ou por outra, você se dá conta que não vale a pena. Então, quando eu falo de uma confiança cega, falo em confiança, no sentido de escutar muito mais o teu coração do que escutar só a tua razão, só a tua técnica. Técnica por técnica, você escreveria um livro por semana, mas não é sempre que o seu coração está falando. Eu só escrevo um livro quando o meu coração fala. Eu brigo, claro, porque às vezes eu preciso daquilo. Não é que eu preciso daquilo para viver, para sobreviver, mas eu preciso daquilo para me respeitar, para ter respeito por mim mesmo. Por isso que quan90 do eu falei com você, Carolina, eu disse o poder que me é conferido, para ter um respeito por esse poder que me é conferido, é que eu não posso trair, que é uma coisa que é um tesouro na minha vida. Então, você está abençoada. Essa benção implica em tudo que você já sabe, já tem, que é um bom domínio da técnica, que eu vi no seu trabalho. Quer dizer, tudo isso é uma rede de sincronicidade, estou falando com a câmera porque quando você vir o filme, eu quero 91 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu que você olhe para a câmera, tudo isso é uma rede de sincronicidade muito grande, o Roberto Viana que nos apresentou, enfim... Nada é garantido, quer dizer, aturar um fracasso seria infernal. Eu tenho esses medos de... Medo não é bem a palavra, mas eu tenho a responsabilidade de não defraudar, como se diz em espanhol, as pessoas que apostam em mim. Isso foi sempre uma coisa minha e da Mônica, muito marcante para todos: a gente não pode vender o que não existe, a gente não pode deixar as pessoas com a sensação da derrota. A Mônica nunca diz: “Ah! Vendeu mais”. Não existe isso. Claro que sempre que todo mundo ganha, a gente sempre fica contente. E quando todo mundo perde, a gente fica triste e a gente se pergunta: “Mas o que que houve?”. Mas além, mas muitíssimo além dos interesses econômicos, existe a missão, existe a intenção, existe a ideia de que esse trabalho, que eu sou a ponta visível, mas não é apenas meu, esse trabalho ele tem um sentido agora, ele tem um sentido de ser realizado, ele não pode ser enfraquecido, não são só as derrotas que enfraquecem o trabalho, são os eventuais momentos de desânimo, tédio, ou preguiça mesmo. Preguiça não é igual a raiva, a gente vigia muito mais a nossa raiva do que a nossa preguiça, mas enfim, uma preguiça de repente pode ser muito, muito mais destrutiva do que um acesso de fúria. E eu tenho essas tentações, mas eu me bato com elas, eu não me acomodo, eu não me acomodarei. Se Deus quiser, até o dia que eu morrer, eu me baterei sempre por aquilo que eu prometi ao meu anjo que é ir até o final. Tem tempo de duvidar, tempo de voltar atrás, mas no momento que eu disse sim, foi um compromisso para o resto da vida, com92 promisso esse que agora você faz parte: não se deixe intimidar pela seriedade com a qual estou falando. Ao contrário, esse filme tem que ser um filme alegre, e ser um filme luminoso, mas sabendo que é um filme que tem que tocar o coração das pessoas, como espero que tocará. Eu acredito no meu Deus e cada um acredita no seu Deus. Que o seu Deus, que é o meu Deus, que é o Deus de todos nós, te coloque nas horas certas os desafios, te coloque nas horas certas as soluções para esses desafios. Saiba que nenhuma pergunta fica sem resposta, desde que você saiba perguntar, porque se ele te colocou a pergunta, ele também te colocou a resposta. As pessoas que não perguntam e não obtém a resposta, é porque não tem aquela pergunta. Então que você saiba fazer isso com a dignidade com que você fez o “2 Filhos de Francisco”, que foi um filme lindo, lindo, lindo. Me surpreendeu muito as histórias que vocês contaram ali, porque eles tem um trabalho de... No fundo, “vox Populi, vox dei”: “a voz do povo é a voz de Deus”. Então, que a Imaculada Conceição, a grande mãe, a Terra, te abençoe. E São Jorge, o Fogo, te abençoe. Que Jurema, a Água, te abençoe. E que a espada de Santiago, o elemento de Ar, te abençoe. Amém. 93 TÍTULO #04 Christina Oiticica, fevereiro de 2010 In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur, venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam. CK: Dia 13 de fevereiro de 2010, Genebra. Bom, Chris, ontem vocês me mostraram um vídeo lindo de como vocês se conheceram [gravação do quadro “O Anjo da Guarda”, do programa Fantástico, da TV Globo], mas vocês já tinham se visto antes de começarem a namorar, né? Chris: Já, a gente já se conhecia antes daquilo. CK: O seu tio é casado com... Chris: O meu tio é casado com... Era casado com a irmã do Paulo. Então eu sempre encontrava o Paulo no Natal, nas festas de aniversários, nas coisas de família, né? Mas eu tive um namorado que eu namorei, sei lá, 10 anos – a vida inteira – e o Paulo sempre teve uma namorada também, então a gente nunca... CK: Mas você tinha alguma impressão dele? Chris: Tinha. Achava ele super interessante, charmoso, essa coisa toda. E eu sei que ele sempre pensava assim – porque eu usava óculos, como eu estou usando agora, ele adora óculos – e ele dizia assim: “Ah! Essa sobrinha do Marcos é tão bonitinha”, mas a gente nunca demonstrou nada, até que... CK: Que ano foi isso? 94 95 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Chris: Quando eu conheci o Paulo, eu tinha 18 anos, ele tinha 22, porque ele é 4 anos mais velho que eu. CK: E isso foi antes do Raul? Chris: Isso foi exatamente... Foi perto da época do Raul. Foi um pouco antes, eu acho que foi assim. Mas eu não acompanhava muito a vida do Paulo; eu sabia que ele estava fazendo música, aí as músicas fizeram sucesso. CK: E você gostava das músicas? O que você ouvia? Chris: Olha, eu ouvia mais Beatles, bossa nova. Eu achava o rock brasileiro... Eu tinha um certo preconceito até. Eu sou muito preconceituosa, gente! Eu me lembro eu que trabalhava como desenhista num escritório, e a secretária falava “Eu adoro essa música”, e eu dizia “Mas eu conheço o compositor”. E aí eu me achava super importante, e eu passei a gostar também das músicas, adorar. CK: E você era desenhista onde? Chris: Como eu fazia Belas Artes, era um estágio. Era numa coisa do governo, que não existe mais, que era do Estado da Guanabara. Eram desenhos técnicos que eu fazia. Foi o meu primeiro estágio. Acho que era IDEG, eu acho, o nome do lugar. Eu trabalhei lá uns anos. CK: E você já pintava ou não? Chris: Eu pintava. Como eu fazia Belas Artes, eu fazia desenhos, esculturas, gravuras. CK: E você imaginava seguir a sua vida por esse caminho, você já tinha isso determinado? 96 Chris: Já. Desde criança eu queria ser artista plástica. Eu sempre ia no Museu Nacional de Belas Artes. Eu sonhava estudar lá um dia. Eu passei no vestibular, e depois eu estudava de manhã e logo em seguida pegava nesse trabalho à tarde, no centro da cidade. E foi mais ou menos nessa época que eu conheci o Paulo, como eu te falei, na casa da família dele. Mas a gente só se olhava, se cumprimentava. A gente nem conversava, porque eu sou super fechada, né? Eu não sou muito de ficar conversando assim. Eu fico mais retraída, sou tímida também. Mas aí chegou um momento que a gente até se aproximou, porque eu terminei com esse namorado e comecei a namorar um rapaz que fazia violão clássico, e ele adorava o Paulo, e gente marcou de sair, de se ver. Foi nessa época que eu me aproximei mais do Paulo. Inclusive o Paulo foi num aniversário meu, que nunca tinha ido. O Paulo era casado, ele foi até com a Cecília. Depois ele se separou dela, eu terminei com o Mário, e no Natal ele pediu para a irmã dele levar ele. Eles iam lá pra casa, aquela coisa de família, pra ele passar lá em casa, porque ele queria me convidar para sair. E ele fez isso. Nem foi propriamente ele, foi o primo dele. Foi o Serginho que perguntou: “Você não quer ir ao cinema com a gente?”, mas eu tinha certeza que era o Paulo que estava querendo me chamar pra sair. CK: Você lembra que filme vocês viram? Chris: A gente ia assistir “Manhattan”, mas estava super lotado, e aí a gente acabou indo ver “O Aeroporto”, no Condor, no Largo do Machado, que foi onde tinha uma cobra e teve toda essa cena, o Paulo então me perguntou se ele beijasse a cobra, se eu dava um 97 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu beijo nele. Ele perguntou se podia beijar a cobra e beijou e a gente ali começou. Eu beijei, a gente foi para a casa dele, a gente transou logo no primeiro dia. Nessa época eu tinha um outro namorado e ele tinha várias outras namoradas, e esse meu namorado demorou muito a ligar nesse dia de Natal, então... É claro que eu já tinha um interesse no Paulo, óbvio. Senão não teria saído com com ele. Porque o primo dele, na primeira esquina já saiu fora. E aí a gente namorou uns três dias e eu achei ele um cara muito esquisito, com livros de vampiro, coisa baixo astral, um horror. Eu fiquei começando a achar meio esquisito. CK: E ele era baixo astral? Chris: Não, nem um pouco, era super divertido. Eu só achei esquisito o livro de vampiro. Eu era super religiosa, eu sou super religiosa à minha maneira, né? Eu sou católica, mas eu estudei em colégio protestante, sempre tive total liberdade, mas sempre tive um interesse muito grande pela... Eu sempre tive muita fé, desde criança eu ia na igreja e rezava, era apaixonada pelo Sagrado Coração de Jesus. Então qualquer coisa assim que eu visse de diferente, eu não achava legal. Preconceito também, né? Logo terminamos e logo depois voltamos. Foi no Réveillon. Ele ligou, eu estava lendo a Bíblia, achei que aquilo ia afastá-lo definitivamente, e ele achou ótimo, porque ele gostava também, e aí nós fomos passar o Réveillon juntos. Nesse meio tempo eu também já tinha terminado com o outro namorado, porque ele descobriu que eu estava saindo com o Paulo. Fomos passar o Réveillon em Cabo Frio, ele tinha uma casa lá, e a gente descobriu que nessa casa tinha... Você sabe essa história? 98 99 CK: Não. Chris: A gente foi para lá e o Paulo dizia assim: “Essa casa é esquisita, eu escuto uns barulhos...“. CK: Era uma casa dele? Chris: Era uma casa dele, que ele tinha comprado, mas ele viu construir. CK: Nessa época ele trabalhava na gravadora? Chris: Isso, na gravadora. Essa casa era num condomínio, e essa casa, ela foi construída, a pessoa comprava e acompanhava a construção. Então era uma casa nova, não era uma casa antiga, então não podia ter fantasma. Normalmente é isso que a gente deduz, né? E a gente foi num bar em frente – isso foi logo no primeiro Réveillon, foi logo no início – a pessoa do bar em frente perguntou se a gente morava no condomínio, nas cabanas (falava as cabanas de Cabo Frio). “Nós moramos”. “Ah! Vocês sabiam que aquilo foi construído em cima de um cemitério índio, que encontraram várias ossadas?”. Aí a gente olhou assim um para a cara do outro – ele tinha sonhado nessa noite que ele não podia dormir no cemitério, olha que coisa! E logo depois a gente ficou sabendo que realmente tinha sido um cemitério de índios. desse bar que esclareceu tudo, e logicamente nós não passamos o Réveillon na casa. CK: Ele levava isso muito a sério, ou fazia graça? Chris: Levava super a sério. CK: Era uma coisa tensa? Chris: Nós levávamos muito a sério, porque como eu te falei, eu tinha esse lado religioso, então a gente acabou abandonando a casa. Nunca mais fomos para lá e depois de alguns anos a casa foi vendida. CK: E vocês passaram aquela noite onde? CK: E como era a casa? Era grande? Chris: Não. Era redonda, de sapé. Tinha uma sala, tinha dois quartos, tinha cozinha, era bem casa de praia. E nessa noite ele tinha sonhado isso, que não podia dormir no cemitério. “E como é que eu vou passar o Reveillon no cemitério? Como? Isso não é possível”. Eu fiquei lá pouquíssimo tempo, e foi esse rapaz 100 101 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Chris: A gente passou nesse bar que a gente estava. E no dia seguinte a gente foi embora. Eu não lembro onde foi que a gente dormiu, eu sei que lá a gente não passou, a gente saiu fora mesmo. Então esse foi o nosso início. E logo depois levei a minha prancheta para a casa dele. Porque eu fiz Belas Artes e depois eu fiz Arquitetura, então eu trabalhava num escritório de arquitetura, e eu trabalhava na prancheta – eu tinha prancheta em casa, então essa foi a minha mudança. A prancheta era a única coisa que eu tinha realmente. CK: E você morava com os seus pais antes? Chris: Eu morava com os meus pais. CK: E era uma família mais tradicional? Chris: Era uma família totalmente liberal. CK: É que você disse que era super religiosa. Era uma coisa sua? Chris: Era uma coisa minha. Meu pai era devoto de Nossa Senhora. No mês de Maria, todos os domingos a gente ia à missa. A minha irmã detestava, eu adorava. O culto do colégio, todo mundo detestava, eu adorava. Mas era uma coisa minha, porque a minha família era super liberal. Meu pai era nordestino, mas super liberal, intelectual, super cabeça aberta. Inclusive, eu estava falando, eu dormia com os namorados na minha casa. Eu sei que hoje em dia isso é normal, mas naquela época não era, e logicamente não tinha nenhum problema, era a coisa mais natural. CK: E eles gostavam do Paulo? Chris: Adoravam. 102 CK: Ou achavam esquisito? Chris: Não, os meus pais adoravam ele, adoravam conversar com ele. Mas é como eu falei, ele foi se aproximando mais nessa época mesmo, depois que eu comecei a namorar o Mário. Depois ele foi no meu aniversário e lá ele fez um número de mágica. CK: Que número era? Você lembra? Chris: Era um número de adivinhação, que as pessoas escreviam num papelzinho uma frase, e ele descobria de quem eram as frases. Mas tem um truque nisso, e foi super divertido. CK: Mas era um truque? Chris: Era um truque. CK: E você sabia disso ou acreditou? Chris: Não, eu sabia que era um truque, mas era impressionante, porque ele acertou todas as frases. E foi a festa, entendeu? Ele animou a festa, foi super legal. CK: Ele tinha essa coisa divertida também? Chris: Ele era super divertido, nessa época ele tinha saído da [gravadora] CBS, como ele te contou, e era um período que ele não estava trabalhando, e a gente ficava muito junto. Eu trabalhava, mas logo depois saí do trabalho. CK: Mas vocês viviam bem? Chris: Sempre bem. O Paulo tinha vários apartamentos nessa época da música. O Paulo é super econômico, então tinha vários apartamento, tinha dinheiro no banco. 103 CK: Dinheiro não era um problema, nunca foi uma preocupação? Chris: Não tinha nenhum problema. CK: Vocês moravam num apartamento legal? Chris: Super legal o apartamento. Ele tinha outros apartamentos alugados. Logo depois a gente comprou um apartamento bem grande, na Raimundo Corrêa, onde a gente passou boa parte da nossa vida, que era um apartamento super confortável, com jardim, muito parecido com esse. Inclusive a gente foi para a Europa com esse dinheiro, e ele até falou: “Vou gastar até o final”. Eram dezessete mil dólares, que para a época – e para a gente que viajava sempre para a Europa – calculando cinquenta dólares por dia, dava perfeitamente. A gente tinha – o Paulo tinha viajado muito nesse esquema. A gente chegou até a comprar carro na Europa. A gente fazia tudo que a gente tinha vontade de fazer. Queria ir num show, ia, queria ir numa boate, ia, queria comprar livro, comprava. É lógico que não saía fazendo compra adoidado, mas era tranquilo. Eu não lembro de nunca ter me privado de nada. E era super divertido. Mas eu pulei alguma coisa... Eu estava falando que a gente morava num apartamento. Eu fui para esse apartamento, que também tem outra história. Quando eu fui pra lá, eu morei um ano mais ou menos nesse apartamento. É uma gracinha esse apartamento. que a mulher vê outros detalhes. Eu me lembro que tinha muitas plantas, era super bem decorada, tinha um sofá tipo alvenaria. Era uma graça o apartamento. Ele é virginiano, então é super organizado. CK: Não tinha, então, aquela coisa de hippie? Chris: Não, tinha um pouco de hippie, mas essa fase já tinha passado, era uma fase meio de transição, as pessoas não eram tão hippies assim. Já era anos oitenta, e a época hippie foi bem antes. Mas é claro que tinha uns resquícios, tinha as roupas indianas, que eu adorava, tinha os tamancos. CK: O Paulo é cuidadoso com casa assim, ou ele não liga para isso? Chris: Super cuidadoso, a casa é super bem arrumada. O Paulo é uma pessoa super organizada. Lógico 104 105 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Como é que vocês se vestiam? Chris: Era uma roupa normal. O Paulo trabalhava de camisa, não de gravata, afinal ele trabalhava na gravadora. Ele usava muito xadrez, não usava preto, não. Ele não gostava de preto. Eu que adorava preto – era uma briga! Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: E ele não curtia que você usasse preto? Chris: Ele não curtia, não. Quando a gente ia viajar e eu ia de preto, ele logo falava: “Você vai viajar assim?”. “Eu não vou trocar a roupa de jeito nenhum.”. Eu que gostava bastante, mas depois ele também adotou o preto. CK: E você lembra de quando ele adotou o preto? Chris: Acho que foi coisa de viagem mesmo, de que é mais prático. Mas voltando, ele não estava trabalhando e eu estava trabalhando nesse escritório de arquitetura. E eu me lembro que um dia ele chegou no escritório com o contador e nós abrimos uma firma juntos. Aí eu saí do escritório, deixei de trabalhar. A firma chamava Xogun. Era tipo uma prestação de serviços; ele escrevia para umas revistas. Quando eu digo que não trabalhava, era trabalhar num lugar fixo, mas ele trabalhava. Escrevia algumas matérias como jornalista, eu comecei a vender quadros, comecei a fazer projetos de decoração, então a gente tinha essa firma. CK: E não foi planejado. Ele um dia chegou lá com o contador, foi isso? Chris: Acho que tinha alguma coisa mais ou menos combinada, eu não lembro bem. A gente saía muito, a gente andava muito, andava o Rio de Janeiro inteiro, a gente ia até o centro da cidade a pé. A gente tinha muito essa coisa de andar, como a gente tem, só que lá a gente andava o dia inteiro, e isso tudo era muito divertido. Porque a gente saía, a gente conversava, a gente ria, fazia as coisas juntos, entrava nos cinemas, era super divertido. A gente passava o dia inteiro juntos. Acho que durante três anos a gente não se separou. Fazíamos tudo juntos; trabalhava junto, viajava junto. E como eu estava te contando, esse apartamento, toda vez que eu entrava nele, esse apartamento do Flamengo, todas as vezes que eu entrava no banheiro, eu sentia uma vontade de suicídio. Até tinha uma coisa assim de ligar o gás, uma coisa horrível. 106 107 CK: Mas acontecia ali, nunca tinha acontecido antes com você? Chris: Não. Algumas vezes eu tinha pensado, mas quando eu era mais criança, sabe aquela coisa meio de desilusão da vida? Quando você está passando da infância para adolescência, e depois para a fase adulta, onde você tem aqueles conflitos, onde você vê que o mundo não muda, sabe essas coisas assim? CK: Mas você nunca tinha tentado o suicídio? Chris: Não. A gente fumava e adorava conversar enquanto fumava, e a gente adorava conversar com o porteiro, né? E a gente descia para conversar com o porteiro, e um dia o Paulo perguntou: “Quem morava antes lá no meu apartamento?”. Ele falou que era um funcionário da PanAir do Brasil, que era um comandante ou alguma coisa assim, e ele suicidou-se no banheiro, ele ligou o gás e foi. Eu falei: “Eu não vou ficar mais aqui também”. Foi igual à casa de Cabo Frio: “Vamos embora”. No dia seguinte, a gente já tinha arrumado as malas e fomos morar na casa dos meus pais. Voltei para a casa deles. A gente já tinha comprado um outro apartamento, mas estava em reforma, então eu acho que a gente ficou uns cinco meses na casa dos meus pais, e depois a gente foi morar nesse apartamento novo. E logo depois o Paulo já estava trabalhando na TV Globo [como roteirista], que ele resolveu sair porque não estava contente, e a gente foi para a Europa. CK: Como foi essa passagem pela Globo? Chris: Ele foi convidado para escrever uns shows – ele foi convidado para escrever os roteiros dessa linha de shows, mas ele não estava nem um pouco feliz, tra108 balhando assim, escrevendo roteiros de programas, porque tinha sempre essa ilusão de ser escritor – esse desejo, não essa ilusão. CK: Mas ele tinha esse desejo e ele sentava para escrever? Chris: Não. Ele escrevia colunas, os roteiros para a Globo, algum conto para alguma revista – ele tinha coluna na Revista Amiga, era uma coluna de música, tudo direcionado muito para a música. CK: E ele tinha, por exemplo, um projeto de um romance, alguma história? Ele pensava que tipo de literatura ele queria desenvolver? Chris: Não, não. Pelo menos ele não me falava nada. Apesar que ele já tinha tido uma experiência anterior, quando ele morava em Londres. Ele ficou o tempo inteiro lá tentando escrever um livro, e ele escreveu. Mas ele chegou à conclusão que aquilo que ele escreveu não tinha nada a ver – eu não sei por quê, eu acho que ele tinha mandado para várias editoras na Inglaterra (mas eu não tenho certeza disso, isso você tem que confirmar com ele), mas ninguém respondeu. Aquele negócio que você manda e ninguém responde. A aí o Menescal tinha ido para Londres buscá-lo para voltar a trabalhar com ele, eles eram super amigos, eles se adoram, e aí eles resolveram ir num pub, deixar os manuscritos lá para que aquilo não ficasse ali dentro da gaveta, e que podia ser que alguém descobrisse e achasse aquilo o máximo. Tinha todo esse lado romântico também. E nessa época quando a gente viajou, eu me lembro que ele colocou na minha mochila, eu me lembro que eu viajei com uma bota que tinha um salto altíssimo e ele colocou na minha mochila uma máquina pesadíssima de escrever portátil. 109 CK: Era aquela que tinha uma caixinha que fechava? Chris: Exatamente. E quando a gente chegou em Londres, a gente não pegou um táxi, a gente pegou o metrô. E eu com aquela mochila pesada e com o salto altíssimo. Logo depois eu comprei uma bota baixa. Mas eu detestava, porque eu achava que ninguém ia me paquerar porque eu era muito baixinha. Iam me achar horrível porque eu era baixinha. Não tem nada a ver, né? É ridículo, mas eu achava isso. E eu lembro que foi nessa viagem que mudou muita coisa, que o Paulo encontrou o mestre dele, e nessa época a gente estava nessa fase de transição de casa. a gente estava fazendo uma experiência numa mesa, fazendo uma canalização com o livro, né? A mesa começou a bater assim o pé no chão, então eu ficava muito assustada com isso. CK: E ficava com esse sentimento só para você, ou você verbalizava isso para o Paulo? Chris: Eu não falava nada, eu ficava na minha, mas com a sensação de que estava cometendo algum pecado. Ao mesmo tempo, eu achava que era legal, era uma contradição minha. Por exemplo, tarô – logo depois eu aprendi a jogar tarô. CK: Mas você, ali nas “Valkírias”, você rechaçava um pouco tudo isso, né? Chris: Sobre o quê, sobre a magia? CK: A magia, tudo isso... Chris: Não é que eu questionasse. Como eu te falei, eu era fundamentalista cristã, então qualquer coisa – inclusive nesse apartamento, é importante contar isso, o Paulo, como ele tinha muita curiosidade, depois da prisão, depois daquela coisa de casado, ele ficou casado com a Cecília, e durante os três anos ele nunca tocou no lado espiritual, ele ficou muito assustado. Então quando a gente se encontrou, a gente teve – como eu tinha esse lado muito forte, e ele também, foi um encontro assim. Mas só que o Paulo sempre teve umas outras buscas. Eu me lembro que a gente comprou um livro do Alan Kardec, e a gente ficava lendo. Mas eu te confesso que isso era para mim um pouco de tortura, porque eu achava que era pecado esse negócio de psicografar. Eu me lembro que um dia 110 111 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Vocês foram atrás de tudo? Chris: É. Apesar de que o tarô foi um pouco mais na frente, e eu tinha preconceito, sim, o que é ridículo, porque não tem nada a ver. Eu lembro que teve uma época que eu frequentava – mas isso muitos anos depois – o movimento carismático da Igreja Católica, que é super radical também, e eu lembro de um dia que eu não fui. Porque eu era uma pessoa que ia para rezar, para ir antes à igreja e receber as pessoas, que é super parecida com a magia tradicional também, que você tem todo um lance de preparação do lugar. E eu me lembro que teve um dia que eu não fui na igreja, e tinha um amigo meu, um amigo de infância, que ia comigo sempre, e ele me telefonou dizendo: “Christina, ainda bem que você não veio, porque teve umas mulheres, nessa reunião, que subiram no altar e começaram a falar do Paulo, e falar que os anjos da igreja não eram os mesmos anjos do Paulo, por causa de “As Valkírias”. CK: Aí já tinha saído o livro. Chris: Já, isso foi bem mais na frente. E aí eu senti na pele a coisa do preconceito. Eu fiquei furiosa, eu fui lá e pedi para o cara se retratar, o coordenador do grupo de oração, que era um rapaz jovem, mas com a cabeça fechada – não o padre, o padre era maravilhoso, o padre da igreja, que é o padre José Roberto, que adora o Paulo. Inclusive quando ele foi dar o depoimento dele lá na igreja, ele falou de um islâmico que fazia o jejum na sexta feira, eu acho que as pessoas devem ter ficado pensando assim, “que padre é esse?”. Eu não pensava assim, não, mas eu estou dizendo o grupo, e eu me lembro que alguns anos depois, esse rapaz, eu 112 encontrei com ele, e ele veio na igreja. Eu estava na missa, ele veio pedir perdão pelo que tinha acontecido. Isso foi uma coisa muito forte, nunca ninguém me pediu perdão. Eu falei que já tinha esquecido aquilo, que perdão nada! Então, eu tinha muito medo dessas experiências, mas era mais por preconceito. Até tinha curiosidade, mas era um preconceito porque estava mexendo com alguma coisa que eu não deveria estar mexendo. Não é que eu não acreditasse... CK: Mas te assustava. Chris: Me assustava muito. Eu ficava com terror. Mas nunca falei nada para ele. Se eu falei, falei depois. CK: E você se confessava, por exemplo? Chris: Não. Essa coisa de confessar, de padre, isso não, eu só confessei na minha primeira comunhão e nunca mais. Eu não era aquela católica tradicional. Eu tinha curiosidade de ir a vários lugares. Eu gostava muito do lado protestante porque tem muito o dom da palavra, os pastores normalmente falam super bem, é muito baseado na Bíblia, então eu gostava muito. E normalmente os padres da Igreja Católica, eles não falam. Tem padres maravilhosos, mas não falam como os pastores. É lógico, a Igreja Católica tem todo um ritual muito mais rico, muito mais forte, que é a transformação do sangue de Cristo, e do corpo de Cristo, mas eu gostava da leitura da Bíblia e da palavra. CK: E você falou desse dia da mesa batendo no chão. Foi o primeiro impacto mais... Chris: Não. Eu psicografava, e essa coisa, então eu ficava muito assustada, mas eram experiências. Às ve113 zes, se você não sabe lidar com essas coisas – lógico que o Paulo sabia, mas eu não tinha essa consciência. CK: Isso você admirava no Paulo? Chris: Não. Eu ficava assustada. O que eu sempre admirei muito no Paulo é a coragem dele, a perseverança. Ele era um homem, sabe aquela coisa? Tanto que no momento que a gente ficou junto, eu pensava isso – “Ele é um homem”. Sabe aquela pessoa que você confia? Aquela pessoa que você diz: “Ele é uma pessoa que eu amo, mas que eu confio também?”. Lógico, a gente estava muito no início de um relacionamento, e o amor vai crescendo ou vai diminuindo. do. Ele não acha que ele é. Mas não é ciúmes de homem, é da minha atenção, então eu controlo isso. E eu era super ciumenta. Também a gente teve aquela educação que você casa e fica só com aquela pessoa, então eu era super ciumenta, mas eu fui aprendendo a não ser, para poder viver bem. E o Paulo sempre foi, desde o início. Isso que eu acho legal, porque às vezes as pessoas se modificam porque o relacionamento já CK: E você sentiu que só crescia? Chris: Eu sentia que só crescia, e tinha a admiração também. Eu comecei a admirar muito a coisa do dia-adia, apesar de que nessa época a gente curtia muito, mas era um posicionamento, não era um cara babaca, não era um bobo, não era um filhinho de papai, não era uma pessoa perdida. Ele podia estar naquele momento com os seus conflitos, mas ele procurava. Ele sempre viveu intensamente. Eu fui aquela garota super protegida, de uma família super liberal e isso algumas vezes eu acho que te acomoda. Minha mãe falava: “Vamos para o cinema. Não vai para o colégio, não”. Minha mãe casou com 16 anos, era muito garota, era uma irmã. Eu não sentia a minha mãe como mãe. CK: E o Paulo era ciumento? Porque ele parece ciumento, apesar de dizer que não é. Chris: Ele é super ciumento, mas ele não admite isso, não. Se você perguntar ou falar, ele vai ficar chatea114 115 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu está desgastado, ficou muito tempo junto com aquela pessoa, então perdeu o interesse, ou a pessoa envelheceu, engordou... E o que eu sinto no nosso casamento é justamente o contrário; a gente está cada vez mais unido, a gente se gosta muito. Lógico, isso não quer dizer que amanhã não saia, não vá fazer alguma coisa, vá viajar com outra pessoa – não estou dizendo isso. Mas eu sinto que cresceu, e isso é bom, você às vezes compara com outros casamentos e vê que é triste. CK: Uma coisa que se esvazia. Chris: É, porque se você não presta atenção – que pode acontecer, porque tem um período que você não está querendo prestar atenção na pessoa –, não é porque desgastou, é porque a gente é assim. “Ah! Não, vou viajar, vou sair com outra pessoa”– não é porque não gosta mais, isso você vai aprendendo no decorrer do relacionamento. Até porque naquele momento você tem uma necessidade de fazer, você está querendo ver outras pessoas, trocar ideias com outras pessoas. Não é que está te substituindo, porque você ficou velha. Eu acho isso super positivo. CK: Você acha agora, você tem essa alegria. Mas no começo... Chris: Não, no começo eu tinha ciúmes. Eu sou ciumenta. Normal. Quer dizer, não é normal ser ciumenta. É horrível ser uma pessoa ciumenta. Mas eu aprendi a não ser, numa boa. CK: Isso foi conversado ou você resolveu internamente? Da mesma maneira que você tinha esse estranhamento com a magia, com o que era novidade e depois... 116 Chris: Internamente mesmo. A gente vai entendendo como é natural, é uma coisa natural da vida, não é porque você casou ou porque você encontrou uma pessoa, que o mundo acabou. Isso serve para ele, como para mim também. Eu acho até saudável. Por exemplo, eu conheço pessoas que deixam de fazer as coisas. Não é porque elas tenham medo, ou porque elas não queiram fazer, é porque ela não quer que o outro faça igual, entendeu? Então elas deixam de viver em função de que o outro – “Ah! Imagina se eu vou chegar três horas da manhã em casa! Eu vou dar chance para o meu marido chegar às três horas da manhã em casa também”. Esse tipo de coisa que a gente vê por aí. E eu não vi isso na minha família, porque o meu pai viajava muitas vezes sozinho, então é uma coisa super natural. CK: E vocês são muito companheiros agora, e foram também nesse começo? Chris: A gente é muito companheiro. E como eu te disse, nesses primeiros três anos, a gente nunca dormiu uma única noite separados, e a gente sempre trabalhou em casa juntos. Nós nunca tivemos um trabalho fora de casa. É claro que tem as viagens, então você tem a necessidade de sair também. Porque as outras pessoas saem de manhã, vão para o escritório, encontram outras pessoas, depois do escritório vão tomar uma bebida, vão tomar um café ou saem com outras pessoas. A gente, não. A gente fica muito grudado. Então chega uma hora que eu acho que tem que... Que é bom até, mesmo que às vezes a gente fique “Ai, estou morrendo de saudade!”. Mas acho que isso também é bom, né? 117 CK: Nos livros tem essa coisa da busca espiritual muito presente, como se vocês saíssem para viajar em busca daquilo. Mas vocês também se divertiam, iam para shows, compravam livros, vocês se divertiam muito juntos, né? Chris: sempre, a gente se diverte muito, e até hoje. CK: E quais são esses momentos de diversão? Chris: Atualmente, quando a gente sai para andar. A gente anda duas vezes ao dia, todo dia. A gente conversa muito nesses momentos. Tem épocas que todas as noites a gente assiste a todos os filmes, tem momentos que a gente está interessado em fazer outras coisas, de trabalho mesmo. Às vezes, a gente trabalha à noite. Mas a gente se diverte muito. É como o Paulo estava te contando; aquela coisa de marchar na rua, aquilo foi divertidíssimo. CK: E vocês sempre fizeram isso? Chris: A gente sempre fez isso. CK: Por exemplo, no caminho de Santiago, tinha a coisa espiritual, tinha a busca de uma... Chris: Porque o Paulo, ele foi com o guia. Eu não fui com ele, eu só fui depois para entregar a espada. CK: Então ali tem a viagem dele, mas não tem a sua. A sua, como foi? Chris: Eu primeiro fui para Madri, depois fui para o Cebreiro, para esconder a espada. E no final ele ficou três meses ou quatro meses em Madri. Eu voltei para o Rio, eu não fiquei. Mas aí depois eu voltei. Ele ficou uns seis meses, eu acho. Mas eu voltei a Madri 118 algumas vezes, quando ele estava lá. Acho que umas duas vezes. E numa dessas vezes que eu estava indo embora, que veio essa coisa do escritor, eu falei assim: “Ah, Paulo, você quer ser escritor, então escreve um livro. Eu também quero ser pintora, eu tenho que pintar”. Eu até achava engraçado, porque nessa época eu tinha um centro cultural no Rio, chamado Avatar, e eu fazia toda essa parte. Nós éramos em três sócios, a gente tinha uma livraria, tinha um bar, tinha várias coisas de consulta, tarô, acupuntura, não sei o quê. E toda essa parte das pessoas, eu entrevistava, para sentir se eu gostava ou não gostava. E sempre que saía uma reportagem do centro cultural, ou qualquer coisa assim, ou alguém me apresentava, eu era a artista plástica – que não pintava. CK: Ah, você não pintava? Chris: Não, eu não pintava. Porque eu trabalhava muito, saia de casa de manhã e só voltava três horas da manhã, uma hora da manhã, era direto, porque a coisa ficava direto aberta. Então eu trabalhava muito. Isso foi numa fase em que o Paulo estava viajando muito, a minha outra sócia era cineasta, mas não fazia filme nenhum, então eu ficava com isso na minha cabeça. E a terceira sócia era uma advogada, mas que não advogava. Hoje em dia ela é até juíza. E eu pensava: “Se eu quero ser artista plástica, eu tenho que pintar”. Eu pintava, eu até fiz uma exposição lá nessa época, foi a primeira. Mas já era em 90 isso, eu já tinha voltado do Caminho de Santiago. CK: E isso faz uns vinte anos. Então foi mais ou menos com quarenta, que foi na mesma época do Paulo. 119 Chris: É, o Paulo fala que eu imito ele em tudo! Eu penso assim: “Deu certo com o Paulo, então eu vou fazer igual”. Eu fiz o caminho com trinta e sete, trinta e oito anos, mais ou menos como ele fez, só que eu fiz sozinha. CK: Quanto tempo você levou? Chris: Trinta e oito dias. E depois que eu voltei, eu fiquei em Madri um tempo, sozinha, aí comecei a pintar. Aí quando eu voltei para o Rio, eu continuei com o Avatar. Tinha uma editora também – que o Paulo já não tinha mais a editora, a editora era só minha – e aí eu fiz uma exposição lá no Avatar mesmo. Lá tinha sala de exposição, era super legal o lugar. CK: Onde era? Chris: Era em Botafogo. CK: E foi uma frustração ou não? Chris: Não, acho que não. Ah, deve ter sido, mas não foi nada muito sofrido. Não que eu me lembre. Normalmente você tem muita dificuldade de distribuição dos livros, você tem que ter um distribuidor – e o meu esquema era totalmente diferente, era mais reembolso postal, venda pelo correio. CK: E você tem ideia de quantos exemplares do “Arquivo do Inferno” foram impressos? Chris: Não, não lembro. Deve ter sido impresso no máximo dois a três mil, eu acho – o que é bastante. E a gente vendeu, mas a gente vendia mais mala direta. CK: E você achava bom? Chris: Adorava. CK: Existe ainda? Chris: Não, não, acabou há muito tempo. CK: Mas o espaço existe ainda? Chris: Não. E eu falei para o Paulo: “Você quer ser escritor” – a gente estava andando em Madri, eu estava voltando para o Brasil – “Você tem que escrever um livro”. CK: Mas nessa época ele já tinha publicado “O Arquivo do Inferno”. Chris: Já, mas “O Arquivo do Inferno” ele publicou na nossa editora. CK: E não aconteceu nada. Chris: Não. 120 121 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Você leu e gostou? Chris: Eu gostei. Agora não me lembro mais das histórias, mas tinha várias coisas da nossa viagem, tinha muita coisa que a gente tinha conversado, que ele tinha passado para o livro de uma maneira diferente, mas era uma coisa que a gente tinha conversado na viagem. Mas eu realmente não me lembro, teria que reler. Nesse meio tempo teve o “Manual do Vampirismo”, que o Paulo também escreveu. CK: Ele não te assustava mais? Chris: Não me assustava mais, apesar que eu fiquei um pouquinho radical novamente, quando voltei para fazer os carismas da igreja, que eu adorava. Porque eu gosto muito dessa coisa de cantar, do Espírito Santo – eu acho que isso faz muito bem. CK: E não tinha um conflito para você? O inferno, o Vampirismo, o Movimento Carismático? Chris: Não, aí já não tinha mais. Graças a Deus que eu encontrei o Paulo e abri a cabeça. O Paulo já tinha feito um curso de vampiro. CK: Esses assuntos não mais te assustavam, mas te interessavam? Chris: Me interessavam. Agora a coisa que mais me interessava, que o Paulo tinha, que ele tinha trazido, que ele fazia coleção desde criança, era um policial. Ele li toda a coleção. Eu acabei com os livros, porque você vai lendo, vai dobrando a página. Eu li toda a coleção; uma delícia aqueles livros. Normalmente a gente não lê as mesmas coisas, às vezes eu leio algumas coisas que ele não lê. Em cinema 122 a gente tem muita afinidade, tanto que às vezes eu vou assistir o filme antes e já falo para ele “Você não vai gostar. Não adianta nem ir ver”. Apesar que de vez em quando a gente discute também. Mas a gente tem muita afinidade com cinema – eu sei o que ele vai e o que não vai gostar. Agora com livro, não. Eu prefiro ler romance, agora eu li toda essa coleção do Stieg Larsson – Você leu? É sensacional. CK: E ele gosta mais de biografias? Chris: É. Biografia eu adoro também, mas ele gosta mais de não-ficção. Ele teve uma fase que leu todos os livros de guerra, terrorismo, apesar que isso eu gosto também. Mas ele gosta mais de não-ficção. CK: E no livro “As Valkírias” ele fala muito do que vai dentro da sua cabeça. Aquilo é interpretação dele ou vocês conversavam muito mesmo? Chris: A gente conversava muito. CK: Você expôs tudo aquilo para ele? Chris: Devo ter exposto. CK: Você se reconhece ali? Chris: Me reconheço totalmente no “As Valkírias”. Logicamente eu não vou dizer cem por cento, porque tem todo o lado do escritor. Mas vamos dizer noventa por cento. CK: Mas partiu das conversas de vocês durante a viagem ou vocês conversavam muito durante a escritura? Chris: A gente conversava muito. No deserto ele ficou quarenta dias... 123 CK: Mas quando ele estava escrevendo você participou do processo? Chris: Não. Quando ele está escrevendo eu não participo, não. CK: Aí foi a interpretação dele, lembrando das conversas de vocês? Chris: Antigamente eu até lia. Enquanto ele estava escrevendo, eu lia. Mas depois eu não lembro quando parou isso, porque eu começava a dar muito palpite – “Não, chega!”. CK: E no “Arquivo do Inferno” e no “Manual do Vampirismo” você deu palpite também? Chris: Ele não escreveu o “Manual do Vampirismo”. Foi outra pessoa que escreveu no lugar dele. Ele não era nem um pouco a fim de escrever sobre o assunto, era uma coisa que ele já tinha passado, e tinha um... Uma pessoa que ele chama de “ex escravo”, que escreveu junto com o Nelsinho Liano, que é super nosso amigo, que mora no Acre agora. Nessa época ele viveu muito com a gente. CK: O Nelson? Chris: Nelson Liano. O “Arquivo do Inferno” o Paulo escreveu, o “Manual do Vampirismo”, não escreveu, e o primeiro livro que ele escreveu foi “O Diário de um Mago”, mas aí ele estava viajando, e ele escreveu em Madri, e também não era nada daquilo, também jogou fora. Ele não guarda manuscrito, ele joga fora. Ele guardou os diários, mas isso da fase da adolescência e infância. 124 CK: E ele tinha as anotações da viagem – pelo menos ele fala. Chris: Eu não sei. CK: No livro ele fala que sim. Chris: Então deve ter feito. Isso eu não sei realmente. Ele jogou fora. E quando ele escreveu o Diário de um Mago, que eu me lembre, foi no Carnaval. Ele foi muito produtivo no Carnaval, porque a gente não fazia nada no Carnaval. A gente foi para a casa da minha mãe – “Ah, vamos mudar de ares!” – eu acho que foi na casa da minha mãe que ele começou a escrever o “Diário”. CK: E ele escreveu rápido também ou não? Chris: Escreveu rápido. Mas não foi só durante o Carnaval, depois ele continuou escrevendo. Eu não me lembro. Eu sei que “O Alquimista” foram 15 dias. Eu sempre acompanho muito porque ele está escrevendo e eu estou em casa – ele não sai de casa. CK: E como faz? Ele não atende telefone? Como funciona? Chris: Nesses primeiros ele ficava em casa. Deixa tentar me lembrar, apesar que ele não trabalhava o dia inteiro, a gente saía para andar e fazer outras coisas. No “Vencedor Está Só”, eu não estava em casa, ele escreveu em Paris. E os outros livros, ele escreveu um em Saint Martin. Ele encontra as pessoas. Não tem muito essa coisa, não. Mas acho que nos primeiros – “O Diário do Mago” – a gente ficava em casa, ele só escrevia 4 horas por dia – precisa confirmar isso com ele – à noite normalmente, eu estava sempre perto, ou estava no mesmo escritório dormindo no sofá, ou 125 lendo, ou no quarto. Com “O Alquimista” também foi a mesma coisa, “Brida” também deve ter sido mais ou menos assim, porque eu também não me lembro. E no final, sempre eu leio. Eu não sei se “O Diário de um Mago” eu fui lendo aos pedaços. No início eu ia lendo. CK: E que tipo de palpite você dava? Chris: Eu só lembro de um específico, que foi o do “Rio Pedra”, que é uma experiência muito nossa, apesar de que eu não tenho nada ver com a Pilar, não, que eu não gosto de personagem feminino que fica enchendo o saco do cara, essas coisas, estou dizendo da experiência espiritual do livro, da Imaculada Conceição, essa coisa da energia, da Grande Mãe, é uma experiência muito nossa, que a gente viveu. Aquilo que você estava falando: você escreve o que você vive, e aquilo foi tudo vivido, entendeu? De sentir levitar mesmo, subir numa montanha, essa coisa toda, de entrar numa outra energia. Mas aí eu dei um palpite, ela se apaixona pelo personagem, e eu falei: “Por que que não coloca” – eu com esse meu lado de igreja, eu falei – “Eu acho que seria mais interessante, se o cara fosse padre”. Foi um comentário, assim. Esse aí ele trocou, mas às vezes eu falo e ele não troca, não. E tem outras coisas agora que eu dei palpite mas que agora eu não lembro. Mas nada muito... tão legal uma mulher ser correspondente de guerra”, a gente tinha conhecido a Christina Lamb, aí eu dei essa ideia de ser correspondente de guerra e ele colocou também. Umas coisas assim, entendeu? Ou eu digo que eu não gosto. Por exemplo, ele escreveu um livro, um que ele estava escrevendo antes do “Onze Minutos”, que ele queria escrever um livro sobre sexo, que eu não gostei. Ele estava no início, muito, e eu falei “eu não gosto desse livro, não”. O “Onze Minutos” acho que foram dois livros depois, mas era uma ideia que ele já tinha antes de escrever, mas ele não tinha encontrado o caminho. E o “Onze Minutos” é maravilhoso. CK: Voltando para “As Valkírias”, que é uma experiência explicitamente de vocês, que tem o nome de vocês e tudo – te incomodava de alguma maneira? Porque uma coisa é você se reconhecer no personagem, que não é você, que é uma correspondente de guerra, CK: Nada muito estrutural. Chris: Por exemplo, “O Zahir” é um livro que eu me vejo muito, me reconheço muito. Porque ele fala do casamento, então eu me reconheço muito. Ah, e o negócio da correspondente de guerra, eu falei “pô, ela podia ser uma correspondente de guerra – porque é 126 127 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu e outra coisa é ter ali explicitamente o teu nome, a experiência com o teu marido. Em algum momento vocês questionaram isso? Chris: Não, a gente nunca questionou isso, não. Mas eu tinha uma certa aflição, quando eu li a primeira vez eu – porque às vezes eu leio três ou quatro vezes o livro: quando faz, depois quando sai impresso. Nem sempre. Mas me dava uma certa aflição, de eu me reconhecer também. “O Zahir”, nem tanto, porque eu reconheço, mas é mais distante, porque tem algumas coisas que não tem nada a ver. Mas “As Valkírias” eu tinha muita aflição. CK: Os nomes de vocês, a descrição de vocês, é uma exposição imensa. Vocês chegaram a conversar, o Paulo chegou a consultar você sobre isso, era uma decisão conjunta ou foi um susto? Chris: Não, eu li. Eu fui lendo o livro. CK: Mas você já sabia antes que seria assim? Chris: É – ele começou, a gente tinha acabado de viver aquilo no deserto, e aí ele começou – não, ele antes das “Valkírias” ele escreveu “Brida”. Demorou para escrever. Ele deve ter começado, eu devo ter começado a ler. Mas me incomodava, sim. CK: Mas você não falava também? Chris: Não me lembro se eu falei alguma coisa, realmente eu não me lembro se eu falei “Ah, não quero”, ou qualquer coisa assim. Realmente, eu não me lembro. Nem devo ter falado, né? Mas me incomodava. Quando eu começava e ler assim e dizia “aqui sou eu”. Mas logicamente que tem o lado do escritor, né? 128 CK: Tem um norte da viagem – o assunto é sempre a questão espiritual. Naquela viagem que vocês fizeram, era sempre assim ou tinha um tempo para vocês se divertirem também? Chris: A gente se divertia muito no deserto. Quando eu fui para o deserto, quando o Paulo falou “ah, eu vou ficar quarenta dias no deserto”, eu disse assim “Ah, meu Deus, boring! Ai, isso vai ser chato. Deserto!”. Olha, o deserto é um lugar que tem a maior vida! Porque você vê que como é tudo muito deserto mesmo, muito árido, você vê a vida brotando da terra. Então a gente aprendeu, por exemplo, a gente andava sempre todos os dias, o lance que a gente andou sem roupa, a gente quase morreu ali. Então eu aprendi todos os nomes das flores do deserto, todos os cactos, que de vez em quando eu ficava emaranhada num deles também. Tinha um tal de cholla, que pegava que nem pompom, era a coisa mais linda! Então eu sabia todos os nomes das plantas do deserto, a gente encontrava muitos rastros de cobras – isso tudo a gente se divertia muito! Os coiotes, a gente encontrava coiotes, que eu não tinha tanto medo – lógico, eu ficava assustada, acho que eu até devia ter mais medo, que coiote não é cachorro, né? De vez em quando a gente ia para um motel daqueles de deserto, e eu tomava banho de piscina no deserto. A gente conheceu vários lugares super interessantes como o Deserto Pintado, que ele se chama Paleta do Pintor – então tinha tudo a ver comigo. Ele tinha a terra de todas as cores. Aí tinha um deserto que era todo de fóssil, que era o Joshua Desert. Aí tinha o Vale da Morte, que tinha todo um lago de sal imenso. Então foi maravilhosa a viagem, maravilhosa. Logicamente que a gente se divertia, na129 morava ao ar livre, transava ao ar livre. Eu me lembro que eu fiquei super queimada, eu só andava de shorts e tênis. Era total liberdade. Eu lembro que a gente voltou para uma cidade, eu não sei se foi Los Angeles ou São Francisco, e eu dizia: “Ai, eu não quero ficar aqui, eu quero voltar para o deserto!”, sabe? Você fazia pipi em qualquer lugar, era muita liberdade. Inclusive teve um dia que a gente estava no carro e subimos uma montanha e a gente ficou no final da tarde vendo o pôr-do-sol, aí a gente colocou umas músicas maravilhosas e ficou ali escutando as músicas. CK: Que tipo de música? Chris: A música que eu me lembro mais no deserto, que a gente escutou muito, porque estava fazendo muito sucesso – porque a gente escutava muito rádio também – que foi aquela “Don’ t Worry, Be Happy” à capela. Essa música marcou muito, ela estava fazendo muito sucesso na época. CK: Que ano foi isso? Chris: Oitenta e oito, oitenta e nove, quase noventa. E a gente ficava em cima do carro, no capô, olhando aquele pôr-do-sol, aquela coisa de total liberdade, aquele deserto imenso, maravilhoso, lindo, e a gente começou a ver umas luzes. A gente viu os discos voadores no deserto. E depois a gente viu também treinamento de guerra, que a gente achou que era disco voador. Numa outra cidade que era reserva militar. Eu lembro que o Paulo estava lendo um livro de ufologia também, e a gente sempre achava que sempre ia aparecer um disco voador. 130 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu 131 TÍTULO #05 Christina Oiticica, fevereiro de 2010 CK: Você falou do disco voador no deserto, como foi? Chris: Foi sensacional. CK: Foi a primeira vez para você? Chris: Eu não sei se foi a primeira vez, porque eu já vi lá em Copacabana também. Porque eu sempre tive muita vontade de ver e eu nunca tinha visto. E aí um dia o Paulo estava no jardim, nesse apartamento da Raimundo Corrêa – quando você for no Rio, você vai lá nesse apartamento, porque foi ali que o Paulo escreveu “O Diário de um Mago”. Então, o Paulo estava no jardim e eu estava assim na sala, e ele começou “Chris, Chris!” – eu sabia que era para ver um disco voador, sabe quando você tem aquela intuição? Eu saí correndo, aí vi aquilo – tsch, tsch, tsch, tsch, tsch! – no céu. Mas eu não sei que época foi essa. CK: E você já acreditava? Chris: Eu acreditava. A gente acredita em disco voador. Acho que existe, porque – não é possível, né? CK: Não, eu pergunto se você acreditava, antes do Paulo? Chris: Sim. Aquela coisa que você falou do “Eram os Deuses Astronautas”, eu li todos aqueles livros, sem conhecer o Paulo. CK: Você tinha esse pudor por ser muito católica mas... Chris: Eu tinha esse pudor, mas também eu não era careta. Eu tinha todo esse lado religioso, mas acreditava em disco voador. Acho que isso não tem nada a ver. Isso eu não sentia, não achava que era pecado! 132 133 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Eu achava que essa coisa de Espiritismo, de macumba, isso eu achava meio esquisito, sabe essas coisas? Eu sempre achei, achava – ficava meio assustada porque você mexe com umas energias que são diferentes, né? E você vê que existe mesmo, que incorpora, e logicamente que no nosso dia-a-dia também acontecem coisas que são totalmente fantásticas, e que as pessoas não acreditam, né, normalmente. As pessoas não acreditam – por exemplo, eu acredito nos santos, de rezar, de fazer promessa, fazer novena. Eu rezo sempre, todo dia, eu rezo um terço todos os dias – a vida inteira eu fiz isso, só quando eu esqueço – esqueço, não, eu durmo, porque eu rezo durante a noite, às 6 horas da manhã. Eu faço novenas, eu tenho feito novena agora direto, peço as coisas e consigo. Aí eu faço para o Paulo, ele me pede as coisas também, mas tudo na base da reza. Eu acredito, sim, em todas as manifestações, dos santos, dos anjos, que eu vejo. Eu não sou vidente, tem pessoas que são videntes, que tem esse dom da vidência, eu não tenho esse dom, mas eu sinto. Agora eu acho que eu não tenho medo hoje em dia – você tem que estar sempre vigilante nas coisas para você não ser tentada. Aquela coisa do demônio mesmo, porque tem certas coisas que você tem que ter o discernimento que não é coisa de Deus. Até, por exemplo, você ficar com medo. Às vezes acontece, eu acordo de noite morrendo de medo de alguma coisa e isso te trava na vida, isso te faz diminuir, então isso não é uma coisa boa, isso é uma coisa do demônio. Uma coisa simples, aquela coisa do dia-a-dia mesmo. Tinha uma época que eu acordava todos os dias de mau humor, e eu não sabia porque eu acordava de mau humor, as pessoas falavam comigo, e eu queria 134 bater nas pessoas, porque eu acordava de mau humor. Depois eu ficava ótima, mas acordava com um mau humor... Então eu fiz uma promessa para nunca mais ter mau humor, e nunca mais tive mau humor. Aí eu vejo – o tempo passou, eu de super bom humor de manhã – e eu falei “pô, você mudou... Ah, é porque eu fiz a promessa!”. Então, essa coisa do lado espiritual, ele está presente vinte e quatro horas do nosso dia, não tem uma separação. Então, por exemplo, quando eu leio qualquer livro, lógico que eu tenho que gostar do livro, tenho que ter afinidade com o livro, mas se eu acho que estou lendo aquele livro, naquele momento, é porque aquele livro tem uma coisa para me dizer, que é importante para o Paulo, que é importante para as pessoas que estão do meu lado, que eu tenho que compartir, e tenho que dizer “tem essa dica”. E até na minha própria atitude – qualquer coisa que eu faça, qualquer email que eu recebo, até mesmo de trabalho, de um amigo, de alguém que eu reencontre. Então acho que eu posso dizer que na nossa vida você ser religioso, você ter um caminho cristão ou você acreditar em alguma coisa, ou você ser da Umbanda, isso esta dentro do coração da pessoa, você não pode querer que a pessoa... CK: Não sente mais os preconceitos, hoje em dia, em relação a algumas coisas que você sentia antes? Chris: Sim. Eu posso não me identificar com determinadas coisas, tem certas coisas que você não se identifica. Mas a busca espiritual é individual de cada um. Eu acho que se você sente com o coração, porque você não pode enganar a Deus, até a você, você pode enganar, mas a Deus você não engana. 135 CK: O Paulo tem essa fama, essa história de loucura, mas ele é super certinho, né? A Mônica até me falou uma vez que vocês duas ficavam imaginando que, na verdade, o Paulo ficava numa biblioteca e inventou toda essa história para a vida ele. Chris: Exatamente! Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: você tem essa sensação? Esse Paulo que você conheceu, já tinha essa casa toda organizada, essa vida regrada, essa disciplina, ou você viveu um pouco da loucura com ele? Chris: A gente viveu um pouco da loucura. Viveu um pouco não, viveu muito na loucura. CK: E que loucura era essa? Chris: Eu embarcava junto. Até essa coisa de você ficar experimentando – por exemplo, essa coisa de psicografar é uma coisa que eu nunca tinha feito antes e que eu não faço mais. CK: Mas vocês faziam sozinhos, o ritual, ou tinha bebida, ou tinha alguma droga que levava vocês para outro estado? Chris: Nos primeiros anos de casamento, a gente fumava maconha, muito. Todo dia. Mas fumava, assim, de noite. Não era o dia inteiro. Às vezes até podia fumar durante o dia, mas o Paulo, ele é virginiano, é tudo [Chris faz com a mão um sinal que indica “regrado”]. Álcool não, álcool ele não toma. CK: Era maconha, a droga de vocês era a maconha? Chris: Sempre foi. Eu experimentei – mas o Paulo não tomou – eu experimentei ácido nessa época que a gente foi para Amsterdã. CK: Cocaína nunca? Chris: Não, cocaína, eu já tinha tomado antes, muito antes quando era garota, com treze, catorze anos – tinha um namorado que – maconha também, tudo isso eu já tinha feito antes do Paulo. Eu tinha todo esse lado religioso, mas não era nem um pouco careta, eu parecia certinha. A minha sobrinha diz assim, a Paulinha: “Tia, você era muito careta!”. Mas eu não era muito careta, não. Eu já tinha fumado, eu fazia Belas Artes, eu bebia muito. 136 137 CK: O que você bebia? Chris: Ah, eu bebia tudo, qualquer coisa eu bebia. Eu não era nem um pouco certinha, era super indisciplinada no colégio, tinha mil problemas no colégio, tanto que meus pais me emanciparam, eu detestava o colégio. Então eu fiz artigo noventa e nove no ginásio, eu estudei até certo ponto, até o segundo ginasial, aí o meu pai me emancipou com dezesseis anos, porque não tinha idade para fazer artigo noventa e nove, aí eu fiz o ginásio, aí fiz o clássico, que eu achava mais fácil. CK: Artigo noventa e nove? Chris: Era que você fazia tudo num ano, os quatro anos em um ano, mas você estudava por conta própria, tudo em casa. Aí depois você fazia a prova no Pedro II, no André Maurois, que eram escolas do Estado – que antigamente eram ótimos os colégios públicos – e aí você passava, tinha o diploma. Acho que eu fiz tudo num ano. Eu fiz o ginásio, o clássico e o vestibular para – eu era super atrasada em relação às minhas amigas. CK: E passou? Chris: Passei na frente de todo mundo. CK: Isso tudo com o apoio dos seus pais? Chris: Com o apoio dos meus pais. Eu dizia assim “Ai, não aguento mais o colégio. Eu não estou aprendendo no colégio”– porque eu não estudava. Eu dizia “Ah, eu não estou a fim de ficar no colégio, eu quero ser emancipada”. Aí o meu pai me emancipou e eu fiz o artigo. Então eu não tinha nada de certinha. 138 CK: Que tipo de problema você criava? Chris: Eu matava aula. Dizia que ia à aula e o colégio descobria que a gente estava indo numa piscina de um hotel. O pai de uma das minhas amigas era promotor público, e aí queria acionar o hotel, aí eu brigava com a diretora da escola, porque ela achava que eu ia muito maquiada, sabe? Eu tinha esse lado, de ir muito maquiada, de namorar muito os garotos, essa coisa toda, entendeu? CK: Mas não era que você enfrentava o professor ou fazia alguma outra coisa errada, era mais da sua personalidade? Chris: É. Era da minha personalidade mesmo, porque eu não combinava com aquilo, entendeu? De colocar bomba no banheiro, também. CK: Isso você fazia também? Chris: Isso eu fazia. Botava bomba no colégio, de brigar com os garotos, de sair na porrada. CK: Isso com que idade? Chris: Treze, catorze anos... Quinze... CK: E você ia vestida como para a escola? Tinha que usar uniforme ou não? Chris: Tinha. Mas eu estudei em colégio que não tinha que usar uniforme, que era o colégio americano, o Bennett, eu estudava no Bennett. A minha irmã fez todo o curso, todo mundo dizia “a sua irmã é tão diferente de você!”. 139 CK: E isso o Paulo acompanhava, ele tinha interesse pelo que você fazia também? Por esse mundo da arte, das exposições, os quadros? Chris: A gente dividia um pouco. Eu ia mais sozinha. CK: O ponto comum de vocês era o cinema? Ele tinha a literatura, você tinha a arte, e vocês se encontravam no cinema? Chris: Era o cinema e a literatura também. Eu adoro, sempre li. Eu li todos os livros – todos os livros! Porque quando você é criança, você tem em casa os livros do seus pais. Então você lê muitos livros de adulto, todos os livros de adulto. Eu li tudo quando eu era criança. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: A sua irmã mais... Chris: Velha. Porque eu ia muito desarrumada. Aí eu já ia muito desarrumada, suja, rolava no chão, jogava baleado. CK: Baleado? Chris: Baleado é um jogo que tinha uma argola desse tamanho, que você vai queimando... CK: Queimada. Chris: Queimada. Mas a gente chamava de “Baleado”. E eu gostava muito da aula de arte. Nisso eu era a melhor aluna. 140 CK: E pontos comuns de vocês? Filmes, por exemplo, que filmes marcaram a história de vocês? Chris: Ah, a gente foi ao cinema ver tanta coisa que a gente esquece! Mas o mais assim foi “Blade Runner”. É porque esse filme a gente tinha voltado de Amsterdã e tinha ácido. CK: Você trouxe ácido de lá? Chris: Foi. o Paulo não tomou, ele não tomava mais nessa época nada, nem maconha. CK: Mas também não achava ruim que você tomasse? Chris: Não, ele achava ótimo, porque era experiência, o que que ia acontecer, o que eu ia sentir. E eu tomei na praia até nessa vez – eu tomei umas três vezes só, eu não tomei mais que isso, não. A primeira vez eu tomei em Amsterdã, aí eu estava totalmente viajando, aí eu encontrei um cara, encontrei a polícia, porque 141 eu tinha feito amizade com a polícia, eu me lembro. Porque isso é outra coisa; a gente estava em Amsterdã, aí gente brigou, eu e o Paulo. Uma briga! Porque a gente brigava de montão nesse início de casamento. CK: E por quê? Chris: Eu não me lembro por que a gente brigou. A gente brigou, aí eu fiquei furiosa e aí eu falei “Eu vou embora”, aí eu peguei as minhas coisas, e peguei – eu estava com dinheiro, eu tinha dinheiro, mas eu não peguei o passaporte. E aí eu saí à noite em Amsterdã, e aí eu entrei no hotel – lógico, “E o passaporte?”. Ih! Um frio! Inverno. Eu disse “Meu Deus do céu, deixei o passaporte no outro hotel”. Aí eu falei “Onde que eu vou dormir?”. Aí o cara falou assim “ah, vai lá na polícia, que eles te ajudam”. Aí eu cheguei na polícia, e a polícia falou assim... CK: E isso você falava francês? Chris: Ai, não, eu falava inglês, mas – eu não sei como eu falava, mas eu falava. Eu não falo bem inglês, mas eu me viro, né? Eu cheguei na polícia e a polícia falou “Mas e o seu passaporte?”. Aí eu falei “Eu quero um lugar para dormir aqui”. Eles perguntaram de novo do passaporte. Eu falei “Está com o meu marido, eu esqueci”. Aí eles queriam ir no hotel pegar, porque eles achavam que o Paulo estava prendendo o meu passaporte, mas não era o caso, eu tinha esquecido mesmo. E o Paulo tinha dito “É, pode ir” – assim, “Vai, vamos ver”, se eu tinha coragem de ir. Mas eu nem estava vendo por esse lado, eu estava furiosa com alguma coisa – vou perguntar se ele se lembra. E aí eu fui dormir na polícia – falei “Não, não, amanhã eu pego, 142 não tem nenhum problema, ele não está prendendo o meu passaporte, é porque eu esqueci mesmo”. CK: Mas você falou que vocês tinham brigado? Chris: É. “Eu estou com dinheiro, mas eu estou sem o passaporte, então eu não posso ficar num hotel, mas eu tenho que dormir em algum lugar”. Aí eu dormi na polícia. E eles me deram comida. Então eu fiquei super amiga do pessoal da polícia. E no dia seguinte eu fui no banho público também, que lá em Amsterdã tinha aqueles banhos públicos, e liguei para o Paulo. E estava tudo ótimo já, aí a gente voltou. Essa é 143 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu uma grande qualidade: a gente pode ficar com raiva, na hora briga, mas cinco minutos depois, dez minutos depois – A gente nunca ficou um dia brigado. E quando eu tomei o ácido, eu me lembro o dia que eu tomei o ácido, foi exatamente no dia que eu encontrei o chefe de polícia. Eu estava viajando, e eu morrendo de medo: “Ai, meu Deus, eles vão sacar!”. CK: Mas eles não sacaram? Chris: Não, não sacaram. E eu tomei quando fui ver “Blade Runner”, e foi um filme que marcou muito, porque eu não sabia o que que eu ia ver. Aquele filme já é uma viagem, imagina você viajando de ácido! Acho que eu já vi dez vezes. O Paulo já viu várias vezes. CK: Você viu viajando, e o Paulo sóbrio. Chris: O Paulo sóbrio. Porque o Paulo, ele não toma nada há muitos anos. Nem lá em Amsterdã ele tomava, e isso já tem quase trinta anos, que ele não toma nada. O Daime mesmo ele nunca quis tomar. Lá nos Pirineus, esse meu amigo levou, as pessoas tomaram, o Paulo ficou só coordenando a coisa. A gente tinha muita coisa, assim, de fumo, mas não de cocaína, cocaína, não. Cocaína ele terminou ali com o Raul, em Nova York. Ele jurou naquele dia que não ia mais cheirar, que ele ia ficar viciado. Por exemplo, eu nunca gostei – eu tenho a maior sorte, acho que proteção mesmo – porque eu tive milhões de oportunidades, cheirei várias vezes, mas não era uma coisa que eu sentia prazer, sabe? Achava – todo mundo dizia “Ai, você sente um poder, você vai ficar ótima, o seu raciocínio –“. Eu não via nada daquilo, não era uma droga que eu gostasse. Então, eu cheirava, porque não 144 era nenhum preconceito moral ou coisa assim, mas achava que me deixava travada, sei lá. Então eu não fazia, porque não gostava. CK: Você falou do “Blade Runner”. Você lembra da conversa de vocês, o que o filme causou em vocês, ou não? Chris: Foi muito forte, porque a estética do filme era totalmente nova naquele momento, eu nunca tinha visto nada igual. E tem todo um lado espiritual muito forte no filme, é difícil verbalizar. Mas tem toda aquela coisa de Deus, do filho de Deus, de você querer ser igual a Deus, de todo esse lado espiritual muito forte. Agora, falando em lado espiritual muito forte, outro filme que eu vi, e que achei muito impressionante, e que tem toda uma coisa – nessa época passou vários filmes com a mesma linguagem – é o “Matrix”. Você viu o “Matrix”? Eu vi, e o Paulo estava em Portugal, até. Eu falei “Paulo, você tem que ver de qualquer jeito, porque você vai amar esse filme. Eu achei muito na nossa sintonia das coisas. Aquele mundo paralelo que você não vê, ele está ali, e que as pessoas não conseguem – e mesmo o Avatar agora, quando eu vi, toda essa coisa desse elo perdido, do contato do Homem com a natureza, toda essa energia. Eu acho esses filmes super importantes de você ver, porque eles te despertam. CK: “Blade Runner”, “Matrix” e “Avatar”. Chris: É, são filmes muito tecnológicos, e que na realidade, eles te passam uma mensagem espiritual. Lógico que tem milhões de outros filmes. No ano passado, teve o “Revolutionary Road” – que 145 é sensacional, né? Eu gostei muito do filme porque mostra aquela frustração das pessoas, que não têm coragem de fazer as coisas. CK: E você em algum momento sonhou com essa vida, essa família tradicional, essa casinha bonita, esse jardim florido? Chris: Ah, sim, já. Bem no início. Mas eu acho que sonhava com as duas coisas: de ter uma casinha, ter quatro filhos, aquela coisa super certinha, e sonhava também com, por exemplo, essa coisa da Revista Burda, você lembra? Eu ficava vendo aquelas roupas, aquelas modelos, aquelas coisas da Europa, né? De outro mundo que eu não conhecia, porque eu era muito garota, oito, sete anos, mais ou menos, então eu fazia todo um filme, que eu ia viajar, e quando voltava, voltava com aquelas roupas, aquela coisa de criança, fazia todo um filme na cabeça. Então tinha muito essa vontade de morar fora, de viajar. Chris: Eu tinha todo esse outro lado assim. E, por exemplo, essa coisa de não ter filhos, que a gente não tem filhos, isso foi uma decisão. Não foi uma decisão assim, “ai, a gente não vai ter filhos!”, lógico que não. CK: Você queria no começo? Chris: Não, nunca quis. Quando eu conheci o Paulo, eu tinha vinte e oito anos, e já tinha ficado grávida e tinha abortado, umas quatro vezes, eu acho. CK: Vocês começaram a namorar com que idade? Chris: Eu tinha 28 anos. CK: A primeira vez que você foi para fora foi com o Paulo ou não? Chris: Não, eu já tinha viajado com o meu pai. O meu presente de quinze anos foi ir para a Europa, eu não quis festa. Eu tinha toda essa coisa de viajar, adorava, né? Aí eu falei: “Não, eu não quero festa, quero viajar para a Europa”. Aí eu vim com meu pai, eu e meu pai. A gente veio para a Copa do Mundo, em Londres, foi em 66. Aí eu já tinha ido para a Argentina, já tinha viajado um pouco. CK: Mas vamos voltar para os seus sonhos com as roupas da Burda. 146 147 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Mas você conhecia ele desde os 18 anos? Foram dez anos até... Chris: É, dez anos. Mas a gente nunca... O dia que a gente se aproximou, a gente namorou, nunca teve uma paquera à distância, um charme. CK: E para você abortar, é por que você não queria ter filhos, é isso? Chris: Logicamente que eu tinha um namorado de uma vida inteira, e ele não tinha a menor vontade também, aí se ele não tinha, eu também não tinha, sabe assim? Lógico que foi sofrido. O primeiro que eu fiz foi horrível, o primeiro aborto, porque eu era muito garota. CK: E também essa coisa que você falou toda de “é pecado” Chris: Ah! Mas eu achava, e eu acho até hoje, que você ter um filho, colocar alguém no mundo, é uma responsabilidade muito grande, você tem que estar com muita vontade. Aí, quando eu encontrei o Paulo, eu tinha vinte e oito anos, a gente começou a viajar, a vida foi indo, a gente não parou um momento para dizer: “Ah, agora vamos –“. Aí, foi indo, indo. Eu acho que foi uma coisa super natural. A gente poderia ter tido, porque ele não tem, mas ele também já teve abortos, eu poderia ter tido, porque eu sei que posso ficar grávida. CK: Mas vocês curtem criança, sobrinho, filho de amigo? Chris: As minhas sobrinhas, adoro. CK: E o Paulo? 148 Chris: Ele tem mais jeito do que eu, mas eu tenho mais paciência. A gente tem oito sobrinhas mulheres, eu e ele. CK: E o Paulo tem jeito com criança? Chris: Tem jeito. Por exemplo, chega o Gabriel, ele começa a dar porrada no Gabriel. CK: Ele luta, ele rola no chão, para brincar com a criança ou não? Chris: Ele bate com um livro na cabeça do Gabriel. Você conhece o Gabriel, filho da Mônica? CK: Conheço. E a Mônica apareceu como? Porque ela e o Paulo também já se conheciam antes, né? Chris: O Paulo conheceu a Mônica, ele conheceu primeiro do que eu. Porque ele e um amigo nosso, eles foram num teatro ou café, alguma coisa assim, eu não sei muito bem, eu sei que tinha um negócio de teatro e a Mônica estava lá. Então eles se conheceram ali, a Mônica tinha lido acho “O Diário de um Mago” e a partir dali eles ficaram amigos. Aí a Mônica resolveu vir morar na Espanha. CK: Vocês já estavam aqui? Chris: Não, a gente morava no Rio. Isso tem tantos anos. E aí ela foi para Madri, depois foi para Barcelona, e foi aí que resolveram ela representar o Paulo na Espanha. Era uma experiência. E ela estava morando lá e era uma coisa de não querer voltar, queria ficar lá. Então eu me lembro que quando eles abriram a Sant Jordi [agência literária], a Mônica e o Eduardo, era uma pasta dentro de um armário na casa dela. E 149 a Mônica começou a procurar uma editora, aí saiu “O Alquimista”. Eu me lembro que nessa época eu fiquei em Madri, ela foi para lá também, e a gente fez divulgação, como eu fiz no Brasil. CK: E vocês escreviam um para o outro? Tem alguma carta, ou alguma coisa que ele tenha te dito por escrito? Chris: Que eu me lembre não, carta não tem. Essa fase a gente não tem, a gente falava mais no telefone, fax, como ele falou ontem. CK: Mas e no começo de namoro? Chris: Eu não sei se o Paulo tem alguma coisa guardada, porque essas coisa,s o Paulo que guarda. CK: E você desenhava para ele? Chris: Ah, desenhava para ele, fiz um quadro dele, alguns quadros... CK: Vocês têm isso ainda? Chris: Eu tenho alguma coisa na casa da minha mãe. Eu tenho um quadro que eu fiz para ele, que é “Golden Dawn”, a “Aurora Dourada”. Que a gente nessa primeira viagem, a gente esteve nuns lugares na Irlanda, com escritores irlandeses, que marcaram muito a vida do Paulo. CK: E vocês saíam com um roteiro de viagem planejado? Chris: Não, a gente veio para Londres, porque o Paulo já tinha morado em Londres. Ficamos um pouco em Londres, aí fomos para Bonn, porque a minha irmã morava em Bonn, e de lá a gente foi para todo o Leste. Chris: Quase um ano. Aí a gente comprou um Mercedes, na Iugoslávia, voltamos para emplacar o Mercedes, que era de uma embaixada e custou baratíssimo – era mil dólares, eu acho – ótimo! Porque era de uma embaixada indiana e eles não podem vender para as pessoas que moram no país, então desvaloriza demais o carro. E era um carro em super bom estado, a gente rodou a Europa inteira e no final a gente doou em Portugal esse carro, para uma associação de cegos, foi uma promessa que o Paulo fez. Aconteceu um milhão de coisas nessa viagem, inclusive o encontro com o mestre dele, depois em Amsterdã. Amsterdã foi uma fase maravilhosa, a gente ficou lá. A gente brigou! A gente ficou uns dois ou três meses em Amsterdã. A gente morava em um hotel super antigo, tinha um quarto maravilhoso – era baratíssimo, era tipo bed and breakfast, mas era lindo o quarto. E eu ficava desenhando. Desenhava, desenhava, desenhava. CK: Você tinha cadernos, eram folhas soltas? Chris: Eu tinha um bloco. Eu fazia muito à nanquim nessa época, porque é mais fácil de você viajar com uma coisa assim – aquarela, né? Eu desenhei muito o hotel, eu nem sei onde estão esses desenhos, deve ter alguma coisa na casa da minha mãe, alguns eu dei também. Tinha um lugar que a gente ia, mas o Paulo não ia comigo não, ele dizia que não ia de jeito nenhum. Era um clube, e que tinha uma sauna, e todo mundo ficava nu na sauna. Aí ele dizia: “Eu, com você, não vou de jeito nenhum!”. Mas aí, a gente ia separado. Mas era uma experiência que a gente nunca tinha feito. Era muito legal, muito legal. A gente fez CK: Quanto tempo? 150 151 algumas amizades, inclusive teve um português, umas pessoas que moravam lá, que fizeram uma proposta, como a gente tinha esse carro imenso, de fazer um carregamento de heroína. Imagina! Aí, eu falei: “Nem pensar!”. CK: É isso que eu ia te perguntar: vocês entraram em alguma roubada assim? Chris: [Para Paulo] Paulo, estou contando toda a sua vida aqui! ... [voltando à entrevista] Com Heroína? Nem pensar! Era totalmente contra os meus princípios, nunca eu experimentei heroína porque realmente era muito barra pesada, porque você via aquelas pessoas lá em Amsterdã – mas eu acho que isso não era da heroína, era da AIDS que as pessoas ainda não conheciam – todas com feridas pelo corpo, no local da agulha, era muito forte. Aí a gente foi para o norte da Europa com o carro, eu sei que a gente foi perseguido, desconfiaram de alguma coisa, desmontaram o nosso carro todinho na fronteira com a Suécia, tanto que a gente nem chegou a Estocolmo. Eu não conheço Estocolmo, vou conhecer agora. A gente depois foi direto para a Noruega, e não teve mais nada. E aí o carro foi todo desmontado. Eu tinha um pouco de haxixe no bolso do casaco. CK: E não pegaram? Chris: Não, eles não me revistaram. Aí eu saí dali e peguei o haxixe – era um nada, era uma caixa de fósforos – aí eu joguei fora, e pensei: “Nunca mais vou viajar com nada”. Aí nunca mais mesmo. Acabou. Porque é super perigoso isso, né? 152 CK: A gente já falou de filme. E música? Das músicas do Paulo, tem alguma que você gostava especialmente? Chris: Eu gosto muito de “Gita”, a “Ave Maria das Ruas”, você conhece? É linda, né? “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”... Eu gosto de quase todas. CK: E tem alguma que marcou a história de vocês, de alguma maneira? Que tem a ver com vocês? Chris: Que eu me lembre, não tem nada, não tem nenhuma música. Acho que é mais cinema mesmo, porque música a gente escuta, mas você vê que aqui em casa a gente não fica escutando música, né? Mas a gente escutava muita música. O Paulo canta, o Paulo toca violão. CK: Ele toca ainda? Chris: Não. Mas ele tinha violão. CK: E você gostava de ver ele tocar? Chris: Adorava, a gente cantava, eu adoro cantar também. Em casa, de noite, eu e ele. CK: E ele se apresentando, você nunca viu? Chris: Não, só uma vez, que teve um show do Raul no Canecão, que ele subiu no palco e cantou “Sociedade Alternativa” com o Raul. Aliás, foi o último show do Raul, eu acho. É, aparece nesse documentário [“Raul, O Início, o Fim e o Meio”], eu acho, ele cantando. O Paulo tem uma voz ótima, ele toca violão. Ele detesta dizer que toca vilão, porque acha que toca super mal. E à noite a gente ficava tocando violão e cantava. 153 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: E você achava que ele devia se apresentar, devia cantar, ou não? Chris: Não, porque aí a gente não estava mais nessa coisa da música, era a coisa do livro mesmo. CK: Mas no começo ainda era a coisa da música, não era? Chris: Não, ele já tinha saído. Eu conheci o Raul... CK: Porque depois da prisão teve um rompimento mesmo? Chris: Teve o rompimento. Aí depois o Raul veio morar no Rio, quando ele casou com a Kika. E aí o Raul 154 ia lá em casa, tudo. Era uma graça, super simpático, mas já não tinha mais nenhuma ligação assim mais profissional. CK: Mas ainda tinha um afeto, ou era o Raul que procurava mais o Paulo? Chris: Era o Raul que procurava mais. Aí vinha, foi lá em casa. Eu fui uma vez, não com o Paulo, eu fui até sozinha na casa do Raul. A filha dele tinha nascido, e eu fui visitar o bebê. Uma noite a gente saiu para as noites cariocas, eu, o Raul – o Paulo não foi, não – a Kika e mais uma outra pessoa, que até o Raul brigou, sabe aquela coisa do cara que foi ídolo e esta na deca155 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu dência? Então alguém xingou, sabe aquela coisa não legal, muito triste? Porque o Raul teve essa coisa, foi bem antes da morte dele. É aquela coisa do artista... Ele teve uma época de muito sucesso, e depois teve toda essa decadência muito forte, né? E que agora a redenção através da morte dele, do trabalho que ele fez, maravilhoso, da pessoa mesmo. E eu me lembro que foi muito duro nessa noite que a gente saiu, porque foi uma coisa assim: “Ah você não é mais nada!”. Eu não me lembro exatamente. CK: Alguém desconhecido? Chris: Sim. Alguém desconhecido que estava lá, agressividade gratuita. Paulo, a gente tem alguma música nossa? Que te traga alguma recordação? Chris: Eu sei o que ele está pensando. Então, por exemplo, se alguém fala alguma coisa eu já digo: “Ih, nem adianta falar isso para ele, porque ele vai achar horrível”. Eu conheço legal. Às vezes, me engano. Acho que ele vai achar horrível e ele acha normal. Mas normalmente... Eu conheço muito assim, mas isso é convivência, né? São trinta anos de convivência. E eu tenho essa coisa de querer entender muito o outro, não só o Paulo, mas os amigos, a família, então eu mergulho. Eu tenho espírito de detetive. Eu descubro tudo, é impressionante, até na internet – eu descubro tudo. CK: O que você quer e o que não quer. Chris: Exatamente. É isso. Paulo: Uma música nossa? “Em vez de você ficar pensando nele...”. [Risos gerais]. Não, a gente não tem nenhuma música nossa. CK: E tem mais alguma coisa? Chris: Não. Quer dizer, deve ter milhões de coisas, mas é muita coisa e eu tenho uma memória horrível... Chris: Ah, é, eu coloquei essa música na secretária eletrônica. Todo mundo ficava assim, achava que eu estava achando um meio para irritar o Paulo, mas eu coloquei porque eu achei super legal. E o Paulo: “Quê que é isso? O quê que é isso?”. Eu falei: “Ué, legal essa música para colocar na secretária eletrônica”. CK: Alguma cena especial que você se lembre? Chris: Deixa eu pensar, porque eu esqueço, eu sou horrível para lembrar das coisas. Eu falei para o Paulo que eu tenho que ler todos os livros dele de novo, porque eu já esqueci tudo! ... Aí depois vou ficar pensando “Ai, meu Deus, esqueci de contar aquilo!”. [Paulo acha graça e se diverte cantando “Pense em mim”, de Leandro e Leonardo.] CK: o Paulo falou ontem que você é quem melhor conhece ele, conhece os defeitos dele, as fraquezas dele... 156 157 TÍTULO #06 Paulo Coelho, fevereiro de 2010 In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur, venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam. PC: Sábado. Começo com a frase do Rhett Butler, no “E O Vento Levou”: “Frankly, my dear, I don’t give a damn”. Ok, faça as perguntas. CK: Você não dá a mínima para quê? PC: Eu só estou citando “E O Vento Levou”. CK: Eu reparei que na primeira parte da nossa entrevista, no carro, eu não sei se você reparou, que você usou as mesmas palavras para se referir às mulheres e à morte. Você já reparou nisso? PC: Não. Alguma associação? Não. Como eu não vejo a morte como uma coisa feia, eu acho que... CK: Mas no começo, te assustava? Depois tem o fascínio e depois tem a paz. Foi esse ciclo que eu vi você falando com relação às duas coisas. PC: Pode ser. Isso se chama interpretação psicanalítica de uma frase. Pode ser, pode ser, pode ser. Estou de acordo, não questiono. CK: Não questiona? PC: Não. 158 159 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Nem tem nada para acrescentar? PC: Não. CK: Outra coisa que a gente conversou é que você já quis e desejou o filme e que já não quis, e você ficou no raso para me explicar isso. Eu quero saber o por que quis e o por que não quis. PC: Porque eu quis? Foi um impulso, porque eu gostei do “2 Filhos de Francisco”. Porque eu deixei de querer uma época, foi porque eu achei que talvez ainda fosse muito cedo para fazer esse filme. E porque eu tornei a mudar de ideia... É porque eu gosto muito da música do Raul: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante”. CK: Então não tem nada claro para você, consciente, de que papel tem esse filme na sua vida? Alguma coisa que você espere disso? PC: Nada, nada, nada. Não, eu espero o melhor. Sinceramente, eu espero o melhor. Sempre espero o melhor. CK: Mas não tem uma missão específica? PC: Mas nada na minha vida foi feito assim, bolado para ter uma... Esse negócio que a gente falou agora, recente que aconteceu: a capa do meu livro tem um erro de grafia, aí dá uma repercussão. Óbvio que as pessoas vão tomar mais consciência de que esse livro existe, eventualmente vão comprar. Mas não é uma coisa que eu bolei: “Faz aí um erro de grafia na capa”. Eu vou vivendo com a minha coerência, e muitas expectativas, evidentemente, mas não sabendo que isso é uma bênção ou isso é uma maldição. Ninguém sabe! CK: No “Alquimista”, você fala da sorte de principian160 te e da prova do conquistador. Você tem claro na sua vida, como escritor, que momentos foram esses? PC: Eu acho que o “Alquimista” foi a prova do conquistador. Quando todo mundo desistiu de publicar, eu disse: “Não vou desistir”. Ou melhor, “vou lutar até o final”. Mas isso pode estar ocorrendo agora, aliás pode não estar ocorrendo agora. CK: E a sorte de principiante? PC: Eu acho que é quando Deus põe no teu caminho... Bom, como dizem, profissionalmente na minha vida foi publicar “O Diário de um Mago”, e ter o livro vendido, e aí ter o boca-a-boca, e ter tido um espaço na imprensa que foi uma amiga minha que deu, a Regina Guerra, que me chamou de “Castañeda de Copacabana”. Essa matéria e um “Sem Censura” – ali foi a sorte de principiante. Foi quando eu me agarrei com todas as forças. Porque também, a sorte de principiante, você tem que saber se agarrar nela, você dizer “que legal, que isso aconteceu comigo, agora eu vou aproveitar”. Então a sorte de principiante foi ter um editor para o meu primeiro livro e eventualmente ter um editor para um livro que já não tinha funcionado, que é “O Alquimista”. CK: E ontem você falou que você já cumpriu a sua lenda pessoal, e que precisa ir até o fim. PC: Eu já estou na minha lenda pessoal, eu não disse “eu já cumpri”. E já que eu estou na minha lenda pessoal, eu vou até o fim. A minha lenda pessoal era ser escritor. CK: E o que é o fim? PC: A morte. 161 Existem derrotas, mas não existe o sofrimento. Um verdadeiro guerreiro sabe que ao perder uma batalha está melhorando sua arte de manejar a espada. CK: E você disse que a morte hoje é sua aliada, é o que te provoca a fazer as coisas. Você tem claro que arco é esse, desde a morte que tinha cara de terror, de desenho animado, com a foice até essa agora, que você chama de melhor amiga? PC: É que nós somos educados a negar a morte, isso é uma coisa natural, é uma coisa do ser humano. É o chamado “instinto de sobrevivência”, isso vem desde, sei lá, desde que o primeiro organismo nasceu. CK: Você comentou ontem sobre o atropelamento daquele menino em Araruama. Foi o seu primeiro contato com a morte? PC: Não, porque ali eu não vi, eu não estava muito consciente do que estava acontecendo. Acho que o meu primeiro contato que eu disse “eu vou morrer”, foi no sequestro, quando o cara botou a arma na minha cabeça. CK: Sequestro na prisão? PC: Não, não, no sequestro. Na hora em que ele me tirou do táxi, botou a arma na minha nuca, e eu olhei aquele Hotel Glória e disse: “Putz, morri”. Eu achei muito injusto, porque é injusto morrer aos 26 anos. 162 163 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: E de alguma pessoa próxima, ou medo de morrer, de perder alguém? PC: Eu já tive. CK: Mas você lembra qual foi o primeiro momento? PC: Se eu tive medo de perder alguém? CK: Não, que você perdeu alguém e teve que lidar com aquilo, com aquele sentimento? PC: Foi o meu avô. CK: E você se lembra como foi? PC: Lembro sim. Eu perdi o meu avô, chorei muito, fui no enterro e depois fui no cinema. Estava casado com a Vera Richter. E aí alguém me viu no cinema, que estava no enterro do meu avô também, e eu me senti muito culpado de estar no cinema. Depois, não. Foi o meu primeiro contato próximo com a morte. Não, teve o meu avô lá em Belém também. E aí, “porra, eu não vou poder ir para os meus bailes de Carnaval”, porque foi na época do Carnaval. Eu nunca tive, assim, esse apego. Por muito tempo: “Ah, a minha mãe vai morrer”. Depois passou essa fase. CK: Então essa coisa de buscar a vida eterna da alquimia, não tem a ver com o medo da morte e nem com nenhum momento específico da sua vida? PC: Não, não. Você está fazendo uma análise psicanalítica. Não foi de jeito nenhum motivado pelo medo da morte, foi pela curiosidade, pelo fascínio. CK: E você não associa essa curiosidade, esse fascínio, a nenhum momento da sua vida, uma cena específica? 164 PC: Não, a própria minha vida, que é uma vida cheia de curiosidades e de fascínios. CK: Foi assim. PC: Foi, e é. Essa coisa da Internet me fascina e me deixa muito curioso. Gasto um tempo enorme quando necessário. CK: Você disse também no “O Alquimista”, que tudo na vida tem um preço. Qual foi o preço que você pagou? PC: Você nas suas perguntas, você está sendo muito “acabou aqui, acabou aqui e acabou aqui”. Não é “o preço que eu paguei”, é o preço que eu estou pagando, e que pagarei a minha vida inteira. Eu comprei essa camisa na liquidação do exército suíço, e é uma camisa que me cabe, e poderia ser uma camisa justa, o preço era o mesmo, era só aquela coisa de escolher uma camisa que te cabe ou uma camisa que não te cabe. Então, o preço que nós pagamos sempre na vida é o preço daquilo: do terno, da camisa. Só que tem uns preços, uns produtos que você compra, que você diz: “Bom, gastei dinheiro numa coisa boa”. E tem outros produtos que você compra que você diz: “Que droga, porque que eu fui comprar isso?”. Efetivamente é assim. O preço que eu paguei, o preço de abstração, o preço abstrato, é, digamos assim, foi durante toda a minha vida a reação do sistema. CK: Que também é um conceito abstrato. PC: Sem dúvida nenhuma. CK: Então o que importa é o sistema abstrato ou são as pessoas mais próximas? 165 PC: Deixa eu completar o meu raciocínio. O preço que eu paguei foi esse, uma profunda reação do sistema abstrato. Eu paguei com muito prazer. Eu prefiro mil vezes pagar o preço da reação do sistema estabelecido do que de participar do sistema estabelecido. CK: Importa mais o sistema abstrato ou quem está próximo de você? A sua amiga ligar e dizer que não gosta de quem você é na sua biografia, por exemplo? PC: Não, deixa de ser amiga na mesma hora. Volta para o sistema abstrato. Ah, sem dúvida. CK: Deixa de ser sua amiga. Ela é imediatamente eliminada. PC: Mas foi imediatamente eliminada. Está expulsa do meu reino. Ah, não gostou da minha biografia? Sai do meu reino. Aí depois, é claro, quer voltar, manda presente, manda flores, mas aí não tem. Sem ódio, mas sem perdão. CK: E sempre foi assim, para você? PC: É possível que tenha sido um aprendizado, mas como eu te falei várias vezes durante essa entrevista, eu não lembro muito do meu passado, eu só me lembro como sou agora. Então se você pergunta ao mestre de Aikidô “mas você deu esse golpe porque é um aprendizado?”, é óbvio que é um aprendizado. Mas agora que a coisa está tão incorporada a mim, eu acho que eu sempre fui assim. Então eu não lembro quando foi que aprendi. Não tem aquela coisa que eu acho que você vai precisar para a dramaturgia: esse ponto aqui eu aprendi isso. Isso você vai descobrir. 166 CK: A gente falou também de qual a diferença entre respeitar o tempo e deixar o tempo passar. Entre respeitar o destino e deixar a vida passar. Se tudo está escrito, qual é o seu papel, o papel de cada um nisso? PC: Eu já te expliquei no negócio do garfo. É achar o que é o seu destino, qual que te dá entusiasmo. CK: E não tem um manual? PC: Tem, o teu coração. Você sente quando você está entusiasmado para fazer alguma coisa ou quando você está fazendo aquilo por obrigação. Às vezes a vida que você escolheu te obriga a fazer algumas coisas que você não está com vontade, mas você sabe que está fazendo aquilo por algo que você escolheu. Como viajar... Eu não estou num período de viajar, mas às vezes eu tenho que viajar. E viajo porque eu sei que é importante para o meu trabalho; sacrifícios necessários. CK: Você falou que faria um tratado sobre sorte e coincidência. PC: Eu falei isso? CK: Nos seus livros. Eu acho que foi no “O Alquimista”. Qual seria hoje a sua definição para essas duas palavras? PC: Eu acho que hoje eu não faria esse tratado, não. Eu acho que usaria uma frase de outra pessoa, que eu não sei quem disse, mas que diz que “sorte e coincidência é aquilo que acontece na tua vida quando Deus não quer assinar”. Na verdade é uma coisa que aconteceu porque tinha que acontecer de uma ma- 167 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu neira muito discreta, vindo da divindade. Se bem que hoje em dia eu acredito muito pouco em coincidência. E trocaria a palavra sorte por bênção. CK: Qual é a sua definição de amizade? Você fala muito da lista negra, da lista branca, dos amigos, dos inimigos, quem está no seu reino, quem não está – é preto e branco assim? PC: Um pouco. CK: E você tem amigos íntimos? PC: Amigos íntimos pelos quais eu faço tudo. Eu tenho muito poucos inimigos, veja bem, inimigo é a pessoa que eu dou a honra. A pessoa que diz “eu vou te bater” – Ah, eu não vou nem dar bola, porque eu não vou aprender nada. Aí tem um cara que diz “eu vou te bater” e eu digo “com esse eu vou brigar, porque esse, mesmo que ele me bata, eu vou aprender alguma coisa”. Agora, eu vou também partir para matar. E aí esse é um inimigo, será sempre um inimigo, mas inimigo é eleito por mim, e não é qualquer pessoa que me insulte, que me fale mal. CK: Não é qualquer pessoa que vai conseguir essa importância. PC: Não. Seguramente os amigos são aqueles que sempre me apoiaram. Também não existe nenhum critério de limites, para esses eu faço qualquer negócio, mesmo que “porra, sabe? Ai, que saco! Eu tenho que ir para Saint Maurice, mas eu vou, porque é meu amigo”. Eu tenho essa lealdade como um dos valores clássicos e importantes na minha vida. E sua próxima pergunta é: quais são os meus valores? 168 169 CK: Não. Você falou que foi uma coisa que te marcou muito, o momento da prisão, na relação com o Raul, que era alguém muito querido para você. Mas você não cortou ele da sua vida, né? A Chris falou que vocês chegaram a voltar a conviver, que ele ia na casa de vocês, que ela foi ver a filha dele que nasceu. Como é que você lidou com isso? PC: Profissional. CK: Profissionalmente. Não era mais uma ligação emocional? PC: Não, não. A ligação emocional acabou no dia que eu fui solto da prisão e vi que ele tinha saído fora. CK: E você entendeu que ele tinha saído fora? Você buscou uma resposta para isso, vocês conversaram ou você decidiu sozinho e cortou ele? PC: Não, não. Eu procurei ele, óbvio. Mas ele já estava em outra, estava com medo, enfim. Desculpo, mas não esqueço. CK: Mas você desculpa? PC: Claro. Mas aí a partir daquele momento, eu disse: “Não tem amizade mais”. Um cara que me deixa sozinho nessa situação, eu nunca mais vou ser amigo. Posso continuar trabalhando junto, mas é uma relação profissional. Enquanto que duas pessoas que eu não tinha nenhuma relação, que era o Roberto Menescal e a Hildegard Angel, mostraram uma solidariedade que eu não esperava, e por esses eu faço hoje em dia qualquer coisa. Qualquer coisa. CK: Aí tem uma outra frase sua que diz o seguinte: “ É preciso amar o deserto e jamais confiar inteiramente 170 nele”. Você sempre foi desconfiado assim? Você sempre se protegeu? PC: Não, não. Porque eu entro no deserto. Se proteger é não entrar no deserto. Então eu entro no deserto e vou. Agora eu não vou ficar, porra, achando que aquilo ali é Genebra, porque não é. CK: Você tira a roupa e sai andando... PC: Eu já fiz isso uma vez, mas quase morri. Mas era ignorância mesmo. Eu e ela [a Christina]. Mas eu entro no deserto, sabendo que estou entrando no deserto. Agora, eu não deixo de entrar no deserto porque ele é um deserto. CK: Essas foram as perguntas objetivas que surgiram nesses últimos dias. PC: Sabia! Eu pensei: “Vou dar respostas objetivas e brilhantes”, coisa que eu consegui. CK: Agora eu só vou te pedir uma lista de supermercado. Perguntei para a Chris sobre os filmes, ela me falou de “Blade Runner”, que foi importante para vocês. Se você tivesse que pontuar a sua vida em filmes que tiveram alguma importância, ou que te marcaram de alguma maneira, que filmes são esses? PC: O primeiro que me vem à mente é “Era Uma Vez no Oeste”, onde eu vejo tudo aquilo que eu admiro num homem: a busca, a vingança, a conquista, o amor. Eu acho que ali, a habilidade, a inspiração, o desbravamento. Em seguida, acho que é “Laurence da Arábia”, sabe? É o sujeito que se transforma pela circunstância. E que tem suas voltas, suas idas, sua vida, e no fim é uma causa perdida, ele vê que aquilo tudo 171 vai ser manipulado pelo sistema. Mas eu acho uma história muito bem contada, muito bonita plasticamente. Se David Lean estivesse vivo, eu pagava do meu bolso para ele dirigir o meu filme, esse daí. Se você quer a coisa impulsiva, seriam esses dois. CK: E a coisa racional? PC: Aí tem zilhões de filmes e diretores que eu gosto, mas nenhum que descreva a minha vida ou que reflita a minha alma. CK: E fora David Lean tem algum outro diretor que te emocione como ele? PC: O Sergio Leone é um diretor que me emociona muito, o David Lean é um diretor que me emociona muito, o Scorsese me emociona algumas coisas, o Milos Forman tem coisas boas, mas não é tudo. Incondicional acho que seria Leone e David Lean. Aí vamos para o segundo time: Clint Eastwood – eu adoro tudo o que ele fez, acho que aquele filme que ele ganhou o Oscar, “Unforgiven”, é maravilhoso, é um clássico. Tem filmes que eu não gosto tanto, mas é um grande diretor. Buñuel é um cara que tem coisas que eu adoro e tem coisas que eu abomino. Mas eu sempre pagaria para ver um filme do Buñuel, mesmo que eu fosse abominar. Eu acho que são esses mais ou menos os meus ícones do cinema. CK: E na música? Qual a música que você mais gosta? PC: Uma música que sintetiza a condição humana: “All You Need is Love”. É a música que sintetiza tudo – e toda a obra dos Beatles, e tudo que você faz. Não é a música que eu fico botando aí, mas é a música que condensa tudo. Aliás, é um título que condensa tudo. 172 CK: E das que você fez, das que você escreveu? PC: Aí a gente entra na abstração dos filhos – aí eu gosto de todas. CK: Mas não tem uma que tenha te marcado mais? PC: Não. Teve uma que fez mais sucesso que foi “Gita”, como “O Alquimista” fez mais sucesso como livro, mas não quer dizer que... CK: Não quer dizer mais para você do que as outras? PC: Não, não. Eu sou mais agradecido, talvez, ao resultado. CK: Ao resultado, mas não que você goste mais dela. 173 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu PC: Não. Tem músicas que eu fiz sem gostar muito, mas eu nem me lembro. Mas normalmente as músicas que fizeram sucesso, todas foram feitas com muito amor. Não é verdade com os livros. Todos os livros eu fiz com muito amor, mas nem todos fizeram sucesso como eu gostaria. CK: E dos livros, algum te marcou em especial? PC: Nenhum também – quer dizer – mais grato ao “O Alquimista”, porque me abriu tantas portas. Mas todos, todos, sem exceção – talvez com uma exceção, que é “O Demônio e a Senhorita Prym”, mas todos os outros eu me botei inteiro. CK: E livros de outras pessoas? PC: O “Trópico de Câncer”, do Henry Miller, “Sherlock Holmes”, Borges, completo – é um autor que eu releio, um dos raros autores que eu releio – Jorge Amado, George Orwell. CK: E poesia – é uma coisa que te emociona? PC: Não hoje em dia. Tem muitos poemas que eu gosto, tem poetas muito importantes para mim. No Brasil, eu diria que Manuel Bandeira é o meu poeta preferido, fora do Brasil é o Borges. E aí tem poesias que me tocam mais do que outras, mas não é uma coisa que hoje em dia eu leio com muita freqüência não. Eu já li muito, e também acho que a poesia perdeu completamente a sua essência. Hoje em dia a poesia é a letra de música. Se as pessoas gostam ou não gostam, é irrelevante. Mas a poesia virou a letra de música. Nesse caso um grande poeta é o Chico Buarque. Tudo o que ele fez é bom. Gilberto Gil... 174 CK: Do Chico e do Gil, tem alguma que você goste muito? Qual seria a sua trilha? PC: Do Gil, é difícil – eu gosto de quase todas. Ah, perdão! Roberto Carlos também é um cara que eu adoro, adoro. CK: E depois daquele episódio da proibição da publicação da biografia dele, que você criticou publicamente, você teve alguma relação com ele diferente? PC: Não, não. Eu não tive nem antes e nem depois. Roberto Carlos está acima de qualquer coisa. CK: E você ouvia muito Roberto Carlos? PC: Ouvia muito. CK: E tem alguma música dele que seja mais importante para você? PC: Todas. Até um determinado momento, mas todas. “Quero que Vá Tudo Para o Inferno” é uma música que marcou muito. E além do mais, Roberto Carlos era aquele cara que você tinha que gostar escondido. E eu não gostava escondido, eu escancarava mesmo, e foi uma das coisas que seduziu a Vera, porque eu estava num grupo, e falei bem do Roberto Carlos. Aí a Vera, a minha primeira mulher, me falou depois: “Eu fiquei tão impressionada por você gostar de Roberto Carlos e falar assim, publicamente”. Porque ele não é um cara que as pessoas devem gostar – o patrulhamento, né? E eu gostava muito, adorava Roberto Carlos. Eu conheço todas as músicas dele de cor. Inclusive, a Christina me deu de sessenta anos a caixa. Eram três caixas. Aí eu comecei a ouvir indo para o aeroporto. E eu nunca tive acesso ao Roberto Carlos. Encontrei 175 com o Roberto Carlos duas vezes só. Me lembro de uma vez em Guimarães também, Portugal – me deu uma vontade de pegar o telefone e telefonar e dizer: “Porra, muito obrigado. Você não sabe o quanto você foi importante na minha vida”. CK: E você fez isso? PC: Eu não tenho o telefone dele. Não tinha como – isso é uma coisa no impulso, né? Se eu tivesse o telefone dele, na mesma hora eu faria – na mesma hora, sem pensar duas vezes. É uma pessoa que foi muito importante na minha vida, muito, muito, muito. CK: Voltando às músicas do Roberto Carlos, você sempre tem essa coisa das mulheres, da sedução, do fascínio, mas você sempre teve essa coisa da companheira também. PC: Ah, claro: gostei, casei. CK: E é muito bonito, ver você e a Chris juntos, é emocionante. PC: Claro – gostei, casei e liquidei o assunto. Com a Christina agora, é para sempre, espero! Espero não, eu tenho certeza. CK: Eu queria essa sua definição de amor hoje. PC: Amor – tem caras que definiram tão bem o amor. Como é que você pode me pedir para definir o amor?! CK: A pergunta é bem objetiva. PC: A resposta vai ser objetiva: é a cola que gruda tudo. Porra, que definição de amor. Vou ter que “twittar” isso. Tenho que escrever isso. 176 Às vezes você me pergunta Por que é que eu sou tão calado Não falo de amor quase nada Nem fico sorrindo ao teu lado CK: E o que é a vingança? PC: Veja bem, quando eu falo que eu sou um cara vingativo, eu também não vou perder o meu tempo me vingando de uma cara que diz “ah, eu não gostei do livro” ou que escreveu uma bobagem qualquer aí. Eu não estou falando disso. Eu acho que isso está mais ligado àquilo que a gente falou do inimigo. CK: Você escolhe os seus inimigos. PC: Eu escolho meus inimigos, e aí eu podendo, eu sou uma força destruidora. Literalmente. 177 CK: Mas alguém tem que merecer essa força. Senão você não vai dedicar essa energia. PC: Não, eu não vou dedicar essa energia. Porque no manejo da espada, você não dedica energia nenhuma. Olha, o Bakunin dizia que a arte de destruir é uma arte criadora. Essa coisa que você vê na arte moderna hoje, não há nada de mais patético. Porque eles destroem e não reconstroem nada. E a minha mulher é das artes plásticas, então instalações – putz eu detesto isso, essas coisas todas. pergunta quem é Jeff Koons. Ninguém sabe. Eles são horrorosos. Entre Jeff Koons e Damien Hirst, eu ficaria mil vezes com o Damien Hirst, apesar do Damien Hirst colecionar Jeff Koons. E possivelmente você não sabe quem é nenhum dos dois. CK: Da Chris? PC: Não, da Chris, não, porque não são instalações. São coisas palpáveis, você vê. CK: Você gosta da Madonna? PC: Adoro. CK: E você gosta? Te emociona? PC: Porra. Artes plásticas me emocionam profundamente. Eu vou dizer até uma coisa, que pode ser considerada uma heresia – e não é – mas Picasso tinha que ter morrido antes. Chegou num momento de desconstrução ali, pronto e acabou. Porra, pelo amor de Deus, para que complicar. E eu sou muito mais Salvador Dalí, com todos os problemas políticos que ele acarreta. Porque ele é um cara que na destruição, ele está reconstruindo muito bem. Tanto é que nos primeiros dinheiros que eu ganhei, assim, que eu já podia comprar uma coisa cara e não falsificada, numa galeria, foi um Salvador Dalí. Queria ter comprado um Roy Lichtenstein também, mas a Christina não deixou. E queria ter comprado um Andy Warhol. Acaba ali. Para mim a história da arte acaba nesse momento, em Andy Warholl. O resto eu acho inexistente. Eu e o resto do mundo, né? Pergunta quem é Damien Hirst, 178 CK: Sei. Paulo: Sabe? Porque que hoje em dia esses caras são apagados. E olha que são os papas do... A Madonna do... CK: E ela gosta de você. PC: Ela gosta de mim. CK: E o Paul McCartney gosta de você. PC: Não sei. CK: Mas vocês se conheceram, né? PC: Mas isso não quer dizer nada. Eu não sei se o Paul McCartney gosta de mim, mas eu gosto muito dele. Eu fui no show do Maracanãzinho, essas coisas todas. [Paulo cantarola “All You Need is Love”] CK: E “Imagine”? PC: Não, não. Não é a minha viagem! Já foi, já foi há muito tempo, mas não é por aí. Porra, eu era John Lennon cem por cento, e foi um cara muito interessante, continua sendo, uma vida muito interessante. E a do Paul, muito boboca. Mas “Imagine” é que nem 179 aquela poesia “Ser”, do Rudyard Kipling, já ouviu falar? É uma poesia que você aprende quando é criança. É uma música que – É muito mais honesto dizer “The dream is over”, do que dizer “You may say I’m a dreamer”, porque se o sonho acabou, aí você pode pensar em recomeçar um novo sonho, agora continuar sonhando – não é por aí. “Imagine”! Lá atrás fazia muito sentido, porque era a minha música preferida. Ficou anos sendo a minha música preferida. Depois eu mudei. CK: Então vamos voltar a falar de sonho. Em vários momentos você fala isso – o medo de realizar o sonho e não ter mais o que sonhar, não ter mais objetivos. Ontem quando eu te perguntei isso, você falou que era ir até o fim, e hoje você me falou que ir até o fim é a morte. Esse ir até o fim, o seu novo sonho então, é continuar sendo um escritor? PC: Não é um novo. É o meu sonho desde criança. CK: Não, ser escritor era o seu sonho desde criança, mas você realizou e se tornou um escritor famoso. Tem algum degrau a mais? PC: Muitos, muitos. CK: E qual é o próximo? PC: Não sei. Mas você não começa um caminho achando que esse caminho tem um final, porque aí não é um compromisso com a vida. Então quando chega ao final o que vai acontecer? Vai mudar de caminho? Então o próximo, é o próximo livro, e depois, é o próximo livro. Então, o meu sonho agora é ser comprometido com aquilo que eu decidi fazer. 180 CK: Nos seus livros você se expõe muito, eu estava falando disso com Chris hoje, como foi para ela, ver Paulo e Chris no deserto como personagens de livro. PC: E que eu estou paquerando outra mulher. CK: É. Exatamente. E não é protegido, não é a correspondente de guerra, e ali tem coisas da relação de vocês, e de conversa de vocês. É muito explícito, é muito visível. PC: É bom que seja visível? CK: Para mim, é. Eu pergunto se para vocês é? PC: É claro! A libertação através da verdade. Imagine ser enganada. Quem foi? O Tiger Woods. Porra, que saco, que coisa mais chata, que ingenuidade, que ingenuidade! Vão descobrir, mais cedo ou mais tarde que o cara tem umas amantes, muito mal escolhidas por sinal. Eu escolho muito melhor. Então se falarem “o Paulo Coelho tem uma amante!”. Não só uma, várias. CK: E essa coisa de andar, de não ficar parado no mesmo lugar, como você fazia com o emprego, e saía para viajar. Sempre foi assim? PC: Sempre foi assim; se eu não andar, eu enlouqueço. Porque eu trabalho em casa, então você não tem esse ritual de sair de casa, então não só eu enlouqueço, como tenho a sensação de que eu não vivi aquele dia. É claro que acontece de dias que eu não ando. Uma vez por semana, inclusive, eu não ando, porque eu não tenho tempo, estou com preguiça. Mas normalmente eu ando mesmo com preguiça, e aí quando eu começo a andar, a preguiça passa. Agora, mudar de casa, porra, não. Eu sei que eu vou mudar, mas eu já mudei tanto de casa. A gente estava contando outro 181 dia, quantas casas cada um tinha mudado, e eu não sei quem estava na mesa, mas eu já tinha mudado umas vinte e duas vezes. Chris? Você estava na mesa quando a gente estava comentando quantas casas as pessoas viveram? CK: A Chris me contou de duas mudanças, que vocês estavam num lugar que o cara tinha se suicidado. Em geral, o que motiva você a se mudar? PC: Nada. Essa daí foi a única vez que isso aconteceu. CK: Foi a única que foi assim. PC: É, acho que foi a única. CK: O resto é uma decisão pratica, objetiva. PC: Teve a casa de Cabo Frio. Ela te contou do cemitério? CK: Foram as duas que ela me contou. PC: A casa de Cabo Frio não foi nem uma mudança, a gente resolveu não passar ali e depois eu vendi a casa. Eu não vou morar em cemitério! Era uma casa de praia, então não tem a conotação que você dá a uma casa onde você mora. CK: De praia. Falando de casa de campo e casa de praia, eu conheço duas casas de vocês – a de Paris e aqui [em Genebra], e elas são mais reservadas, você não está em Paris olhando para a Torre, né? PC: Não, Deus me livre! Não só ia ser mais caro, como o espaço ia ser mais apertado. Era uma casa de 3 andares. Perto do Borges – foi a única coisa que eu gostei. Mas mesmo assim, minha admiração por ele não chega ao ponto de querer ser vizinho dele, porque 182 aliás ele está no cemitério aqui, e eu serei cremado. Então nem ser enterrado ao lado dele eu serei. CK: Só o apartamento do Rio, que é diferente do resto. PC: A Christina te contou como foi que ela comprou esse aqui? CK: Não. Ela falou do jardim, que vocês tinham um jardim no Rio de Janeiro... PC: Mas que não tinha vista nenhuma, era no térreo, na Raimundo Corrêa. Eu me virei para ela e disse “a permissão de minha residência é Genebra, né? Quer 183 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu saber de uma coisa? Vou comprar um apartamento em Genebra”. Só que eu não aguento comprar apartamento! É uma coisa que eu acho insuportável, procurar apartamento. O mesmo ocorreu com Paris, procuramos dois ou três apartamentos e nada. Aí eu disse “ah, o apartamento vai se mostrar”. Aí um dia eu fui para Paris, e tinha esse meu amigo, Jean Pierre, ele disse “estou vendendo um apartamento” e eu disse “vamos dar uma olhada”. Foi literalmente assim: “Estou vendendo o meu apartamento, você quer vim dar uma olhada?” – eu estava indo do aeroporto para Paris, para um hotel – eu disse, “Vou. Então te espero na porta do apartamento”. Entrei, olhei e comprei. Nem vi se tinha vista ou não. E aqui eu disse para Christina assim: “Você compra um apartamento em Genebra, você tem 3 dias para comprar o apartamento”. E todos dizem que ninguém consegue um apartamento em três dias. É óbvio que ninguém consegue, porque as pessoas ficam procurando, procurando, durante séculos. Aí a Christina veio e achou e falou que ia comprar esse apartamento, no que fez muito bem. CK: A sua residência em Genebra – por quê? PC: Porque se eu morasse em Paris, eu tinha muito imposto para pagar. CK: E a vontade de sair do Brasil, fora conhecer o mundo, teve alguma outra motivação ou não? PC: Não. Não tem nenhuma outra motivação, não. Quem resolveu mudar, foi a Christina, lá no Rio. Eu por mim, ficava na Raimundo Corrêa, mas foi uma decisão dela. Ela chegou em casa com uma chave na mão e disse assim: “Eu comprei um apartamento na Avenida Atlântica”. É um espaço completamente vazio, é um apartamento de 5 quartos, a gente destruiu todos, então a sala e a sala de jantar passaram a ser o nosso quarto, e os outros quartos lá atrás, passaram a ser a nossa sala. E tem um jeito de fechar uma porta e virar um quarto extra, mas de preferência eu pago hotel, você foi muito bem-vinda, mas normalmente não somos chegados a hóspedes. Tem gente que adora, né? CK: E vocês têm uma natureza mais reclusa. PC: Eu tenho essa natureza mais reclusa há muitos anos, há décadas. Antigamente engatava seis meses de viagem, hoje eu não tenho saco não. 184 185 TÍTULO #07 Mônica Antunes, fevereiro de 2010 In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur, venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam. CK: Vamos começar do começo, Mônica. Qual foi a primeira informação que você teve do Paulo? Mônica: A primeira informação foi o Eduardo [ex -marido de Mônica]. A gente estava num grupo de teatro, acho que em 1988. Eu não preciso dizer nome, né? Porque eu teria que me lembrar, teria que usar muito a memória. Enfim, nesse grupo de teatro, o diretor tinha recomendado o “O Diário de Um Mago”, mas eu não tinha registrado. CK: E o diretor conhecia o Paulo? Mônica: Não. Ele tinha recomendado, mas eu não tinha registrado nem o livro, nem o nome, eu não tinha me interessado. E o Paulo tinha acabado também de publicar “O Alquimista”. Era o segundo livro. Ah, me lembrei! O diretor recomendou pra gente mudar o nome do grupo de teatro para “Alquimistas de Ágape”; por causa do “O Alquimista”, que acabava de sair e “Ágape” pelo “O Diário de Um Mago”, mas a gente já levava esse grupo de teatro desde 1987. CK: E você é atriz? Mônica: Bom, primeiro eram aulas de teatro, como atriz, era um curso de teatro. 186 187 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Você tinha que idade? Mônica: Dezoito anos. E ele montou esse grupo de teatro, eu vinha já fazendo as aulas, eu não sei se desde 1986, 1987, enfim era como aula mesmo. Mas enfim, aí ele resolveu que seria bom a gente mudar o nome do grupo de teatro para “Alquimistas de Ágape”, e o Eduardo leu o “O Diário de Um Mago”, eu acho, não me lembro. livro. Eu não saia com o Eduardo na época, a gente só era do mesmo grupo de teatro, e eu comecei a ler o “O Diário de Um Mago” em setembro de 1988. E eu gostei, mas nada que tivesse me movido mais além do que um bom livro que eu tinha gostado, só que eu tinha parado na parte do Cebreiro, antes dele encontrar a espada, justo antes. Faltavam umas 40 páginas, eu não tinha completado o livro. CK: E o Eduardo participava do grupo de teatro também? Mônica: Participava, a gente se conheceu no grupo de teatro. E foi o Eduardo que me recomendou o livro, que ele tinha gostado muito, e que eu deveria ler o CK: O que mostra que realmente você não tinha se envolvido. Mônica: Pois é, eu tinha gostado normal. E eu acordei numa noite de novembro, às 4 horas da manhã, e eu pensei: “Você tem que terminar essas 40 páginas do livro agora!”. Então eu peguei o livro e terminei. E foi justo quando o Paulo chega no Cebreiro, e ele encontra a espada, e aquilo me moveu tanto, mas tanto naquela noite, que eu já não voltei a dormir, e no dia seguinte eu tinha que ir para a universidade. CK: E você estava estudando... Mônica: Engenharia Química na UERJ. E a gente tinha, isso eu me lembro, era uma quarta-feira, e na quintafeira a gente tinha que estudar e tinha prova na sextafeira, e tínhamos marcado na biblioteca um grupo de quatro pessoas que a gente estudava diferenciais juntos, e eu chego com o livro, já às 8 horas da manhã, animadíssima, que eu tinha lido, que eu tinha que ler para as pessoas, que era uma parte maravilhosa, e eu leio essas partes e as pessoas me falam: “Não dá para você ler na sexta-feira? Porque hoje a gente tem que acabar de estudar e na sexta a gente escuta tudo o que você quiser ler”. E aí eu falei: “Não, não, eu tenho que ler hoje, 188 189 porque é muito importante, eu li essa noite”. Então naquela quinta-feira eu não deixo ninguém em paz, mas acabo fechando um pouco a boca, estudo um pouco e de noite, com o dia inteiro na biblioteca, o grupo fazia uma representação num café bar e eu decido ir. E eu estava de bermuda e camiseta, eu me lembro bem, eu estava de bermuda bege e uma camiseta de veludo. E eu chego e mostro que eu estava com o livro que eu tinha acabado de ler, que eu tinha adorado, só que no grupo de teatro todo mundo tinha lido, eu era a única que não tinha lido o livro. Aí eu estou lá e de repente, eu não sei se foi o diretor do grupo ou o Eduardo, eu não me lembro quem foi, falou: “O autor do livro está aqui”. Eu falei: “Como?”. E aí ele falou: “Sim, sim, é aquela pessoa sentada ali”. E me mostrou. O Paulo tinha ido com o amigo dele, o Chico, e uma amiga do Chico, que é um amigo dele de muitos anos. Então os 3 estavam numa mesa, porque era um café bar, e eu tinha sentado mais atrás, e eu fiquei muito curiosa, muito surpreendida do Paulo estar ali, e eu fiquei olhando para ele de trás, ele não via que eu estava olhando para ele. E o Paulo tinha ido porque ele tinha achado muito simpático ter um grupo de teatro que levasse o nome dos dois livros. Isso a gente estava em novembro de 1988. CK: Ele não era conhecido ainda. Mônica: Eu acho que tinha vendido 5 mil cópias [de “O Diário de Um Mago”]. “O Alquimista” tinha acabado de sair. Acabado de sair. CK: Mas não tinha rompido ainda com o editor? Mônica: Não, não, ainda ia dar errado, estava ainda com este editor e o “O Diário de Um Mago” levava uma 190 maior carreira, tinha mais público, tinha mais duas ou três edições, mas mesmo assim, não falamos em mais de 10 mil exemplares. Eu não sei porque cargas d’água tinha caído no diretor e que tinha sido, creio eu, um dos primeiros núcleos de recomendação do livro. CK: E você sabe como o Paulo ficou sabendo disso? Mônica: Sei, depois eu soube, ele, no fim-de-semana anterior tinha sido o meu aniversário, e eu tinha feito uma festa, e quando o diretor do grupo, que era um pouco mais velho do que a gente, tinha saído do meu aniversário, ele cruzou com o Paulo na rua, e falou: “Você não sabe, a gente tem um grupo de teatro inspirado nos seus livros e tal”. E o Paulo ficou muito surpreendido, e o diretor falou que quinta-feira ia acontecer uma representação num lugar tal, a tal hora. CK: E você não sabia nada disso? Mônica: Não sabia nada disso, e ele também não achava que o Paulo ia. Eles tinham se encontrado na rua. Então nessa quinta-feira que eu não iria, que eu tinha dito que ia estudar por causa da prova no dia seguinte, quando acaba a apresentação, o Paulo vira para trás e diz: “Por que você me olhou a representação inteira?”. E eu fui, tirei o livro da bolsa e disse a ele que justamente porque nessa noite eu tinha acabado de ler o “O Diário de Um Mago”, e contei para ele um pouco da história, que eu tinha acordado de madrugada. CK: E se ele não tivesse vindo falar com você, você teria tido coragem de falar com ele? Mônica: Não, não teria, eu acho que eu não teria ido. E aí eu mostrei para ele o livro e contei a história, e ele 191 não esperava essa do livro também, ele ficou muito surpreendido, porque ele não tinha muitos leitores, ele estava numa apresentação de teatro, alguém vai e tira um livro da bolsa. Ele viu o meu entusiasmo, ele ficou com os olhinhos brilhando, né? Puxa, ir numa representação de um grupo amador e ver todo o entusiasmo que ele tinha, por ter influenciado um grupo de 15 pessoas que fosse. E o Paulo falou: “A gente vai no Leblon”. Aí eu acabei indo. Eu fui me sentindo culpada, porque eu tinha prova no dia seguinte, já estava ficando tardíssimo. Mas eu fui lá e o Paulo era como ele é hoje, detesta programas que terminam depois da meia-noite, então foi uma coisa rápida, entramos no bar e já saímos. Então a gente foi e eu conheci a Christina nesse mesmo dia. Enfim, logo fomos embora, e nesse pequeno encontro eu tinha pedido se o Paulo podia autografar o livro, só que eu contei que o livro não era meu, era emprestado. E o Paulo, muito esperto, falou: “Não, se você comprar o livro, eu te autografo, mas esse eu vou autografar para a dona do livro!”. Eu falei: “Não, você tem razão, o livro não é meu”. E ele autografou e eu levei para ela. E a gente marcou de se encontrar um dia para ele assinar o meu livro, no centro do Rio de Janeiro, na Colombo, para tomar um café. E quando eu encontrei com o Paulo nesse dia, ele falou: “Eu não posso mais ir na Colombo, porque você não sabe o que aconteceu. O editor não quer imprimir a próxima edição do “O Alquimista”, ele disse que o livro não vende. Então eu tenho que ir no Rocco porque eu marquei uma reunião e eu vou tentar que ele publique “O Alquimista”. Então nós não entramos na Colombo, nós fomos diretamente para o Rocco. CK: Ah, então isso não foi por telefone? Mônica: Não existia telefone móvel, claro. Você marcava um dia e tinha que se encontrar. Ele tinha sabido aquela manhã e o Paulo, sabe como é, ele tinha que CK: Que era um jeito de te encontrar de novo. Mônica: E de vender um livro, né! CK: Era mais uma cantada ou era mais um bom negócio? Mônica: Era um bom negócio, encontrar uma leitora! Era uma questão econômica. Então ele me deu o telefone, e passou uma semana, eu não sei quanto tempo passou, eu fiz a prova, acho que eu passei, e na semana seguinte eu comprei o livro. Aí eu liguei para o Paulo e avisei que tinha comprado o livro. 192 193 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu resolver aquilo no mesmo dia e não no dia seguinte. Então nós fomos andando até o Rocco, e quando nós chegamos eu estava com uma bermuda rosa e uma camiseta branca, e o Paulo falou: “Você não pode entrar com essa bermuda, você vai estragar o meu negócio, você não entra comigo, você fica esperando aí na sala de espera”. CK: Mas você chegou a pedir para entrar? Mônica: Não, eu estava um pouco querendo entender o que estava acontecendo. O Paulo tinha levado umas listas dos mais vendidos nos pontos de venda, que mostrava como o “Diário” vendia bem, que a gente foi pegando em algumas livrarias antes de ir ao Rocco. E o Rocco, por umas inspirações divinas, disse sim, sem saber do que se tratava, no momento ele não tinha nem ideia do que se tratava “O Alquimista”. CK: A única informação que ele tinha é que era um livro que tinha dado errado. Mônica: Exatamente. Aí o Paulo fala com o Rocco e quando eles saem na sala de espera, ele me apresenta: “Essa é uma leitora”. O que era total verdade, né? Daí, nós saímos de lá e fomos nesse editor que não queria publicar “O Alquimista”. Porque uma das condições da negociação com o Rocco é que o livro não falhasse para a campanha de Natal, o livro estava esgotado. Então o editor antigo tinha que entregar os fotolitos para que o Rocco pudesse reimprimir para o Natal, senão, não dava tempo. CK: E nessa conversa você entrou? Mônica: Nessa conversa eu entrei. 194 CK: E em que tom foi a conversa? Mônica: Foi bem, porque, afinal, foi o cara que tinha rejeitado o Paulo e não o contrário. CK: Ele não queria mesmo? Mônica: Ele não viu o “O Alquimista”, ele viu o “O Diário de Um Mago”. CK: Então, mas aí ele resistiu a entregar o “Diário”? Mônica: Eu acho que ele resistiu um pouquinho. Mas eu não tenho isso muito claro. Mas não foi fácil, ele resistiu sim. CK: E você lembra de como foi esse diálogo? Que argumentos o Paulo usava? Ou que palavras o editor usava para criticar o “O Alquimista”? Mônica: Não, ele não criticou o “O Alquimista”. É como a gente fala, era uma conjunção de vários fatos, não tinha nada a ver com o livro, nenhum editor diz que o livro é ruim, e sim aquela coisa de que “o mercado pede outra coisa”, enfim, esse tipo de conversa. Jamais se atacou o livro, você ataca o mercado e não o livro. Ele achava que a editora dele publicava livros, digamos, mais espirituais, new age, uma coisa mais direta como o “O Diário de Um Mago”, do que uma fábula. Ele não via isso para o mercado que ele vendia, ele via que para ele era difícil, mas ele não atacou o livro. CK: Ele tinha imprimido 3 mil exemplares, é isso? Mônica: Eu imagino uns 3 mil livros do “O Alquimista”, não sei ao certo, mas não tinham sido muitos, mas ele viu o “O Diário de Um Mago” e eu sei que demorou um pouco, mas ele cedeu, tampouco foi 195 E eu fui e fiquei com o Mandarino, porque eu era uma das poucas pessoas que conhecia o Mandarino e ele era a única pessoa que eu conhecia na festa. E era tudo muito louco, porque eu faço aniversário dia 13 de novembro, a Chris dia 23 de novembro, então tudo isso se passou em 10 dias ou duas semanas, entre os dois aniversários. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu uma coisa que ele tenha resistido muito, ele entregou os fotolitos, o livro saiu no Rocco, e eu também só fui a essa conversa. O que eu me lembro é que ele tinha uma poesia do Paulo na parede da editora e era uma poesia que o Paulo tinha escrito, eu acho que quando ele viajou para a Europa com a Chris nos anos 70 ou 80, 81, em que o Paulo diz um pouco que em cada país que ele tinha ido, tinha ficado um pouquinho dele. Então era um pouco assim, ele ia contando um pouco dessa viagem, e o cara tinha isso lá, então eu vi que eles tinham tido uma relação. E o editor, eu lembro que ele fala, “Eu gostaria de um dia ser assim, de também poder viajar e ter um pouquinho de mim em cada lugar”. Bom, depois a gente saiu de lá, o Paulo conseguiu os fotolitos, e o Rocco publicou o livro. A partir daí, eu não entrei mais em reunião nenhuma, nem com o Rocco e nem com o Mandarino [o primeiro editor], e logo depois disso foi o aniversário da Chris, de 40 anos, e eles tinham feito uma grande festa, e o Paulo me convidou para o aniversário. 196 CK: E até aí, a sua impressão do Paulo, qual era? Mônica: Uma pessoa que estava lutando pelas coisas. A história do que estava acontecendo, eu via muito como o “O Diário de Um Mago”, que ele estava lutando, ele estava buscando. E eu tinha gostado muito do livro e um pouco dessa história que eu tinha entrado era como num cinema mesmo, né? E a partir daí, o Paulo, por alguma razão, eu não acho que o Paulo tenha se apaixonado por mim, nem muito menos, mas algo tinha atraído ele muito em mim, então ele começou a me enviar flores todos os dias. CK: Mesmo? E dizendo o quê? Mônica: Não dizia nada, mas eu sabia que era dele, porque eu não conhecia mais ninguém que poderia me enviar flores. CK: E como foi que você descobriu que eram dele? Mônica: Por que quem iria me enviar flores? A única pessoa nova na minha vida era o Paulo. CK: Que flores ele mandava? Mônica: Rosas, cor de rosa. E a minha casa era uma casa pequena, em Botafogo. CK: E você morava sozinha? 197 Mônica: Não, com os meus pais, mas era um apartamento pequeno de 70, 80 metros. E não cabiam mais flores. CK: E o que sua mãe dizia? Mônica: Ela não dizia nada, eu dizia: “Eu acho que é o Paulo”. Era um bouquet por dia, anônimo, e eu liguei para ele um dia e falei: “É você que está enviando as rosas, porque eu não conheço mais ninguém, quem é que vai estar mandando essas flores?”. CK: E ele falou o quê? Mônica: Ele falou que era ele mesmo. E marcamos de nos encontrar na saída da minha faculdade. CK: E do seu lado tinha algum encantamento ou só uma curiosidade de ver o que ia acontecer? Mônica: Eu via tudo pelo lado muito mágico, o livro tinha me impactado muito, e aquilo não tinha explicação. O livro não, 40 paginas do livro. O livro não tinha me impactado até que eu acordei de noite e terminei o livro. CK: Então você estava assistindo um filme? Mônica: Um filme. As rosas faziam parte do filme, tudo era um filme. CK: Porque tudo isso é encantador, né? Mônica: De repente aquele livro que eu tinha gostado, aquele editor, tudo aquilo era muito um filme. CK: E você sabia do envolvimento do Paulo com o teatro, você tinha alguma informação? Mônica: Eu não sabia quem era o Paulo, eu não tinha 198 a menor ideia. Raul Seixas eu conhecia, mas eu não sabia da relação. Quando o Raul Seixas morreu, eu estava com o Paulo, e a Christina falou: “O Raul morreu”. E eu perguntei “que Raul?”, e o Paulo falou “Raul Seixas”. Eu falei: “Ah!”. E saí andando. CK: Quer dizer, você não tinha informação nenhuma. Mônica: Não tinha. CK: O encantamento era pela situação. Mônica: Pela situação extraordinária que tinha se apresentado. Uma vida de uma engenheira química de Botafogo, que faz engenharia, que faz teatro, e era a pessoa menos espiritual de todo o grupo, sabe? CK: Bom, vamos voltar para as rosas. Mônica: Eu liguei para o Paulo e a gente combinou de se encontrar. E eu não me lembro como foi a conversa, mas enfim, a gente conversava muito sobre as coisas de magia, não de livro. CK: E você tinha algum interesse anterior nesse tipo de assunto? Mônica: Não, eu fiquei curiosa a partir dali. CK: E ele já levava isso super a sério? Mônica: Levava muito a sério. E eles tinham acabado de voltar do Deserto de Mojave, então o Paulo me contou toda a história do deserto, das Valkírias, muito antes dele escrever “As Valkírias”. E eles tinham acabado de voltar de lá, então era tudo muito mágico. Era uma coisa que eu levava a sério, eu tinha acreditado muito no livro, era como se eu tivesse feito o Caminho 199 de Santiago também, eu me lembro que as conversas eram muito sobre as histórias dele e sobre a magia. CK: Então alguém previu tudo isso? Mônica: Foi com esse senhor, que morreu. CK: E esse assunto só entrou na sua vida depois do livro? Mônica: Só. Totalmente. CK: Você lembra o nome dele? Mônica: Artur. Não lembro do sobrenome. Era na Tijuca, era um apartamento muito simpático. Ele era um velhinho. Depois, quando eu já estava trabalhando com o Paulo, eu queria ter voltado lá, mas ele tinha morrido. Eu fui procurar, tentei encontrar e aí eu soube que ele tinha morrido. CK: Você não era de “I Ching”, tirar cartas, vidente, horóscopo? Mônica: Não, eu tinha ido sim, como qualquer adolescente, mas eu não era de comprar livros, ou “Ah, eu vou aprender um lado interior, ou meditação”. Nada disso. CK: E nenhuma cartomante te disse que ia aparecer um mago na sua vida? Mônica: Uma das pessoas que eu fui, ele ficou absolutamente fascinado, então ele queria que eu fosse grátis, ele queria ficar na minha vida, ele era um vidente, vidente de letra, de caligrafia, né? CK: Você escrevia alguma coisa e ele interpretava? Mônica: É, eu escrevia o meu nome. CK: Pouco tempo antes? Mônica: Um ano. E ele tinha dito que eu ia trabalhar com cultura. Imagina ouvir isso naquela época. E que eu ia ter muito sucesso, muito sucesso. E foi ele que me disse: “Nunca assine Mônica Antunes seguido, porque A com A não funciona, ponha o R no meio, sempre Mônica R. Antunes”. Eu tinha o quê? Dezoito anos. Eu nem conhecia o Paulo ainda. Então foi a maior relação, digamos, com o lado mais mágico. 200 CK: E aquilo te marcou de alguma maneira ou você não levou aquilo a sério? Mônica: Quando você é jovem, é muito futuro, né. Era muito longe. CK: Mas você lembrou disso quando encontrou o Paulo? Mônica: Não, eu só fui lembrar depois, quando eu encontrei o mapa astral. E ele disse várias coisas, inclusive que eu ia morar fora do Brasil. Mas na época tudo eu achava ótimo, era maravilhoso, um conto de fadas, mas depois voltava pra minha realidade. Então eu fui numa conferência sobre as pirâmides e o Paulo tinha ido às pirâmides, então ele conhecia a moça que estava falando. Depois eu fui para a casa com a minha mãe e o Chico, amigo do Paulo, me falou: “Quando você for comer, um copo de vidro vai estourar”. E o copo estourou. CK: Está brincando? Do nada? Mônica: Do nada. Aí eu liguei para o Paulo e ele falou: “Não, é porque você não acredita nessas coisas, mas 201 existe o poder da mente”. Então, todas as conversas eram muito mágicas, percebe? Ele disse: “A gente simplesmente focou que o copo ia estourar, e você também focou. Como a gente disse isso, você ficou com aquilo na cabeça”. CK: E estourou na sua mão? Mônica: Estourou na minha mão. Mas ele tinha dito que o copo ia estourar, não era uma coincidência, então tinha toda essa ligação. CK: E você dizia para ele que você não acreditava? Você questionava de alguma maneira? Era como se isso fosse uma prova? Mônica: Eu era muito religiosa, eu sempre fui muito religiosa, então eu acho que uma das coisas que o Paulo ficou muito impressionado, foi nesse dia da Colombo, nesse primeiro dia, como a gente estava na cidade, a gente tinha passado em frente a uma igreja, não me lembro que igreja era, mas eu era um pouco familiarizada porque eu tinha estudado no centro do Rio, e eu falei: “Ah, eu vou entrar nessa igreja um segundo, você espera aí”. Aí ele entrou também, e eu tinha um terço na bolsa, então ele ficou positivamente impressionado que eu fosse religiosa. Eu era religiosa, mas não tinha nenhuma outra coisa. Não era a minha praia copos que estouram. CK: Não era para provar nada, mas era para te impressionar? Mônica: Era mais para me impressionar, mais do que para provar qualquer coisa. Mas sempre aconteciam coisas, um dia que ele foi me 202 buscar na análise, o carro dele quebrou ali no meio da saída do cemitério. E eu falei: “Você espera, eu vou fazer isso, abre o capô”. Ele ficou muito impressionado que eu sabia consertar o carro. Eu não conhecia ninguém que estourasse copo, mas ele também não conhecia ninguém que consertasse carro. Dois universos paralelos. Eu sei que foi quando terminou um pouco a história das rosas e o carro. CK: Mas na história das rosas, você achou que era uma coisa mais romântica? Mônica: É, um pouco. CK: Porque eu fico imaginando, uma menina de 18 anos receber rosas todo dia, é muito encantador, né? Mônica: Mas é que existia o elemento surpresa constante, que eram as rosas, mas eram também os copos que estouravam, os carros que quebram, eram muitas coisas. Livros que não se publicam e enfim, eram coisas 203 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu muito fortes, e sim, eu achava que tinha um componente romântico, não só a questão das rosas, mas a atenção, da gente estar sempre se falando, ou em contato. CK: Isso te deixava um pouco tensa ou não? Mônica: Não... Aí chegamos num dia, que foi em dezembro, e eu tinha combinado com o Paulo da gente se encontrar na sexta-feira de noite e não mais às 4 horas da tarde, então o código tinha mudado, tinha um componente romântico. E nesse dia o Eduardo chega na minha casa às 7 horas e diz: “Por que a gente não vai jantar?”. E eu não vou no encontro com o Paulo, eu ligo para ele e digo que não vou. Muito tempo depois, porque a gente deixou de se falar a partir daí, o Paulo me contou que ele estava plantando o jardim dele e que na hora que o telefone tocou, ele se cortou e ele sabia que eu estava desmarcando o nosso encontro, acabando com aquela história. Aí eu comecei a sair com o Eduardo. CK: E o Eduardo não sabia? Mônica: Não sabia de nada, nem das flores, de nada. Ele tinha decidido ir na minha casa aquele dia. CK: Nossa, é tudo muito encaixadinho. É como quando eu conto a história desse filme, ninguém acredita, vão dizer que é coisa de roteirista. Mônica: Era muito de filme, eu me lembro sentada no sofá, abro a porta e fico olhando o Eduardo, tipo... Eu ia tomar uma outra decisão dentro de uma hora. E daí eu falei pro Paulo que não ia e nós não marcamos para o sábado ou para o domingo. Porque não era mais o mesmo código de sexta-feira. 204 CK: Não era mais um encontro entre amigos. O fato dele ser casado te incomodava? Você falou sobre isso com ele? Mônica: Eu nem cheguei a pensar que eu pudesse ter uma relação com o Paulo. Primeiro, que eu não tinha me apaixonado por ele, e ele muito menos, mas tampouco eu via isso, era uma coisa impossível. Eu tinha conhecido a Chris, eu não achava que isso ia acontecer, não via futuro. Mas que uma coisa muito forte nos ligava era patente, era muito explícito, mas não era uma relação sexual para mim, eu não estava apaixonada. Nunca me passou isso, nem via o rompimento dele com a Chris. E o Paulo tampouco estava me seduzindo sexualmente, porque ele tinha feito uma promessa na época que ele não poderia seduzir ninguém até o ano seguinte, isso eu também soube depois. CK: E como foi que vocês voltaram a se falar? Você lembra se foi você que ligou ou se foi ele? Mônica: Acho que a gente se falou por causa do livro, que aí o livro saiu pelo Rocco em dezembro. CK: Você leu o “O Alquimista” em dezembro? Mônica: Li de férias. CK: Mas na época que vocês estavam sem se falar? Mônica: Sem nos falar. Eu comprei o “O Alquimista”, eu fui para a casa de um amigo e foi lá que eu li o “O Alquimista” e eu gostei muito do livro, achei que tinha uma comunicação imensa. 205 TÍTULO #08 Mônica Antunes, fevereiro de 2010 Mônica: Quando eu li o “O Alquimista”, eu nem sei se eu liguei para o Paulo para comentar. A gente realmente voltou a se falar quando eu vim para a Espanha, quer dizer, a gente se falou, eu sabia que o livro tinha saído pelo Rocco, eu acho que liguei para ele para contar que eu tinha gostado muito do “O Alquimista”, e o Paulo me pediu para ajudar a promover o “O Alquimista” e o “O Diário de Um Mago”, então eu distribuía folhetos na faculdade, pregava pôster por aí. CK: Foi um pedido que veio dele? Mônica: Que veio dele, então a gente continuou se falando, mas não com a magia, a magia acabou no dia da rosa, no dia que ele estava plantando uma rosa no jardim dele, eu acho que era uma rosa, porque ele se cortou. Então essa parte mágica acabou e ficou uma parte prática, uma amizade que existia realmente, uma grande admiração pelo livro, e eu queria ajudar que esse livro funcionasse, então eu acho que a gente deve ter se encontrado algumas vezes, até para pegar os cartazes, e o Eduardo até me ajudava a pregar os cartazes nas faculdades. CK: Na sua cabeça ainda era uma coisa por amizade? Mônica: A magia tinha terminado, eu ali também entendi que era uma escolha. CK: Você tinha entendido que era uma escolha, mas você via esse movimento de divulgar o livro como uma coisa profissional ou era uma possibilidade de reaproximação? Mônica: De jeito nenhum, eu estava ajudando um amigo e uma pessoa que eu gostava muito do traba206 207 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Isso não tinha nada a ver com o Caminho de Santiago? Mônica: Não, eu nunca fiz o Caminho de Santiago, nunca pensei em fazer o Caminho de Santiago. Para mim, eu fiz o Caminho de Santiago naquelas 40 páginas [de “O Diário de Um Mago”], eu sempre falei: “O meu Caminho de Santiago foram essas 40 páginas, já bastou!”. Então o Paulo recomendou Madri, aqueles 4 amigos malucos que eu cheguei a conhecer não me apontaram nada aqui, e o Paulo falou: “Se você gosta tanto dos meus livros, por que você não tenta conseguir uma editora na Espanha? Já tem o que fazer”. Foi a primeira vez que passou pela cabeça que aquilo poderia ser um negócio e a decisão da viagem já tinha sido tomada, não tinha sido por isso. A ideia era fazer alguma coisa diferente do que eu fazia no Rio, porque senão era um dinheiro mal gasto, né. Eu me matriculei num curso de desenho que eram três anos e eu fiz dois anos. Mas com relação aos livros, o Paulo tinha insistido que eu fosse atrás de uma editora. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu lho. E a gente seguiu com a amizade assim, eu ajudava com a promoção, o Paulo nunca mais me enviou flor, nem nada, acabou. Se havia sedução, ele acabou naquela sexta-feira. E quando eu decidi vir para a Europa com o Eduardo, eu procurei o Paulo e ele me disse: “Que ótima notícia!”. Ele ficou encantado. E eu falei: “Você tem que me dar umas dicas, porque eu nunca viajei para fora do Brasil, eu não sei como se faz, eu não sei nada”. E a gente marcou nesse mesmo dia de nos encontrarmos no Leblon. Aí o Paulo disse que eu deveria ir para a Espanha, porque ele tinha amigos na Espanha. Os amigos na Espanha eram 4 malucos aqui de Madri. 208 CK: E tinha tradução? Mônica: O Paulo tinha uma tradução do “O Diário de Um Mago”, da Kátia Schummer, e eu não sabia disso. Eu soube depois, já na Espanha, que ele tinha combinado alguma coisa, ou não tinha combinado, eu também não sei. Então, quando eu cheguei em Madri, a gente ia na feira do livro, pegar catálogos das editoras, para ver quais eram as editoras que poderiam ter o melhor perfil, e era justo na época da feira do livro. Então eu decorei um trechinho no papel só: “Soy Mônica, soy brasileña, tengo este libro.”. Era uma colinha em espanhol. 209 CK: Não falava espanhol? Mônica: Nada, nada. Eu fiz um curso rápido no Brasil, que não serviu para nada, porque aqui eu falava inglês, que era mais fácil de se comunicar. Então eu fiz a minha colinha para poder apresentar o livro e fui em algumas editoras. E em duas editoras tivemos um não e quando tivemos um sim, foi da Martinez Roca para o “O Diário de Um Mago” e chegamos a vender o “O Diário de Um Mago”. E o “O Alquimista”, na época, essa moça, a Kátia Schummer, tinha apresentado para uma editora super new age espanhola. A editora era um horror, tipo um lugar todo desorganizado, cheio de papel imundo, sujo. Um cara sozinho, com uma secretária. Eu falei pro Paulo: “Olha, eu não conheço muitas editoras, mas essa não é a imagem que eu faço de uma editora”. Mas o Paulo estava muito entusiasmado e ele resolveu aceitar a proposta do cara. Então eu realmente nunca cheguei a vender o “O Alquimista” na Espanha, mas eu acompanhei o lançamento. O que foi bom para mim, mas eu tenho certeza que para o livro foi irrelevante. Mas para mim foi bom porque eu conheci algumas pessoas. Nós conseguimos um dossiê, e outro dia eu vi o dossiê e falei: “Caramba, o que um não consegue indo por aí de porta em porta, né?”. Tinha resenhas e resenhas do livro, trilhões de revistas e jornais. Então, quer dizer, pode ser que tenha ajudado um pouquinho, eu tenho o dossiê do que a gente conseguiu, mas foi bom para ver como era. CK: E o “O Alquimista” saiu antes do “O Diário de Um Mago” ou não? Mônica: Saiu um pouquinho antes, eles saíram simultâneos praticamente. O “O Alquimista” saiu uns dois ou três meses antes. Quando saiu o “O Alquimista”, o Paulo falou, porque o editor não ia fazer nada, era um editor de fundo de quintal: “Você não quer fazer a promoção do livro? E tentar fazer acontecer?”. Ele conseguiu uma lista da embaixada dos jornalistas culturais da Espanha, como contatar esses jornalistas. Eu ia nas livrarias também apresentando o livro. CK: Não, demorou muito. Demorou 40 anos. Mônica: Não, eu digo depois que o livro foi escrito. 210 CK: Isso foi quando? Mônica: 1990. Que foi quando o Paulo começa a vender no Brasil. Até então os livros não estavam nas listas. Em 90, 91, que é quando sai o livro “Brida”, que tem todo o boom. CK: E isso como é? É tudo tão de repente, foi tão rápido. Você atribui o sucesso a alguma coisa especificamente? Mônica: Eu não acho que foi rápido, não. CK: Foi uma coisa gradativa? Mônica: Foi uma coisa gradativa, foi muito intenso, mas gradativo. Eu li em 1988. Eu te digo, a minha tia tinha o livro na mesinha em 1988. Já alcançava muita gente. CK: Mas não era um fenômeno. Mônica: Não, não era um fenômeno. 211 CK: O fenômeno foi um susto para o próprio Paulo, né? O que pode explicar essa virada? Tem alguma coisa que marcou esse momento? Mônica: Porque qualquer sucesso é exponencial, você vai de um para o dois, do dois para o três, do três pro quatro, do quatro para o oito, do oito para o 32. Ele é exponencial. Mas no início, ele não foi. Um best-seller hoje em dia, ele é muito mais rápido, as pessoas não entendem porque passou tanto tempo. CK: A vida do livro hoje é mais curta. Mônica: Ou não. Mas é mais rápido. O que eu acho que aconteceu, foi que sai o livro e começa um boca -orelha, e que ia funcionando. CK: Boca-orelha? É que no Brasil se fala boca-a-boca. Mônica: Aqui se fala boca-orelha. CK: Faz muito mais sentido. Mônica: Mas começa o boca-orelha e vai gradativamente chegando. Existia um público imenso mas era muito difícil. A grande maioria das pessoas tocavam muito, mas não saía na mídia, não existia um apoio, e eu acho que os livros vendiam para estar nas listas e não entrava, porque eram livros new age ou espirituais, enfim, e não entravam. CK: O grande boom foi a mídia? Mônica: Não, os livros entraram na lista quando a mídia não teve mais como ignorar. Ela teve que falar. Não vai falar do “Crepúsculo”? Você tem que falar. Mas não era um marketing apresentado, porque vem de fora, né? Invadindo ali a realidade. E aí, nesse 212 momento que sai “Brida”, “Brida” era a novidade necessária. Então o jornalista podia falar, todo mundo podia falar do que estava acontecendo. Eu me lembro que o Paulo conta essa história, mas esse pessoal disse para mim, foi uma livreira do nordeste, que eu conheci na feira do livro, na Bienal, e ela fala que ela tinha comprado dois exemplares do “O Alquimista”. Um ela vendeu assim que saiu o livro, o outro ela vendeu um ano depois, para a mesma pessoa, que queria dar de presente. Eu acho que é isso que aconteceu. As pessoas começam a dar de presente, começam a recomendar, e aí entrou no exponencial. E a nível de marketing é o “Brida”, quando “Brida” sai, a mídia tem uma oportunidade de falar CK: Vamos voltar para os seus três meses para divulgar o livro. Mônica: Não era uma repercussão assim, mas eram várias notas; não era nenhum artigo grande, mas eram resenhas. Depois, eu voltei a encontrar com alguns desses jornalistas e eles achavam muito maluco uma menina do Brasil vir apresentar um livro de um brasileiro, e acabar tendo uma atenção. Mas eu não acho que tenha sido isso. E nem recomendo ninguém fazer isso, não é por aí, não leva a nada ao final. CK: E o que leva? Mônica: Eu acho que é... Primeiro, sempre é o produto mesmo, o livro mesmo, é o filme, é o que é. Você pode ter todas as cartas, se você não tem um bom livro, esquece, não tem como, não vai acontecer. E aí as cartas estavam corretamente dadas, o livro ia por si próprio. Qual é o trabalho que eu acho que eu fiz 213 crave a ponta da unha sobre o polegar , até sangrar . e que outras pessoas teriam feito bem? Era chamar atenção dos editores, o importante foi que o livro entrasse na indústria, que o livro não fosse um side walker, que fosse à indústria, que fosse realmente visto, que as editoras dessem a atenção que tinham que dar, e no momento que as editoras deram uma atenção séria, o livro foi adiante, o negócio foi adiante, nós necessitávamos da indústria. CK: Isso foi com o “O Diário de Um Mago”, essa venda que você fez? Mônica: Sim. Não aconteceu nada com o “O Alquimista”. 214 CK: Quem tinha vendido o “O Alquimista” não foi você, né? Mônica: Não, mas eu fiz a promoção. Quando eu fui ao Brasil, que foi em 1991, o Paulo já era um sucesso no Brasil. Quer dizer, eu saí do Brasil e o Paulo não era um sucesso; eu volto e ele é um sucesso. E o Paulo falou: “Nós temos que vender mundialmente, agora é o momento”. E a gente chegou a fazer o material. O Rocco até apoiou com ajuda do material, mas muita fantasia o Rocco. Ele contava histórias absurdas da feira de Frankfurt. CK: Que tipo de histórias? Mônica: De festas e castelos e de um grupinho. E que é muito difícil você entrar, muito difícil você recomendar coisas, muito difícil você poder vender alguma coisa, ele botava muito empecilho, como se fosse um conto de fadas. E não é verdade, as pessoas querem encontrar bons produtos, não existe nada fantasiado. Ele fantasiava, eu acho. 215 CK: E ele fazia esse trabalho? Mônica: Não, o Paulo é que queria que ele ajudasse, ele vendia muito. CK: Mas ele não estava preocupado com isso, estava preocupado com o mercado interno dele, é isso? Mônica: Ele não representava o Paulo internacionalmente, mas ele tampouco via que o Paulo poderia vender fora, mas tampouco jogou no meu time. E nunca jogou contra mim. Outras pessoas jogaram muito contra mim, diretamente. O Rocco tampouco acreditava muito: “É, talvez a Mônica consiga, quem sabe?”. Mas eu mantive um contato com o Rocco, assim dentro de tudo. O Rocco sempre foi muito correto comigo, a gente sempre manteve um bom contato. CK: Isso em 1991, quando você voltou ao Brasil? Mônica: Isso. CK: E você não tinha um contrato formal com o Paulo? Mônica: Não, nós não tínhamos nenhum contrato formal. CK: O “O Diário de Um Mago” já tinha sido lançado. Ele foi melhor que o “O Alquimista”? Mônica: Os dois igual. O “Mago” tinha vendido a sua primeira edição, estava na segunda edição, e o “O Alquimista” começa a vender também. E chega 1991, que a gente tinha essa ideia de apresentar o livro e tal, e o mestre do Paulo diz que não é o momento. Mas quando o Paulo não quer escutar, ele não escuta, então ele não quis escutar. O mestre disse: “Não é o momento, você não deve fazer isso agora, você 216 deve esperar para dar um passo. Porque uma coisa é você não estar pronto e outra coisa é você ser rejeitado, são duas coisas diferentes”. E eu ouvi isso e pensei: “Então não é o momento. Melhor talvez esperar mais”. Aí o Paulo conhece o Alan Clark, que é o tradutor do “O Alquimista” em inglês. O Alan compra o livro no aeroporto e decide traduzir. Ele conecta com o Paulo por fax, enviou carta através da Rocco, ou como seja, e diz que ele gostava muito do livro e que ia apresentar às editoras que ele já tinha trabalhado nos Estados Unidos. E então ele faz esse trabalho, e a Harper Collins San Francisco decide comprar o livro. Então nesse momento do lançamento do livro em inglês, que tinha sido também por uma total mérito do livro. Eu sempre digo que é o livro que abriu todas as portas, não foi nada e não foi ninguém. Se o Alan apresenta outro livro, não vai funcionar, funcionou porque o editor que leu o “O Alquimista” ficou fascinado com o livro. Então era o momento da gente colocar as coisas e realmente oferecer o livro. CK: Mas o Alan foi diretamente nas editoras ou você participava? Mônica: Não, não, ele foi, e nem o Paulo participava. Ele fez uma tradução por conta própria, ele fez um resuminho e ele mandava aos editores que ele conhecia. Uma coisa de tradutor mesmo, de ter gostado de um trabalho. E a Harper compra e eles se encantam, porque eles publicam 50 mil livros na primeira edição. Isso é impensável para um livro desconhecido, para um autor desconhecido. Então quando o livro vai ser lançado em 1993, a gente tinha ido para Miami, eu conheci o Alan nessa ocasião em Miami, e era 217 o momento de oferecer o livro. E foi quando eu ofereci. Só foi em 1993, antes eu realmente nunca tinha feito nada, a parte das coisas na Espanha. E os segmentos com os livros na Espanha e a feira, e não é só a feira na Espanha, tem toda a América Latina, era o idioma espanhol, enfim. CK: Frankfurt você não tinha ido ainda? Mônica: Não, o meu primeiro Frankfurt foi em 1993. Eu tinha a distribuição na América Latina, enfim, o espanhol tinha um pouco de mercado, né, porque são muitos países. E tinha feira aqui em Madri e tudo isso, mas não tinha muito mais. Em 93 eu fui a Frankfurt, mas foi na volta que eu mandei o “O Alquimista” com uma carta para as editoras que eu selecionei de um catálogo de Frankfurt, porque eu não conhecia ninguém. Eu fui essa, essa e essa. Essa, essa e essa. Eram três por países. Daí eu mandei a carta e os editores que pediram o livro, eu enviei o livro. E a primeira vez que eu encontrei com esses editores, digamos, que se fechou a maioria dos contratos foi na feira de Frankfurt. CK: E você tinha noção de valores ou foi meio no cheiro? Mônica: Não, eu tinha um pouco feito amizade com o mercado na Espanha, então eu tinha algumas pessoas que tinham me orientado como funcionava o mercado, como você faz um contrato, o que é importante e tal. E a regra não muda, você paga um advanced de acordo com o que você acha que vai vender. Um autor principiante você acha que não vai vender nada. Enfim, o Paulo tinha um sucesso imenso no Brasil e tinha o negócio nos Estados Unidos que abriu as portas. O que abriu as portas foi a Harper 218 Collins. As pessoas diziam: “A gente sabe que os Estados Unidos não publica autor estrangeiro. Para os Estados Unidos publicar, uma Harper Collins publicar, é porque deve ser o melhor autor que tem”. Quem assinava os contratos era a HarperCollins, quem dava o aval era ela, a edição da Harper, e ninguém discutia. Se a Harper aposta, eu também. Então um pouco era “quantos exemplares você vai imprimir?” e era o entusiasmo. Eu via muito o entusiasmo das editoras, e por ter mais experiência na Espanha e ver que um editor mal te ajuda nunca, então isso não pode ser, o principal é que você consiga convencer a editora que confie naquele produto, se você não consegue convencer a editora e a editora não tem o feeling que você tem que aquilo pode vender muito, não adianta. Não era uma questão de dinheiro, era uma questão que a pessoa tivesse a visão de que aquilo ia ser um grande best-seller, e a escolha das editoras foi baseada nisso. E eram pessoas que viam muito potencial no livro. A maioria das editoras, mesmo uma editora francesa que mais adiante a gente brigou, nunca foi porque ela não viu o potencial do livro, ou porque chegou lá embaixo. Foi porque a gente tinha um caráter muito difícil e com os anos ficou mais difícil. Mas simplesmente foi rompido mais no pessoal do que no profissional. E a maioria das editoras mostraram muito grande entusiasmo, que a gente escolheu. Eu acho que se a editora colocava umas cartas, colocava um dinheiro na mesa para fazer uma boa campanha, a gente também colocava o livro da nossa parte, não tem como cobrar antes, se eu sei que isso vai ser bom, por que eu vou cobrar antes? Era de mútuo acordo e existe muito respeito com os editores até hoje. 219 trabalho muito era ver se a pessoa estava realmente comprometida, controlar um pouco o trabalho que eles estavam fazendo, se realmente aquilo ia adiante ou não ia adiante. Você pode obviamente ter erros mas na grande maioria tinha um compromisso, e que dava certo. Era um cavalo ganhador, como se diz, sabe? Você tem isso, você tem a fórmula, você tem os meios, tem a distribuição, não vai dar certo por quê? Era um cavalo ganhador! CK: Que história linda! Mônica: É um pouco por isso que o guerrila-market eu não acho que funcione. Você necessita da indústria por detrás. Com um péssimo editor, o seu livro não chega a lugar nenhum. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu O editor também tem que ganhar dinheiro. Se você faz o editor perder dinheiro, onde você vai chegar com aquilo? Você pode fazer isso uma vez, mas não vai fazer duas vezes. Então um pouco o nosso lema é win-win game. Então você passa a ser um ativo muito importante da editora porque você sempre faz a editora ganhar. E saber exatamente o nosso potencial. É claro que fomos surpreendidos em 10 milhões de vezes com o “O Alquimista”. Todo mundo, as próprias editoras, ou como for, mas sempre foi a visão aí. Mas o que eu fiquei era: se não tem o entusiasmo por detrás, não dá. É o que faz funcionar. Então o meu 220 CK: E você teve alguma experiência? Mônica: Os países do leste, por exemplo, a grande mudança dos países do leste foi em 1995, porque muitas editoras abrem novas em 90, 95 e 96, e a maioria foi à falência, algumas poucas sobrevivem, mas poucas nascem nessa época, então você viu muito ali um editor que conseguiu, que entendia, que conseguiu fazer um bom trabalho, os livros funcionavam e com outros não acontecia nada, a gente teve que mudar de editora e aí as coisas começavam a acontecer. CK: E essas decisões, sempre foram mais racionais ou mais intuitivas? Quer dizer, a mágica continuou te acompanhando? Mônica: Eu acho que racional e intuitivo simultaneamente, porque ao final você sabe alguns códigos. 221 CK: “As Valkírias” é o livro no qual o Paulo mais se expõe, né? O Paulo e a Chris como personagens. Mônica: Mais. Em ”As Valkírias” não existe ninguém mais que ele, a Chris um pouquinho e as Valkírias. É ele ali, as pessoas querem isso, não me interessa o que está passando no mundo, eu acho. CK: E o Paulo se envolve nessas decisões sobre as editoras ou não? Mônica: Não, ele nem sabe. CK: E no começo ele se envolvia ou também não? Mônica: Sim, um pouco, porque, de repente, ele estava encantado de ter tantas editoras interessadas, mas não me lembro de eu ter dito “Ah, assinamos com essa editora aqui” e ele ter dito “Ah, assinamos com outra”, eu não me lembro, pode ter acontecido isso. CK: E o Paulo fala muito da questão da lealdade, “os meus amigos, os meus inimigos”, uma coisa muito preto no branco, e ele falou com muito carinho de toda a história de vocês, e de um momento que ele se questionou, de continuar com essa menina, de um café que vocês tomaram, como foi esse momento para você? Mônica: Outra vez, para o Paulo foi muito mais importante, porque era a vida dele, eram os livros dele. Para mim, nunca teve esse peso, essas palavras, como ele coloca e eu entendo que para ele era assim. Foi no ano de 1992, foi justo antes dessa viagem da ABA [American Bookselles Association], foi em outubro de 92, e a ABA foi no ano seguinte, em fevereiro, e o Paulo vai à Espanha, não sei porque razões, não tinha 222 nada a ver com o livro, com nada, e ele recebe uma proposta da Carmem Balcells, que eu nunca cheguei a ver realmente. CK: A proposta ou a Carmem? Mônica: A proposta. Nessa época a Carmem também não, eu a vi posteriormente, nessa ocasião não. Eu já a conhecia, sabia quem era, obviamente. CK: E ela era poderosa? Mônica: Uma das grandes agentes e uma pessoa super inteligente, com uma hiperintuição, enfim, nota mil. CK: Nessa época ela já era experiente. Mônica: Com dois prêmios Nobel. Isabel Allende, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez. Nem sei se tem dois Nobels, mas enfim, uma mulher com todas as medalhas culturais da Espanha, e muito merecido, ela divulgou toda a cultura latino-americana, é uma pessoa de super nome. E ela propõe ao Paulo de tê-lo no catálogo dela, acho que eu cheguei a ver a carta sim, mas eu não me lembro, na época eram faxes. 223 TÍTULO #09 Mônica Antunes, fevereiro de 2010 CK: O que você sentiu quando viu a carta dela nesse momento? Mônica: Eu acho que não vi a carta dela nesse momento, eu acho que eu vi depois, mas eu digo que para mim não teve o mesmo peso, eu vi o peso para o Paulo quando eu li numa entrevista, ele falando para alguém. Porque eu me lembro da conversa com ele, eu estava em Rubi, que é onde eu morava. CK: Isso já era 1993, então você já estava há 3 anos com o Paulo. Mônica: Quatro anos. 89, 90, 91, 92, 93. A oportunidade de trabalho realmente veio em 1993. E quando em 91, que o mestre do Paulo falou: “Vocês não devem fazer isso, porque isso não vai dar em lugar nenhum”, eu entendi, não ia dar em lugar nenhum. CK: E você esteve com o mestre também? Mônica: Não, ele disse para o Paulo e o Paulo me contou. Ele estava frustradíssimo dizendo que o mestre estava errado, mas eu não sei se porque eu tinha visto aquela editora com aqueles papéis no chão, eu falei: “Esse guerrila market não adianta”, e o Brasil tinha provado isso. Se tivesse continuado lá com a primeira editora, tinha chegado aonde? Sabe? Chegou porque desde de que o livro comece a vender, você está dentro de uma boa indústria, uma boa estrutura, que pode te levar adiante, de uma forma ou de outra. E não são todas as editoras que tem condição de fazer isso, não são. E um pouco eu achei que talvez ele tivesse razão, que não era realmente ainda o momento, e que não ia ter esse momento, porque eu não ofereci o livro a ninguém antes da edição americana. Foi ali 224 225 que veio para mim “esse é o momento”. Até então eu ajudava com as histórias espanholas e com a história da América Latina. E era uma dificuldade imensa com essa pequena editora, era uma briga em cima de outra briga, terminamos numa ação judicial, me ensinou por isso, sabe? Como é uma ação judicial, como é ter um empresário incompetente na sua vida e ter que lidar com isso, porque você tem um contrato ali que não quer deixar a situação crescer. Era muito assim. Então, se não é para ir para uma boa pessoa, é melhor não ir a nenhuma, porque outro desse na vida, ninguém necessita. A energia que vai embora e você pode até perder o bonde no caminho. Que a gente tenha conseguido recuperar esses direitos numa ação judicial também faz parte da magia e é uma coisa muito complicada. Não é assim. E o Paulo, ele assinou um contrato na Alemanha numa editora pior do que essa espanhola e eu consegui romper o contrato também. O meu trabalho no começo é romper maus contratos, mais do que assinar bons contratos. Eram dois contratos que não tinha como ir a lugar nenhum. versar com ela. Se chama Ângela Reinold. E a agente me explicou: “Não existe nenhuma dificuldade, sabe? Quantos livros você vai vender? Você faz um cálculo assim. A única coisa que impera nesse trabalho é a integridade, não tenta ser mais esperta do que as pessoas. E a base é uma coisa de sentido comum, se a pessoa tem sentido comum, não tem nenhuma dificuldade. E é realmente a integridade, porque é uma questão de confiança no final”. E eu muito segui isso. CK: E foi essa sua amiga advogada que te dava alguma orientação? Mônica: Não, não. Ela era editora, também não entendia nada de Direito. Quando o Paulo escreve “Brida”, eu vendo “Brida” e conheço o Rafael Soriano. Enfim, são pessoas que eu conheço naquele momento. E o Paulo já tinha um grande sucesso no Brasil, então tivemos uma boa relação, e a Emelina, que era como se chamava a editora, ela me explica como funcionam as coisas e me apresenta uma agente literária de Londres que era amiga dela. Então eu fui várias vezes con226 227 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: Tem uma frase do Paulo no “O Alquimista”, agora eu não lembro se é no “O Alquimista” ou no “As Valkírias”, que ele fala: “Ame o deserto, mas jamais confie inteiramente nele”. Tem essa coisa desconfiada do Paulo. Você também tinha isso, ou você confiava de cara nas pessoas e você se decepcionava depois? Nesse começo? Mônica: Não, eu acho que eu não confiava e nem desconfiava, era uma construção. Eu acho que o Paulo ele confia muito mais, e ele era muito mais imediatista, ele queria as coisas mais pelo resultado e ele foi obrigado a esperar. Ele não teria esperado, mas a circunstância fez com que ele tivesse de esperar. E isso porque passou por essa situação na Espanha e passou essa situação na Alemanha, onde conseguimos romper um contrato. CK: Quanto tempo, você lembra? Mônica: Os dois contratos a gente conseguiu romper em 1996. CK: 3 anos de briga. Mônica: Mais ou menos, 3 anos de briga. Com os alemães a gente não chegou diretamente a entrar com processo, eu consegui uma terceira pessoa que entrou, mas na base da confiança também. Do que eu vi, é o que se espera de um parceiro correto. Não adianta, não adianta, se você não tem um parceiro correto, porque tem que ter o entusiasmo e tem que ter a estrutura. CK: Quais são os países onde deu mais certo? Mônica: Eu acho que deu certo em todos os lugares. 228 CK: Igualmente? Não tem um lugar que tenha te surpreendido mais? Mônica: Não, são momentos diferentes, são momentos totalmente diferentes. A França obviamente foi um gigantesco sucesso. Nós temos 10 milhões de exemplares vendidos na França, 2 milhões do “O Alquimista” em dois anos. Ou menos, não sei agora. Mas o que passou ali acabou passando em outros lugares. “O Alquimista” ficou 10 anos nas listas na Lituânia. Ou seja, você tem sucesso em todos os lugares. Pode ser que sejam épocas diferentes, que você olha num momento diferente. CK: Na Austrália, por exemplo? Mônica: Na Austrália também foi número um. Mas não manteve. Na Europa manteve mais do que na Austrália, ele nunca chegou a dar um grande salto. CK: E que outras surpresas, como a Lituânia, por exemplo? Mônica: Na Austrália foi o primeiro país que, fora do Brasil, foi número um. CK: Na Austrália? Eu não sabia. Mônica: Foi, muito antes da França. CK: E como foi que você foi se relacionar com a Lituânia, ou com a Austrália, por exemplo? Era nas feiras? Mônica: Nas Feiras. Claro que o contato com a HarperCollins foi do Alan, o crédito do contato é dele, ele vendeu para a Harper São Francisco em todo idioma inglês e foi ela que vendeu para outras Harpers. Mas eu já ajudei no lançamento. Tipo assim, com o meu 229 apoio para ver como a gente podia fazer, com os materiais, de tudo um pouco eu ajudei ali, mas não com o contato. O relacionamento era nas feiras, nos faxes e cartas, que era o que existia na época. nham vitrines inteiras. Todas as livrarias dos 20 países estavam tomadas pelo “Onze Minutos”. Eu fiquei tão impressionada. Mônica: É impressionante. CK: E no Japão, por exemplo? Na China? Como aconteceu? Mônica: No Japão também foi uma das primeiras traduções. Funciona bem, mas o Japão mudou muito o mercado de 10 anos para cá, com toda parte de ficção internacional, então não é um dos lugares que a gente tem um grande sucesso. Temos todos os livros traduzidos, eles lançam todos iguais, mas o mercado de ficção estrangeira no Japão, ele caiu enormemente. E nos afetou também. E na China, sempre foi um mercado muito difícil e que agora está se abrindo. “O Alquimista” entrou no ano passado, foi o número dois na China, chegou a número um. E os livros estão vendendo bem, mas aí é um trabalho que a gente ainda tem que fazer. Mas a China é também uma circunstância. É um mercado hiper controlado, as editoras foram liberadas tem 5 anos. Metade. A outra metade é do governo. Antes eram 100 por cento do governo. E não que tivesse nenhum livro censurado, nem nada disso, mas você não tem uma estrutura. É o que eu te digo, se você não pode ter a sua criatividade com a indústria ali é muito complicado. CK: Eu fui aos 20 países em 40 dias e foi justo no lançamento e era emocionante de ver. Mônica: Aí foi um trabalho fantástico. CK: E na América Latina sempre foi super bem, né? Eu lembro que em 2003, quando eu fiz uma viagem de trabalho por todos os países, era bem no lançamento do “Onze Minutos”. E foi um fenômeno. Não é que todas as livrarias tinham o livro, todas as livrarias ti- CK: E entre inglês e espanhol, o que vende mais nos Estados Unidos? Mônica: Inglês, claro, mas temos uma venda maravilhosa em espanhol. E na América Latina também. 230 CK: Cada dia eu estava em um país diferente e todas as vitrines. Todas, sem exceção. De shopping de Caracas até a periferia de Manágua, Cidade do México, tudo. Mônica: Mas é isso que eu te falo: muitas vezes pode ter havido um melhor momento aqui, um melhor momento ali, mas os momentos acabam chegando. Como na China agora. Nos Estados Unidos mesmo levou 15 anos para entrar na lista dos mais vendidos do New York Times. E as vendas nos Estados Unidos são exponenciais, então, hoje em dia, a gente vende mais livros do que antes. Por quê? Porque tem sim mercados que a gente vende um pouco menos, mas tem outros que a gente vende muito mais. CK: E hoje, quais são os grandes mercados? Mônica: Os Estados Unidos para a gente é um enorme mercado. Europa também é um enorme mercado. 231 CK: E era uma questão de distribuição nesse caso da Colômbia? Mônica: Não, não é de distribuição não porque eles distribuíram bem, mas uma questão de você entusiasmar o livreiro, você tem que entusiasmar. CK: Vamos voltar para aquela conversa da carta com a proposta da Carmen Balcells. Mônica: Enfim, a gente vai tomar um café e o Paulo fala que tinha recebido essa proposta da Carmen e que era uma oportunidade para ele, é claro, e me pergunta o que eu achava. Se eu achava que teria capacidade de chegar, porque parecia tudo muito difícil. Mas na minha visão não era. Era na dele. não tinha sido, então para mim, 91 não representava um fracasso. E eu não fiquei apreensiva, eu não fiquei nada, eu falei: “Olha, por mim não, eu tenho certeza que isso vai funcionar, eu não tenho nenhuma dúvida que vai funcionar”. E ele me perguntou o que eu achava dele ir com a Carmen Balcells e eu respondi que não sabia. É ao menos o que eu me lembro: “O que eu vou te dizer? Eu não sei como ela é. Eu sei que ela é muito famosa. Mas aqui jogam duas coisas: você ir na mão de uma pessoa muito famosa que te apresente e isso amanhã não funciona, é muito difícil você ter uma segunda oportunidade”. Então tinha que dar CK: E você nem chegou a se sentir ameaçada por aquilo? Mônica: Não. Eu acho que tudo foi tão mágico, a história do Alan era muito mais ameaçadora, era um cara dentro da indústria que conhece um montão de gente, que consegue uma editora nos Estados Unidos, para mim o Alan era muito mais ameaçador. CK: E o Alan tinha intenção de ser agente? Mônica: Quando o livro saiu nos Estados Unidos sim, mas isso até então eu não sabia. O Alan era um cara de dentro. Enfim, o Paulo disse isso, me perguntou o que eu achava. E eu não via como um fracasso não ter editoras naquele momento, até porque um fracasso em que, se eu não tinha tentado? À parte da América Latina, do espanhol e tal? Eu achava que não era ainda o momento, que o momento vinha em breve, ou que o momento tinha chegado naquela hora. Mas 1991 232 233 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu certo, a carta da Carmen Balcells tinha que dar 100 por cento certo. Ela não tinha uma segunda oportunidade. A minha carta, ela tinha uma segunda oportunidade, porque enfim – a Mônica não funcionou, sabe? Eu não sei, para mim era uma escolha dele, não era minha, eu achava que ia dar certo, e o que eu me lembro desse café, foi de ter dito a ele que eu tinha certeza que os livros iam funcionar, que os livros iam dar certo. A Carmen... porque quando eu vi a carta dela depois, ela não diz que ela acha que vai funcionar: “e pode ser eventualmente”. Não tinha o entusiasmo, não era uma carta que dizia: “É o melhor livro que eu já li, me apaixonei, vou recomendar a todas as pessoas”. Era um carta formal: “Você é um autor que vende no Brasil e gostaríamos de representá-lo e eventualmente conseguir umas editoras”, uma coisa assim muito formal, frio, eu não me lembro exatamente da carta, mas na minha cabeça nunca foi uma carta apaixonada. Então eu achava que a coisa ia dar certo, eu não sei porque ele resolveu decidir por mim. Ele diz que é pelo tema da lealdade, da fidelidade. E porque eu não demonstrei, eu acho, nenhuma dúvida. E o Rocco também não tinha conseguido me assustar com aquela história das mil festas e castelos, e histórias que ele tinha visto. Mas talvez eu tenha dito isso porque eu não tinha a menor ideia de como funcionava o mercado. Talvez se eu soubesse, eu tivesse dito: “Com certeza não funciona, é melhor você ir com a Carmen, isso aqui não vai funcionar nunca”. Como eu não tinha a menor idéeia, eu achava que podia funcionar. Mas eu acho que nada tem nenhuma lógica. Eu acho que a lógica do Paulo foi mesmo da fidelidade e do entusiasmo. De alguma forma ele veria 234 isso, que se eu rompo com isso, eu estou rompendo com toda essa magia que foi acontecendo e que ele também sabia ler. Se tem alguém que lê esses sinais, é o Paulo. E a gente se conhece no dia que o editor devolve, o Rocco acerta na mesma hora. Enfim, eram muitos sinais para ele dizer não. CK: A primeira Frankfurt deve assustar. Mônica: Eu não fiquei assustada. Já era essa coisa impressionante sim, enorme, mas eu já tinha a minha agendinha, porque senão você não fala com ninguém. E a gente conseguiu 16 traduções no fim de 93. E eram editoras que eu acho que tinham muita possibilidade. Algumas a gente mudou posteriormente ou logo depois, mas a maioria não. CK: E o Paulo comemorava ou ele tinha ansiedade demais? Mônica: Nessa época, não. Primeiro, eu não tinha tanta comunicação, por não existir email, você não podia seguir tanto as coisas. Os livros ainda tinham que sair. E eu acho que ele teve mais assim, essa ansiedade, quando os livros foram saindo e as coisas foram acontecendo. Não era uma questão de vender um montão de direitos, era mais até que os livros acontecessem. Em 93 a gente já tinha vendido 16 direitos e a história era, como isso vai sair? CK: E você fazia esse acompanhamento como? Você falou que não tinha email... Mônica: No que existia na época, fax, correio. Eu tenho arquivos e arquivos de correspondência, eu me lembro de quando eu ia nos correios, eu achava aquilo 235 tão bom. Era como se você visse tudo aquilo que você fez durante tanto tempo seguindo o seu caminho. CK: Mas não tinha como, né? Hoje você entra no Google. Mônica: É, antes as editoras tinham que informar. CK: E você tinha que confiar. Mônica: Então eu comecei com esse segmento, senão não tinha como entender, como saber. Eu era um Google. Eu acho que isso ajudou muito, porque eu enviava a todos os editores o que ia acontecendo em todos os lugares. O que hoje você pode fazer em 5 minutos. As pessoas não tinham nem ideia de como o “O Alquimista” funcionou na Noruega. Você não vai saber, você não sabe as resenhas, você não sabe nada, então eu pedia a todos que me enviassem porque eu achava relevante, eu fazia os meus dossiês, eu enviava isso a cada mês para as editoras, que é quando ia ao correio, eu acho que isso ajudou muito. Quando o “O Alquimista” foi publicado, as pessoas sabiam que aquilo era uma jóia, que elas tinham as melhores apresentações, eu falava: “Eu acho que a gente vai por aqui, eu acho que isso é muito importante”. Eu sempre fui mandando muita coisa para as editoras, eu dei uma de Google. Google manual. CK: E qual foi a primeira grande surpresa, que deu comemoração? Que você falou: “Nossa, olha o que a gente fez”? Mônica: Para mim foi Frankfurt de 1995. Foi para mim uma revelação, porque em 94 começam a sair as traduções, como no caso da tradução francesa. Porque 236 nos Estados Unidos saem 50 mil cópias, mas levam 2 anos para vender essas 50 mil cópias. De hardcover. Mas eles seguiam apostando no livro, porque senão eles teriam lançado o paperback depois de 9 meses, como eles sempre fazem. E eles não queriam lançar o paperback. Eles queriam dar tempo ao tempo. Em março de 94, sai o “O Alquimista” na França, e eu tinha uma boa relação com a editora nesse momento. Ela convida o Paulo, e o Paulo vai a 30 cidades, faz um super trabalho de formiguinha, conferências que tinham duas ou três pessoas, aprendeu o francês para poder fazer aquelas entrevistas. E quando chega no final de 94, o livro entra em número um. Que é o nosso presente de Natal. Eu tenho uma carta muito bonita da editora, um fax, dizend, que ele era o número um na França. E em 94 já tinha saído em alguns outros lugares também, mas na França ele já era o número um. Então os livros que saem em 1995, como Itália, como Escandinávia, Holanda, eles já vêm com esse selo. É quando o livro entrou nas listas da Espanha, que até então nunca tinha entrado, ele entra depois do sucesso na França. E Turquia, Grécia, enfim, um monte de países. CK: E como é essa comemoração, como foi abrir essa carta? Mônica: Essa carta foi um fax, eu me lembro do fax chegando e era: “Ufa”. Era uma imensa alegria. Ficamos muito contentes, foi o ano que a gente foi passar o ano novo com o Paulo e com a Chris, a gente foi passar com eles lá em Lourdes [no interior da França]. CK: E o Paulo ficou morando no Rio e depois se mudou para a França. 237 Mônica: Isso foi em 2003, acho. CK: Até então ele morava no Rio. Mônica: Morava no Rio. CK: Não passava temporadas aqui, nada disso? Mônica: Passava, mas poucas. Trabalhando, com viagens promocionais só. Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu CK: E isso ele sempre gostou de fazer? Mônica: Sempre gostou. Quer dizer, ele entendia a importância. Ele também diz o que eu sempre digo: Podem falar “ah, as viagens para as 30 cidades francesas ajudaram que o livro entrou nas listas”. E ele diz que nunca ajudou, ele também diz que aquilo não foi relevante. Quando você vai ficando mais velho, aquilo parece que não teve tanta importância. E teve. CK: Hoje é mais difícil tirar ele de casa para trabalhar um livro? Mônica: Não, é diferente. Porque são outras exigências, ele não pode fazer o que ele fazia antes, seria patético, né? E tampouco é tão necessário. A festa de Frankfurt foi maravilhosa, a gente vendeu um milhão de “Brida”, mas são alguns eventos que você realmente pode transformar a vida de um livro hoje em dia. Não é sempre e hoje o Paulo é conhecido demais. Porque o Paulo não é novidade, depende do momento. Assim, se ele voltar após 10 anos num país, gera uma mídia muito legal, mas são momentos diferentes. Então, o grande momento foi 1995, a feira de Frankfurt. Chegar lá e ver aqueles stands que a gente viu, imensos, e que o livro mais importante era o “O Alquimista”, de qualquer país que a gente passasse. Não importava se era na zona espanhola, se era na zona italiana, na zona alemã, era assim único, único. Eu me lembro do meu trajezinho marrom e era aquela coisa: “It’s real”. Não era só eu que pensava isso, mais pessoas pensavam realmente: “It’s really real”. CK: E rápido, não é? Mônica: Em 6 anos. Desde que ele escreveu o livro, 7 anos. E nesse momento veio um agente americano, depois vieram outros agentes americanos também, que vieram falar com o Paulo e o Paulo não aceitou. Mas houve um agente que pegou um avião e foi ao Rio, e por coincidência eu estava no Rio, e ele queria fazer uma proposta para o Paulo para representá-lo, sendo que já estava sendo bem vendido em alguns lugares, nessa época até em 24 idiomas, eu não sei bem, 238 239 mas existiam mais livros e tudo isso, e ele adiantaria ao Paulo 1 milhão de dólares. Não era uma carta fria, o cara estava apostando naquilo. E o Paulo disse que não, disse que não tinha interesse na proposta dele. CK: Isso foi o Paulo que te contou? Mônica: Não, eu estava lá. CK: Você estava na reunião? Mônica: Estava na reunião também. CK: Não acredito! E o cara sabia que era você a agente dele? Mônica: Sabia. Mas todos esses agentes, principalmente os americanos, não a Carmen Balcells, ela sempre me tratou com respeito, mas esse pessoal me via como “nunca vai dar certo”. Primeiro, nunca vai dar certo ser fora dos Estados Unidos, independente se é um gênio ou é uma estúpida, ou o que for, para eles o mercado mundial é os Estados Unidos. CK: E em algum momento você pensou em ir para lá? Mônica: Não. CK: Por que você tinha essa questão com a língua? Mônica: Nunca pensei. E creio que muito do sucesso europeu do Paulo foi por eu estar aqui, por eu ter viajado tanto, porque eu viajava muito em 95, 96 e 97. E gostava muito de viajar e esse contato pessoal era muito importante. A própria Polônia, a gente pensava juntos, acompanhava, ia nas livrarias, e ficava um tempo, então eu acho que foi muito importante. Os Estados Unidos eu sempre me impus respeito tam240 bém, mas eu acho que não funciona assim lá. Lá é muito profissional. A maioria desses agentes vende os direitos mundiais para a editora. Eles não vão vender país por país, isso para eles não existe. “Que trabalho! Lituânia, onde é isso?”. Eles vendem para as editoras, as propostas são mundiais, todos os direitos, a editora que faça o que quiser. Então ele visava muito o mercado americano, eu acho, mas o Paulo não quis. Então não era nenhuma falta de consideração, é que para eles uma coisa fora dos Estados Unidos para eles era irrelevante. CK: E qual é o próximo passo? Mônica: O próximo passo eu acho que é seguir muito presente, seguir ocupando espaço, poder usar de várias formas o conteúdo que a gente tem e os demais livros do Paulo, se ele vai escrever, se ele não vai escrever. CK: Porque o Paulo reitera essa coisa de ter medo de realizar um sonho e não ter para onde ir depois. Você sente isso? Você sente que o sonho está realizado, ou ainda tem algum lugar para chegar? Mônica: Para mim, digamos, o meu sonho ele realizou em 1995, nessa feira de Frankfurt. Se eu algum dia tive um sonho concreto, ele ali foi. Que era no momento em que eu disse que eu não estava enganada, falava para muitas outras pessoas, porque eu tinha certeza que as pessoas do mundo inteiro iam gostar do livro. E os meus amigos na época diziam que eu falava sempre isso, eu não me lembro, e que as pessoas achavam que eu era verdadeiramente maluca. Era uma loucura total. Então quando eu vi esse momento, que obvia241 mente hoje em dia a gente tem um alcance muito maior, tudo muito maior, mas ali eu sabia que o que eu tinha imaginado tinha acontecido. E a partir daí eu fui construindo, dentro das possibilidades. Que o “O Alquimista” fosse o número um na Itália, era uma maravilha, mas que o “Onze Minutos” fosse o número um com 500 mil exemplares é impensável. Porque com 50 mil exemplares você era número um em 1995. Mas com 500 mil, o que é isso? É impensável. Você não visualiza. O “Onze Minutos” foi um sucesso imenso. O que você viu na América Latina foi no mundo inteiro. Foi o livro mais vendido do ano 2003 no mundo! São muitas cópias. Essa foto eu tinha do mundo inteiro! Foi o livro, provavelmente, que mais trabalho eu tive. Eu trabalhava constantemente. Era, assim, de muita alegrias, mas eram muitas coisas. Eu consegui que o Paulo desse muitas entrevistas, e a gente tinha que ter 3 entrevistas por país. O Paulo me ligava e ele me xingava, xingava de todos os nomes, de todos, que ele não aguentava mais explicar a mesma coisa, eu tinha que aguentar todo aquele stress imenso e controlar as coisas. O jornalista tinha que ter lido o livro, você não pode entrevistar alguém e perguntar “do que trata o seu livro?”. E ligava para os editores, pedia para ele fazer um questionário com o jornalista, ele tem que assinar um termo que ele leu o livro, era uma prova oral. Então até encaixar todas as coisas... Mas as reportagens eram maravilhosas, e as pessoas tinham gostado do livro, e você não pode fazer as pessoas gostarem. Então foi uma snow ball, positivíssima, que foi crescendo. Então qual a nossa maior venda? Foi o “Onze Minutos”. Porque o “O Alquimista” vendeu mais, mas vendeu muito mais tempo. Mas vender aquele mun242 daréu de cópias de “Onze Minutos” em meses era impressionante, ele vendeu dez vezes mais rápido que o “O Alquimista”. Eu não sei como te dizer. Ele é o autor mais querido da América Latina. 243 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu TÍTULO #10 Mônica Antunes, fevereiro de 2010 Mônica: Teve um sonho, num dia, que para o Paulo foi muito importante, porque eu escrevi para ele esse sonho. E eu tenho o sonho escrito também no meu diário. Eu tinha encontrado um livro, que era um livro muito importante, e que esse livro ia ajudar muito a humanidade. Eu já tinha lido os livros do Paulo, a gente está falando de outubro de 1989, e um pouco passa um monte de história que eu não me lembro, isso dentro do sonho, e termina um pouco assim: eram os dois, era como uma montanha, era uma coisa assim. Quer dizer, o Paulo morava no Rio, em frente a praia, não tinha nada a ver. E ele via esse importante livro seguindo a sua vida, e ele passava a olhar, ele não interferia mais. CK: E você acha que é esse momento que ele está agora? Mônica: Não, não, eu acho que não. Eu acho que ele ainda está no barco, olhando o mundo e fazendo coisas. Quer dizer, ele antes olhava muito para ele, não muito o mundo, muito para ele mesmo. Aí ele passa a olhar muito o mundo, e ele tem que olhar o mundo e ele simultaneamente, e depois ele vai chegar. Ter o equilíbrio das duas coisas, e depois ele vai seguir. Ele vai ter que seguir sozinho, porque já tem um caminho. Então eu não vejo no Paulo uma pessoa ansiosa, eu acho que ele vai deixar ir. CK: De alguma maneira, você acha que a maior lição do Paulo seria essa essência? Que você falou que influenciou essa geração, é realmente buscar o seu caminho verdadeiro? Mônica: Buscar o seu caminho, absolutamente. De seguir os seus sonhos. Até por mim, eu não tinha ne244 245 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu nhum sonho. Não é uma questão de “ah, eu quero ser médico”. Isso é facílimo, eu acho. “Não, eu quero ser escritor”. Mas você descobrir o seu caminho e olhar o presente. Não adianta não olhar. É viver o dia-a-dia, o hoje é muito importante, o amanhã a gente não sabe o que é. Literalmente. Viver esse dia-a-dia, deixando descobrir as coisas e deixando a vida ser uma aventura, porque eu nunca posso dizer que eu tinha um sonho. Eu vou ter um sonho de ser agente literário? Ninguém sonha isso. Não é nem minha experiência de poder dizer isso. Mas realmente de não ser ovelha, eu acho que a gente tem que dar essa liberdade. As coisas não são tão sérias e nos apresentam tudo muito sério. CK: O que você vai ser quando crescer, né? Mônica: Com tudo, né? E não é algo do tipo: “Você tem que saber lidar, viver e fazer as coisas”. Tampouco é uma questão de ser “paz e amor”, não é isso. Mas de realmente se dar essa autoconfiança. E de poder descobrir as coisas. Eu acho que no meu caminho era mais complicado isso. E deixar que as coisas venham, porque muito dessas histórias eu acho que as coisas vem. CK: Tem mais alguma coisa de importante? Mônica: Não, não. Eu acho que você tem, o que você falou agora, e que eu falei para o Paulo: “A Carol já tem esse livro escrito, perdão, esse filme escrito há muito tempo”. Eu acho que você já sabe a história. E tem a história de amor dos dois, que é uma história linda. A Chris sempre esteve ali. Não que ela tenha ajudado, ela nunca ajudou o Paulo a escrever, não é isso. Mas ele escreveu depois da Chris. O apoio emocional, o espiritual. 246 CK: Ela falou que ele escrevia e ela ficava deitada no sofá, do lado, dormindo. Não para dar palpite, ou escrever, mas estava ali, né, então é bonito ver no depoimento dele também a importância que isso tem. E se o amor é a cola que gruda tudo, como ele me disse, então esse vai ser um filme de amor. E tem, claro essa coisa da busca, da viagem. Eu falei para o ele: “Paulo, eu não sei se você tem um laboratório escondido aqui nesse apartamento, onde você mistura coisas e faz ouro, eu não sei se você vai viver um milhão de anos, mas você é um alquimista, porque você transformou o que você faz em ouro e você conseguiu a vida eterna 247 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu como Shakespeare. Tem 120 milhões de livros espalhados nesse mundo, que nunca vão desaparecer. Na essência, você não precisa me provar nada. Está feito”. E para mim essa é a essência. E foi aí que eu senti que ele era sincero. Ele parou, ficou me olhando e disse: “É isso mesmo, você entendeu tudo”. Mônica: Mas você vai colocar a parte da infância no filme? CK: Eu sempre imaginei começar com ele adolescente, lacrando a cozinha com a fita crepe. Alguém que está prestes a desistir de tudo, literalmente, e que decide ficar. Isso eu sempre achei muito forte, muito bonito. Agora, tem imagens da infância, tem cenas, que para mim são muito fortes. São momentos que trazem a essência do que ele aprendeu e dividiu através dos livros, que eu acho que tinham que estar ali de alguma maneira. Não pode ser simples assim: nasceu, cresceu, a primeira redação, virou escritor. Eu acho que um filme do Paulo pede... Mônica: Pede o mágico, né? A vida dele é mágica. CK: É, eu acho que ele ficou mais seguro com isso quando eu falei: “Eu não preciso de três testemunhas, provar que é tudo verdade, checar documentos e datas”. Não é isso que interessa nesse filme. Interessa a essência, para mim você é um alquimista, tendo um laboratório ou não, vivendo para sempre ou não. Você chegou lá. E quando ele me perguntou: “O que você veio fazer aqui?”; eu falei: “eu vim ver se eu estou no caminho certo. Vim pedir a sua benção”. Que era exatamente o que eu sentia que era importante. E só de estar ali com ele e com a Chris, aquilo para 248 mim foi importantíssimo. Ele pode não ter entendido nada, pode ter achado que perdeu três dias da vida dele com essa maluca que veio aqui, para tomar chá e comer torrada. Mas foi fundamental para entender o quanto aquilo é verdadeiro, o quanto é bonito tudo aquilo, a relação dos dois, e isso me dá uma segurança muito maior para trabalhar. E me traz essas outras possibilidades. Então, quando você me pergunta se tem a infância do Paulo no filme, cronologicamente, 249 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Quando alguém encontra seu caminho, precisa ter coragem suficiente para dar passos errados. As decepções, as derrotas, o desânimo são ferramentas que Deus utiliza para mostrar a estrada. 250 eu acho que não. Não precisa ter o capítulo da infância, o capítulo da adolescência, agora ele vai virar escritor, agora ele vai ficar famoso. Eu acho que é um desafio enorme, por isso eu preciso testar essa estrutura não linear que eu quero fazer, sentar para escrever. Porque o roteiro funciona como um reloginho. Uma cena tem que puxar a outra, e de repente uma cena nessa viagem imaginária que eu estou pensando em fazer, do Paulo e da Chris, puxa uma cena da infância, que puxa ele tentando escrever e não conseguindo, o medo de não conseguir escrever. E aí uma costura que é mágica mesmo. Que é mais difícil, dá um trabalho do cão, mas quando tem um norte muito claro, é possível. E foi esse norte que eu vim buscar com vocês. Quando eu me identifico com a história que eu estou contando, de alguma maneira passa a ser a minha história e por isso pode ser também a história de todo mundo. É como se eu fizesse essa ponte. Quando a gente mexe nesses botões que são universais, como eu falei para o Paulo: “O ser humano é muito óbvio. A gente tem um assunto só, que é a gente mesmo”. E os dramas são os mesmos. E essas histórias muito especiais como a história do Paulo, ajudam a gente a viver ... de uma maneira segura, numa sala escura, em duas horas ... uma experiência muito intensa, que pode mexer com a gente de uma maneira importante. Pode ajudar a mudar a nossa própria história. 251 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu “A vida de Paulo Coelho é cheia de sinais, cheia de caminhos. Um garoto que disse que seria escritor e foi. A verdadeira história do Mago, o peregrino que não parou na pista.” “Durante 8 dias, usei uma prótese de látex que cobria o rosto inteiro, pesava cinco quilos e levava cinco horas de maquiagem. A maior dificuldade foi integrar a minha expressão com o resultado.” Ravel Andrade Júlio Andrade 252 253 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu 254 255 Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu 256 NÃO PARE NA PISTA A Melhor História de Paulo Coelho roteiro Carolina Kotscho Inspirado na vida e na obra de Paulo Coelho 3º Tratamento (POLIMENTO FINAL) 23 de abril de 2013 Dama Filmes www.damafilmes.com 2. 1 INT. SALA/CORREDOR/COZINHA, CASA DA VILA - DIA 1 (1963) As MÃOS MAGRAS terminam de lacrar os vãos da PORTA da cozinha com fita adesiva. As MÃOS MAGRAS de um jovem franzino arrastam uma poltrona pesada. Os versos iniciais da canção “CANTO PARA MINHA MORTE”, de Paulo Coelho e Raul Seixas, em gravação original, cobrem a cena: O garoto franzino abre o forno, liga o gás, e se senta na poltrona. É o JOVEM PAULO COELHO, aos 16 anos, muito magrinho e com os cabelos compridos e desgrenhados. Ele mantém os olhos fixos no FORNO ABERTO. RAUL SEIXAS (V.O.) Eu sei que determinada rua que eu já passei-- RAUL SEIXAS (V.O.) Cada vez que eu me despeço de uma pessoa-- O móvel é levado da sala para a-- CORREDOR, HOSPITAL EM GENEBRA (2013) COZINHA O homem na maca é o escritor PAULO COELHO, AOS 66 ANOS. Ele está coberto por um lençol branco, tem apenas a cabeça descoberta, e recebe medicação intravenosa. Um ENFERMEIRO empurra a maca. -- e posicionado na frente do velho FOGÃO. RAUL SEIXAS (V.O.) -- Não tornará a ouvir o som dos meus passos. Letreiro em sobreposição: GENEBRA, 2013 As mesmas mãos agora carregam um ROLO DE FITA ADESIVA e lacram cuidadosamente todos os vãos das JANELAS. Paulo, bastante dopado, vira o rosto e se emociona ao ver-P.V. DE PAULO, COM A VISÃO DISTORCIDA - AO LADO DELE: CHRISTINA OITICICA (62) -- mulher de Paulo, bonita, elegante, uma mulher muito forte e muito doce --, caminha aflita ao lado da maca. Ela para de caminhar e acena para o marido com um sorriso cheio de carinho e angústia. A imagem de Chris vai ficando cada vez mais longe, até que a PORTA DO CENTRO CIRÚRGICO se fecha entre eles. RAUL SEIXAS (V.O.) Tem uma revista que eu guardo há muitos anos-- E que nunca mais eu vou abrir. Letreiro em sobreposição: RAUL SEIXAS (V.O.) -- Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez. RIO DE JANEIRO, 1963 Início de montagem paralela com-2 COZINHA, CASA DA VILA (1963) I/E. CORREDOR/CENTRO CIRÚRGICO, HOSPITAL EM GENEBRA/RUA - DIA CORREDOR, HOSPITAL EM GENEBRA (2013) O teto branco e iluminado do corredor de um hospital é observado do PONTO DE VISTA de um paciente que está deitado sobre uma maca em movimento. MAIS ADIANTE NO CORREDOR, sempre do ponto de vista do paciente, se revela, através da parede de vidro, a imagem cinza e branca da cidade de Genebra num dia de chuva, com a rua quase deserta. As imagens ficam aos poucos mais confusas e distorcidas, como a visão de alguém que acaba de ser sedado. 2 CENTRO CIRÚRGICO, HOSPITAL EM GENEBRA - EM CONTINUIDADE A EQUIPE MÉDICA cerca a maca. Aparelhos, instrumentos cirúrgicos, sons e luzes se fundem na visão de Paulo, como numa alucinação. A forte LUZ do centro cirúrgico se acende sobre a maca, cegando Paulo. SILÊNCIO. COZINHA, CASA DA VILA (1963) Sentado na frente do forno aberto, o jovem Paulo respira fundo algumas vezes. RAUL SEIXAS (V.O.) A morte, surda, caminha ao meu lado -- E eu não sei em que esquina ela vai me beijar. 3. 4. Paulo tira um TERÇO DE CONTAS coloridas do bolso, o segura firme com as duas mãos, respira fundo novamente e fecha os olhos. TELA PRETA. Soam os primeiros acordes da música “NÃO PARE NA PISTA”, de Paulo Coelho e Raul Seixas, que é apresentada ao vivo na próxima cena. 3 INT. CASA DE SHOW NO RIO DE JANEIRO - NOITE PALCO Paulo e Raul pulam alucinados e enlouquecem a plateia. PAULO E RAUL (O.S.) (CONT.) (CONT’D) Se você para o carro pode te pegar-- Você me xingando de louco pirado-- E o mundo girando. E a gente parado. Meu bem, me dê a mão, que eu vou te levar-- Sem carro e sem medo do guarda multar-- 3 (1974) PAULO COELHO, AOS 27 ANOS, está tão magro, cabeludo e barbudo, quanto seu parceiro de palco, RAUL SEIXAS (29). Os dois estão doidos e felizes, assim como o público animado que lota uma grande casa de show no Rio de Janeiro. P.V. DE PAULO - PISTA Perto do palco, encostada em uma coluna e alheia ao agito do público, LUIZA (35) -- uma morena linda e sedutora -- encara Paulo no palco e sorri com ar de apaixonada. Início dos CRÉDITOS INICIAIS, que entram em sobreposição. Acompanhados da BANDA, Paulo e Raul estão abraçados e cantam juntos a música “Não Pare na Pista”. DE VOLTA A PAULO, NO PALCO, os quatro policiais passam por Luiza, chamando a atenção de Paulo. Mais à frente, ao sinal de Plínio, o grupo se dispersa. PAULO E RAUL Não pare na pista. É muito cedo pra você se acostumar. Amor, não desista. Se você para, o carro pode te pegar. Bibi! Fonfon! Pepê! Se você para o carro pode te pegar-- PAULO E RAUL (CONT.) (CONT’D) -- Meu bem me dê a mão, que eu vou te levar. Sem carro e sem medo, pra outro lugar. O público grita, canta junto. Raul parece passar meio mal e se apoia em Paulo, que também tem alguma dificuldade para parar em pé. Fim dos CRÉDITOS INICIAIS. PALCO PORTA Paulo e Raul vão ao delírio. A mistura de rostos e luzes coloridas parece alucinante para Paulo, mas algo chama sua atenção na plateia. Sua expressão muda imediatamente da euforia para a tensão. Um soldado da Polícia Militar, PLÍNIO (35), sem uniforme, mostra a carteira de identificação (com o brasão da corporação) para o PORTEIRO e é autorizado a entrar. Ele faz um sinal e mais TRÊS SOLDADOS -- LUCAS (30), TÚLIO (28) E MOURA (25) -- passam pela roleta. P.V. DE PAULO - PISTA: Encostado na coluna perto do palco, ao lado de Luiza, o soldado Plínio agora tira fotos de Paulo e Raul. A LUZ FORTE do flash da câmera do soldado preenche a tela. PISTA Os quatro soldados caminham pela pista. Mesmo à paisana, eles destoam completamente do resto do público por conta de suas roupas formais e ar sóbrio. PAULO E RAUL (CONT.) (CONT’D) Não pare na pista. É muito cedo pra você se acostumar. Amor, não desista. Se você para, o carro pode te pegar. Bibi! Fonfon! Pepê! O TÍTULO DO FILME entra em sobreposição: NÃO PARE NA PISTA. 4 INT. COZINHA/CORREDOR/SALA, CASA DA VILA - DIA (1963) O jovem Paulo Coelho segue sentado diante do forno aberto, de olhos fechados. Por uma fresta da janela, um raio de sol invade a cozinha e ilumina o rosto do garoto. Paulo, assustado, abre os olhos. Prende a respiração, estica o braço, e desliga o gás. 4 5. 6. Paulo se levanta, guarda o terço no bolso, e olha preocupado para os lados, muito assustado, como se alguém o estivesse observando. É alguém que ele não pode ver, mas sente -- e teme -- essa presença. P.V. DE PAULO - RUA: Seu cachorro é violentamente atropelado por um carro. DE VOLTA A PAULO. Em choque, horrorizado e culpado, o garoto deixa a faca cair no chão. Ele sente como se tivesse acabado de matar seu cachorro. Paulo olha para cima como se encarasse Deus. A LUZ do sol cega o menino. TELA BRANCA. Paulo abre a gaveta da bancada da pia e pega uma FACA grande, muito afiada. Ele tenta manter a calma e aceitar algo que lhe parece muito cruel, mas inevitável. O garoto fica com os olhos cheios d'água e caminha determinado na direção da porta. Com a faca na mão, Paulo abre a porta da cozinha e caminha pelo longo-- 6 Aos poucos, se revela o modesto sobradinho de classe média, que fica em uma pequena vila do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. A casa é antiga e bem decorada, mas boa parte dos cômodos está estranhamente ocupada por uma grande quantidade de materiais de construção -- tijolos, sacos de cimento e cal, caixas de piso cerâmico e metais -- estocados de maneira muito organizada e metódica. Paulo parece procurar por algo ou alguém. Ao final do corredor, ele chega na-- Um interno -- MARCÃO (35), esquisito -- passa, coça as mãos algumas vezes, e sorri para Paulo. Paulo abaixa a cabeça. Ele está sentado em um banco de madeira, ao lado dos pais, LYGIA (40) -– uma mulher forte, bonita e doce como Christina, porém mais séria e um pouco envelhecida para sua idade -– e PEDRO (50) -– um homem de olhar duro e cabeça erguida. O clima entre eles é tenso e todos seguem em absoluto silêncio. SALA. DOUTOR EDGAR MUTARELLI (50) -- muito seguro e gentil, psiquiatra da instituição -- abre a porta do consultório e chama: O menino encontra TOBIAS, o velho cachorro de estimação da família. Os dois se encaram por alguns instantes. MUTARELLI Paulo Coelho de Souza? Paulo se abaixa e faz um carinho no animal. O cachorro lambe a mão do dono, que sorri profundamente triste. Paulo balança a cabeça para os lados, como quem nega algo que lhe parece ser imposto neste momento. Uma PORTA BATE. Paulo olha para os lados novamente, como se ainda estivesse sendo perseguido. O menino olha fundo nos olhos de Tobias e levanta a faca determinado: vai matar o cachorro. Falta coragem. Apavorado, sem largar a faca, Paulo sai correndo em direção à porta da frente. EXT. CASA DA VILA/VILA/RUA - EM CONTINUIDADE O menino olha para a mãe, pedindo ajuda. Lygia se levanta e chama Paulo. LYGIA Vem, filho. Pedro discretamente puxa Lygia de volta e diz em voz baixa: PEDRO Ele vai sozinho. 5 Lygia olha para o médico, que concorda com Pedro. Angustiada, ela cede, e se despede com um beijo carinhoso na cabeça do filho. Pedro encara Paulo. Paulo encara o pai por alguns instantes, se levanta e entra no consultório sem olhar para trás. Paulo sai da casa transtornado e bate a porta, que não fecha totalmente. O menino atravessa a vila correndo. ATRÁS DELE, o cachorro da família consegue abrir a porta da casa e segue Paulo. Paulo sai da vila e, sem olhar para os lados, atravessa a-RUA. O menino segue em direção a um TERRENO BALDIO. SOM de freada brusca. Paulo para imediatamente e se vira, a tempo de ver-- 6 O jovem Paulo protege com a mão os olhos dos raios de sol que entram pelas grades das janelas de um corredor do segundo andar da Casa de Saúde Doutor Eiras. CORREDOR. 5 INT. CORREDOR, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - OUTRO DIA 7 INT. CONSULTÓRIO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - MOMENTOS DEPOIS Dentro do consultório, médico e paciente estão sentados frente a frente. O psiquiatra encara Paulo com interesse e simpatia. Ele abre um sorriso sincero, mas não diz uma única palavra. 7 7. Mutarelli pega o abridor de cartas, uma bonita FACA DE PRATA, e começa a abrir calmamente alguns envelopes que estão sobre a mesa. Paulo observa o movimento da faca e fica realmente incomodado. Sem se dar conta, o médico faz movimentos um pouco mais agressivos com o objeto. Já quase transtornado, Paulo começa a se explicar confusamente. Fala rápido, aflito. PAULO Eu não queria fazer aquilo. Eu tive que fazer aquilo, mas eu não queria. Eu juro. É que o Anjo da Morte-- Quando a gente chama o Anjo da Morte, ele tem que levar alguém, entende? Mutarelli fica surpreso com o estado de confusão de Paulo. MUTARELLI Um Anjo da Morte? Paulo fica cada vez mais angustiado. PAULO É. Ele. Então-- Quando ele vem, ele tem que levar alguém e eu-- Eu chamei, mas eu não queria mais ir com ele, entende? Então o Tobias apareceu e aí eu-- Eu tive que-Preocupado, o psiquiatra pousa a faca sobre a mesa. Paulo chora. Mutarelli abre uma gaveta e pega um DIÁRIO. É um caderno de capa dura, todo rabiscado, com o nome de Paulo na capa. Paulo parece indignado. O médico abre o caderno em uma página marcada e lê com dificuldade os garranchos do menino, escritos de maneira confusa, compulsiva e tensa. MUTARELLI “-- Eu não queria, mas era como se aquela faca tivesse entrando em mim. Um pedaço de mim morreu hoje, quando eu matei o Tobi”. O médico levanta os olhos e encara Paulo. MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) Foi isso mesmo que você escreveu? É muito difícil entender a sua letra, Paulo. Indignado, o menino arranca o diário das mãos do médico. MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) Mas não foi assim que aconteceu, não é? O seu cachorro morreu atropelado, não foi? 8. PAULO Foi a minha mãe quem te deu isso? O médico confirma. Paulo abraça o caderno com raiva, não se conforma. Mutarelli se levanta, dá a volta e se encosta na mesa, mais próximo de Paulo. MUTARELLI É verdade que você nunca teve uma namorada, Paulo--? Paulo olha para o médico e confirma em silêncio. MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) E por que não? Cada vez mais incomodado, Paulo encolhe os ombros. PAULO Porque eu sou feio. O médico olha com pena para o garoto, que sorri triste, envergonhado. MUTARELLI E foi por isso que você tentou se matar? Paulo nega em silêncio, contendo o choro. Ele deixa o caderno escorregar até o colo, revelando os peitos um pouco inchados sob a camiseta. O médico nota os peitos de Paulo. O menino percebe e reage: PAULO Isso é hormônio-MUTARELLI Olha pra mim, Paulo. Isso é o quê? Paulo só levanta os olhos. PAULO Hormônio que minha mãe me dá pra ver se eu cresço mais-- Deixa o peito assim. MUTARELLI Igual o de uma menina? Paulo se irrita, ergue a cabeça e encara o médico. PAULO Igual de quem toma hormônio pra crescer. 9. MUTARELLI Me conta uma coisa, Paulo-- Você já se imaginou beijando um homem? Pode ser algum amigo seu, um conhecido-Paulo fica perplexo e sem reação por alguns instantes. O médico se curva e fala baixinho, querendo parecer um amigo confiável. MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) Fica tranquilo. Tá tudo bem-- Os seus pais tão preocupados, mas a gente vai cuidar disso. A homossexualidade é-Paulo ri de nervoso e se levanta. Acabou? PAULO MUTARELLI Calma-- Senta aí, rapaz. Vamo conversar mais um pouco-Paulo continua de pé. O médico volta para sua mesa e observa o menino em silêncio por alguns instantes. Mutarelli toca uma campainha, coloca uma folha de receituário na MÁQUINA DE ESCREVER que tem na mesa lateral e começa a datilografar. Visivelmente ansioso para ir embora, Paulo olha fascinado para os DEDOS RÁPIDOS de Mutarelli batendo no teclado, ao mesmo tempo que tenta ler disfarçadamente o que o médico termina de escrever. Paulo agora olha fixamente para a máquina de escrever e não nota quando Mutarelli abre uma caixa de papelão que está no chão, ao lado de sua cadeira. O médico começa a empilhar dezenas de cadernos com os manuscritos caóticos e compulsivos de Paulo sobre a mesa. Quando percebe o movimento do psiquiatra, o menino enche o peito e fala com certo orgulho. PAULO É-- É que eu quero ser escritor, eu-- Eu nunca pensei em ser outra coisa, não, e eu-O médico parece feliz com a animação de Paulo. MUTARELLI Isso é bom-- Escrever é muito bom. Eu acho que é o melhor jeito de organizar o que a gente sente e o que a gente pensa, não é não, Paulo? 10. Paulo sorri para o médico. Mutarelli sorri de volta, confiante de que finalmente estabeleceu uma boa conexão com o novo paciente. Ainda com um sorriso no rosto, Mutarelli pergunta animado: MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) -- E uma profissão? Você já escolheu uma profissão? Paulo fecha a cara e fuzila o médico com um olhar de ódio. Mutarelli não entende a reação do menino. Paulo, altivo e muito seguro, enfrenta o psiquiatra. PAULO Eu sou escritor. Mutarelli sorri com carinho. Parece realmente preocupado com o menino. Paulo está cada vez mais irritado. Mutarelli, apesar de direto, tenta ser doce e trazer Paulo para a realidade. MUTARELLI Cê acha mesmo que alguém um dia vai querer ler essas coisas que você escreve? PAULO Agora acabou? O médico não responde. Sem pressa, ele pega um carimbo na gaveta, carimba com capricho o papel e assina. Mutarelli agora olha fundo nos olhos de Paulo, coloca a mão sobre a pilha de cadernos do menino, e fala com serenidade e carinho, como quem dá um conselho importante. MUTARELLI Isso aqui-- Ser escritor não é isso, Paulo. Essas coisas, são coisas que a gente escreve só pra gente-- A sua história só interessa pra você mesmo, entende? Paulo encara o médico, dividido entre a raiva e as lágrimas. Tenta conter as duas. Mutarelli tenta fazer graça: MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) E com essa letra, rapaz, sei não-- Acho que nem você vai conseguir ler esses garranchos que você escreve. O médico acha graça da própria brincadeira. Paulo, não. Ele encara o médico por alguns instantes e se vira para ir embora. Mutarelli toca novamente a campainha. DOIS ENFERMEIROS entram imediatamente no consultório e impedem a passagem de Paulo, que fica acuado. Mutarelli entrega a receita para o ENFERMEIRO 1. 11. 12. MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) Ala 2. Dieta liberada. Paulo abre um vão na persiana da janela e observa. O ENFERMEIRO 2 segura no braço de Paulo. Aflito, ele se livra do enfermeiro e vai até a porta. 8 I/E. CORREDOR/ESTACIONAMENTO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - EM CONTINUIDADE P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO VÃO DA PERSIANA - RUA 8 PAULO (O.S.) Vamo embora daqui, Chris. Paulo abre a porta e procura pelos pais. P.V. DE PAULO - CORREDOR: O banco em que ele estava sentado com os pais antes da consulta está vazio. DE VOLTA A PAULO, que arranca o acesso que tem preso no braço. Chris se aproxima e tenta detê-lo com carinho. DE VOLTA A PAULO. Angustiado, ele olha para os lados. Ninguém. Paulo-- Paulo vai até o outro lado do corredor e olha através das grades. PAULO Eu tenho que sair daqui-CHRIS Volta pra cama, por favor. Você podia ter morrido, eu-- e Lygia discutem ao lado do carro. Não é possível ouvir eles falam. Pedro abre a porta do passageiro e faz um para Lygia entrar. Ela olha na direção de Paulo, mas vê. Pedro e Lygia entram no carro. PAULO Mas eu não morri, certo? O carro parte, passa pelo portão da clínica e se afasta, desaparecendo do campo de visão de Paulo. Paulo-- A deslumbrante paisagem do Rio de Janeiro vista através das grades de ferro. Dela quem? DE VOLTA A PAULO. Atrás das grades, Paulo está desolado. Ele tenta se conter, mas uma LÁGRIMA corre em seu rosto. I/E. QUARTO, HOSPITAL EM GENEBRA/RUA - DIA (2013) Uma GOTA de soro cai lentamente do dosador e caminha pelo acesso em direção ao braço do paciente. Quando outra GOTA vai cair, o dosador balança bruscamente. É Paulo Coelho (66) -cabelos quase raspados, com um pequeno rabinho na nuca (como os dos Hare Krishnas) e cavanhaque brancos -- quem levanta agitado da cama do hospital. Ele segue com alguma dificuldade na direção da janela. DO OUTRO LADO DO QUARTO, Chris, a mulher de Paulo, dorme de roupa e toda torta em uma poltrona. Ela acorda assustada e observa os movimentos do marido. CHRIS PAULO Tá tudo bem-- Eu tô aqui, Chris. E eu-- Eu não tenho mais medo dela. P.V. DE PAULO - AO FUNDO 9 CHRIS Paulo olha fundo nos olhos de Chris. P.V. DE PAULO - ESTACIONAMENTO Pedro o que gesto não o A chuva cai na rua em Genebra. Algumas POUCAS PESSOAS caminham apressadas, com suas capas pesadas e guarda-chuvas escuros. 9 CHRIS Chris, preocupada, faz menção de apertar a campainha para chamar a enfermeira. Paulo segura com carinho o braço da mulher e a detém. PAULO Vem cá, vem-Paulo leva Chris até a janela e abre novamente um vão na persiana. PAULO (CONT.) (CONT’D) Olha lá-- Tá vendo aquelas pessoas lá fora? Tá vendo? A maioria tá só respirando. Eu-- É isso que a morte me diz, Chris-- Eu quero morrer vivendo, entende? Eu quero viver de verdade. 13. 14. Paulo, determinado, tira a camisola do hospital e veste a roupa. O PONTEIRO DOS SEGUNDOS parece girar mais lentamente a cada segundo, e o som que ele produz é onipresente, abafado, angustiante. PAULO (CONT.) (CONT’D) Liga lá pra Mônica, meu amor. Diz que a gente vai na festa. O jovem Paulo está sentado na beira da cama, catatônico. Com os cabelos cortados bem curtinhos, ele olha para o relógio fixamente, sem piscar, com a boca entreaberta. Chris acha graça e sorri, como se Paulo estivesse brincando. Ele não gosta da reação da mulher. O que foi? SOBRE O CRIADO-MUDO, ao lado da cama de ferro, um diário todo rabiscado, o TERÇO DE CONTAS coloridas (o mesmo da cena de abertura) e um PRATO DE SOPA intocado. PAULO (CONT.) (CONT’D) Uma MOSCA se aproxima do prato de sopa. O ZUNIDO alto da mosca agora compete com o SOM do ponteiro do relógio. Paulo divide o olhar entre o relógio e a mosca. O relógio e a mosca. O relógio e a -- Paulo, num gesto rápido, inesperado, pega a mosca com a mão antes que ela consiga pousar na sopa. CHRIS Ninguém sai viajando depois de uma cirurgia no coração, Paulo. Paulo começa a perder a paciência e corta Chris. P.V. DE PAULO - PRÓXIMO AO ROSTO: Paulo abre lentamente os dedos e revela a mosca agonizando na palma de sua mão. Ele observa a mosca por alguns instantes. Paulo leva o dedo indicador da outra mão até a mosca e a esmaga lentamente. PAULO Não foi uma cirurgia, foi um procedimento. Chris encara o marido com muita preocupação. DE VOLTA A PAULO, que observa fixamente a mosca agonizando em sua mão. CHRIS Viajar pra ir numa festa agora, Paulo? Você não-- Uma ENFERMEIRA entra no quarto e entrega um copinho com comprimidos e um outro copo com água para Paulo. PAULO Que dia é hoje? É hoje que eles vêm? PAULO É a minha festa, Chris. Chris se esforça para segurar a angústia e as lágrimas. ENFERMEIRA Visita é só na terceira semana. CHRIS Espera o médico chegar e a gente-- PAULO Falta muito? Paulo nota a preocupação de Chris e abaixa o tom, falando com mais carinho. Eu-- A enfermeira olha para o prato cheio de sopa. PAULO ENFERMEIRA Se não comer, vai faltar cada vez mais. O fim deste diálogo cobre o início da próxima cena. 10 INT. QUARTO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - TARDE (1963) P.V. DE PAULO, DEITADO NA CAMA - PAREDE: Um velho RELÓGIO analógico pendurado na parede marca as horas. PAULO (V.O.) -- Eu não tenho esse tempo pra perder, Chris. Não tenho. 10 PAULO Falta quanto? ENFERMEIRA Toma o remedinho, toma. Vai ficar tudo bem-- 15. 11 INT. QUARTO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - PASSAGEM DE TEMPO 16. 11 Paulo, sentado na cama, com cara de quem acabou de acordar -no mesmo quarto, na mesma posição e com o mesmo pijama da cena anterior --, vira um copinho de plástico cheio de remédios na boca. Ele deixa o copinho vazio sobre o criadomudo que fica ao lado da cama, pega um outro copinho com água, e dá um grande gole, engolindo todos os remédios de uma só vez. GRAVAÇÃO [[Anúncio interno para os passageiros do trem indica o nome da estação.]] 14 PAULO (O.S.) Pega a sua bolsa, Chris. No mesmo quarto -- com outro pijama e na mesma posição -Paulo tem um copinho de plástico em cada uma das mãos: um com remédios; outro com água. Está mais dopado e mais magro. Com movimentos que parecem mecânicos, ele vira um copo e depois o outro. Tem o olhar distante, triste. CHRIS (O.S.) Mas ainda não é aqui que a gente desce, Paulo-PAULO (O.S.) Agora é. Eu falei com a Mônica, já tem um carro aqui esperando a gente. OUTRO DIA Na mesma posição, com outro pijama e com uma aparência ainda mais frágil e decadente, Paulo vira o copinho de remédios na boca e engole os comprimidos a seco. Ao lado dele, SOBRE O CRIADO-MUDO, além do TERÇO DE CONTAS, há uma pequena pilha de CADERNOS COM ANOTAÇÕES. A cena segue do ponto de vista de Paulo, que se levanta e caminha entre os outros passageiros em direção à porta. PAULO (CONT.) (CONT’D) Vem, Chris. Eu preciso fumar um cigarro. OUTRA NOITE 15 Paulo, de pijamas, completamente dopado e com olheiras profundas, está sentado na cama e encara a IMAGEM DE JESUS CRISTO presa ao crucifixo que está pendurado na parede, sobre a cabeceira da cama. Ao passar na frente de uma LIVRARIA, Chris se detém por alguns instantes e sorri ao notar-A VITRINE DA LIVRARIA, que está repleta de obras de Paulo Coelho em comemoração aos 25 anos da publicação do livro “O ALQUIMISTA”. Na montagem, as cenas dessa passagem de tempo são intercaladas com-12 Do ponto de vista de uma passageiro, através da janela, se revela a paisagem do interior da Espanha. 13 EXT. ESTAÇÃO DE TREM NA ESPANHA - DIA (2013) Um TREM para na estação. INT. ESTAÇÃO DE TREM NA ESPANHA - DIA Paulo e Chris caminham determinados pela área de desembarque da estação. Os dois vestem roupas pretas, formais. Paulo está de terno, camisa e gravata. Paulo, irreverente, imita a expressão resignada de Jesus por alguns instantes. Sem tirar os olhos da imagem de Cristo, Paulo toma os remédios a seco, comprimido por comprimido. Ao terminar, ele se deita e apaga a luz para dormir. INT. TREM - EM MOVIMENTO - DIA 14 P.V. DE PAULO: DENTRO DO TREM, PERTO DA PORTA, alguns PASSAGEIROS se apressam para descer com suas malas. OUTRO DIA 12 INT. TREM - DIA 13 Paulo segue reto. Está de óculos escuros e tenta seguir despercebido. Sem sucesso. Por onde passa, ele chama a atenção de todos. Com muito respeito, ALGUNS FÃS se aproximam para pedir autógrafos ou simplesmente para cumprimentar Paulo. Paulo dá um autógrafo. Chris se aproxima. Está um pouco aflita. Ela fala baixinho com o marido: CHRIS Eu vou no banheiro e já volto. 15 17. 18. Chris se afasta. Paulo recebe os fãs com carinho e atenção. Depois de tirar algumas fotos, Paulo sai andando apressado na direção do banheiro, à procura de Chris. No caminho, ele passa na frente de um espelho e se olha: JAY ¿¿Lo sabes? ¿Y celebrar con una fiesta una conquista tan antigua es lo mejor que puedes hacer? Si Dios-- P.V. DE PAULO - NO ESPELHO: Paulo tem o ar cansado, envelhecido. Passa a mão na cabeça e no cavanhaque. PAULO Dios debe tener mejores cosas que hacer que preocuparse por mí, Jay. Y tu también, ¿no?. DE VOLTA A PAULO que, um pouco incomodado com a imagem refletida no espelho, tira a gravata e a guarda no bolso do paletó. Ele olha em volta novamente, à procura de Chris. Jay sorri, não se abala. Ele tira um papel e uma caneta do bolso e anota algo. Paulo avista Chris vindo ao longe. P.V. DE PAULO - DENTRO DE UMA LOJA DE ROUPAS PAULO (CONT.) (CONT’D) Ahora viene Chris. Um MANEQUIM veste uma bonita e jovial JAQUETA DE COURO PRETA. 16 INT. LOJA DE ROUPAS - MOMENTOS DEPOIS Jay dobra o papel e o entrega para Paulo. 16 JAY Lo sé. Entrégale esto. Dentro da loja, na frente de outro espelho, Paulo (já sem o paletó) posiciona a jaqueta diante de seu corpo. Paulo veste a jaqueta de couro e abre o primeiro botão da camisa. Jay se afasta. Chris, distraída, se aproxima sem notar Jay. Paulo enfia o papel que recebeu de Jay no bolso da calça, se esforça para sorrir e mostra a jaqueta para a mulher, pedindo aprovação. Chris sorri. P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO REFLEXO NO ESPELHO - ATRÁS DELE: JAY (65), o mestre de Paulo -- grisalho, um executivo bem sucedido, com cara de boa gente -- sorri com ironia. CHRIS Tá engraçado. Paulo, surpreso, se vira assustado como quem acaba de ver um fantasma. Mas Jay realmente está ali e o cumprimenta com um sorriso largo no rosto. Paulo fica feliz como quem reencontra um velho amigo. Paulo não gosta muito do comentário. Ele tira a jaqueta, desistindo de comprá-la, e fica sério novamente. PAULO Vamo, Chris. A gente tá atrasado. PAULO ¿Vienes a mi fiesta? Chris pega a jaqueta, sorri, e se dirige ao caixa. Jay é de uma sinceridade cortante. JAY ¿Vas tu? Creí que no tenias más tiempo que perder con eso. Paulo fica incomodado, mas não responde. Jay segue provocando. JAY (CONT.) (CONT’D) El secreto de cualquier conquista, Paulo-Paulo termina a frase por Jay, sem muita paciência. PAULO -- Es saber que hacer con ella. Ya lo sé, Jay. Já venho. 17 CHRIS E/I. ESTAÇÃO DE TREM NA ESPANHA/CARRO - MOMENTOS DEPOIS Do lado de fora da estação, JUAN (35) -- o motorista, de terno -- espera o casal ao lado de um CARRO LUXUOSO. Juan fala em espanhol. E fala sem parar. JUAN Juan. Encantado-- oye, es un placer ¿eh? Me encanta llevar a famosos. ¿Escritor, verdad? Yo también quería ser escritor, vivir de contar historias-- Eso si es vida ¿a que si? 17 19. 20. JUAN (CONT.) (CONT’D) Yo-- yo quería ser actor, pero todavía no me ha tocado. Simplemente, no me ha tocado. Todo en la vida es suerte ¿Verdad? Seguro que usted conoce a mucho famoseo ¿Verdad?. A mi madre, le encantan esas revistas donde salen los famosos. Mi sueño es ser portada de una de esas revistas. Esas dónde solo hay fotos ¿Me pillas? Ya me gustaría que mi madre me viera en una de esas revistas. ¡Le encantaría! Seguro que hay un mogollón de fotógrafos en la fiesta esa dónde os vaís. ¿Verdad? Paulo cumprimenta o motorista e abre um sorriso amarelo. Juan coloca a mala de Chris e a sacola da loja no porta-malas e abre a porta de trás para ela. Chris entra no carro. Paulo, incomodado com o papo do motorista, olha no relógio, encosta no carro e acende um cigarro. Ele observa sua jaqueta nova, com certo desconforto. DENTRO DO CARRO PARADO O motorista, ansioso, olha no relógio. CHRIS ¿Está muy lejos de aquí? JUAN Sin atasco, unas dos horas. 18 E/I. ESTRADA/CARRO, ESPANHA - EM MOVIMENTO - TARDE Paulo, a ponto de explodir, avista um posto de gasolina na beira da estrada e faz um sinal para o motorista. PAULO Salimos ahí, por favor. 18 O carro luxuoso segue por uma autopista. DENTRO DO CARRO, o motorista não para de falar. O clima é de constrangimento. 19 19 Chris e o motorista descem do carro e seguem na direção da LANCHONETE. Paulo desce também, mas encosta no automóvel e pega um cigarro. Ele mostra o cigarro para Chris. JUAN ¿ ¿Ah, entonces “La Justicia del Universo” no es suyo? Creía que sí-- PAULO Eu te espero aqui. No banco do passageiro, Paulo, irritado, segue em silêncio. Chris ri disfarçadamente no banco de trás. Juan não desiste. JUAN (CONT.) (CONT’D) Pero “El Alquimista” sí que lo es ¿verdad? Ese lo he leído. Soy gallego. Por eso lo leí en portugués directamente. Es casi lo mismo, ¿verdad? Creo que tenía unos 15 años o algo así-- No me acuerdo muy bien de la historia, pero creo que me gustó ¿eh? Ese me gustó y recuerdo que a mis padres también. Mi padre-- Mi padre también es escritor. Bueno-- la verdad es que es conductor. Trabaja para una funeraria, pero escribe poesía. Es precioso lo que escribe el hombre-debería haberse dedicado a eso, pero-- Con lo difícil que es tirar pa’delante-- Mi padre puede no haber tenido la suerte que usted ha tenido, pero tiene talento, el hombre. Eso sí que lo tiene. Pero hace falta tener suerte en la vida y la vida ha sido dura con mi padre. (MORE) EXT. ESTACIONAMENTO, POSTO DE GASOLINA - MOMENTOS DEPOIS P.V. DE PAULO: Chris se afasta em direção à lanchonete. Mais adiante, um GRUPO DE CINCO JOVENS chama a atenção de Paulo. São mochileiros, com roupas surradas e cabelos desgrenhados. Eles dividem um único sanduíche e parecem leves, realmente felizes. Um dos garotos -- de cavanhaque e óculos aviador, vestindo uma jaqueta de couro surrada -- é muito parecido com o Paulo jovem que estava cantando no palco com Raul Seixas. O jovem olha para Paulo. DE VOLTA A PAULO, que não consegue tirar os olhos do grupo. Está mexido com o que vê. 20 EXT. ESTACIONAMENTO, POSTO DE GASOLINA - MOMENTOS DEPOIS Chris volta e não encontra o carro no lugar em que estava. P.V. DE CHRIS - AO FUNDO: Nos fundos do estacionamento, o carro luxuoso vai e volta alguns metros, repetidamente, em um estranho movimento. Ao se aproximar, Chris reconhece Paulo no comando do carro. NO ASFALTO, sob as rodas do carro, a JAQUETA DE COURO nova é atropelada algumas vezes. 20 21. 22. Paulo desce do carro e recupera a jaqueta, agora com uma cara mais surrada. Ele veste a jaqueta e olha para a mulher, pedindo aprovação novamente. Chris ri e se aproxima do marido. Ela limpa a poeira do casaco com as mãos e brinca. 22 Em outro ponto da estrada, Paulo para o carro no acostamento, pega o celular e disca um número. O nome de MÔNICA ANTUNES aparece no mostrador do aparelho de som do carro, mas a chamada não se completa. Paulo, aflito, tenta novamente. MÔNICA (45) atende, dando início a uma CHAMADA em VIVA VOZ nos auto-falantes do carro. CHRIS Bem melhor. Parece até que tá cheia de história pra contar. Paulo tenta rir, mas realmente não gosta muito do que ouve. MÔNICA (V.O.) (no viva-voz) Pelo amor de Deus-- Cadê você, Paulo? Você tá bem? O motorista me ligou desesperado-- Como é que você larga o sujeito assim no meio da estrada e não me avisa? Eu-- PAULO Pô, Chris-Ela sorri carinhosa, um pouco arrependida do que disse. CHRIS Ficou bom. Ficou assim-- Mais-- PAULO Fica tranquila. A gente tá no caminho-- Em menos de duas horas eu tô aí. Chris não sabe muito o que dizer para melhorar a situação. Aflito com o horário, Paulo olha novamente no relógio. Ele olha em volta, mas nem sinal do motorista. Paulo entra no carro, assume a direção, abre a porta do passageiro e faz um sinal para que a mulher o acompanhe. Chris hesita. Paulo insiste. MÔNICA (V.O.) (no viva-voz) Vem devagar, que eu já desmarquei todas as entrevistas. Que susto! Eu fiquei com medo que-- Sei lá-- PAULO Vem, Chris! SOM de interferência. A voz de Mônica some. Na tela do aparelho de som, aparece a mensagem: SINAL PERDIDO. Paulo observa a tela do celular com a mesma mensagem. PORTA DA LANCHONETE - MOMENTOS DEPOIS 21 I/E. CARRO/ESTRADA NA ESPANHA - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE O motorista sai com algumas garrafinhas de água mineral nas mãos, no exato momento em que o carro dirigido por Paulo passa por ele. PAULO E se for um sinal, Chris? P.V. DO MOTORISTA: O carro segue para a estrada, acelera, e some no horizonte. CHRIS É o sinal. Daqui a pouco volta. I/E. CARRO/ESTRADA, ES - EM MOVIMENTO - MOMENTOS DEPOIS Chris olha para Paulo, esperando uma explicação. Paulo, muito sério, olha para Chris. Que foi? PAULO Chris balança a cabeça e sorri. Paulo sorri com uma cara marota para Chris. Os dois começam a rir juntos. É uma risada gostosa, cúmplice. Paulo liga o rádio e encontra uma estação que toca um ROCK. Paulo aumenta o volume, canta junto e acelera o carro com prazer, como um garoto que acaba de ganhar um brinquedo novo. Chris observa o marido e ri com certa tensão, numa mistura de encantamento e preocupação. 21 PAULO Não é desse sinal que eu tô falando, Chris-Chris fica séria e encara Paulo. CHRIS Não, Paulo. Você disse que ia e agora tá todo mundo lá te esperando. Nem pensa nisso. PAULO São seis horas, Chris. O relógio marca 18:00hs. Paulo e Chris, em perfeita sincronia, fazem o sinal da cruz, fecham os olhos e, em silêncio, fazem uma breve oração. Ao final, com a mão direita, Paulo faz um movimento circular sobre a própria cabeça. 22 23. 23 E/I. ESTRADA DE TERRA, CAMINHO DE SANTIAGO/CARRO - ENTARDECER 23 VISTO DE LONGE, o carro de Paulo cruza uma estradinha sinuosa no meio do nada. DENTRO DO CARRO: a estradinha é linda, mas não há qualquer placa ou sinalização. Paulo diminui a velocidade, aperta nervoso o GPS, que está sem sinal, e abre o porta luvas. Estão perdidos. PAULO Vê se tem um mapa aí, Chris. Ela olha e balança a cabeça para os lados, em negativa. Paulo segue em frente, até encontrar uma encruzilhada. Ele para o carro e olha para Chris, esperando uma decisão. PAULO (CONT.) (CONT’D) O que cê acha, Chris? CHRIS Eu acho que a gente já passou aqui, não passou? Paulo abraça a direção e observa a estrada, pensativo. Ele pega o celular. Sem sinal. Paulo abre a porta. DO LADO DE FORA, Paulo desce do carro, caminha alguns metros e observa a tranquilidade de um HOMEM que caminha sozinho e passa por ele, a PAISAGEM BUCÓLICA, os PÁSSAROS. Paulo tira o maço de cigarros do bolso e pega junto o papel que Jay lhe deu na estação de trem e pediu que ele entregasse para Chris. Curioso, Paulo desdobra o papel e encontra o desenho simples de uma ESPADA. Paulo sorri, respira fundo e levanta a cabeça. P.V. DE PAULO - AO LONGE: Uma FLECHA AMARELA pintada num poste e uma PLACA de madeira rústica que indica: SANTIAGO DE COMPOSTELA, 247KM. A expressão de Paulo se transforma. Agora ele tem certeza: era um sinal. Paulo volta para o carro e encontra Chris tentando ligar para Mônica, sem sucesso. Paulo pega o celular da mão de Chris. O celular começa a tocar. É o nome de Mônica que aparece na tela. Paulo desliga o celular. Imediatamente, o celular de Chris começa a tocar dentro da bolsa. Paulo estende a mão, Chris lhe entrega também o outro aparelho. Paulo atende a chamada de Mônica. PAULO Oi, Mônica. CHAMADA ENTRECORTADA COM-- 24. 24 EXT. PARADOR/PRAÇA DE SANTIAGO - MESMO TEMPO É um castelo imponente, sóbrio. Os CONVIDADOS, vestidos formalmente, começam a chegar. A entrada principal está enfeitada para a festa. Uma enorme FAIXA indica que o evento comemora 25 anos do lançamento de “O Alquimista” e apresenta o sucesso do livro no mundo, com fotos das capas em diversas línguas e números de vendas. Mônica fala ao celular enquanto atravessa a confusão de convidados e fotógrafos que começa a se formar. MÔNICA (ao celular) Só um minuto, Paulo. Mônica está aflita com a ligação que foi cortada e a falta de notícias. Ela tem dificuldades de ouvir o que Paulo fala. Mônica se afasta da entrada da festa, deixando a confusão para trás, e segue andando pela imponente praça central de Santiago de Compostela. MÔNICA (CONT.) (CONT’D) Como? -- Como não vem mais, Paulo? O que é que aconteceu? ESTRADA DE TERRA Paulo fala ao telefone. PAULO Faz vinte e cinco anos que eu escrevi essa história, Mônica-- Já foi. MÔNICA Você disse que chegava em duas horas. Eu confirmei, eu-- Eu preciso de você aqui, Paulo. PAULO E eu preciso de outra história pra contar, Mônica. MÔNICA Que história, Paulo? Você precisa se cuidar-- Você só veio até aqui por causa dessa festa, não foi? Então vem. Seus amigos, a imprensa-Tá todo mundo aqui. PAULO Eu não vou, Mônica. MÔNICA Então você foge do hospital, você não vem pra sua festa-- 24 25. 26. PAULO Confia em mim-- Paulo segue em silêncio. Lygia insiste, carinhosa. LYGIA (CONT.) (CONT’D) Cê engordou um pouquinho, né? Tá tão bonito-- Foi bom lá, não foi? MÔNICA -- Você vai pra onde, Paulo? Aonde é que você quer chegar? Paulo olha para Lygia e demora um pouco para responder. Ele parece muito frágil, está ainda mais magro do que antes da internação, abatido e meio dopado pelo efeito dos remédios. PAULO Confia em mim, Mônica. Eu chego. Em algum lugar eu vou chegar. Mônica de repente para de caminhar. Ela olha para cima e sorri. Foi ótimo. Paulo desliga o rádio, vira o rosto e fica com o olhar perdido na paisagem em movimento que vê através da janela do carro. P.V. DE MÔNICA: A Catedral de Santiago. DE VOLTA A MÔNICA, que ri e desiste de discutir com Paulo. MÔNICA Vai, claro que vai. Você sempre chega onde você quer, Paulo. P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA JANELA - RUAS DO RIO DE JANEIRO A linda paisagem de um dia de sol no Rio de Janeiro: GENTE BONITA caminha pelo calçadão de Copacabana; um MENINO passeia com seu CACHORRO; PESSOAS se divertem na praia; uma MULHER BONITA atravessa a rua, vestindo apenas um biquíni. E/I. ESTRADA DE TERRA, CAMINHO DE SANTIAGO/CARRO - ANOITECER Paulo sorri e desliga o celular. Ele enfia os dois aparelhos desligados no bolso e entra no carro. LYGIA (O.S.) Posso te contar uma coisa, Paulinho? Promete que não conta pro seu pai? DENTRO DO CARRO, Paulo liga o motor. Chris observa, intrigada. DE VOLTA A PAULO, que agora olha para a mãe com mais interesse. Ela abre um sorriso maroto. MOMENTOS DEPOIS, DO LADO DE FORA, o carro parte e segue na direção indicada pela flecha amarela, rumo a Santiago de Compostela. LYGIA (CONT.) (CONT’D) Eu comprei um biquíni-- E já usei duas vezes! DENTRO DO CARRO, mais leve e relaxado, Paulo liga o aparelho de som do carro e procura novamente uma rádio que toque música. 25 I/E. CARRO DE LYGIA/RUAS, RJ - EM MOVIMENTO - DIA (1963) A MÃO de Lygia, mãe de Paulo, sintoniza uma MÚSICA SUAVE no antigo RÁDIO DO CARRO. Em seguida, a MÃO do jovem Paulo gira o botão do aparelho até encontrar um estridente SOLO DE GUITARRA. Ele aumenta o volume. Dentro do carro em movimento, Lygia e Paulo seguem em silêncio. A mãe olha um pouco aflita para o filho, que parece apático, fora do ar. Lygia abaixa o som do rádio. LYGIA Conversa comigo, Paulinho. Me conta alguma coisa-- PAULO Paulo quase consegue sorrir. De alguma maneira, ele se sente acolhido e confortado pela pequena transgressão da mãe. 25 26 E/I. CASA DA VILA - DIA SÔNIA MARIA (14) -- a irmã caçula de Paulo -- o espera na porta de casa. Ela sorri um pouco intimidada para o irmão. Lygia observa de longe. Paulo ainda está meio dopado, não consegue responder, nem dar qualquer atenção para a irmã. Sônia acha tudo muito estranho. SÔNIA Paulo? Tá tudo bem? Sônia, preocupada, olha para a mãe pedindo uma explicação. Lygia faz um sinal para Sônia não insistir. Sob o olhar preocupado de Sônia e Lygia, Paulo passa reto pela sala e sobe direto para o-- 26 27. 27 INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - MOMENTOS DEPOIS 28. 27 Amém. É um quarto pequeno, muito arrumado, com uma cama marquesa, paredes brancas, uma estante com alguns livros e uma escrivaninha de madeira. Paulo deixa a mochila no chão e deita de roupa e sapatos sobre a cama. Não tira sequer a colcha de renda que cobre os lençóis. 28 INT. SALA DE JANTAR/COZINHA, CASA DA VILA - MAIS TARDE Os três jantam calados. O clima não é bom. Depois de algum tempo, Pedro rompe o silêncio. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Ele te disse alguma coisa? 28 Nada. Já é noite. Lygia põe o jantar na mesa. Ao fundo, Sônia Maria lava as mãos na cozinha. Pedro, o pai de Paulo, acaba de chegar do trabalho. Ele deixa a pasta sobre o aparador, pendura o paletó na cadeira, coloca um LP de ópera para tocar na vitrola e se prepara para sentar. PEDRO O que é que a gente fez com esse menino, Lygia? Sônia observa os pais em silêncio. Os olhos de Lygia se enchem de lágrimas. Ela olha fundo nos olhos de Pedro e fala baixinho, fazendo força para acreditar nas próprias palavras. SÔNIA Tá dormindo. Chegou tão abatido-PEDRO Chama ele pra jantar, por favor, Sônia. LYGIA Vai ficar tudo bem. Ele vai ficar bem. LYGIA Não, Pedro. Deixa ele descansar-- 31 Pedro se levanta e sobe a escada na direção dos quartos. Lygia o segue. P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA JANELA - VILA Pedro Coelho orienta o MOTORISTA do caminhão de uma loja de materiais de construção que faz uma complicada manobra para estacionar na frente da casa. LYGIA Deixa ele dormir, Pedro. Amanhã ele acorda mais disposto, vocês conversam com calma. QUARTO DE PAULO Pedro fica visivelmente abalado com o estado do filho e concorda com Lygia. Com a expressão triste, ele apaga a luz do quarto. Pedro, Lygia e Sônia terminam de fazer uma oração silenciosa antes do jantar. 31 P.V. DE PAULO, AO ABRIR OS OLHOS: O quarto está na penumbra, parcialmente iluminado pela luz do sol que atravessa a veneziana da janela. SOA mais uma vez a BUZINA do caminhão. Paulo se levanta ainda meio sonado, segue até a janela, afasta a cortina e olha por uma fresta da veneziana. INT. CORREDOR/QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - MOMENTOS DEPOIS 29 INT. SALA DE JANTAR, CASA DA VILA - MOMENTOS DEPOIS I/E. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA/VILA - MANHÃ Sobre a TELA PRETA, SOM de buzina de caminhão. Pedro abre a porta do quarto de Paulo e acende a luz. Paulo está largado na cama, dormindo profundamente. Pedro observa o filho e hesita por alguns instantes antes de acordar o garoto. Lygia chega, segura no braço do marido com carinho e pede baixinho. 30 LYGIA Pedro, angustiado, balança a cabeça para os lados e encara a mulher. PEDRO Cadê o Paulo? 29 PEDRO Paulo respira fundo e estica o corpo, dolorido depois das muitas horas de sono profundo. 30 32 INT. QUARTO DO ANDAR DE BAIXO, CASA DA VILA - MAIS TARDE Em um dos quartos do andar de baixo da casa, Paulo ajuda o pai a organizar o material que acaba de chegar. São peças de louça de banheiro. 32 29. 30. O quarto está quase todo tomado por sacos de cimento, azulejos e caixas de piso cerâmico. O menino ainda parece um pouco apático, distante. PAULO Você sabe o que eu quero. Paulo desloca uma pilha de caixas, enquanto Pedro confere as novas cubas, bidês e vasos sanitários. São quatro jogos, de cores diferentes. PEDRO Eu tô falando sério, Paulo. Eu me preocupo com você. Paulo segue encarando Pedro, mas seu olhar agora é de raiva. Paulo deixa estampado em seu rosto que não aguenta mais essa conversa e que já não dá a mínima para a opinião do pai. Pedro insiste. PEDRO Qual você gosta mais, Paulo? Paulo apenas olha e dá de ombros, dando a entender que não se importa em nada com a cor da louça. Ele volta a empilhar as caixas e fala de costas para o pai. PEDRO (CONT.) (CONT’D) -- Eu tô falando de coisas concretas, filho. De ser alguém, de ter um objetivo na vida. PAULO Essa casa que cê quer fazer não vai existir nunca. Paulo corta o pai. Ele aponta para si mesmo e imita Pedro. Pedro olha orgulhoso para o quarto lotado e aponta o material estocado. PAULO Eu já sou um escritor, não tá vendo? PEDRO Ela já existe, Paulo. Não tá vendo? Pedro não se conforma. Olha para Paulo como quem sente pena diante de tanto delírio. Paulo mantém a cabeça erguida e o olhar desafiador. Pedro está realmente preocupado. Paulo ri com desdém e volta a empilhar as caixas. Pedro resolve aproveitar a oportunidade para ter uma conversa séria com o filho. PEDRO Ninguém vive de ser escritor, Paulo-- João Cabral é diplomata, Drummond de Andrade é funcionário público, Jorge Amado é jornalista. E você? Você vai ser o quê, meu filho? PEDRO (CONT.) (CONT’D) Olha pra mim, Paulo. Paulo obedece. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Tudo o que eu quis na minha vida, eu fiz, filho. Eu quero a casa da Gávea e eu tô fazendo. Aos poucos, do jeito que eu posso, mas eu tô fazendo -PAULO Sem cinema, sem viagem, sem a máquina de escrever que eu te pedi tanto-- Do teu jeito. Sempre do teu jeito. PEDRO Do jeito que eu posso, filho. Eu não desisto do meu sonho. Paulo só olha para Pedro com ar de reprovação, mas se cala. PEDRO (CONT.) (CONT’D) E você? Você sabe o que você quer, Paulo? O SOM de um disco girando na vitrola cobre o final da cena. Começa a primeira estrofe da música “MEU AMIGO PEDRO”, na voz de Raul Seixas, em gravação original. RAUL SEIXAS (V.O.) “Muitas vezes, Pedro, você fala-Sempre a se queixar da solidão. Quem te fez com ferro, fez com fogo, Pedro--” 33 INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - NOITE (1986) O DEDO INDICADOR de uma mão feminina percorre a lista de músicas impressa na contra-capa do LP “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás” até o título “MEU AMIGO PEDRO”. PAULO (O.S.) Tira isso, Chris. Tira essa merda. 33 31. As mãos são de Christina Oiticica, a mulher de Paulo, mais jovem, AOS 36 ANOS. Ela parece determinada e ignora o pedido do marido. De pé na frente do móvel que abriga o aparelho de som, Chris aumenta o volume. Ela se vira, encara o marido e canta junto. RAUL SEIXAS E CHRIS “-- É pena que você não sabe não. Vai pro seu trabalho todo dia. Sem saber se é bom ou se é ruim. Quando quer chorar, vai ao banheiro. Pedro, as coisas não são bem assim. --” DO OUTRO LADO DA SALA, Paulo Coelho, 40 ANOS -- mais velho e mais sério do que no show, cabelos e barba aparados -- está afundado em uma confortável poltrona e tem um copo de uísque na mão. Ele veste camisa social para dentro da calça, cinto e sapato formal. A roupa está amarrotada e ele tem o ar cansado de um executivo entediado depois de um dia de trabalho desinteressante. Indignado, Paulo encara a mulher. PAULO Que porra é essa? Chris ignora a pergunta e continua cantando. É um apartamento charmoso e bem decorado, em estilo “hippie-chique”, que fica no andar térreo e tem um pequeno jardim ao fundo. CHRIS Como é que chama mesmo essa música, Paulo? Paulo não entende onde Chris quer chegar e responde secamente. Você sabe. PAULO RAUL SEIXAS E CHRIS “-- Toda vez que eu sinto o paraíso. Ou me queimo torto no inferno. Eu penso em você, meu pobre amigo. Que só usa sempre o mesmo terno --” Chris para de cantar e provoca: CHRIS Sabe o que eu acho? Eu acho que essa música podia era chamar “Meu Marido Paulo”. PAULO Porra, Chris. Não fode. 32. Paulo vai até a vitrola e desliga o aparelho. Ele se vira e segue de volta na direção da poltrona. Chris segura Paulo. CHRIS Há quanto tempo que a gente tá junto? PAULO Sei lá. Faz tempo. CHRIS Eu me apaixonei pelo cara que escrevia essas coisas, Paulo. Pelo cara que sonhava em ser-PAULO Eu sou um escritor, Chris. E eu ainda vou-CHRIS Faz seis anos que eu ouço essa história e eu ainda não vi você escrever uma única linha. PAULO Eu tô tentando. CHRIS Tentando como, Paulo? Tomando uísque? Reclamando da vida? PAULO Pega leve, Chris-CHRIS Me diz que história você quer contar fazendo um trabalho que você não gosta, pra ganhar um dinheiro que você não precisa? É essa a tua história? Paulo fica arrasado. PAULO Chega, Chris! Se você não me ama mais, a gente-CHRIS Ex-maluco que agora usa o cinto combinando com o sapato? Um compositor genial que virou gerente de gravadora? Paulo fica perplexo, olhos marejados, não consegue reagir. Chris também fica com os olhos cheios d’água: foi longe demais, não queria ter dito isso. Ela respira fundo, muda o tom e sorri carinhosa. Paulo não entende. 33. 34. Chris se aproxima sedutora, passa as mãos pelo corpo de Paulo e fala baixinho no ouvido do marido. Paulo neste momento olha para o homem, como se tivesse acordado de um transe. Ele olha fixamente para o sujeito. CHRIS (CONT.) (CONT’D) Mas eu sei que tem um artista aí dentro. É esse artista que eu amo-- AGENTE (CONT.) (CONT’D) Cê vai levar muita porrada, vai apanhar pra cacete, sabia? Aí eu digo: você precisa é de humildade, rapaz-- Vai ter que ralar muito, ralar de verdade. Chris beija a orelha e o pescoço de Paulo, que fecha os olhos, sem se mexer. Paulo afasta Chris, ela insiste. CHRIS (CONT.) (CONT’D) Desculpa. É que escritor-- Escritor tem que escrever, Paulo. Ninguém vai ler e respeitar um escritor que não escreve. Se você desistiu, tudo bem, mas-- O homem faz uma pausa solene e estufa o peito de orgulho. AGENTE (CONT.) (CONT’D) -- Mas a gente vê que é um artista. A pessoa quando nasce pra uma coisa-- Se Deus quiser-- Paulo olha fundo nos olhos de Chris. Soa firme, determinado: A boca do agente de Paulo, já não retratos que tem tirada na frente PAULO Eu não vou desistir nunca. CHRIS Então escreve, porra. Faz alguma coisa da tua vida. P.V. DE PAULO: Sobre a foto, escrito à mão com caneta grossa, a legenda: AMSTERDÃ, 1982. DE VOLTA A PAULO, que encara o agente e pergunta muito sério: Paulo transtornado, agarra Chris. Os dois se beijam com paixão. Ela ri. Paulo segue transtornado. 34 INT. SALA DE PAULO, GRAVADORA - DIA PAULO Cê já foi para Amsterdã? O homem não entende a pergunta e fica sem reação. Paulo abre sua pasta, guarda o porta-retratos e recolhe mais alguns poucos objetos sobre a mesa: uma agenda, algumas canetas, uma caneca e um abridor de cartas em forma de ESPADA. Paulo se detém alguns instantes com a pequena espada nas mãos e sorri para o homem. 34 Paulo está em sua confortável sala de gerente na gravadora. Ele veste suas roupas formais e é a própria imagem do pai que tanto criticou. AO FUNDO, na parede, alguns discos de ouro de Raul Seixas e fotos de Paulo com Raul e outros parceiros na música: VANUSA e SIDNEY MAGAL. PAULO (CONT.) (CONT’D) Deus não faz nada sozinho não, meu amigo. NA FRENTE DE PAULO, o AGENTE de um aspirante a cantor defende seu representado com afinco. O homem fala rápido, entusiasmado. Sobre a mesa, algumas fotos do jovem talento e uma fita cassete. Paulo fecha a pasta e encara o agente. O homem encara Paulo um pouco assustado. Paulo sorri novamente. O homem acha tudo muito estranho. Paulo se levanta, pega o paletó que está pendurado na cadeira e a pasta, e sai da sala sem dizer uma única palavra. O homem observa os movimentos de Paulo sem reagir. Paulo olha para o homem, mas não parece prestar nenhuma atenção no que o sujeito fala. Está longe, entediado, absorto em seus pensamentos. AGENTE É só uma chance que ele precisa-Só uma. O garoto tá pronto pra estourar, sabe como é? É o caminho dele, tá escrito. Desde de pequenininho que o moleque só fala disso. Aí eu falo pra ele: tu não sabe o que é ter sucesso não, cara-Todo mundo vai te adorar, mas não é só isso, não-- continua se mexendo, mas do ponto de vista emite qualquer som. Paulo pega um portasobre a mesa, com uma foto dele com Chris, de um café. 35 EXT. PRAIA DE IPANEMA - MESMO DIA Num canto vazio da praia, Paulo está sentado sozinho na areia, com o olhar perdido no horizonte. Ele segura os sapatos nas mãos e ainda veste suas roupas formais. Paulo parece estar em transe. Como que hipnotizado pelo mar, ele se levanta e começa a tirar a roupa. 35 35. 36. Fica só de cueca e segue em direção à água. Paulo mergulha e sai nadando em direção ao horizonte. 37 (1986) Início de MONTAGEM. As braçadas de Paulo no mar são entrecortadas com-36 INT. CAFÉ, AMSTERDÃ - DIA (1982) O olhar inquisidor de Jay -- o mestre que Paulo encontrou na estação de trem na Espanha, aqui aos 34 anos -- parece perseguir o escritor, assim como os policias no show que abre o filme. Jay está de pé na porta de entrada e encara fixamente Paulo, que está com Chris tomando um café no balcão. É o mesmo lugar que aparece na foto sobre a mesa do escritório de Paulo: um café muito simples, quase sombrio, em Amsterdã. Um GRUPO DE TRÊS PESSOAS se levanta para sair e se posiciona entre Paulo e Jay. Jay se desloca e segue encarando Paulo com uma expressão serena. Paulo se incomoda. Jay não se altera. Desconfiado, Paulo se levanta, vai até Jay e o enfrenta. PAULO Hey man, are you with the Police, or something? No. JAY 36 Sentado em uma cadeira da mesa de jantar, Paulo faz o ritual de R.A.M.. Tem à sua frente um copo com água e a Bíblia nas mãos. Paulo lê trechos do Novo Testamento em voz alta (Mateus, cap. 23, vers. 10, 11, 12). PAULO “Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso mestre, que é Cristo. O maior dentre vós será vosso servo. E o que a si mesmo se exaltar, será humilhado. E o que a si mesmo se humilhar, será exaltado.” A conversa com Jay em Amsterdã cobre a cena. JAY (V.O.) Por el poder y por el amor de R.A.M., yo te invito a hacer parte de la Orden. PAULO (V.O.) ¿Qué orden? JAY (V.O.) “Erre" de rigor, “A" de amor, “Eme" de misericordia. “Erre" de regnum, “A" de agnus, “Eme" de mundi. ¿Para qué? PAULO Then what do you want from me? Chris observa o marido de longe, curiosa. Nada. INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - DIA JAY PAULO ¿Cómo qué nada? ¿Por qué me sigues? JAY Me has buscado tú. Es el discípulo quien elige a su maestro. PAULO ¿Maestro? ¿Maestro de qué? A conversa de Paulo e Jay em Amsterdã cobre em V.O. a próxima sequência. PAULO (V.O.) JAY (V.O.) Para que encuentres lo que tanto estás buscando. ¿Cuándo? PAULO (V.O.) JAY (V.O.) Cuando estés listo. PAULO (V.O.) ¿Tu te crees que estoy loco? JAY (V.O.) Lo que estoy es viendo que me vas a dar mucho trabajo. PAULO (V.O.) Pero ¿por qué yo? 37 37. 38. JAY (V.O.) Porque sabes lo que quieres. Y vas a conseguirlo. Pedro não se controla e sobe um pouco o tom. Parece realmente preocupado. PEDRO Eu não tenho mais nada pra dizer pra ele, Lygia-- Paulo fecha a Bíblia e fecha os olhos. Ele faz uma oração silenciosa. JAY (V.O.) Que delante de la imagen sagrada de R.A.M., toques con tus manos la palabra de vida, y recibirás tal fuerza que serás testigo de ella hasta los confines de la tierra. LYGIA Fala baixo. DUAS MULHERES, sentadas no banco da frente, olham feio para o casal. Pedro, envergonhado, volta a falar baixinho. PEDRO Eu não sei mais o que fazer. Sozinho no apartamento, Paulo termina sua oração. Amém. 38 PAULO INT. IGREJA, RJ - DIA LYGIA Vamos dar a máquina de escrever que ele quer, Pedro. Quem sabe-- 38 PEDRO Você enlouqueceu, Lygia? (1964) Lygia respira fundo e tenta ser prática. Pedro, Lygia, Sônia e Paulo assistem a uma missa. É domingo e a igreja está lotada de FIÉIS. Enquanto o PADRE JOSÉ faz o sermão (Jó 14:11-14), Paulo observa as assustadoras imagens das pinturas e obras sacras espalhadas pelo altar, assim como a expressão de dor dos fiéis que lotam a igreja. LYGIA Eu tenho meu piano e não sou pianista, Pedro-- Ele quer escrever, deixa ele escrever. Pedro está quase convencido. Lygia insiste. PADRE JOSÉ Como as águas que se retiram do mar, e o rio que se esgota, e fica seco. Assim o homem se deita, e não se levanta; até que não haja mais céu, não acordará do teu sono. -- LYGIA (CONT.) (CONT’D) Dá a máquina. Logo ele cansa e desiste disso. AO FUNDO, NO ALTAR, o Padre termina o sermão. Os fiéis se ajoelham. Pedro encara Lygia com os olhos marejados de desgosto e respira fundo. Ele se vira para o altar, encara em silêncio a IMAGEM DE SÃO JOSÉ com o menino Jesus nos braços por alguns instantes e se emociona. Como os outros fiéis, Pedro e Lygia se ajoelham, cruzam as mãos, fecham os olhos e abaixam a cabeça. Eles rezam com fervor pelo futuro de Paulo. P.V. DE PAULO - ALTAR: As imagens parecem ainda mais assustadoras. O olhar de Paulo se detém no rosto sofrido e ensanguentado de Cristo. PADRE JOSÉ (O.S.) (CONT.) (CONT’D) -- Quando morre um homem, por acaso volta a viver? Todos os dias do meu combate eu espero, até que venha a minha mudança. DE VOLTA A PAULO, que encara a imagem de Jesus crucificado e balança a cabeça para os lados em sinal de desaprovação. Ele se levanta e sai da igreja. Pedro olha para Lygia, esperando uma explicação. Lygia não sabe o que dizer, está tão surpresa quanto o marido. LYGIA Vai lá. Fala com ele, Pedro. 39 INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA VILA - NOITE No quarto escuro, SOAM os gemidos discretos de prazer de Pedro e Lygia. Sobre a respiração ofegante do casal, se impõe o BARULHO cada vez mais alto e incômodo de dedos sem treino que brigam com o teclado da máquina de escrever no quarto ao lado. Pedro acende o abajur. Lygia faz o mesmo. O casal ainda tem a respiração ofegante e as bochechas coradas. Seguem em silêncio por alguns instantes. 39 39. 40. SOBRE O ESPALDAR DA CAMA, NA PAREDE, um enorme crucifixo. Pedro se descobre e senta na beira da cama. Faz menção de levantar. Lygia o detém. Ela o abraça por trás e fala baixinho no ouvido do marido. Paulo fica pensativo e passa disfarçadamente as mãos na cabeça para bagunçar um pouco os cabelos curtos, engomadinhos. Ele veste roupas mais formais que Jorge: camisa de gola engomada e manga comprida (para esconder os braços finos), calça e sapato social. Jorge veste camisa de manga curta para fora da calça, calça mais justa e sapatos surrados. Jorge tira da mochila um pote de xampu, abre a tampa e oferece para Paulo, que não entende. Jorge ri, toma um longo gole e oferece novamente para o amigo. Paulo, curioso, pega a embalagem e cheira. LYGIA Deixa, Pedro. Deixa-Pedro respira fundo e abaixa a cabeça. LYGIA (CONT.) (CONT’D) Ele ainda é criança, deixa ele ser um pouco artista-- JORGE (CONT.) (CONT’D) É doze anos, porra. Manda ver. Pedro se vira e faz um carinho na mulher, agradecido pelo esforço que ela faz para confortá-lo. Lygia sorri e sonha alto: Paulo dá um golinho, mas não consegue disfarçar o desconforto com o gosto da bebida. Paulo dá mais um gole, agora mais longo. Ele fica pensativo por alguns instantes olhando para o frasco de xampu, depois ri e vira o frasco inteiro. LYGIA (CONT.) (CONT’D) -- O Paulinho ainda vai ser um grande engenheiro, vai te dar muito orgulho. Cê vai ver-- 42 Felizes e embalados pela bebida, Paulo e Jorge caminham pelo pátio. Paulo olha fascinado para as meninas -- e seus peitos, bundas, coxas. Elas sequer notam a presença dele. Lygia finalmente consegue fazer Pedro sorrir. 40 INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - NOITE 40 Sentado na cadeira em frente à escrivaninha, Paulo está radiante. INT. BANHEIRO, COLÉGIO - DIA O jovem Paulo está sentado no chão de um reservado do banheiro do colégio, fumando cigarro escondido com o amigo Jorge. Paulo parece bem menos experiente que o amigo, mas tenta disfarçar. JORGE E você é comunista? PAULO Como assim? JORGE Ué-- Escritor que é escritor, usa óculos, não penteia o cabelo e é comunista. DO OUTRO LADO DO PÁTIO, Paulo nota uma movimentação diferente e se aproxima. Os cartazes improvisados anunciam que é uma apresentação para arrecadar fundos para o grupo de teatro amador do Colégio. Paulo deixa Jorge para trás e se enfia no meio da RODA DE ALUNOS formada em torno do grupo. Maravilhado, ele assiste à apresentação. DIANTE DELE, a reluzente SMITH CORONA VERMELHA que ele tanto queria. Usando apenas os dedos indicadores, Paulo datilografa rápido, batendo em letras aleatórias, apenas para se sentir como um escritor de verdade. O garoto faz pose e sorri satisfeito. 41 INT. PÁTIO, COLÉGIO - MOMENTOS DEPOIS P.V. DE PAULO: Oito alunos, atores e atrizes de 16 e 17 anos, participam da encenação bastante precária de uma cena de Romeu e Julieta, de William Shakespeare. 41 Enquanto os atores que interpretam Romeu (MARCO -- fortão, vestindo uma boina com estrelinha, como Che Guevara) e Julieta (ANA -- a menina mais bonita da escola) declamam seu texto duro, com ar canastrão, duas meninas -- GILDA e PAULA -seguram cartazes de promoção do grupo e os outros QUATRO GAROTOS passam o chapéu para a pequena plateia. MARCO/ROMEU Se minha mão profana o relicário, em remissão aceito a penitência: meu lábio, peregrino solitário, demonstrará, com sobra, reverência-ANA/JULIETA Ofendeis vossa mão, bom peregrino, que se mostrou devota e reverente. (MORE) 42 41. 42. ANA/JULIETA (CONT'D) Nas mãos dos santos pega o paladino. Esse é o beijo mais santo e conveniente. PAULO Capitalista de merda. ALBANO Tá me chamando de quê? “Romeu” e “Julieta” se beijam apaixonadamente. Paulo parece hipnotizado com a cena. 43 INT. SALA DE JANTAR, CASA DA VILA - NOITE 43 Otário! Lygia, Sônia e Pedro já estão sentados à mesa para jantar. E o Paulo? ANA Para, Albano! Bedel! Chama o bedel! Lygia completa, sem esconder o orgulho e o alívio. Caído no chão, entre um soco e outro, Paulo vê que as meninas finalmente reparam nele. E gosta. LYGIA Tá estudando matemática, Pedro. INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - MESMO TEMPO P.V. DE PAULO: As COXAS das meninas, reveladas sob as saias dos uniformes. 44 SOBRE A ESCRIVANINHA DE PAULO, cadernos abertos com equações matemáticas por fazer, uma pilha de livros didáticos e uma revista de quadrinhos eróticos. INT. PÁTIO, COLÉGIO - DIA Paulo, vestindo uma camisa de manga curta para fora da calça -- aberta, deixando aparecer por baixo uma camiseta vermelha com a foice e o martelo estampados --, está no centro de uma roda de ALUNOS. O clima é tenso entre ele e ALBANO, um menino da mesma idade, porém bem maior e mais forte que Paulo. ALBANO Tá querendo aparecer pra quem com essa camiseta, otário? PAULO Só tô mostrando o que eu penso. ALBANO E tu lá pensa? Tu nem sabe o que é isso aí, cara-- NO CHÃO, quase desacordado, Paulo sorri de prazer. Um BEDEL chega e segura Albano. As meninas socorrem Paulo, que no fundo adora a situação. ANA (CONT.) (CONT’D) Como cê chama? DO OUTRO LADO, Paulo está sentado no chão do quarto, encostado na cama. Ele tem um livro nas mãos e está muito sério e concentrado na leitura. NA CAPA DO LIVRO, o título: SHAKESPEARE, OBRAS COMPLETAS 45 ALBANO (CONT.) (CONT’D) Albano parte para cima de Paulo e enche o garoto de porrada. Paulo não consegue reagir. As três meninas do teatro -- Ana, Gilda e Paula -- se aproximam e gritam em defesa de Paulo. PEDRO SÔNIA Não saiu do quarto a tarde inteira-- 44 Paulo fica quieto. PAULO Paulo-- Você é a Julieta, né? Ana acha graça. 45 ANA Ana. Meu nome é Ana-- Eu sou atriz. Paulo se apresenta com orgulho. PAULO Eu sou escritor. Ana abre um sorriso lindo. ANA Eu já te vi lá em Araruama. Pego de surpresa, Paulo fica sem reação por alguns instantes. PAULO Eu-- O meu avô tem uma casa lá. Ana sorri, sedutora. 43. 44. ANA E você vai passar o carnaval lá esse ano? Para surpresa de Paulo, a menina enfrenta a mãe e se levanta. Ela estica a mão para Paulo, que, muito constrangido, não consegue corresponder. Paulo balança a cabeça para os lados. Paulo só consegue balançar a cabeça, confirmando que vai. 46 INT. SALÃO PAROQUIAL DE ARARUAMA - NOITE PAULO Desculpa, eu-- Desculpa, Ana. 46 Paulo, agoniado, deixa Ana e sai andando com passos rápidos, tentando segurar o choro. É um salão grande. A decoração de carnaval é simples e de gosto duvidoso. NO PALCO, uma banda ruim, mas muito animada, toca marchinhas tradicionais de carnaval. P.V. DE PAULO - AO REDOR: A expressão de felicidade das pessoas em volta parece tão assustadora para Paulo quanto a expressão de dor dos fiéis da igreja. É como se ele não existisse ali, como se não fizesse parte daquele mundo. Paulo anda cada vez mais rápido, até que sai correndo pelo salão em direção à porta. SALÃO Paulo caminha sozinho. De longe, ele observa as PRIMAS e as AMIGAS DAS PRIMAS que dançam de maneira sensual. MARINA, uma das amigas gostosas das primas de Paulo, faz sinal para que ele se junte a elas. Sem coragem, Paulo fica paralisado. 49 Ao sair do salão, Paulo respira fundo, tentando segurar o choro. ALFREDO (18) -- o primo gordinho de Paulo -- aparece com os amigos CABEÇÃO (17) e FRED (16). PAULO Eu vou no banheiro-- Já volto. 47 INT. BANHEIRO, SALÃO PAROQUIAL DE ARARUAMA - MOMENTOS DEPOIS 47 Num canto mais escuro, escondidos, Paulo, Alfredo, Cabeção e Fred tomam duas garrafas de rum barato no gargalo. P.V. DE PAULO: no chão imundo, seus pés ensaiam passinhos tímidos e desencontrados de samba. INT. SALÃO PAROQUIAL DE ARARUAMA - MOMENTOS DEPOIS De volta ao salão, Paulo atravessa a pista cabisbaixo. Mais adiante, ele vê a jovem Ana -- a menina linda da escola -sentada na mesa com a família. Paulo toma coragem, ajeita o cabelo e a camiseta, e se aproxima da mesa. PAULO Quer dar uma volta, Ana? Ana sorri tímida. Ela gosta do convite. A menina olha para a MÃE, pedindo autorização. A mãe fica um pouco aflita e olha para o PAI, que faz uma cara feia. A mãe puxa Ana de lado. Meio bêbada, ela tenta ser discreta, mas fala alto, meio rindo: MÃE DE ANA Mas logo com o menino mais feio e mais esquisito da festa, minha filha? Ana fica muito constrangida e olha para Paulo, que não consegue reagir. ALFREDO Vem com a gente, moleque. Paulo, calado, se junta ao grupo. No reservado apertado e sujo, Paulo está sentado sobre o vaso tampado. 48 EXT. SALÃO PAROQUIAL - NOITE P.V. DE PAULO - AO LONGE, ATRAVÉS DO VIDRO DO SALÃO: a alegria dos foliões. 48 Arrasado, Paulo vira uma das garrafas quase sozinho. Fred tira a bebida da mão de Paulo, dá o último gole, e joga a garrafa vazia no chão. FRED Aí, meus pais tão viajando-- Alguém aqui sabe dirigir? Paulo, bêbado, estufa o peito para sustentar a mentira. PAULO Eu dirijo bem. ALFREDO E tu lá já sabe dirigir, Paulinho? PAULO Melhor do que você, eu dirijo. Alfredo ri. Cabeção e Fred dão risadas também. Paulo segue sério. 49 45. 50 E/I. RUAS DE ARARUAMA/CARRO - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE 46. 50 Paulo obedece o avô. Mestre Tuca tenta tirar a arma da mão do homem, que se livra dos braços de mestre Tuca e olha fundo nos olhos do velho. Paulo dirige com muita insegurança o Corcel do pai de Fred, que está muito bêbado tentando acender um cigarro no banco de trás do carro, na companhia de Cabeção. É uma rua estreita, mal iluminada, e alguns FOLIÕES que acabam de desfilar na avenida principal da cidade caminham por ali com suas fantasias pobres, rotas. NO BANCO DO PASSAGEIRO, Alfredo, ainda mais bêbado que Paulo, tenta se manter acordado. ARISTEU Tá certo. Eu vou embora em respeito ao senhor-- Mas esse animal aí só sai daqui da cidade quando meu filho ficar bom-- MAIS ADIANTE, para desviar de um bêbado que caminha fantasiado de mulher pelo meio da rua, Paulo vira à direita e dá de cara com-- Aristeu faz menção de guardar a arma na cintura, mas volta a apontar o revólver para mestre Tuca. ARISTEU (CONT.) (CONT’D) Mas se o Vadinho morrer, doutor-- P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO VIDRO DO CARRO - NA OUTRA ESQUINA: Uma viatura da polícia que bloqueia a rua e DOIS POLICIAIS que fazem a vigilância. QUARTO DOS MENINOS - MESMO TEMPO DE VOLTA A PAULO. Assustado, Paulo vira bruscamente a direção para fugir da polícia, acelera e ouve o grito de Alfredo: Paulo, apavorado, está empoleirado com as primas assistindo à discussão por uma fresta na parede. ALFREDO Olha o moleque! SALA - MESMO TEMPO Apesar da forte batida, Paulo continua acelerando. Fred olha para trás e dá o alerta: Aristeu conclui a ameaça. FRED Vai embora, Paulo. Foge daqui. Cê matou o menino! 51 INT. SALA/QUARTO DOS MENINOS, CASA DO AVÔ EM ARARUAMA - DIA No dia seguinte, ARISTEU (40) -- desesperado, bronco, pai do menino atropelado -- está armado fazendo um escândalo na sala da casa de MESTRE TUCA (70) -- o avô gente boa de Paulo. A casa é grande e divertida, mas o clima está muito tenso. É tempo de férias e onze crianças e jovens, entre 12 e 17 anos, estão reunidos ali. Alfredo, Cabeção e Fred, que jogavam totó na sala, estão paralisados. Paulo está encolhido em um canto, sozinho e amuado. ARISTEU (CONT.) (CONT’D) -- Se o meu Vadinho morrer, eu enterro o teu neto na mesma cova junto mais ele. Eu juro que enterro! 51 QUARTO DOS MENINOS - MESMO TEMPO Desesperado, Paulo empurra as primas, pega o TERÇO DE CONTAS na gavetinha do criado-mudo, sai correndo e entra no-52 52 Paulo tranca a porta do banheiro, entra no box do chuveiro, se abaixa e fica encolhido no cantinho, segurando firme o terço e abraçando as próprias pernas. Ele olha para cima e se encolhe ainda mais, como se Deus o estivesse observando. ARISTEU Eu sei que foi ele! Mestre Tuca segura Aristeu. Paulo olha assustado. Está pálido, de ressaca, e tem os olhos inchados. As meninas -- as mesmas cinco que chamaram Paulo para dançar no baile -deixam seu jogo de cartas sobre a mesa de centro da sala e seguem em silêncio para o quarto. MESTRE TUCA Vai lá pra dentro, Paulo! INT. BANHEIRO, CASA DO AVÔ EM ARARUAMA - MOMENTOS DEPOIS Paulo, se sentindo traído e abandonado, enfrenta Deus com raiva nos olhos e arrebenta o terço. As pequenas contas quicam no chão do box, algumas delas entram pelo ralo. O menino chora. 53 E/I. ESTRADA/CARRO DE PEDRO - EM MOVIMENTO - DIA Pedro dirige, Lygia e Paulo seguem em silêncio. A estrada está vazia. 53 47. 48. Paulo está triste, tenso, com o olhar perdido na paisagem cinza que vê através da janela. Pedro, ainda mais tenso que o filho, vai acelerando cada vez mais o carro nas curvas. A conversa é entrecortada em uma MONTAGEM que avança em vários pontos diferentes da estrada. Desce. Paulo desce. Sob o olhar apreensivo de Lygia, Pedro arrasta o filho pelo braço e se afasta com ele alguns metros. PEDRO Acabou a mesada, acabou a farra. Você vai trabalhar e não entra mais em casa depois das onze horas da noite. Mas, pai-- NA BEIRA DA ESTRADA, Pedro olha fundo nos olhos do filho e fala de coração aberto. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Você é meu filho, Paulo. E tudo que um pai pode querer de um filho é que ele seja correto e que ele seja feliz. PAULO PEDRO Depois das onze não entra. E com o que você conseguir ganhar, você vai me pagar cada centavo do que eu tiver que gastar com esse garoto e com o conserto do carro, tá me ouvindo? Tudo? Paulo balança a cabeça para os lados, desafiando o pai. Pedro é firme. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Você escolheu o caminho mais difícil, mas um dia você ainda vai me agradecer. PAULO Pedro se vira para voltar ao carro. Paulo responde altivo: PAULO Um dia é você quem vai me pedir desculpa! PEDRO Cada centavo, Paulo. E vai ficar sem a máquina de escrever também. Pedro, indignado, se vira para o filho. PAULO A máquina não-- PEDRO O que você disse, Paulo? PEDRO Principalmente a máquina. Como é que você-Do ponto de vista de Paulo, Pedro continua falando, mas sua voz vai aos poucos desaparecendo. Um pequeno CRUCIFIXO balança pendurado no espelho retrovisor. NO BANCO DE TRÁS DO CARRO, Paulo escuta em silêncio. Ele olha pela janela e já não presta nenhuma atenção no sermão do pai. Paulo olha com desprezo para Pedro, deixando claro que já não está nem aí para as ameaças dele. Pedro olha pelo retrovisor e sobe o tom. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Tá me ouvindo, Paulo? Paulo encara Pedro e não responde. Pedro para bruscamente o carro no acostamento. ACOSTAMENTO Pedro abre a porta, desce do carro, levanta o banco e dá a ordem a Paulo: PEDRO (CONT.) (CONT’D) Paulo encara o pai com arrogância. Lygia os observa de longe. A VOZ DE JAY cobre o final da cena. JAY (V.O.) Por el poder e el amor de R.A.M., yo te nombro Maestro y Caballero de la ord-54 EXT. ALTO DA MONTANHA - ENTARDECER (1986) P.V. DE PAULO - NO CHÃO: Entre os joelhos de Paulo e os pés de Jay, há uma ESPADA nova e reluzente. Paulo estende a mão para pegar sua nova espada. Quando a toca, o PÉ de Jay pisa com violência os seus dedos. DE VOLTA A PAULO, que geme de dor, e olha para Jay -- o mestre de Paulo na ordem de R.A.M., o mesmo que ele encontrou na estação de trem e no café em Amsterdã --, como quem implora uma explicação. Sem dizer nada, Jay pega a espada no chão, se vira e a entrega para Chris. 54 49. 50. Os três estão ao redor de uma fogueira. É o final da cerimônia de iniciação de Paulo. Jay e Chris estão de pé. Paulo está de joelhos na frente de Jay. CHRIS Ele falou pra procurar no mapa da Espanha, falou alguma coisa de uma rota medieval. Um caminho, sei lá-- P.V. DE PAULO - ACIMA DELE: O rosto furioso de Jay. JAY Si fueses más humilde, habrías rechazado la espada, Paulo. Y yo te la habría dado de todos modos, porque sabría que estarías listo. Pero yo-- P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO PARA-BRISA DO CARRO - RUA O sinal continua fechado. 56 PAULO E/I. AV. ATLÂNTICA/CARRO - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE P.V. DO MOTORISTA, ATRAVÉS DO PARABRISA DO CARRO - DO LADO DE FORA: O sinal de trânsito muda de vermelho para verde. DENTRO DO CARRO Paulo (66), ao volante, e Chris (62) ao seu lado. Ele acelera. 55 CHRIS Aonde que a gente tá indo, Paulo? Paulo dirige e Chris segue no banco do passageiro. Estão em silêncio, com o carro parado em um sinal na beira da praia de Copacabana. Paulo está arrasado. Paulo apenas sorri. Chris fica confusa. PAULO Isso é ridículo, Chris. DO LADO DE FORA O carro avança pela pequena vila e sobe com calçamento de pedra. Quando o carro branco com uma FLECHA AMARELA pintada à Paulo viu na estradinha de terra -- que direção que eles seguem. CHRIS Como assim, Paulo? PAULO Ridículo. Um homem de quarenta anos sair por aí atrás de uma espada é ridículo. CHRIS É só uma espada pra você? Paulo pensa um pouco antes de responder. Chris sorri carinhosa. Ele perde a pose. PAULO E ele te falou mais alguma coisa? CHRIS Disse que eu vou ter que esconder a espada pra você achar. PAULO Ele te disse isso? 56 (2013) JAY Callate. A causa de tu arrogancia, tendrás que volver a caminar entre los hombres sencillos en busca de tu espada. Y tendrás que luchar mucho para conquistar lo que quieres. 55 I/E. CARRO/RUA, VILA DA ESPANHA - ANOITECER 57 uma ladeira estreita, passa, revela um muro mão -- como a que aponta para a mesma E/I. PORTA/SALÃO, ALBERGUE - MOMENTOS DEPOIS É um modesto albergue de peregrinos, identificado por uma placa artesanal com o desenho de uma concha de vieira. Pela porta sem trancas, Paulo e Chris entram no albergue que funciona numa antiga casa de pedras, restaurada com muito capricho e simplicidade: o brasileiro EDUARDO e a italiana ORNELA, um simpático casal de aproximadamente 50 anos. O ambiente -- um salão que integra a cozinha, a sala da lareira e a mesa de jantar -- é muito simples e acolhedor. Paulo nota-NO CHÃO, AO LADO DA PORTA, um grande CESTO DE DOAÇÕES, identificado com uma PLACA que diz (em espanhol): MENOS É MAIS. DEIXE AQUI O PESO QUE VOCÊ NÃO PODE MAIS CARREGAR. 57 51. 52. Paulo sorri e joga no cesto a chave do carro. Sob o olhar apreensivo de Chris, ele tira do bolso da calça os dois celulares desligados, pensa um pouco, se abaixa e os coloca ali também. Paulo se sente aliviado com esse gesto. Chris observa preocupada. EDUARDO We are all Pilgrims here. That’s all. MAIS TARDE Eles seguem para o SALÃO. É hora do jantar e o casal serve comida caseira a três peregrinos: OLIVIA (18), uma jovem americana, sua avó judia MARCIA (86) e FRANK (50), um senhor alemão, que estão fazendo o Caminho de Santiago de Compostela. Os três, de banho tomado, parecem cansados e renovados após um longo dia de caminhada. Paulo e Chris, vestidos elegantemente, ela carregando sua pesada mala de rodinhas, destoam completamente do lugar e causam certo espanto. Depois de alguns segundos de silêncio, Eduardo se levanta e abre um sorriso largo, que Paulo corresponde. Chris observa, sem entender muito o que está acontecendo. Eduardo estende a mão para Paulo com um sorriso largo no rosto. Paulo aperta a mão de Eduardo e os dois se abraçam como amigos que não se veem há muitos anos. A jovem americana, com o livro “O Diário de Um Mago” (em inglês) nas mãos, reconhece Paulo e não acredita no que está vendo. Encantada com a presença do escritor, ela fala em inglês: Paulo e Chris jantam com o grupo. EDUARDO (CONT.) (CONT’D) ¿Sabes lo qué buscas de esa vez, Paulo? PAULO Todavía, no -- Pero estoy seguro de que lo voy a encontrar. Eduardo sorri para Paulo. 58 ORNELA Podéis dormir aquí. Las luces se apagan a las diez en punto y pedimos que se respete el silencio después de ese horario. Marcia observa Paulo profundamente, com o olhar experiente e o ar cansado de quem carrega o peso da sabedoria (fala em inglês). Paulo sente o golpe. PAULO Each of us tells their story as best as they can, my good woman. MARCIA Or the way they want to, my friend-OLIVIA But he’s the Magus, grandma! Eduardo intervém. 58 Ornela mostra para Paulo e Chris um quarto com três beliches e, ao fundo, o banheiro coletivo. Ela indica um beliche. OLÍVIA You-- Are really you-- ? You’re really who I think you are, aren’t you? MARCIA Of course he is, my girl. It’s a shame that, from up close, no one is what they seem-- You see? He’s old, just like me-- Always coming back to the same place. INT. QUARTO, ALBERGUE - MAIS TARDE Paulo e Chris se entreolham. 59 INT. BANHEIRO, ALBERGUE - MAIS TARDE É um banheiro coletivo grande, simples e muito limpo, com três privadas e três chuveiros separados em cabines. Paulo e Chris tomam banho em chuveiros separados. DO LADO DE FORA DAS CABINES, aparecem apenas as toalhas penduradas nas portas e os pés dos dois. CHRIS Quem é ele, Paulo? Um amigo. PAULO CHRIS E você já sabe pra onde a gente vai? PAULO Vamo em frente, Chris. Em algum lugar a gente chega. Chris sorri. Paulo desliga o chuveiro e puxa a toalha. 59 53. 60 INT. QUARTO, ALBERGUE - MAIS TARDE 54. 60 Na penumbra, Paulo e Chris se preparam para dormir. Duas camas de baixo já estão ocupadas por Marcia e Frank. Olivia dorme em cima de Marcia. Paulo senta na cama. Chris se aproxima. Paulo? CHRIS Você quer fazer um lanchinho antes de dormir? Quer um chazinho, uma bolachinha-- ? CHRIS (CONT.) (CONT’D) Você quer que eu vá embora, Paulo? PAULO Para de me tratar como se eu fosse uma criança, Chris. PAULO Não é nada com você, Chris. CHRIS Você não tá bem-- Eu-- Eu fico achando que-- Chris engole seco, sente o golpe, mas não reage. Ela dá um beijinho triste em Paulo, sobe no beliche e logo se deita. Depois de alguns instantes, ela interrompe o silêncio, falando muito baixinho. PAULO É o dinheiro, Chris. O dinheiro que escraviza as pessoas-- CHRIS Isso é loucura, Paulo. CHRIS Do que cê tá falando, Paulo? PAULO Que bom-- Foi por esse maluco que você se apaixonou, não foi? Paulo fica em silêncio, pensativo. Determinado, ele se levanta e segue em direção ao-INT. SALÃO, ALBERGUE - EM CONTINUIDADE 61 Paulo cruza o salão vazio na penumbra e se senta na frente do computador. Tenta acessar a internet, sem sucesso. Paulo pega uma caneta e um caderno que estão sobre a mesa e começa a fazer algumas anotações. Paulo pensa um pouco, lê o que escreveu, e risca o texto. Paulo, visivelmente desconfortável, vira a página e encara a folha em branco. Angustiado, ele acende um CIGARRO. 62 INT. QUARTO, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - NOITE (1986) Um CIGARRO queima num CINZEIRO abarrotado de bitucas, iluminado pela luz fraca de um abajur. NA CAMA, Chris se vira e não encontra Paulo. Ela levanta a cabeça e vê-- CHRIS Paulo não responde, nem se mexe. Chris se levanta, vai até a escrivaninha e se abaixa ao lado do marido. Está triste, preocupada. Paulo olha feio para Chris. 61 P.V. DE CHRIS - DO OUTRO LADO DO QUARTO: Paulo está sentado na cadeira da escrivaninha e encara catatônico sua MÁQUINA DE ESCREVER ELÉTRICA, com uma folha de papel em branco. PAULO Cê tem razão-- Eu ganho muito dinheiro com as músicas que eu fiz, mas eu faço o quê? Nada-- Eu não produzo mais nada, eu não sonho mais nada, eu não existo mais. CHRIS Eu nunca disse isso. PAULO Mas você acha isso. Chris fica sem resposta, não consegue negar. Paulo completa. PAULO (CONT.) (CONT’D) E você tem razão. 62 CHRIS Não é verdade. Você tá tentando-PAULO Eu não consigo, Chris. Não sai. CHRIS E de onde você tirou que ia ser fácil, Paulo? 55. 63 INT. FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - DIA 56. 63 PAULO Tô pronto pra começar. Onde fica a minha sala? (1964) O jovem Paulo, de terninho e gravata, com o cabelo engomado, destoa completamente do ambiente. É o caótico galpão de uma pequena fábrica de autopeças. OPERÁRIOS passam de um lado para outro carregando peças enormes e pesadas. O lugar é sujo e bagunçado. Desconfortável, Paulo checa o nome que está anotado no papelzinho que tem nas mãos e chama um dos trabalhadores. 65 INT. DEPÓSITO, FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - MOMENTOS DEPOIS 65 Com toda a sua elegância e indignação, Paulo está de joelhos esfregando o chão do depósito da fábrica. Alceu observa. ALCEU Me avisa quando terminar. PAULO Oi-- Por favor-- Alceu Nogueira? Paulo olha com ódio para Alceu, depois olha para cima, como se estivesse encarando Deus com a mesma indignação. Paulo segue esfregando a enorme mancha de graxa. Um OPERÁRIO aponta o mezanino ao fundo. Lá do alto, ALCEU NOGUEIRA -- um senhor bronco, 60 anos -- grita: ALCEU É o filho do doutor Pedro? 66 INT. FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - MONTAGEM - DIA 66 Com roupas mais adequadas, Paulo faz todo tipo de trabalhos braçais no novo emprego. Paulo confirma. O homem faz um sinal com a mão para Paulo subir. BANHEIRO 64 INT. MEZANINO, FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - MOMENTOS DEPOIS 64 Paulo, morrendo de nojo, limpa o banheiro dos funcionários da fábrica. Paulo está de pé na frente da mesa de Alceu Nogueira, que “assiste” a uma partida de futebol no radinho de pilha. Ele ignora Paulo e olha com atenção para o radinho, enquanto o locutor narra um lance tenso. LOCUTOR (V.O.) Jairzinho avança, passa o primeiro, olé no segundo, toca para Garrincha- É pânico na grande área do Flamengo. Garrincha chuta para o gol e-- Marcial pegou. Brilhante defesa do mineiro Marcial para o Flamengo. Paulo, ansioso, segue imóvel esperando a atenção de Alceu. ALCEU Filho da puta! Paulo acha graça, mas continua imóvel na frente do sujeito, que finalmente olha para ele e arregala os olhos, achando graça da elegância. ALCEU (CONT.) (CONT’D) Tem festa hoje é, rapaz? Paulo estufa o peito e ajeita a gravata, orgulhoso de sua aparência. DEPÓSITO - OUTRO DIA Paulo varre o enorme e imundo depósito de peças. ESTOQUE - OUTRO DIA Paulo organiza caixas e confere notas no estoque da fábrica 67 INT. SALA, CASA DA VILA - NOITE (1964) Sentado diante da mesa da sala de jantar, Pedro termina de contar um bolo de dinheiro trocado e faz anotações em um caderno. NO CADERNO, Pedro completa as anotações sobre a prestação de contas da dívida de Paulo -- para cobrir as despesas médicas do menino atropelado e os gastos com o conserto do carro que ele dirigia na noite do acidente em Araruama. Ao fechar a conta, Pedro encara Paulo, que está de pé na frente dele. PEDRO Ainda falta, Paulo. 67 57. 58. Paulo tira do bolso e entrega para o pai a caderneta de notas da escola com ar vitorioso. Pedro a pega, com ar desconfiado. PEDRO Deixa, Lygia. Para surpresa de Pedro, as notas do terceiro trimestre de Paulo são todas azuis. Nenhuma nota maior que 6, mas são azuis. Pedro fica aliviado, mas não perde a pose. LYGIA Mas, Pedro-PEDRO Melhor deixar. Você tem razão-- Uma hora ele vai desistir. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Que bom, Paulo. Ainda dá pra melhorar até o final do ano. PAULO Mas você disse que-- 69 70 PAULO Mesmo que-- INT. QUARTO DE PAULO/SALA, CASA DA VILA - MONTAGEM NO PAPEL, surgem as letras datilografadas: A mim não importa o barulho do mundo ruindo, PAULO Eu quero a minha máquina de escrever de volta. A música-expressão criou paredes, Impenetráveis paredes à minha volta, PEDRO Isso de novo, Paulo? e elevou-me ao encantamento e à ternura. PAULO Você disse que eu podia escolher. SALA Lygia toca piano. Quando faz uma pausa para virar a página da partitura, ela ouve o som da máquina de escrever de Paulo e sorri. Volta a tocar com prazer. Essa sequência segue em MONTAGEM paralela com: PEDRO Mas, filho-PAULO Você disse que cumpre o que fala. 71 Pedro engole seco. Vai ter que cumprir o combinado. Pedro e Lygia tentam dormir, mas é impossível com o infernal BARULHO de máquina de escrever que vem do quarto de Paulo. Dessa vez é Lygia quem acende a luz primeiro, senta na cama e se prepara para levantar. LYGIA Eu vou falar com ele. Pedro segura na mão da mulher. 70 Os dedos de Paulo “brigam” com o teclado da mesma Smith Corona vermelha que ele ganhou de presente do pai. PEDRO Eu cumpro o que eu falo. É pro Nordeste que você quer ir? INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA VILA - NOITE 69 O sol começa a nascer do lado de fora, iluminando o pequeno sobrado da família Coelho. PEDRO Eu disse que se você passasse, podia escolher um presente. 68 EXT. CASA DA VILA - AMANHECER 68 EXT. CASA DA GÁVEA - MONTAGEM/PASSAGEM DE TEMPO Sobre o telhado, Pedro comanda o trabalho de uma equipe de CINCO PEDREIROS. Eles terminam de fixar as últimas telhas da nova casa. Suado, Pedro sorri vitorioso. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA Sobre a mesa, Paulo tem alguns cadernos manuscritos abertos do lado esquerdo e uma pequena pilha de folhas datilografadas do lado direito. NO PAPEL: 71 59. 60. Se contorcendo em espasmos cósmicos Vomitando galáxias putrefactas Enquanto as outras estrêlas sorriem com alegria e desprêzo PAULO COELHO DE SOUZA TEXTOS REUNIDOS 1957-1967 Paulo, AGORA COM 20 ANOS (é o mesmo jovem Paulo, mas agora parece um pouco mais velho, com os cabelos um pouco maiores e um bigodinho tímido), organiza as folhas e as coloca cuidadosamente dentro de um grande envelope. Ele sela o envelope e escreve em letras grandes -- SOBRE O ENVELOPE: SALA, CASA DA VILA Lygia toca piano. CASA DA GÁVEA Um PINTOR faz o teste de cores na parede externa da casa com três diferentes tons de rosa. Diante dele, Pedro e Lygia estão muito sérios e divididos. Pedro olha para Lygia, esperando uma opinião. Ela aponta o tom intermediário, um rosa queimado. CORREIO DA MANHÃ COLUNA ESCRITORES E LIVROS AOS CUIDADOS DO SENHOR JOSÉ CONDÉ 72 INT. SALA, CASA DA VILA - OUTRO DIA QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA Paulo desce correndo as escadas, ainda de pijamas. Pedro está sentado na poltrona da sala, com o jornal Correio da Manhã nas mãos. Sobre a mesa, Paulo tem outros cadernos manuscritos abertos do lado esquerdo e uma pilha já bem maior de folhas datilografadas do lado direito. DO OUTRO LADO DA SALA, um COMPRADOR/AFINADOR testa o piano de Lygia, que divide a atenção entre os movimentos do homem e a conversa de Paulo e Pedro. NO PAPEL: Paulo fica rodeando o pai, tentando ler o que está no jornal. Estou livre para traçar os planos que quiser, sem qualquer compromisso mesquinho com o passado. Porque a vida só vale mesmo a pena se nós podemos mudá-la. SALA, CASA DA VILA Lygia toca piano. CASA DA GÁVEA Na cena aberta, o imponente sobrado cor-de-rosa recebe os últimos retoques de tinta de 3 PINTORES, enquanto uma equipe de 5 JARDINEIROS começa a arrumar o jardim, que ainda tem a terra toda revirada. De pé na porta da casa, Pedro está radiante e observa o trabalho da equipe. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - PASSAGEM DE TEMPO (1967) Paulo termina de escrever com orgulho o texto da capa do calhamaço: PEDRO Algum problema, Paulo? PAULO Eu-- Eu só queria dar uma olhada no jornal. PEDRO E desde quando você se interessa pelo que acontece no mundo, meu filho? Paulo tenta pegar o jornal. Pedro o puxa de volta, desconfiado. O pai encara Paulo, esperando uma explicação. Lygia, incomodada com o barulho dissonante que o comprador tira do piano, tenta encurtar o sofrimento. LYGIA O senhor vai mesmo ficar com o meu piano afinal? O homem tenta afinar mais alguns acordes. COMPRADOR Tá pior do que eu pensei. Lygia fica ofendida, mas não responde. Aflita, ela está mais interessada em ouvir a conversa do filho. O menino fala sem nenhuma modéstia: 72 61. 62. PAULO É a coluna do Condé-- Sai hoje. Deve falar alguma coisa de mim aí. Paulo, com o orgulho ferido, responde secamente. PAULO Não precisa. Pedro só respira fundo, sem ânimo para discutir com Paulo. PAULO (CONT.) (CONT’D) Deixa eu ver, por favor-- 73 PEDRO Aqui. Achei. NA RUA O caminhão de mudanças está parado na frente da entrada da imponente casa cor-de-rosa, na esquina de uma rua arborizada do elegante e praticamente deserto bairro da Gávea. Pedro passa os olhos no texto, em silêncio. PAULO Fala de mim? O carro de Pedro Coelho para atrás do caminhão. Do outro lado da sala, Lygia também espera a resposta com expectativa. Pedro encara Paulo com um pouco de pena e um pouco de satisfação. Pedro desce imediatamente do carro e olha radiante para a casa que conseguiu construir com muito esforço e que representa a realização de seu maior sonho. A obra ainda não está completamente finalizada, mas Pedro Coelho está orgulhoso de seu feito. PEDRO Não. De você não fala nada. Lygia e Sônia descem do carro logo depois de Pedro e parecem felizes e ansiosas. Paulo fica muito decepcionado. Lygia disfarça a frustração. PAULO DENTRO DO CARRO Paulo tenta ler o jornal que está nas mãos do pai. Ele aponta para um texto de rodapé, em letras menores. Paulo, no banco de trás, olha fixamente para a casa através do vidro do carro. Ele está pensativo, introspectivo. Logo, Paulo volta o olhar para a MÁQUINA DE ESCREVER que carrega no colo. O garoto se sente desafiado: assim como o pai, ele também deseja realizar seu sonho. PAULO (CONT.) (CONT’D) E essa notinha aqui, diz o quê? Pedro lê friamente o texto. PEDRO “Aos jovens afoitos, ansiosos para aparecer e publicar livros, conviria lembrar o exemplo de Carlos Drummond de Andrade que durante quinze anos publicou somente três pequenos volumes, com um total de cento e quarenta e quatro poesias-- “. Paulo está indignado, mas mantém a pose. Tem certeza de que o texto é dirigido a ele. Lygia sofre por Paulo. Pedro encara o filho por alguns instantes e o provoca. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Quer que eu continue? 73 Um PIANO DE CAUDA é carregado pelo JARDIM FLORIDO por 4 FUNCIONÁRIOS UNIFORMIZADOS da empresa de mudanças. Pedro segura o jornal e procura pela coluna de José Condé. Paulo está ansioso. Nada? E/I. CASA DA GÁVEA/CARRO DE PEDRO - DIA 74 INT. QUARTO DE PAULO/SALA, CASA DA GÁVEA - MONTAGEM O quarto de Paulo agora é maior, mais arrumado e com móveis mais sofisticados. Do quarto antigo, mantém apenas a mesma estante com alguns livros e a pequena escrivaninha de madeira, com a máquina de escrever sobre ela. Na parede, há uma imagem de Jesus Cristo. Sentado diante da escrivaninha, Paulo coloca um papel em branco na máquina e começa a escrever. Ele agora datilografa com todos os dedos, mas ainda é lento e tem alguma dificuldade de encontrar as letras certas. NO PAPEL: Acabou o passado. Onde está o passado? O passado só existe para mim quando você lê as cartas. 74 63. 64. Ali tudo está escrito - doenças graves, viagens, casamentos e morte. AO FUNDO, na SALA DE JANTAR, Lygia faz um prato de comida e chama o filho de longe: LYGIA Vem jantar, Paulo. Chama a sua irmã. QUARTO DE PAULO, OUTRO DIA - PASSAGEM DE TEMPO Paulo escreve mais rápido. A estante tem mais livros e os cabelos de Paulo estão um pouco mais compridos e o bigode mais encorpado. Paulo não responde e segue reto em direção à porta da rua. LYGIA (CONT.) (CONT’D) Quer que eu guarde um prato pra você, filho? QUARTO DE PAULO, OUTRO DIA - PASSAGEM DE TEMPO Os dedos de Paulo agora dominam o teclado com desenvoltura. A estante está lotada de livros que também estão empilhados e espalhados pelo chão do quarto. Os cabelos de Paulo estão compridos e desgrenhados e no lugar da imagem de Jesus há agora um pôster com a imagem de Che Guevara. Paulo mal olha para a mãe. PAULO Não precisa. Na ponta da mesa, Pedro, visivelmente incomodado com a atitude de Paulo, dá o recado. O SOM da ópera que o pai ouve na sala invade o quarto. Paulo se incomoda, pega um disco e põe para tocar na pequena vitrola. Aumenta o volume. PEDRO Lembra que depois das onze eu tranco a porta e você não entra mais nessa casa. SALA Paulo volta a fechar a porta da casa e se aproxima do pai. A MÚSICA que vem do quarto de Paulo se sobrepõe à ópera que Pedro ouve. Incomodado, Pedro aumenta o volume do imponente aparelho de som que tem no móvel da sala. AO FUNDO, Lygia termina de por a mesa para o jantar. PAULO Eu já tenho vinte anos. A vida é minha, eu faço o que eu quiser. QUARTO DE PAULO PEDRO Não enquanto eu pagar as suas contas. Ao final da sequência, Paulo datilografa o título de sua primeira peça de teatro. As LETRAS aparecem uma a uma sobre o papel na máquina de escrever: PAULO Você só pensa nisso. É chocante. “O INVENTOR AUSENTE” UMA PEÇA DE PAULO COELHO DE SOUZA PEDRO Em pagar as contas? Em ganhar dinheiro? “Chocante” é você não pensar nisso, seu moleque. O quarto de Paulo agora destoa completamente do ar aristocrático da casa. Tem pilhas de livros, jornais, revistas e discos espalhados por todos os lados, as paredes todas pichadas e rabiscadas com desenhos e textos, e um pôster dos Beatles ao lado do pôster com a imagem de Che Guevara. 75 INT. SALA, CASA DA GÁVEA - MAIS TARDE Paulo desce correndo a imponente escadaria de mármore branco que fica no meio da enorme sala da casa nova, com um amplo jardim de inverno ao fundo. PAULO Pra quê? Pra ser igual a você? Pra jogar a minha vida fora que nem você jogou a sua juntando dinheiro pra construir essa casa ridícula? 75 Pedro tem o impulso de bater no filho, mas se segura. Paulo encara o pai em silêncio por alguns instantes e ainda completa: PAULO (CONT.) (CONT’D) Capitalista. Mercenário! 65. Pedro tenta se controlar e ri de nervoso. PEDRO E você é o quê? Comunista por acaso? PAULO Qual é o problema de ser comunista? LYGIA Ai, meu Deus-Lygia se senta e apoia a cabeça nas mãos. Pedro está transtornado, mas tenta parecer não dar importância à provocação do filho e abaixa o tom com desdém. 66. 76 INT. TEATRO - NOITE 76 Sozinho na plateia vazia, com os manuscritos de sua peça nas mãos, Paulo assiste ao final do aquecimento de um grupo amador de teatro. P.V. DE PAULO - NO PALCO: Ao final do exercício, todos batem palmas e se dispersam. Entre os cerca de DOZE ATORES E ATRIZES no palco, estão Marco, Ana, Gilda e Paula, a turma do teatro amador, que Paulo conheceu no colégio. Ana reconhece Paulo e acena de longe. DE VOLTA A PAULO, que se levanta, acena de volta e se aproxima do grupo. PEDRO Você nem sabe o que é isso, Paulo-- ANA Achei que você tinha abandonado a gente-- PAULO Todo escritor é comunista. PAULO Tava trabalhando muito-- PEDRO O presidente do Brasil é um general-- Você sabe o que é uma ditadura militar, Paulo? Você sabe o que os generais fazem com os comunistas? ANA Emprego novo? Paulo mostra o calhamaço de papel. Peça nova. PAULO PAULO Se eu aguentei você, eu aguento qualquer coisa. Ana se empolga. PEDRO Deus-- Deus é testemunha da tua ingratidão. Você ainda vai ter o que merece, Paulo. Eu juro que vai. Marco, enciumado, observa a conversa e se aproxima. Paulo olha para cima com ironia, como se encarasse Deus, e volta a encarar Pedro em tom desafiador. O que Pedro rogou como praga, para Paulo soa como uma bênção: ele tem certeza de que só merece coisas boas. PAULO Deus te ouça. PEDRO Vai embora. Sai daqui. Paulo sorri satisfeito. Sair de casa era tudo que ele queria e provocar o pai é agora seu maior prazer. ANA Verdade? Deixa eu ver! MARCO Vem, Ana. A gente vai começar. Paulo fica com o texto da peça suspenso no ar. Marco se adianta e pega o manuscrito. MARCO (CONT.) (CONT’D) Depois ela vê isso. Agora a gente tem que ensaiar. ANA Mas, Marco, o Flavinho nem chegou ainda-MARCO Ele não vem. E o magrelo aí pode fazer o papel dele, não pode? Vai ficar bem de palhaço-- 67. 68. ANA Não, o Paulo-- PAULO (CONT.) (CONT’D) Quem quer bombom? Paulo não deixa a oportunidade passar e encara o desafio na maior cara-de-pau, sem se importar com o desaforo de Marco. A pequena plateia grita em peso: PLATEIA Eu quero! Eu quero! PAULO Eu? Eu faço. Eu quero fazer sim. Sério? Paulo faz charme e joga o doce para as crianças. A plateia aplaude e grita o nome do personagem: ANA PLATEIA (CONT’D) Batatinha! Batatinha! Batatinha! Ana olha surpresa para Paulo, que sustenta a mentira: PAULO Claro, eu-- Eu sou ator também. Não te falei, não? P.V. DE PAULO - PLATEIA: A plateia é pequena, mas muito animada, com crianças acompanhadas de seus pais. A garotada está atônita, vai ao delírio. Ao contrário da igreja e do baile de carnaval, aqui as pessoas olham para Paulo e finalmente o enxergam. O público parece feliz e caloroso. Ana fica confusa. 77 INT. TEATRO - MAIS TARDE Paulo, de terno troncho e nariz de palhaço, está no centro do palco. A luz se acende sobre ele, que fica paralisado alguns instantes olhando para holofote, maravilhado, como se estivesse vendo Deus. É o intervalo da apresentação e atrás de Paulo a cortina está fechada. ATRÁS DO PANO, os atores fazem a troca de cenário. Ana observa Paulo por uma fenda da cortina. NO PALCO, Paulo é tomado de força e coragem, como se a luz do palco o tivesse transformado. Ele deixa de ser o garoto tímido e desengonçado por alguns instantes e domina o palco como se fosse um grande ator interpretando seu melhor personagem -- apesar do figurino patético, do público diminuto e do texto sofrível: PAULO Batatinha quando nasce, se esparrama pelo chão, a menina quando chora, põe a mão no coração. NA COXIA Ana sorri com carinho e todo o grupo cai na gargalhada, menos Marco. NO PALCO Paulo senta na beira do palco, tira um bombom do bolso, o desembrulha bem devagar e começa a degustar com prazer exagerado a guloseima. Ele encara um MENININHO na primeira fila e pergunta: DE VOLTA A PAULO, que está em êxtase. Pela primeira vez ele sente que é notado e que existe como artista. 77 78 E/I. BAR GÔNDOLA - NOITE Paulo toma uma cerveja com a turma do teatro em uma mesa na calçada do agitado bar Gôndola. A conversa está animada, mas Paulo não tira os olhos de-P.V. DE PAULO - DENTRO DO BAR Ana, que discute com Marco perto do balcão. O bar está cheio e não é possível ouvir o que eles falam. Marco parece furioso; ela, sem muito interesse na conversa. Ana olha para Paulo, os olhares se cruzam. Ela sorri sem graça. Marco percebe e o clima entre eles fica ainda pior. Marco grita com Ana e vai embora do bar. CALÇADA - MOMENTOS DEPOIS Ana chega na mesa da turma com uma garrafa de pinga e vários copinhos nas mãos. Ela serve todo mundo e deixa Paulo por último. Ana entrega o copinho de pinga para Paulo e se senta ao lado dele. Paulo está evidentemente babando em Ana, mas ainda não sabe muito como agir nessa situação. Ele vira o copo de pinga em um só gole. 78 69. 70. CALÇADA - PASSAGEM DE TEMPO CALÇADA A cena se repete e Paulo vira alguns copinhos de pinga. Ao final da sequência, Paulo está com os olhos vermelhos e o cabelo mais desgrenhado do que nunca. Ana também está bêbada e dá em cima de Paulo, encostando seu corpo no dele. Paulo não sabe muito como reagir, fica completamente perdido. De repente, Paulo olha para dentro do bar e sua expressão muda completamente. Ana tira um espelhinho da bolsa e retoca a maquiagem. Paulo encara o relógio e coça a cabeça. Sabe que vai ter problemas em casa. PAULO Tem colírio aí? Ana tira um enorme par de óculos escuros de dentro da bolsa e oferece para Paulo. Paulo veste os óculos. Ana morre de rir. P.V. DE PAULO - NA PAREDE DO BAR, ATRÁS DO BALCÃO Um enorme RELÓGIO marca as horas: são 22 horas e 47 minutos. 79 Paulo fica aflito. Ele se levanta e se despede secamente de Ana. PAULO Eu tenho que ir. Paulo toca a campainha, ninguém responde. Paulo enfia a mão na campainha e não tira. Nada. Uma luz se acende no andar de cima da casa. Descontrolado, Paulo começa a esmurrar e dar chutes na porta. Ana ri. Paulo fica sem jeito. PAULO Mais ou menos isso-Ana abre um sorriso lindo e segura na mão de Paulo. ANA Fica, vai-- Fica aqui comigo-Paulo se derrete. 80 INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA GÁVEA - MESMO TEMPO Lygia e Pedro estão sentados na cama desarrumada, com os abajures acesos. O SOM da campainha e o BARULHO dos murros e chutes que Paulo dá na porta da casa invadem o quarto. Os pais de Paulo estão de pijamas, com cara de sono e os cabelos desalinhados. Lygia está transtornada; Pedro, impassível. PAULO (O.S.) Abre essa porta, seu filho da puta! Abre essa porta, capitalista de merda! Pedro fecha os olhos. CALÇADA - PASSAGEM DE TEMPO LYGIA Faz alguma coisa, Pedro, pelo amor de Deus! Entre beijos em Ana e copos de pinga, o tempo passa. Ao final, o bar está quase vazio e os funcionários recolhem as mesas e cadeiras da calçada. PEDRO Ele precisa aprender a respeitar as regras dessa casa, Lygia. DENTRO DO BAR, AO FUNDO O RELÓGIO do bar marca 4 horas e 25 minutos. 79 Paulo, completamente bêbado e com os óculos escuros de Ana, tenta abrir o portão, que está trancado. Ele pula a cerca baixa e tenta abrir a porta da casa, que também está trancada. Paulo procura pela chave debaixo do tapete e nos vasos de flores-- Nada. NA CALÇADA ANA Que foi? O Batatinha vai virar abóbora? EXT. CASA DA GÁVEA - AMANHECER O SOM de um vidro sendo quebrado assusta Lygia. Pedro está a ponto de explodir. Mais vidros se quebram. LYGIA E os vizinhos, Pedro? 80 71. 81 EXT. CASA DA GÁVEA - AMANHECER 72. 81 MUTARELLI (CONT.) (CONT’D) -- Garanto que vai. É um tratamento novo-- Paulo atira mais uma pedra em uma das janelas da casa. Estão quase todas destruídas, assim como os vasos, as flores e o jardim. Pedro abre a porta da casa de pijamas, encara Paulo com ódio e não diz uma única palavra. Paulo tenta se soltar da maca. A voz de Mutarelli na ambulância cobre o início da próxima cena. Paulo passa reto por Pedro como se nada tivesse acontecido e sobe a imponente escadaria de mármore em direção ao quarto. No meio do caminho, ele para para fazer xixi em um vaso de porcelana. Pedro observa impassível. 82 INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA GÁVEA - MOMENTOS DEPOIS 86 INT. SALA DE CHOQUES, CLÍNICA DR. EIRAS - DIA DOIS ENFERMEIROS, sob a supervisão de Mutarelli, aplicam em Paulo o tratamento de eletrochoques na clínica Doutor Eiras. 82 MUTARELLI (V.O.) -- O mais moderno que existe. Sem dor, sem sofrimento. Confia em mim. Paulo entra no quarto e tranca a porta. O quarto está ainda mais bagunçado. 83 INT. CORREDOR, CASA DA GÁVEA - MESMO TEMPO A sala, revestida de azulejos, é toda branca, assim como os uniformes do médico e dos enfermeiros, a camisola e a camisa de força que Paulo veste. Paulo está amarrado com cintas de couro na maca. Tem um tubo de plástico na boca e dois eletrodos grudados nas laterais da cabeça e ligados por fios finos a um pequeno aparelho que fica ao lado da cama. Um dos enfermeiros gira a manivela. A cada volta, o corpo de Paulo estremece com mais intensidade e, como vômito, uma espuma branca sai de sua boca. TELA PRETA. 83 No corredor, na frente do quarto de Paulo, Lygia e Pedro, muito assustados, ouvem apenas os BARULHOS da quebradeira que acontece do outro lado da porta trancada. De repente, o barulho para. Lygia e Pedro se entreolham preocupados. 84 INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA GÁVEA - MOMENTOS DEPOIS 84 No quarto destruído, Paulo pega a máquina de escrever sobre a escrivaninha e ameaça jogá-la pela janela. Desiste. Paulo abraça a máquina e se joga na cama com ela, de roupa e sapatos, com os pés na cabeceira. Ele apaga. TELA PRETA. 85 INT. AMBULÂNCIA - MANHÃ 87 DE VOLTA A PAULO, que tenta se levantar, mas percebe que veste uma CAMISA DE FORÇA e está amarrado na maca. O médico fala com carinho, tem mesmo a segurança de estar oferecendo o melhor para o garoto. MUTARELLI Fica tranquilo, Paulo. A gente tá aqui pra cuidar de você-- Cê vai ficar bem, rapaz-Paulo está completamente dopado, ele olha angustiado para o médico, mas não consegue dizer nada. INT. QUARTO COLETIVO, ALBERGUE - DIA 87 (1986) Sobre a TELA PRETA, a respiração ofegante de Paulo. Ele acorda assustado. 85 Não! Sobre a TELA PRETA, SOM ALTO de sirene de ambulância. Paulo acorda meio dopado. P.V. DE PAULO: Imagens disformes do interior de uma ambulância. Na frente dele, está o doutor Edgar Mutarelli, o mesmo psiquiatra que atendeu Paulo na clínica Doutor Eiras, onde esteve internado. 86 PAULO (O.S.) Ainda sobre a TELA PRETA, a voz de Paulo chama por Chris. PAULO (CONT.) (CONT’D) Chris-- Chris? 88 EXT. FONCEBADÓN, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA (1986) Paulo caminha sozinho pelo Caminho de Santiago, na beira do vale de Foncebadón, a caminho da Cruz de Ferro. Jay o observa à distância. DO ALTO, a imensidão e a imponência do vale deserto fazem Paulo parecer ainda menor e mais sozinho no mundo. Paulo está exausto, sujo de lama. Tem a pele ressecada, as botas rotas e as roupas surradas. Agora sozinho, ele caminha com dificuldade e determinação. Está machucado, com dor. 88 73. 74. EM OUTRO PONTO DO CAMINHO, a estrada acaba subitamente no muro de pedras de um vilarejo abandonado. Paulo fica angustiado. Como um bicho encurralado, com raiva e desespero, ele tenta vencer o obstáculo. Suas mãos feridas se esforçam para agarrar pequenos vãos entre as pedras e sustentar o corpo muro acima. Com muito esforço, ele chega ao topo. 89 90 O delegado olha para os dois sem muita paciência. DELEGADO É desajustado ou não é? (1967) LYGIA Ele só tava fazendo um tratamento rápido, sabe? -- Coisa simples, delegado. O Paulo é uma pessoa boa-- Paulo acaba de pular o muro e corre feliz pela rua deserta, deixando para trás o portão alto da clínica. DELEGADO Sei-- Uma pessoa boa internada pela segunda vez na Doutor Eiras? MAIS ADIANTE, ele pula a cerca baixa do quintal de uma casa e rouba as roupas do varal: camisa e calça social de gosto duvidoso e tamanhos inadequados. O fugitivo se troca ali mesmo, deixando os pijamas da clínica para trás, e segue correndo pela rua. PEDRO Isso. Ele-- O meu filho é uma pessoa boa-- Com algum grau de esquizofrenia e paranoia, entende? É isso que os médicos dizem, eles acham que-- EXT. CASA DE SAÚDE DR. EIRAS/CASA VIZINHA/RUA - MADRUGADA INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA GÁVEA - NOITE 89 90 Na penumbra do quarto de Lygia e Pedro, toca o TELEFONE. Lygia e Pedro acordam assustados na cama. Pedro acende a luz do abajur. É madrugada. O RELÓGIO sobre o criado-mudo marca 4 horas e 48 minutos. Pedro atende o telefone. Ele fica muito sério; Lygia, preocupada. Pedro! DELEGADO Entendi. E sumiu faz dois dias? PEDRO Dois dias, doutor. Lygia senta na cama e espera Pedro desligar o telefone. LYGIA Quase três-- LYGIA O Paulo? Aconteceu alguma coisa com o Paulo? INT. DELEGACIA, RIO DE JANEIRO - MADRUGADA DELEGADO Então o menino é desajustado? Pedro e Lygia discordam e respondem ao mesmo tempo: PEDRO Não. DELEGADO Hospitais, necrotério-- ? 91 Na delegacia do bairro, Pedro e Lygia estão sentados em frente ao DELEGADO, que come um sanduíche murcho e parece entediado. Os pais de Paulo estão arrasados. É. LYGIA O delegado deixa o sanduíche de lado e começa a levar o caso mais a sério. PEDRO (ao telefone) Sou eu. (pausa) Não. Aqui ele não apareceu. 91 Lygia olha indignada para Pedro, censurando o marido por revelar a vergonha da família. LYGIA Lygia chora. Pedro tenta se controlar, mas não consegue conter a angústia. Ele fica com os olhos cheios d’água e a voz embargada. PEDRO Já fui em tudo que é lugar, delegado. A gente não sabe mais o que fazer-- 75. 92 I/E. ÔNIBUS/ESTRADA/PRAIA - EM MOVIMENTO - AMANHECER 76. 92 PAULO Bom dia, Joselino. Eu queria dizer que é uma alegria muito grande estar aqui em Aracaju divulgando o meu trabalho, divulgando a minha arte e as minhas ideias. Paulo dorme no ônibus. Está sujo, com os cabelos desgrenhados e a barba por fazer. Ele acorda, abre a cortina e olha pela janela. P.V. DE PAULO - ATRAVÉS DA JANELA DO ÔNIBUS EM MOVIMENTO LOCUTOR E o que você tem a dizer pros nossos ouvintes, Paulo? O dia amanhece cor-de-rosa em uma praia longa, que parece interminável. A imagem é linda. NA BEIRA da estrada, uma PLACA indica: ARACAJU, 1227 KM. PAULO Olha, eu não viajei milhares de quilômetros até Aracaju pra ficar quieto, Joselino. Eu não vou calar a minha boca só porque um general de merda pegou um fuzil e diz que tá aí defendendo a moral e a liberdade de um povo que nem sabe o que é liberdade, tá me entendendo? Eu-- DE VOLTA A PAULO, que sorri e, logo, começa a rir alto, feliz. Gargalha. Alguns PASSAGEIROS reclamam, outros acordam sem entender o que está acontecendo. Na mesma fileira de Paulo, no banco do outro lado do corredor, uma MENININHA balança a mão diante do nariz e olha para Paulo com cara de nojo, dando a entender que o cheiro dele é insuportável. Paulo repara na menina e faz uma careta engraçada. A menina ri. Joselino, apavorado e furioso, corta o som do microfone de Paulo e coloca uma música regional para tocar. Ao lado da menina, junto à janela, a MÃE coloca o dedo na boca, fazendo um sinal para ela ficar quieta e não se meter com essa gente. Depois, dá voltas no ar com o dedo indicador em torno da orelha, dizendo para a filha que o sujeito é maluco. 93 INT. ESTÚDIO DE RÁDIO, ARACAJU - DIA Paulo dá uma entrevista ao vivo no estúdio de uma pequena rádio. Ele está um pouco mais arrumado, com os cabelos presos, mas ainda veste a mesma roupa que roubou na fuga e que vestia no ônibus. NA FRENTE DE PAULO, JOSELINO, o locutor da rádio, se prepara para voltar ao ar ao final de uma música. A LUZ vermelha acende no estúdio. LOCUTOR Rádio Aracaju, a rádio que toca o seu coração. Estamos aqui de volta com o famoso escritor, jornalista, ator e dramaturgo Paulo Coelho de Souza, direto do Rio de Janeiro para os nossos estúdios. Bom dia, Paulo! Paulo, muito sério, faz pose de intelectual. LOCUTOR Tu é maluco, é? Paulo começa a rir. UM SEGURANÇA aparece do outro lado do vidro do estúdio. Paulo para de rir imediatamente. 93 P.V. DE PAULO - DO OUTRO LADO DO ESTÚDIO: Uma porta identificada como SAÍDA DE EMERGÊNCIA. 94 INT. ESCADARIA DA RÁDIO, ARACAJU - MOMENTOS DEPOIS 94 Paulo corre escadaria abaixo para fugir do segurança. 95 EXT. RUAS DA PERIFERIA DE ARACAJU - MOMENTOS DEPOIS Paulo sai sozinho pela porta da “Rádio Aracaju” e corre pela rua. LOGO ADIANTE, o fugitivo entra numa RUA UM POUCO MAIS MOVIMENTADA, com algumas BARRAQUINHAS e CAMELÔS. Paulo rouba discretamente uma fruta de uma das barracas e segue correndo. MAIS ADIANTE, ele se distrai ao comer sua banana e derruba uma outra barraca, que vende panelas. O BARULHO das panelas chama a atenção de DOIS SOLDADOS DA POLÍCIA MILITAR que fazem a ronda na feira. Na confusão armada, sob protestos dos COMERCIANTES e TRANSEUNTES, Paulo entra em um beco para escapar dos policiais. Passado o susto, ele dá risadas. 95 77. 96 INT. SALA, CASA DO AVÔ - DIA Sentado numa enorme poltrona da sala da casa de Mestre Tuca, o avô, e de DONA LILISA (70) -- a simpática avó -- Paulo parece um indigente. Ao lado dele, no sofá, Lygia e Pedro parecem resignados, vencidos. Tuca e Lilisa estão de pé, ao lado de Paulo, dando apoio ao neto. 78. 96 97 ANA Num jornal, Paulo? Que máximo! GILDA Por isso que você sumiu de novo? PAULO Posso trabalhar no jornal? As meninas parecem encantadas. Paulo joga seu charme. PAULO É-- Eu-- Eu tava fazendo uma matéria especial, uma investigação política-- Uma coisa complicada, sabe? Pedro respira fundo. PEDRO PAULO Você fala com o seu amigo? ANA Nossa, Paulo-- Isso não é perigoso? PEDRO Eu acho melhor você-- PAULO Nada-- É muito emocionante. Meu trabalho é-- É adrenalina pura. Na veia. Lygia cutuca Pedro. Pedro volta atrás. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Eu falo com ele. Pedro e Lygia se entreolham aflitos. Paulo começa a rir. Pedro se controla e tenta manter a fala doce, como quem fala com uma criança. PEDRO (CONT.) (CONT’D) A gente só quer o seu bem, meu filho. Paulo sorri e comunica: PAULO Então eu vou morar aqui com eles. Pedro e Lygia olham surpresos para Tuca e Lilisa, que confirmam a possibilidade com um sorriso sereno e cúmplice. LILISA Pelo menos por um tempo-Mestre Tuca olha fundo nos olhos de Lygia. MESTRE TUCA Vai ser bom pra todo mundo, minha filha. Pedro e Lygia, constrangidos, não sabem muito como reagir -- mas concordam. 97 Paulo está cercado por cinco ATRIZES, entre elas, Ana, Paula e Gilda, a velha turma do teatro da escola. PEDRO O que você quiser, Paulo. Pode. INT. TEATRO - DIA 98 INT. REDAÇÃO DO JORNAL - DIA A redação está fervendo. JORNALISTAS e FOTÓGRAFOS circulam e o SOM frenético dos teclados das máquinas de escrever domina o lugar. AO FUNDO, NA PORTA DO BANHEIRO, Paulo está sentado em uma pequena mesa, com uma máquina velha, um telefone e um banquinho improvisado. NA FRENTE DELE, O CHEFE DA REDAÇÃO -- 50 anos, cara de boa gente -- esculhamba Paulo. Ele tem algumas laudas datilografadas nas mãos e amassa uma por uma na frente do garoto. CHEFE DA REDAÇÃO Olha aqui, moleque-- Obituário não é editorial não. Eu já te disse que ninguém aqui tá interessado na tua opinião? PAULO Mas, chefe, eu-CHEFE DA REDAÇÃO Me escuta. Você liga pra Santa Casa, liga pros outros hospitais, pega a lista dos defuntos, passa essa porra a limpo e pronto. É (MORE) 98 79. 80. CHEFE DA REDAçãO (CONT'D) isso. É só isso. Duas linhas por defunto e acabou. 101 CHEFE DA REDAÇÃO Não pensa, não. Pensa, não-- Faz o teu servicinho aí e não enche o meu saco, entendeu? Paulo, meio desajeitado, transa com Ana. É ela quem toma as iniciativas. Ele está em êxtase. Paulo encara o chefe com raiva, mas não responde. O chefe é irônico. 102 CHEFE DA REDAÇÃO (CONT.) (CONT’D) O quê? Eu ouvi você falando alguma coisa? Vai desistir? Eu acho que tá na hora de você desistir, não tá? Em dias diferentes, Paulo transa com várias mulheres, usa drogas variadas, e a garagem vai ganhando outra cara. - Paulo toma um vinho e transa com Gilda. 99 Sentado numa mesinha da calçada do mesmo bar Gôndola, Paulo está novamente rodeado pelas meninas do teatro. Encantada, Ana provoca Paulo. - Paulo toma uísque e transa com uma MULHER BEM MAIS VELHA do que ele. - Paulo toma chá de cogumelos e transa com uma MOÇA GORDA. A garagem ganha os pôsters dos Beatles, do Che Guevara e pinturas psicodélicas de grafite. Paulo responde com orgulho e malícia. PAULO Não, agora eu moro sozinho. INT. SALA, CASA DO AVÔ - NOITE Mestre Tuca está sentado em uma poltrona lendo o jornal. AO FUNDO - ATRÁS DELE, Dona Lilisa está de costas, segurando a cortina com uma das mãos e espiando pela janela. LILISA Cê acha que eles querem tomar um suco, Tuca? Tuca sorri com malícia. TUCA Deixa os meninos, Lilisa. Eles devem tá estudando. - Paulo fuma maconha e transa com Paula. A garagem já está cheia de livros e discos. - Paulo transa com uma PUTA. Ela cheira cocaína. A garagem tem as paredes forradas com folhas de jornal, inclusive no teto. ANA E você ainda tem que voltar antes das onze pra casa ou-- 100 INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - MONTAGEM/PASSAGEM DE TEMPO (1967 - 1970) Paulo balança a cabeça para os lados sem se alterar. EXT. BAR GÔNDOLA - OUTRA NOITE 101 A garagem da casa do avô que agora abriga Paulo é espaçosa, só tem um colchão de casal no chão e, ao fundo, a antiga escrivaninha de madeira, com a máquina de escrever vermelha em cima. No canto, há alguns caixotes de madeira onde estão guardados alguns poucos livros e peças de roupa. PAULO Mas eu pensei que-- 99 INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - MESMO TEMPO 100 - Paulo, de cabelos ainda mais compridos e desgrenhados, com bigode e cavanhaque, toma ácido e transa com uma JOVEM HIPPIE esquelética. A garagem está cheia de cristais e incensos. - Paulo, só de cueca, agora está com 23 anos [[mudança de ator]], cabeludo e barbudo, com cara de doidão. E a garagem está uma bagunça completa. UM GAROTO DE PROGRAMA -- feio e forte -- agarra Paulo e o encosta na parede, de costas para ele. O homem coloca a mão na bunda de Paulo, abaixa sua cueca e o penetra por trás. Paulo não gosta do que sente e corta o clima: PAULO Parou. Parou aí, irmão. O garoto de programa não entende e insiste. GAROTO DE PROGRAMA Você vai gostar-Paulo se vira. Parece um pouco triste, mas é gentil. 102 81. 82. PAULO Não, não, não-- Valeu. Eu-Desculpa, mas não vai rolar. PAULO Entrar pra quê? Cês não vão me internar? Paulo sobe a cueca, pega algum dinheiro no bolso da calça que estava jogada no chão e o entrega ao garoto de programa. Ele se explica, meio sem graça. MESTRE TUCA Só se você quiser. Paulo deixa o avô entrar. Mestre Tuca senta na cama e olha o estrago feito por Paulo: tudo quebrado, menos a máquina de escrever que Paulo carrega debaixo do braço. PAULO (CONT.) (CONT’D) Valeu mesmo. Nada contra, tudo certo-- É que era só pra tirar uma dúvida mesmo. -- Quer uma cerveja? 103 INT. REDAÇÃO DO JORNAL - DIA 103 Paulo não entende nada. (1970) MESTRE TUCA (CONT.) (CONT’D) Ótimo. Já que você já destruiu o passado, Paulinho-- Agora dá pra pensar um pouco no futuro, não dá não? Paulo, com cara de chapado, enfrenta o chefe no meio da redação, na frente dos colegas. Ele fala alto e chama a atenção de quem passa, causando certo constrangimento. PAULO Eu tenho condições de ajudar o jornal fazendo um trabalho melhor. Eu -- Eu mereço e eu quero ser efetivado. Paulo senta ao lado do avô na cama, pensativo. Ele está cada vez mais desconfiado e não disfarça uma certa decepção. PAULO Mas cês não vão mesmo me internar? Eu tive um surto, eu sou maluco, eu tenho que-- O chefe responde friamente. CHEFE DA REDAÇÃO E eu quero muito que você junte as suas coisas e vá embora daqui. 104 MESTRE TUCA (CONT.) (CONT’D) Quebrou tudo, hem. Genial. Muito bom. INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - NOITE O quarto de Paulo, montado na garagem da casa do avô, está destruído. Ele acaba de repetir o ataque de fúria que teve na casa dos pais. Paulo está sentado no chão, agarrado à sua máquina de escrever. Um SOM alto de SIRENE invade o lugar. Paulo sorri. BATIDAS na porta. Do outro lado, Mestre Tuca tenta contato com Paulo. MESTRE TUCA (O.S.) Posso entrar? Paulo, abraçado à máquina de escrever, estranha o tom gentil. Desconfiado, ele se levanta e abre a porta. Paulo olha curioso e ainda mais desconfiado para o avô ao descobrir que ele está sozinho. PAULO Cadê o doutor Mutarelli? MESTRE TUCA Tá lá fora. Posso entrar? 104 MESTRE TUCA Sabe o que eu acho? Eu acho que você não é maluco não, Paulinho. Eu acho que você tá é gostando dessa história de ser maluco, sabia? Paulo coça a cabeça, pensando no que acabou de ouvir. PAULO Mas os meus pais-MESTRE TUCA Eles só querem o que é melhor pra você, Paulo. Só isso. Mas eles-- PAULO MESTRE TUCA Eu vou conversar com eles também. Fica tranquilo. 83. 105 INT. TEATRO - NOITE 84. 105 Quando os pais se aproximam para cumprimentar Paulo, o ator da peça chega, levanta Paulo no colo e o enche de beijos: Paulo foi realmente um sucesso. Pedro para no meio do caminho e ameaça dar meia-volta. Lygia segura o marido. Muito a contragosto, Pedro se aproxima e cumprimenta o filho friamente. Ele apenas estica a mão e não consegue dizer uma única palavra. Paulo retribui o gesto no mesmo tom. É a cena final da apresentação de uma peça num teatro pequeno, bem pobrinho. A casa está quase cheia. Lygia e Pedro estão presentes na plateia, com certo desconforto. Pela cara de poucos amigos de Pedro, está claro que para ele o teatro é um reduto de vagabundos e marginais, um péssimo ambiente para o filho. NO PALCO, um ATOR interpreta o texto com emoção, olhando fundo nos olhos da ATRIZ que interpreta a personagem Dayse. 107 Paulo está em uma mesa de quiosque no calçadão de Ipanema, fumando e bebendo com os atores da peça “O Inventor Ausente” e mais 4 AMIGOS que comemoram o sucesso da apresentação. Meio chapado e triste, o autor está alheio à conversa e à animação do grupo. A atriz da peça provoca baixinho: ATOR E quando o meu destino sai ruim, você para um pouco, acende um cigarro, faz uma prece e joga as cartas de novo. E pronto. Eu tô salvo! Em dois minutos, você muda o meu futuro, Dayse. ATRIZ Que foi, Paulo? Não tá feliz? O ator agora encara a plateia e dá o texto final como quem conta um segredo: Paulo não responde, apenas esboça um sorriso triste. ATRIZ (CONT.) (CONT’D) Até parece que não gosta de aplauso-- ATOR (CONT.) (CONT’D) No quartinho dos fundos, a Bruxa e o Deus da Chuva se encontram-- O destino da humanidade é lido e modificado. E as grandes coisas são construídas e desfeitas em frações de segundos.-- E a voz da bruxa não para, não para-- Não para nunca! Paulo pensa um pouco antes de responder. Está realmente introspectivo e, mesmo com o sucesso da peça, ainda se sente frustrado, insatisfeito. PAULO Eu não gosto da peça. Lygia, embora contida, olha com curiosidade e interesse para o PÚBLICO ALTERNATIVO que aplaude efusivamente. Alguns se levantam para aplaudir. A atriz faz uma careta e volta a bater papo com os outros. Logo Paulo é atraído pelas palavras que SOAM ao longe: NO PALCO, o ator e a atriz se abraçam e se curvam para agradecer. Paulo, com uma expressão séria, entra no palco e é aplaudido com entusiasmo pelo elenco e pela plateia. NA PLATEIA, Pedro está surpreso com o sucesso do filho. Lygia agora aplaude o filho orgulhosa e não se intimida nem ao encontrar o olhar repressor do marido. Ela sussurra: HIPPIE (O.S.) “Tú que procrastinas, que no piensas en la llegada de la muerte, dedicándote a las cosas inútiles de la vida” Paulo nota o movimento na areia da praia. LYGIA Ele é um sucesso, Pedro. P.V. DE PAULO - PRAIA Pedro olha em volta, quase sorri, mas se fecha novamente ao ver um casal de homens andando de mãos dadas. 106 INT. CAMARIM, TEATRO GRANDE - MOMENTOS DEPOIS Nos bastidores do teatro, Paulo e o elenco comemoram o sucesso do espetáculo. Um grande CARTAZ com a foto dos atores indica: “O INVENTOR AUSENTE”, ESCRITA E DIRIGIDA POR PAULO COELHO EXT. CALÇADÃO/PRAIA DE IPANEMA - MAIS TARDE 106 Um grupo de 8 HIPPIES, embalados a ácido e percussão, quase em transe, faz uma espécie de ritual. Entre eles, se destaca Luiza -- a mesma morena linda que aparece no show de Raul no começo do filme, aqui ainda mais sedutora e elegante em um vestidão de seda colorido e esvoaçante -- sentada ao lado da fogueira. Ela tem na mão um copo de uísque e olha fixamente para Paulo. O HIPPIE segue lendo os “Versos Básicos do Bardo Thödol”, no “LIVRO TIBETANO DOS MORTOS”, de W.Y. Evans-Wentz (org), em “portunhol” sofrível: 107 85. 86. HIPPIE (CONT.) (CONT’D) “-- Insensato eres tú que desperdicias tú gran oportunidad”-- LUIZA Quer casar comigo? Quero. NA PRAIA, Paulo se aproxima e vai direto ao Hippie que lê, como se o texto fosse especialmente declamado para ele. LUIZA Como é que cê chama mesmo? HIPPIE (CONT.) (CONT’D) -- “Desengañado con certeza, será tu propósito ahora que vuelves de manos vacías de esta vida”. Paulo. Os dois dão risadas e se agarram de novo. 109 PAULO “Pero todos los hombres buenos y santos al ver a los mensajeros de la muerte no actúan sin pensar, sino que escuchan lo que la noble doctrina dice. Y en ese lazo, amedrentados, ven la fuente fértil del nacimiento y de la muerte. Y se liberan del lazo, extinguiendo, así, el nacimiento y la muerte. Ellos son seguros y felices--”. LUIZA (O.S.) Você acredita em Deus, Paulo? PAULO Ele me assustava muito. Agora-Luiza, apaixonada, vestindo só uma camiseta do namorado, se aproxima por trás e vira Paulo. Agora? LUIZA -- “Libres de todo ese espectáculo fugaz; De todos los pecado y miedos isentos, dominarán todo el sufrimiento”. LUIZA PAULO Se ele existe ou não já não é mais problema meu. Paulo e Luiza seguem se encarando em silêncio. Paulo acorda na cama pelado, ao lado de Luiza. Ele olha em volta e se espanta. É um apartamento luxuoso, grande. A enorme cama fica no meio da sala, de frente para a praia de Ipanema. Através da parede de vidro, só é possível ver a imensidão do MAR, iluminado pelos primeiros raios do sol da manhã. Do ponto de vista de Paulo, a sala toda parece flutuar no oceano. Luiza acorda e abraça Paulo. Ela fala baixinho em espanhol no ouvido dele. INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - OUTRO DIA Paulo já está instalado e muito à vontade na casa de Luiza. De cuecas e meias, ele está tomando um café de pé na sala, enquanto lê os títulos dos livros que ela tem na estante. São livros de muitas crenças, religiões e assuntos místicos, em português, inglês e espanhol. Luiza se aproxima e começa a lamber o pescoço de Paulo, que se desconcentra. Ela ri, pega o livro das mãos dele e continua a leitura, em espanhol perfeito e muito sensual, olhando fundo nos olhos de Paulo: INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - AMANHECER PAULO LUIZA Eu sou a Luiza, Paulo. Sob o olhar curioso do grupo, especialmente de Luiza, Paulo pega o livro das mãos do Hippie, abre numa página qualquer e começa a ler um trecho que cita Aguttara-Nikâya, III, 35. O espanhol de Paulo é um pouco melhor do que o do Hippie. 108 PAULO DE VOLTA A PAULO. Hipnotizado pelo texto, Paulo se levanta da mesa e segue na direção do grupo. 108 Luiza sorri. “O DESPERTAR FANTÁSTICO”, livro e fica Um LIVRO na estante chama a atenção de Paulo. É DOS MÁGICOS - INTRODUÇÃO AO REALISMO de Louis Pauwels e Jacques Bergier. Paulo pega o muito interessado. INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - ENTARDECER Paulo, muito concentrado, está sentado numa poltrona da sala fumando e lendo obsessivamente o livro que pegou na estante. Ao fundo, um lindo entardecer na praia. Luiza, toda arrumada, de saia longa com fenda, chega em casa. Ela sorri e se aproxima em silêncio. Luiza faz uma massagem sensual nas costas de Paulo, que não tira os olhos do livro. 109 87. 88. Luiza escorrega a mão pelo peito de Paulo, em direção ao sexo. Paulo intercepta a mão de Luiza no meio do caminho. PAULO (CONT.) (CONT’D) Mas na nossa força-- Na nossa força eu tenho que acreditar. Se esse cinzeiro quebrar, significa que a gente-- PAULO (CONT.) (CONT’D) Como é que um cara feio como eu pode acreditar no amor de uma mulher tão linda? Luiza se levanta e acende a luz. Luiza tira o cigarro da outra mão de Paulo e dá a volta na poltrona. Ela levanta a saia longa e se senta no colo dele, de frente, de pernas abertas. Luiza encara Paulo com o cigarro aceso na mão. LUIZA Chega, Paulo. Vamo dormir. Luiza apaga as velas, pega o cinzeiro no chão e segue na direção da cozinha. LUIZA Quer que eu prove? SOM de coisas caindo e vidro quebrando. Paulo se levanta correndo e vai atrás de Luiza. Paulo, intrigado, encara Luiza com ar desafiador. Luiza pega o cigarro, abre ainda mais a fenda da saia, e queima a própria coxa, enfrentando a dor e olhando fundo nos olhos de Paulo. Os dois ficam com os olhos cheios de lágrimas e se beijam com amor. P.V. DE PAULO - COZINHA - MOMENTOS DEPOIS Luiza está no chão, entre os cacos vermelhos do cinzeiro quebrado. Paulo está radiante. VISTO DE FORA PAULO Viu? Deu certo, Ziza! O reflexo vermelho do mar e das montanhas iluminados pelo sol poente e, ao fundo, dentro da sala, o amor intenso de Paulo e Luiza -- que choram emocionados e tiram suas roupas sem deixar de olhar fundo nos olhos um do outro. 110 INT. SALA/COZINHA, APARTAMENTO DE LUIZA - NOITE Paulo e Luiza -- com roupas hippies -- estão sentados frente a frente no chão da sala e olham fixamente para um grande CINZEIRO de cristal vermelho que está entre eles. Ao redor, velas, incensos acesos e o livro que Paulo estava lendo. Cansada, Luiza sai do transe e entrega os pontos. Luiza, com dor, estica o braço para Paulo. LUIZA Me ajuda, Paulo. 110 Paulo ajuda Luiza. PAULO Você entendeu o que aconteceu? LUIZA Eu levei um tombo ridículo. LUIZA Eu desisto, Paulo. Não vai rolar. PAULO Não. Tá provado. Agora tá provado! PAULO Pô, meu amor-- Não estraga a parada-- Tava quase. Eu senti que faltava pouco. LUIZA Foi só um tombo, Paulo. LUIZA Você disse que não acreditava em Deus. PAULO Se Deus existe, ele tem mais o que fazer, né Ziza-Luiza acha graça. PAULO Não! Foi a força do pensamento. Isso é genial! A gente pode tudo, meu amor. Tá tudo aqui, ó-Paulo aponta para a própria cabeça e sorri maravilhado. Luiza olha meio desconfiada para Paulo e acha graça do que considera um delírio dele. Ela olha para as próprias mãos: estão sangrando. 89. 111 EXT. ESTRADA DE TERRA, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA 90. 111 SPOK -- É um verdadeiro Eden. Há o pertencer e o amor. (1986) Concentrado, Paulo faz um ritual de R.A.M.: Ele está sentado no chão, com as pernas cruzadas, e olha fixamente para seu próprio reflexo numa poça d’água. CAPITÃO KIRK Sem desejo ou necessidade? Kirk anda ao redor da mesa. 112 EXT. CAMINHO DE SANTIAGO - DIA 112 CAPITÃO KIRK (CONT.) (CONT’D) Não fomos feitos pra isso; nenhum de nós. O homem estaciona se não tem ambição, nenhum desejo de ser mais do que é. (2013) Um PÉ MASCULINO, que veste tênis moderno, pisa a mesma poça d’água desfazendo a imagem dos dois Paulos. É o pé de Paulo, aos 66 anos, que caminha pelo mesmo ponto da estrada de terra no Caminho de Santiago. NA FRENTE DA TV, Paulo parece arrebatado pelas palavras de Kirk. Luiza não entende nada. Chris segue um pouco atrás e aperta o passo para alcançar o marido. Quando ela chega ao lado de Paulo, ele acelera o passo para ficar sozinho de novo. Chris se detém no meio da estrada e observa o marido. Com serenidade e alguma tristeza, ela deixa que ele se afaste. 113 INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - NOITE SANDOVAL (O.S.) Temos o que precisamos. CAPITÃO KIRK (O.S.) Menos o desafio. Luiza sorri meio preocupada com o namorado, sem saber o que dizer. Paulo, na maior cara de pau, faz o pedido. 113 PAULO Vem cá-- Cê tem uma grana pra me emprestar? (1973) Paulo e Luiza, como um velho casal entediado, estão na sala da casa dela assistindo televisão. Luiza está deitada no sofá e Paulo está sentado no chão, encostado no mesmo sofá. Ao lado dele, NO CHÃO, um LIVRO de “I CHING” aberto e três MOEDAS CHINESAS. 114 - Limpa o lugar, joga fora o entulho acumulado, organiza livros e discos. O APRESENTADOR DE JORNAL dá a notícia [[material de arquivo]]. - Coloca a velha máquina de escrever vermelha na estante, como um troféu. APRESENTADOR [[Lançamento do General Ernesto Geisel como candidato a Presidente da República pela ARENA]]. NA TELA DA TV: CAPITÃO KIRK conversa com SPOK e ELIAS SANDOVAL (colono do planeta Ômicron Ceti 3), que tomam chá a uma mesa. 114 Paulo arruma a garagem, agora como escritório improvisado: NA TELA DA TV: SALA. Paulo não se interessa minimamente pela notícia política. Ele se levanta e muda algumas vezes de canal até que para no canal 9, da TV Tupi, que passa a versão dublada do episódio “This Side of Paradise” [”Deste Lado do Paraíso”, ep. 25 (s01e25)] do seriado americano JORNADA NAS ESTRELAS. INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - MONTAGEM - DIA - Sentado em uma imponente cadeira presidente de couro rasgado, atrás de sua nova mesa de trabalho -- uma mesa de escritório grande e velha -- Paulo olha orgulhoso para sua novíssima máquina de escrever, grande, não portátil. - Na parede ao fundo, Paulo pinta um disco voador colorido e a logomarca do novo empreendimento: REVISTA 2001. 115 INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - OUTRO DIA Luiza, linda, acende um incenso e defuma o lugar. Ela observa Paulo, que está concentrado tentando fazer funcionar seu mimeógrafo. Luiza deixa o incenso de lado e se aproxima de Paulo com ar sedutor. 115 91. 92. Paulo termina de imprimir orgulhoso a primeira página do primeiro exemplar de sua revista e entrega a folha para Luiza. Luiza fica eufórica e tenta agarrar Paulo. Ele não entra no clima, corta Luiza e volta ao mimeógrafo. Luiza tenta se conter, mas fica triste. 116 INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - OUTRO DIA SALA Paulo, cada vez mais tenso, disca um número de telefone. Ninguém atende. Mestre Tuca fecha a cortina e encara Paulo. MESTRE TUCA Vai lá, Paulinho. 116 Paulo está compenetrado escrevendo um artigo para sua revista. Batidas na porta. Paulo estranha. Mais batidas, mais fortes. PAULO Eu tenho certeza que é meganha, vô. Paulo se levanta, abre a porta e encontra RAUL SEIXAS (28) -um sujeito de terninho escuro e gravata fina, com cabelos engomados, óculos escuros e sotaque baiano -- carregando uma pastinha de executivo. E daí? PAULO Eu tenho certeza que ele vai me levar. RAUL Augusto Figueiredo? MESTRE TUCA Você não é tão importante assim-- PAULO O Augusto não tá. Posso ajudar? PAULO Mas eu sou comunista! RAUL Não. É só com ele mesmo. Eu vou esperar. Mestre Tuca não consegue conter o riso. Paulo fica ofendido. Mestre Tuca se recompõe. MESTRE TUCA Anda, Paulo. Lembra: se vai doer-- Raul observa o mimeógrafo, senta em uma velha poltrona, acende um cigarro e pega um exemplar da revista 2001 para folhear. Paulo fica muito incomodado. Paulo completa a frase do avô. PAULO -- Enfrenta o problema logo, que pelo menos a dor acaba. PASSAGEM DE TEMPO - ANOITECER O cinzeiro de Raul já tem cinco PONTAS DE CIGARRO apagadas e ele acende mais um. Sobre a mesa, três exemplares da revista. Isso. Paulo, nervoso, abre discretamente a gaveta de sua mesa, recolhe algumas pontas de cigarro de maconha e as esconde no bolso. Ele se levanta. INT. SALA/GARAGEM, CASA DO AVÔ - MOMENTOS DEPOIS Paulo, ao lado do avô, espia o intruso discretamente, pela janela da sala. P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA CORTINA ENTREABERTA - GARAGEM Raul se levanta da mesa e caminha pelo “escritório” de Paulo, olhando os detalhes com curiosidade. MESTRE TUCA PAULO Manda um beijo pra Ziza, vô. Se eu morrer, diz que eu morri amando ela, diz que o Universo-- PAULO Eu já volto. 117 MESTRE TUCA Mestre Tuca corta o drama do neto. MESTRE TUCA Vai, Paulo. Anda. 117 118 INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - NOITE Paulo, cheio de coragem, está de pé na frente de Raul. PAULO É o seguinte, bicho. O Augusto Figueiredo não existe. (MORE) 118 93. PAULO (CONT'D) Sou eu mesmo que assino todas as matérias aqui da revista e se é pra me prender, vamo resolver logo essa parada. 94. 119 RAUL É tu mesmo que escreve todas essas ondas loucas sobre disco voador? LUIZA Caretinha de terno e gravata, Paulo? Não tem nada a ver com a gente-- Paulo desconfia do sujeito. PAULO Todas. Meu nome é Paulo Coelho de Souza, pode me levar. PAULO Não é careta não, Ziza. Só parece-Ele é-- Ele é-- Sei lá. RAUL Que isso, levar pra onde? Eu gostei. Papo sério-- Luiza ri. E consegue se levantar um pouco na cama para falar com Paulo. Raul abre um sorriso largo e estende a mão para Paulo, que fica sem reação. LUIZA Cê acha mesmo que ele bota anúncio na revista? RAUL (CONT.) (CONT’D) É com tu mesmo que eu quero falar, então. Eu sou o Raul. Raul Seixas, velho. Prazer enorme. PAULO Vou tentar, né-- Mas tem esse lance da música também-- Vai que dá certo? Paulo, desconfiado, aperta a mão de Raul. LUIZA Até pode-- Mas-- Porra, amor, executivo de gravadora? Baiano querendo cantar rock no Rio de Janeiro? Difícil pacas-- RAUL (CONT.) (CONT’D) Vem cá-- Quantas pessoas leem essa tua revista? PAULO Ah-- É-- Um monte. Muita gente mesmo. Por quê? Paulo continua sério. PAULO O cara é meio esquisito, mas-- As coisas que ele fala-- Eu tirei o “I Ching” outro dia e depois na TV-- RAUL Eu sou produtor, sou gerente lá da CBS-- A gravadora, tá ligado? Música e tal-- LUIZA Tá de sacanagem, Paulo? PAULO RAUL Então-- Tô com umas ideias aí-- Um lance sério. Música, parceria e tal-- Tá a fim? Paulo olha para Raul com uma mistura de desconfiança e interesse. PAULO Tu é gerente de onde mesmo? 119 Paulo e Luiza estão na cama. O relógio, sobre o criado-mudo, marca mais de 2:00hs da madrugada. Paulo acaba de chegar e ainda veste as mesmas roupas do encontro com Raul. Ele está sentado ao lado de Luiza, todo animado. Luiza, que estava dormindo, luta contra o sono para prestar atenção no que ele fala, mas mal consegue abrir os olhos. Raul se levanta e encara Paulo muito sério e desconfiado. Sei-- INT. APARTAMENTO DE LUIZA - NOITE PAULO É um sinal, Ziza. Eu tenho certeza que é um sinal. 120 INT. BAR - NOITE É fim de noite num bar de música ao vivo. O lugar é pequeno, alternativo, quase decadente. Paulo e Raul conversam animados numa mesa de canto. Sobre a mesa, uma garrafa de uísque barato quase vazia e dois copos sem gelo. 120 95. AO FUNDO, NO PALCO pequeno, improvisado, o BATERISTA desmonta seu instrumento e, NO SAlÃO, DOIS GARÇONS terminam de colocar as mesas para cima. Raul tem o violão nos braços e dedilha alguns acordes da música “AL CAPONE”. Ele tenta cantar enquanto lê -- no papel que está sobre a mesa -- a letra rabiscada, cheia de garranchos, escrita por Paulo (no mesmo ritmo do refrão: “Ei, Al Capone, vê se te orienta”). RAUL “A liberdade do homem-- e a justiça do universo. Quando Al Capone--” Raul balança a cabeça e fala com carinho com Paulo. 96. Raul confirma com a cabeça, Paulo se anima, dá risada e arrisca: PAULO (CONT.) (CONT’D) “Ei, Al Capone, vê se te orienta--” Raul abre um sorriso largo, vibra. Os dois dão risadas juntos, cúmplices, parceiros. RAUL Na veia, sem grilo-- Sacou tudo! PAULO Porra. Que loucura-- Vou tentar, vou tentar. RAUL (CONT.) (CONT’D) Careta pra caralho irmão. Não é por aí-- RAUL Tá feito, Paulo. Agora só botar no papel e arrebentar. PAULO Eu nunca fiz isso, Raul-- Eu só sei escrever assim. PAULO Sei-- Pode ser-- Mas depois eu queria falar contigo também daquela ideia da CBS investir na revista e tal-- E-- RAUL -- Nada, velho-- Pra falar sério com as pessoas, cê não precisa falar difícil não, cara. Pode ser simples. Tem que ser simples, saca? PAULO Não dá, Raul. Não vai dar certo. RAUL Porra, claro que vai, irmão. Tu é gênio com as palavras. Tu põe palavra na minha música e a gente arrebenta, pode crer que arrebenta. Paulo gosta do que ouve, mas segue desconfiado. Raul insiste. RAUL(CONT.) (CONT’D) Simples, sacou? O segredo é esse-Dá pra falar umas paradas sérias de um jeito que todo mundo entende. PAULO Simples como? RAUL Mais direto, mais jogado, sacou? Vai lá-Raul volta a dedilhar o violão com os acordes do refrão. PAULO Mais jogado? Qualquer lance, tipo-- RAUL Esquece isso, maluco. O lance é a música. É a música que entra na alma das pessoas, entende? PAULO Mas a revista-RAUL Cara, é o seguinte: você quer falar pro mundo, tá aí querendo dizer um monte de coisa, não tá? Tu quer ser mais do que tu é, não quer? Paulo muda radicalmente de postura e de expressão ao ouvir de Raul quase a mesma frase dita pelo Capitão Kirk na TV. Fica realmente intrigado. Raul é firme: RAUL (CONT.) (CONT’D) Vem comigo, irmão. Raul volta a dedilhar o violão. Cantam juntos. PAULO E RAUL Ei, Al Capone, vê se te orienta-Paulo se anima e continua. PAULO -- Assim dessa maneira, nego, Chicago não te aguenta-- 97. 98. PAULO (CONT'D) Eles são incríveis-- É o nosso caminho, Raulzito. Umas paradas fortes. Raul fica radiante. Gênio! RAUL RAUL Quem é Crowley? MAIS TARDE A garrafa de uísque já está vazia e há outra ao lado, recém aberta. Paulo termina de enrolar um baseado, acende e oferece para Raul. Raul hesita um pouco. PAULO “Faz o que tu queres” -- O Livro da Lei, manja? RAUL (CONT.) (CONT’D) Tô bem. Sou disso não, parceiro-- RAUL Pode crer-- É tudo da Lei, não é isso? Paulo insiste. Raul resolve experimentar e curte o baseado. PAULO Me ouve, porra-- Fiquei duas horas com o cara e ele aceitou receber a gente. MAIS TARDE Raul toca o violão e os dois cantam juntos “Al Capone” aos gritos. Raul dá uma olhada na matéria da revista e não curte. PAULO E RAUL Ei, Al Capone, vê se te orienta. Assim dessa maneira, nego, Chicago não te aguenta-- RAUL Pô, Paulo. Que viagem-- Barra pesada demais. Uma onda que não é a nossa, velho. O SOM do show da próxima cena cobre o final desta sequência. A música cantada pelos dois emenda com-121 INT. BAR - NOITE PAULO A gente tem que falar com esses caras. 121 No palco improvisado do mesmo bar caído, em outra noite, Raul canta a música “Al Capone” para um público de cerca de 40 PESSOAS. Ele veste camiseta justa, calça jeans grudada e óculos escuros. Raul age como se fosse uma grande estrela se apresentando no Maracanã lotado, embora o público esteja mais interessado em beber e bater papo. Aos poucos, as pessoas se animam e começam a dançar e a cantar o refrão da música. PAULO Eu sei o que eu tô falando-- Você disse que a gente ia mudar o mundo, não disse? Falar com a alma das pessoas, não é isso? Raul balança a cabeça para o lados e ri. Não está levando Paulo a sério. DO OUTRO LADO, ENCOSTADO NO BALCÃO, Paulo está fascinado com a força de Raul no palco e a euforia das pessoas na pista. Está feliz: começa a acreditar que a parceria pode dar certo. 122 INT. BAR, SHOW DE RAUL SEIXAS - MAIS TARDE Depois do show, no bar já quase vazio, Paulo e Raul tomam um uísque. Raul está chapado e tem dificuldade de entender o que o acelerado Paulo está falando tão animado. Paulo tem um exemplar da revista 2001 nas mãos e mostra uma matéria para Raul com o título: O.T.O. NO BRASIL: ENTREVISTA EXCLUSIVA COM O ÚNICO HERDEIRO DE CROWLEY. PAULO Consegui entrevistar esses caras aqui. (MORE) RAUL Pra que, velho? Pirou? 122 RAUL Porra, Paulo. Eu falei de fazer música-- Falar com as pessoas através da música-PAULO Cê não disse que a gente ia arrebentar? Não é isso que a gente quer? Raul tira um barato de Paulo e cantarola: RAUL Se eu quero e você quer-- 99. 100. PAULO Tô falando sério, porra! REPRESENTANTE DE CROWLEY (CONT.) (CONT’D) Um juramento mágico que não expressa a verdadeira vontade, desperta as forças da oposição, e destrói o homem-- Vocês estão preparados? RAUL Nem fodendo, Paulo-- Tô fora. PAULO “Vem comigo, irmão.” -- Não foi isso que você me disse? Sim. Raul sente o golpe. Raul fica quieto. Paulo o incentiva com o olhar. Raul faz que sim com a cabeça. PAULO (CONT.) (CONT’D) A gente é parceiro ou não é, porra? 123 INT. SÍTIO DA O.T.O. - DIA Sim. 123 REPRESENTANTE DE CROWLEY Vi - Veri - Vniversum - Vivus Vici. Pela força da verdade, eu conquistei o universo ainda vivo. Repete! Numa espécie de altar de pedra, o homem está vestido com um lençol branco, tem o rosto coberto por uma máscara assustadora e faz barulhos estranhos sem mexer a boca. PAULO E RAUL Vi - Veri - Vniversum - Vivus Vici. Pela força da verdade, eu conquistei o universo ainda vivo. Paulo Coelho e Raul Seixas estão ajoelhados na frente dele. Paulo está de olhos fechados, bem concentrado. Ao lado dele, Raul abre os olhos e olha tudo em volta bastante desconfiado. Os versos finais da música “Rock do Diabo”, de Paulo Coelho e Raul Seixas -- interpretada ao vivo por Raul Seixas na próxima cena -- cobre o final desta sequência. AO FUNDO Os seguidores de Crowley sacrificam uma cabra e algumas galinhas. RAUL (V.O.) O Diabo é o pai do rock. O Diabo é o pai do rock-- NO ALTAR REPRESENTANTE DE CROWLEY Um juramento mágico é o elo entre a consciência humana e a consciência divina da natureza do ser-- E tem que ser a afirmação da verdadeira vontade. O homem faz um barulho assustador e encara os novos discípulos, que agora estão de olhos arregalados. RAUL O homem levanta as duas mãos para cima e fala alto, com a voz impostada. É uma cerimônia bem barra pesada, ao som de tambores, um ritual macabro que acontece no sítio do REPRESENTANTE DE CROWLEY. Paulo abre os olhos e repreende Raul. Os dois fecham os olhos novamente. Paulo e Raul, olhos fechados e cabeça baixa, fazem o juramento. O representante de Crowley vocifera: PAULO 124 INT. CASA DE SHOW NO RIO DE JANEIRO - NOITE Do na DA da PONTO DE VISTA de alguém que caminha ansioso, se revela, penumbra, a coxia do show de Raul Seixas. É O MESMO SHOW MÚSICA DA CENA ANTERIOR E DO COMEÇO DO FILME. Raul, fora cena, termina de cantar a música. RAUL (O.S.) -- Enquanto Freud explica, o Diabo dá uns toque. Termina a música. SOAM os APLAUSOS e GRITOS eufóricos. A pessoa continua caminhando atrás do palco, na penumbra, procurando por algo ou alguém. Só para quando vê-Paulo, de pé na lateral do palco, transa com duas garotas. AO FUNDO, no palco, Raul Seixas agradece o público. 124 101. 102. A BANDA começa a tocar os primeiros acordes da música “Sociedade Alternativa”, de Paulo e Raul. A plateia vai ao delírio. DE VOLTA A PAULO, perplexo com a euforia e a força do público. Ele se anima e faz um discurso: PAULO Todo homem e toda mulher é uma estrela. Tem o direito de pensar o que quiser. Tem o direito de falar o que ele quiser. De fazer o que quiser-- Paulo finalmente nota que está sendo observado e vê-P.V. DE PAULO - NA FRENTE DELE: Quem o encara é Luiza, arrasada. Em choque com o que acaba de ver, ela chora, mas não diz uma única palavra. DE VOLTA A PAULO, que está paralisado, sem saber como reagir. PISTA AO FUNDO, NO PALCO, Raul -- cabelos desgrenhados, cavanhaque enorme e roupas bem mais extravagantes -- está completamente alucinado e tem um branco. Fica paralisado e não consegue começar a música. A plateia começa a bater palmas e a gritar em looping o refrão da música. Luiza, arrasada, alheia à euforia do público, caminha entre as pessoas, de costas para o palco, em direção à saída. O público canta com Paulo. PLATEIA Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!-- Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!-- Se eu banho Noel, Então A banda se entreolha, sem saber muito o que fazer. MAIS À FRENTE, Luiza passa por Plínio, o soldado da polícia militar infiltrado no show, que tira fotos, o mesmo da cena de créditos iniciais que abre o filme. COXIA PAULO E PLATEIA (CONT.) (CONT’D) Faz o que tu queres pois é tudo da Lei! Da Lei! Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa! Viva! Viva!-- Quem interrompe o impasse entre Paulo e Luiza é Raul, que se aproxima de Paulo pedindo socorro. RAUL Não consigo, Paulete. Vem aqui-Segura essa pra mim. O soldado com a câmera tira muitas fotos de Paulo. Os outros três soldados -- Lucas, Túlio e Moura --, espalhados pela pista, se entreolham. Paulo fica muito preocupado com Raul, corre para segurar o parceiro. Raul se apoia na parede e insiste. PALCO RAUL (CONT.) (CONT’D) Eu tô bem. Tudo certo-- Eu vou ficar bem-- Vem aí-- Paulo adora as luzes que o iluminam e os aplausos e gritos histéricos que o saúdam. Com o punho cerrado, dando socos no ar, em tom de protesto, ele canta com o público: PALCO PAULO E PLATEIA (CONT.) (CONT’D) Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!-- Viva! Viva! Viva a Sociedade Alternativa!-- Paulo e Raul entram no palco. Raul o apresenta. RAUL (CONT.) (CONT’D) Com vocês, de novo, meu parceiro querido: Dom Paulo Coelho. Raul entrega o microfone para Paulo Coelho e sai do palco. Paulo observa preocupado enquanto Raul, cambaleando, se afasta. A plateia grita alucinada. P.V. DE PAULO - PLATEIA: É um show imenso, grandioso. Ele olha para as LUZES que iluminam o palco. PAULO E PLATEIA quero e você quer-- Tomar de chapéu, ou esperar Papai ou discutir Carlos Gardel-vá!-- 125 I/E. SALA/BANHEIRO/CORREDOR/COZINHA, APARTAMENTO DE LUIZA/PRAIA DE IPANEMA - AMANHECER Ainda SOAM a MÚSICA e os GRITOS da plateia do show da cena anterior. 125 103. 104. Sozinho no apartamento de Luiza, Paulo recolhe suas roupas no armário e alguns objetos espalhados pela sala. DE VOLTA A PAULO, que se detém no meio do observa quando o homem tira Luiza da água Luiza reage. Paulo fecha os olhos. Quando se vira e sai andando sozinho pela praia, AO FUNDO, ATRAVÉS DA PAREDE DE VIDRO, um dia tenebroso e cinza, como o anúncio sombrio de uma tempestade, começa a nascer em Ipanema. O SOM do show continua cobrindo a cena. Paulo entra no-- A voz de Elis Regina cobre a cena. ELIS REGINA (V.O.) Quando me pedes por favor que a nossa lâmpada apague-- Me deixas louca. Quando transmites o calor das tuas mãos pro meu corpo que te espera-- me deixas louca-- BANHEIRO Paulo abre o armário que fica sobre a pia e recolhe um aparelho de barbear e uma escova de dentes. Quando Paulo olha para baixo, ele vê-P.V. DE PAULO - DENTRO DA PIA: Vários frascos de remédios abertos e vazios. SILÊNCIO. 128 EXT. VILAREJO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA Num pequeno vilarejo deserto e abandonado, Paulo, destruído e arrasado, caminha com Jay na beira de um penhasco. A vista do vale é linda e assustadora. Paulo, de repente, fica paralisado. Ele está frente a frente com o cachorro -- um enorme vira-lata cinza, grande, forte e feroz. Paulo está aterrorizado. O cachorro arreganha os dentes e rosna para Paulo, que segue encarando o bicho. SALA Paulo, visto de costas no contra-luz, fica paralisado ao se aproximar da enorme janela. JAY (O.S.) La lucha con el perro sólo termina cuando uno de los dos triunfa. Él regresará y tendrás que luchar hasta el final. Si no, su fantasma te perseguirá toda la vida. AO LONGE, NA PRAIA Luiza -- com o mesmo vestido colorido de seda esvoaçante que vestia na noite em que conheceu Paulo -- caminha cambaleante na praia vazia em direção ao mar. Começam a soar os primeiros acordes à capela da MÚSICA “Me Deixas Louca”, versão em português (de Paulo Coelho) da música original de Armando Manzanero, gravada por Elis Regina. O cachorro, feroz, encara Paulo. Paulo encara o cachorro com segurança. O animal rosna, está prestes a atacar. 129 INT. HALL/ESCADARIA, APARTAMENTO DE LUIZA - EM CONTINUIDADE 126 Paulo chama o elevador. Transtornado, ele aperta várias vezes o botão. Nada. Paulo decide descer pelas escadas. A imagem dos pés de Paulo lutando contra os degraus da escadaria entram em montagem paralela com-127 EXT. PRAIA DE IPANEMA - AMANHECER Luiza, cambaleando, sob efeito da overdose de remédios que tomou, caminha lentamente no mar em direção ao horizonte. Ela cai e começa a afundar lentamente. Quando Paulo chega correndo na areia da praia, ele vê-P.V. DE PAULO - NO MAR: Um HOMEM nada na direção de Luiza. Uma, duas-- TRÊS PESSOAS se aproximam pela areia para ajudar. 128 (1986) DE VOLTA A PAULO, que se desespera. Ele começa a andar aflito pelo apartamento de Luiza, procurando por ela. Passa pelo CORREDOR, olha na COZINHA. Nada. Quando chega de novo na-- 126 caminho. Ele apenas e tenta reanimá-la. abre os olhos, ele na outra direção. E/I. ATERRO DO FLAMENGO/CARRO DE PEDRO - EM MOVIMENTO - DIA (1974) Na larga pista do Aterro do Flamengo, Pedro -- terno e gravata, com a pasta ao lado, apoiada sobre o banco do passageiro -- dirige seu carro e ouve rádio. Ao final de uma música, entra o locutor. 127 LOCUTOR -- e agora, uma canção do disco “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”, sucesso da dupla Paulo Coelho e Raul Seixas, na voz de Raul Seixas-Pedro sorri. Está orgulhoso do filho. Começa a tocar a música “Meu Amigo Pedro”. 129 105. RAUL (V.O.) Muitas vezes, Pedro, você fala-Sempre a se queixar da solidão. Quem te fez com ferro, fez com fogo, Pedro-Pedro faz menção de mudar a estação, mas desiste. RAUL (V.O.) -- É pena que você não sabe não. Vai pro seu trabalho todo dia. Sem saber se é bom ou se é ruim. Quando quer chorar, vai ao banheiro. Pedro, as coisas não são bem assim.-Parado no sinal, o pai de Paulo olha para si mesmo, depois olha para a pasta de couro no banco ao lado. RAUL (V.O.) -- Toda vez que eu sinto o paraíso. Ou me queimo torto no inferno. Eu penso em você, meu pobre amigo. Que só usa sempre o mesmo terno.-Pedro tenta conter as lágrimas. Mesmo contido e tentando se manter altivo, é uma figura triste. Está arrasado. VISTO DE FORA, o carro parte. 130 E/I. ATERRO DO FLAMENGO/TÁXI - EM MOVIMENTO - SEGUNDOS DEPOIS 130 106. 131 INT. SALA DE TORTURA, DOI-CODI - DIA Numa sala soturna do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Paulo está nu na frente do DELEGADO DO DOI-CODI. É uma sala de tortura e dois soldados armados de cacetetes -Plínio e Moura, os mesmos do show -- estão de pé ao lado de Paulo. Com olheiras profundas, tremendo de frio, corpo cheio de marcas e feridas, Paulo é a imagem angustiante de quem já sofreu muito nas mãos da polícia. AO FUNDO, uma máquina de tortura com choques elétricos e um tambor cheio de água. O delegado mostra a capa do primeiro LP de Raul Seixas em parceria com Paulo: “KRIG-HA, BANDOLO!”. DELEGADO DOI-CODI Que merda é essa? PAULO É o álbum que eu gravei com o Raul Seixas. DELEGADO DOI-CODI E o que significa “Krig-Ha, Bandolo!”? PAULO Significa: “Cuidado com o inimigo!”. Um táxi passa pelo mesmo ponto da pista em alta velocidade. DELEGADO DOI-CODI Que inimigo, o governo? DENTRO DO TÁXI PAULO Não, nada contra o governo não, doutor. Os inimigos são os leões africanos-- Isso aí tá escrito na língua falada no reino de Pal-U-Don e-- Paulo ocupa o banco de trás do táxi. De repente, ao passar em frente ao Hotel Glória, QUATRO CARROS fecham o táxi em que Paulo está. QUATRO HOMENS armados, à paisana, descem de duas Veraneios e abrem as portas de trás do táxi. Um dos homens arranca Paulo a tapas do carro. Paulo é algemado e atirado de bruços sobre o gramado. Paulo está apavorado e não consegue ver o que está acontecendo. Um dos homens enfia um CAPUZ NEGRO na cabeça de Paulo. TELA PRETA. O SOM do motor da Veraneio arrancando se sobrepõe à respiração ofegante de Paulo. DELEGADO DOI-CODI Tá de sacanagem? Tá achando que todo mundo aqui é palhaço? Paulo olha para a máquina de tortura e se apavora. PAULO Não, de jeito nenhum-- Eu tô falando a verdade. A nossa onda é outra mesmo, sacou? É tirar o mundo desse tédio e capitalizar o fim do hippismo e o lance da magia e-- 131 107. 108. DELEGADO DOI-CODI Moura, liga a máquina. Vamo ver se a gente organiza as ideias do nosso amigo aqui. Paulo está acabado e parece muito deprimido. Ele disca com raiva um número de telefone. PAULO Como não quer falar comigo? Como vai pra Nova Iorque? A gente é parceiro, porra-- Manda ele me atender. O Raul tem que falar comigo-- Manda ele me atender! Paulo fica transtornado. Ele se transforma e encara o delegado com cara de louco. PAULO Vai me torturar de novo? Olha, não precisa, não. Eu sou louco. Pode confirmar aí na minha ficha-Maluco. Doidão. Paulo, arrasado, bate o telefone e toma um largo gole de uísque no gargalo. Ele se levanta e liga a TV. Paulo começa a rir. O delegado se assusta. Os agentes fazem menção de segurar Paulo, mas o delegado faz um sinal para deixarem o preso falar. NA TELA DA TV Uma propaganda com tema natalino. Paulo muda de canal. Entra um especial com Raul Seixas no programa Fantástico, da Rede Globo, apresentado pelo jovem e formal SÉRGIO CHAPELIN [IMAGEM DE ARQUIVO]. PAULO (CONT.) (CONT’D) Já fui internado e tudo. É-Choque! Choque é muito bom-- Mas não é tortura-- Tortura é tirar sangue-- Você gosta de sangue também, não gosta? SÉRGIO CHAPELIN Para São Cipriano, Lucifer deu um golpe de Estado em Belzebu, tomando o poder. E as divergências entre os dois atrasaram o mal na Terra por quinhentos anos: cinco séculos que acabam de terminar. Paulo começa a se bater e a arranhar o próprio corpo. Os soldados se entreolham. O delegado, aflito com a cena, balança a mão no ar, fazendo um sinal para levarem Paulo da sala. O delegado olha com pena para Paulo, que começa a tirar SANGUE do próprio corpo. 132 EXT. CRUZ DE FERRO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA Na sequência, Raul faz seu depoimento em tom sério, vestido com roupas sóbrias, e um ar de intelectual. 132 (1986) Paulo, cada vez mais derrubado, faz mais um ritual de R.A.M.: ele crava a unha do dedão da mão direita na base da unha do dedo indicador da mão esquerda até SANGRAR. As bases das unhas dos outros dedos da mesma mão também já estão muito machucadas. Ele está sentado na base da Cruz de Ferro, no alto de uma montanha. 133 INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO - NOITE (1974) Paulo está sozinho no seu novo e espaçoso apartamento, que fica no andar térreo, com um pequeno jardim ao fundo. É o mesmo apartamento em que ele vive com Chris em outras cenas do filme. Mas aqui o imóvel está mais vazio, sem reforma, mais decadente, mais masculino. Paulo está sentado numa poltrona velha e tem um aparelho de telefone nas mãos, com um fio comprido que atravessa a sala. 133 RAUL Esse fenômeno mágico, esse interesse súbito, vamos dizer assim, por essa magia, por essa coisa toda que tá pintando agora, como o filme “O Exorcista”-- Essa coisa tá sendo considerada causa, quando na realidade é um efeito, tá entendendo? E a música “Gita”, que eu fiz agora, ela coloca bem isso, ela desperta em cada um o que a pessoa é, o bem e o mal como sendo uma coisa só. Desperta, na pessoa, Deus como um todo. DE VOLTA A PAULO, que se aproxima da TV e assiste de pé à declaração de Raul. Braços cruzados. Seus olhos se enchem de lágrimas. Ele fala baixinho. PAULO Eu fiz? A gente fez, porra! Começa o clipe. É um vídeo bem produzido para a época, com muitos efeitos especiais, no qual Raul interpreta a música “Gita”, de Paulo e Raul. 109. RAUL Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando, foi justamente num sonho que ele me falou-Às vezes, você me pergunta, por que é que eu sou tão calado-Não falo de amor quase nada, nem fico sorrindo ao teu lado-Você pensa em mim toda hora. Me come, me cospe, me deixa-Talvez você não entenda, mas hoje eu vou lhe mostrar-- 110. Paulo se arrasta, pega a BÍBLIA na estante, e segue até o-134 PAULO Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê. E logo o pai do menino, clamando, com lágrimas, disse: Eu creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade. E Jesus, vendo que a multidão concorria, repreendeu o espírito imundo, dizendo-lhe: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai dele, e não entres mais nele. E ele, clamando, e agitando-o com violência, saiu; e ficou o menino como morto, de tal maneira que muitos diziam que estava morto. Da mesma estante de livros, de joelhos, Paulo começa a tirar os discos de Raul Seixas de uma prateleira mais baixa. Arrasado, Paulo se encolhe no chão, abraça as pernas e chora. Paulo tenta se levantar, mas não consegue. O mundo parece girar em torno dele e vai ficando mais escuro, como se o apartamento todo estivesse envolto numa enorme nuvem negra. Com muita dificuldade, Paulo se arrasta até o par de tênis que está ao lado do sofá e faz um esforço tremendo para calçar os sapatos. Paulo começa a alucinar. OUVE risos, vozes, coisas quebrando. Uma cacofonia angustiante mistura as vozes do Padre José com a do Hippie, a do Anjo na praia e a de Raul Seixas em trechos que parecem se complementar. Um novo trovão. Paulo olha para cima e encara a lâmpada acesa no teto do banheiro. PADRE JOSÉ (V.O.) Assim o homem se deita, e não se levanta; até que não haja mais céu, não acordará nem despertará de seu sono. O telefone toca. Paulo tenta se arrastar até o aparelho, mas não consegue. O SOM da campainha do telefone se mistura à CACOFONIA de vozes e aos acordes da música “CANTO PARA MINHA MORTE” que cobre todo o resto da cena. ANJO (V.O.) Você vai levar muita porrada, vai apanhar pra cacete. RAUL (V.O.) A morte, surda, caminha ao meu lado -- E eu não sei em que esquina ela vai me beijar. PAULO Água corrente! Água corrente-- Água corrente-- 134 É um banheiro velho, lúgubre. Paulo consegue se levantar com dificuldade. Ele abre a torneira da pia e joga água no rosto. Com a Bíblia debaixo do braço, ele vai até o chuveiro. Abre a torneira. O BARULHO da água escorrendo parece um trovão. A água escorre em seu corpo. Ele escorrega pela parede e fica inerte por alguns instantes, sentindo a água limpar sua alma. Paulo abre a Bíblia molhada em uma página qualquer e lê em voz alta (Marcos 9:23-26): Paulo contém o choro e dá um chute seco na TV. Determinado, ele tira todas as imagens do demônio da sala, rasga documentos e arranca os livros de ocultismo da estante. HIPPIE (V.O.) Improvido és tu que desperdiças tua grande oportunidade”-- INT. BANHEIRO, APARTAMENTO DE PAULO - EM CONTINUIDADE PAULO (CONT.) (CONT’D) Eu creio. Eu creio! Eu quero fazer uma troca-- Eu te ofereço a minha vida, eu te ofereço tudo o que eu tenho pra salvar a minha alma. 135 I/E. RUAS DO RIO/ÔNIBUS - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE É noite de Natal. A cidade está enfeitada para a festa. DENTRO DO ÔNIBUS. O coletivo está quase vazio. Paulo, de cabelos ainda molhados, com cara de quem acaba de voltar de uma guerra, observa a paisagem na janela. P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA JANELA DO ÔNIBUS - CALÇADA Uma FAMÍLIA se encontra feliz na porta de uma casa, com presentes nas mãos. MAIS ADIANTE Um CASAL caminha abraçado pelo calçadão. 135 111. 112. DE VOLTA A PAULO, que está sozinho DENTRO DO ÔNIBUS, muito triste, com os olhos marejados. 136 E/I. RUA/SALA, CASA DA GÁVEA - NOITE PEDRO (CONT.) (CONT’D) Me desculpa, filho. PAULO Por que isso agora? 136 Paulo está do lado de fora da casa e observa de longe, através da janela, o que acontece lá dentro: é noite de Natal e a família dele está toda reunida em torno da mesa de jantar: os pais, Sônia Maria e o MARIDO, os avós e alguns TIOS e PRIMOS. Cerca de 30 PESSOAS. 137 INT. SALA, CASA DA GÁVEA - MOMENTOS DEPOIS PEDRO Porque você é meu filho e eu tenho muito orgulho de ser seu pai-- De ver você construir a sua “casa da Gávea”. Paulo encara o pai. 137 PAULO Do meu jeito. Paulo -- cabelos compridos, cavanhaque grande, calça de couro, botas, camiseta justa e óculos escuros -- está parado na porta da casa, que acaba de ser aberta por Lygia. A família inteira -- todos muito arrumados e formais -- fica imediatamente em silêncio e olha para ele como se fosse um extra-terrestre chegando de Marte. Paulo tira os óculos e olha para Pedro, que está sentado na cabeceira da mesa. Depois de algum silêncio, Pedro autoriza: PEDRO Do seu jeito. Pedro entrega o disco para Paulo, sai do quarto e fecha a porta. Paulo fica pensativo e encara a porta por alguns instantes. PEDRO Pode entrar, Paulo. Puxa uma cadeira pra ele, Sônia. 139 INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA GÁVEA - NOITE PAULO Valeu, velho. 138 Paulo observa seu antigo quarto, mantido mais ou menos como ele deixou com o que deu para recuperar depois do ataque de fúria. Paulo encara o pôster de Che Guevara por alguns instantes. Vai até lá, afasta o quadro e pega um LP que estava escondido. Paulo sorri. Pedro se emociona, mas mantém a pose. Lygia observa e sorri. Paulo faz um prato, se senta e começa a comer. Ele olha intrigado para uma moça morena, baixinha e encantadora, que está do outro lado da mesa -- É CHRISTINA OITICICA, AOS 24 ANOS. Paulo pergunta baixinho para a irmã Sônia, que está sentada ao lado dele. Com o LP nas mãos, Paulo se senta na cama. PAULO (CONT.) (CONT’D) Quem é aquela menina ali, Sônia? Pedro entra no quarto. Paulo fica tenso. Constrangido, ele deixa o disco de lado e faz menção de se levantar. Pedro faz um gesto para Paulo ficar. O pai se senta ao lado do filho e pega o LP nas mãos. SÔNIA Você conhece, Paulo. É a Chris, sobrinha do Marcos, não lembra? PEDRO Eu gosto da faixa três. Mas a cinco é boa também. Paulo estranha. Olha para Pedro desconfiado. Pedro sorri. PEDRO (CONT.) (CONT’D) Eu também tenho os meus segredos-Paulo não entende onde Pedro quer chegar. 139 Todos já estão na sobremesa quando Paulo aparece na sala, como se nada tivesse acontecido. Ao passar atrás da cadeira onde Pedro está sentado, ele curva o corpo e fala baixinho, só para o pai: Paulo passa batido e sobe as escadas, em direção ao seu antigo quarto. 138 INT. SALA, CASA DA GÁVEA - MAIS TARDE Paulo olha encantado para a moça. Os olhares se cruzam. Ela, tímida, disfarça. 140 EXT. VILAREJO, CAMINHO DE SANTIGO - DIA (2013) 140 113. 114. No pequeno vilarejo deserto e abandonado, o mesmo vira-lata cinza, grande, forte e mal-encarado arreganha os dentes. Na frente do animal feroz, pronto para atacar, agora está Paulo, aos 66 anos, paralisado, porém sereno. O cachorro arreganha ainda mais os dentes e rosna para Paulo, que encara o cachorro com segurança. O animal rosna, está prestes a atacar. Paulo! CHRIS Pra mim chega sim, Paulo. Chega dessa viagem, chega de fingir que tá tudo bem quando a gente sabe que não tá-- Você não é mais um menino, Paulo! Paulo olha fundo nos olhos de Chris. Realmente ouve como uma facada o que ela acaba de falar. CHRIS (O.S.) Paulo se vira para olhar para Chris. O cachorro aproveita a distração de Paulo e o ataca, derrubando Paulo no chão. Paulo e o cachorro ficam cara a cara. O vira-lata olha com ódio e rosna a centímetros do rosto de Paulo, que o encara. Que pena. CHRIS Chega. De verdade, Paulo-- Agora chega. Por favor. PAULO Você não tem mais nenhum poder sobre mim-- Nenhum! PAULO O único lugar que a gente chega na vida é a morte, Chris. O resto é o caminho-- O cachorro encara Paulo, como se entendesse o que ele está falando. O animal rosna mais uma vez e sai correndo. Paulo fecha os olhos, aliviado. Está salvo do demônio. 141 EXT. CRUZ DE FERRO, CAMINHO DE SANTIAGO - MAIS TARDE Chris fica com os olhos cheios d’água. Esse é o Paulo que ela conhece, é o homem por quem ela se apaixonou há mais 30 anos. Não quer e não vai mudar o marido. Ele continua: 141 PAULO (CONT.) (CONT’D) O que importa é o caminho-- Paulo está sentado aos pés da mesma Cruz de ferro. Agora, aos 66 anos, está acabado e seu estado físico deixa claro que não foi fácil chegar até ali. Chris chega depois e se senta ao lado do marido em silêncio. Depois de algum tempo, ela tira uma garrafinha de água da mochila e a entrega para Paulo. O marido agradece com o olhar, ainda não tem condições de falar. Ele bebe a água. Estava precisando dela. Chris observa. CHRIS Chegou onde queria, Paulo? Paulo pensa um pouco e reúne forças para responder. PAULO Chegar aonde, Chris? A gente nunca chega. CHRIS A gente pode voltar pra casa agora? PAULO Não tem mais volta, meu amor. A gente tem que seguir em frente. Sempre em frente. Chris explode, mas fala baixinho, quase como uma súplica. PAULO Chris fica paralisada. Os dois se encaram, mas seguem distantes, e agora ele também tem os olhos marejados. 142 INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS- DIA (1986) Paulo e Chris transam com paixão e urgência na mesa de trabalho de Chris, entre desenhos, pincéis e tubos de tinta. Ela veste só uma camiseta e está toda suja de tinta colorida. AO FUNDO, NUM CANTO DA SALA, a prancheta de Chris e uma tela inacabada. É uma cena de amor intenso, os dois gozam juntos. Dão risadas, estão em completa sintonia. Chris beija o corpo de Paulo e faz menção de se levantar. PAULO Não, não-- Fica aqui-Chris acha graça. CHRIS Eu já falei que eu te amo? PAULO Não. Hoje você não me disse nada. 142 115. 116. Chris ri. Ainda encaixada em Paulo, Chris se estica, pega um envelope na bolsa que está ao lado e o entrega para o marido. Madame Lourdes coloca um antigo chapéu na cabeça de Paulo, lhe entrega um cajado de madeira e se aproxima ainda mais do rapaz. Ela coloca as mãos espalmadas sobre a cabeça dele, fecha os olhos e dá o texto em tom burocrático, em espanhol: PAULO (CONT.) (CONT’D) O que é isso, Chris? Abre. MADAME LOURDES Que Santiago el Apóstol te acompañe y te enseñe la única cosa que necesitas descubrir; que no camines ni demasiado lento ni demasiado rápido, sino siempre de acuerdo con las leyes y necesidades del camino; que obedezcas a quien vaya a guiarte, aunque te dé una orden homicida, blasfema o insensata. Tienes que jurar obediencia a tu maestro. CHRIS Paulo abre. É uma PASSAGEM AÉREA RIO DE JANEIRO - MADRI. PAULO Como assim, Chris? Chris olha fundo nos olhos de Paulo. CHRIS Você quer a sua espada, não quer? Lo juro. PAULO Eu não posso levar isso a sério, Chris. Eu já te disse, isso é ridículo-- Eu preciso conseguir escrever o meu livro, eu preciso-- Com pressa e com certo mau-humor, Madame Lourdes recolhe o manto, o chapéu e o cajado e os guarda em uma caixa no canto da sala. Ela se vira novamente para Paulo e o encara. MADAME LOURDES Que la bendición de Santiago, de Dios y de la Virgen María te acompañen todas las noches y todos los días. Amen. Ahora vete, que hay más gente esperando. CHRIS Você precisa de uma história pra contar, Paulo. É disso que você precisa. Paulo baixa a guarda. Chris insiste. CHRIS (CONT.) (CONT’D) Você é um artista, Paulo. Um artista tem que-- 143 PAULO 144 INT. SALA, ALBERGUE NO CEBREIRO- NOITE (2013) PAULO Não. Não-- Isso é loucura, Chris. Paulo está sozinho, escrevendo compulsivamente num caderno, com prazer e brilho nos olhos. Ao final, ele escreve a frase: CHRIS E se for? E daí? NO PAPEL: Só o que importa é o caminho, só o que importa é o amor. O amor é a cola que gruda tudo. FIM. INT. CASA DE MADAME LOURDES, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA (1986) É o interior sombrio e bagunçado de uma casa medieval, toda de pedra. MADAME LOURDES (50) -- uma mulher rude, de roupas comuns e sem nenhuma paciência -- está de pé na frente de Paulo, que veste bermuda jeans, tênis surrado e uma camiseta “I Love NY”. Por cima da roupa de turista, Paulo carrega uma manto que parece antigo e roto, todo roxo e com conchas de vieiras douradas bordadas sobre cada um dos ombros. 143 Paulo sorri e fecha o caderno satisfeito, estufa o peito como se recebesse uma injeção de energia, como se fosse novamente um menino. Ele pega o Iphone, coloca os fones de ouvido, e procura uma música: ALL YOU NEED IS LOVE, dos Beatles. Paulo aumenta o som e começa a dançar sentado, feliz, comemorando sozinho sua vitória. Chris, com cara de sono, aparece na porta do quarto e observa a cena por uma fresta: Paulo dança sozinho no silêncio do albergue. Chris ri e volta a encostar a porta. 144 117. 145 E/I. IGREJA DO CEBREIRO, CAMINHO DE SANTIAGO - AMANHECER 118. 145 Paulo, que ainda tem as bases das unhas machucadas, termina de escrever uma lauda. Ele coloca uma nova folha em branco na máquina elétrica e datilografa o título da obra: Visto de fora, Paulo entra na igreja e segue em direção ao altar. 146 INT. QUARTO/SALA, ALBERGUE DO CEBREIRO - MANHÃ O DIÁRIO DE UM MAGO DE PAULO COELHO MARÇO DE 1987 146 Chris acorda e nota que Paulo não está no quarto. Ela se levanta e vai até a porta entreaberta. Olha pela fresta e vê a sala vazia. Chris caminha pelo lugar procurando por Paulo, sem sucesso. Preocupada, ela volta para o-- Paulo está orgulhoso. 150 QUARTO. Chris procura algo pelo quarto e encontra, no criadomudo ao lado da cama, um BILHETE no qual está escrito: EU TE AMO. Chris vê que o bilhete está sobre TRÊS CADERNOS completos com manuscritos de Paulo. Chris fica surpresa. INT. IGREJA DO CEBREIRO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA Paulo olha encantado para o livro que tem em suas mãos. Ele mal pode acreditar no que está vendo. Paulo cheira o livro e olha para cima. Ele sorri um sorriso cúmplice para Deus e agradece em silêncio. 147 (1986) 151 EXT. IGREJA DE CEBREIRO - EM CONTINUIDADE 148 CHRIS Esse livro, olha, vai mudar a vida de vocês, como mudou a minha-- É muito bom, viu? Vale a pena de verdade-- JAY Caigan mil a tu lado y diez mil a tu derecha, tú no serás golpeado. Ningún mal y ninguna plaga llegarán a tu tienda, porque Dios te protegerá en todos tus caminos. Paulo observa a dedicação de Chris e sorri emocionado. 152 Paulo se ajoelha e Jay apoia a lâmina da espada no ombro do discípulo. INT. QUARTO, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - NOITE (1987) 151 DO OUTRO LADO, Chris se aproxima de um pequeno grupo de TRÊS ESTUDANTES. Na porta da igreja, Jay desembainha a espada e conduz a mão de Paulo para que os dois segurem juntos seu punho. Jay aponta a lâmina para cima. 149 EXT. RUAS DO RIO DE JANEIRO/PORTA DO CINEMA - NOITE Paulo e Chris distribuem folhetos com a capa do livro “O DIÁRIO DE UM MAGO” para as PESSOAS que saem do cinema. Paulo observa que um HOMEM joga o folheto no chão sem ler. Ele fica frustrado, mas não desiste. Paulo vai até lá e recolhe o folheto do chão. Mais adiante, ele vê mais dois folhetos no chão e também os recolhe. Determinado, ele volta a entregar os folhetos. Visto de dentro, Paulo entra na igreja. Ele vê Jay, o mestre, que tem nas mãos a mesma espada que foi negada a Paulo pela falta de humildade durante o ritual no alto da montanha. Jay caminha em silêncio até a porta da Igreja. Paulo o segue. 148 150 Paulo, ansioso, abre uma grande caixa de papelão que está no meio da sala. De dentro da caixa, ele tira um exemplar da primeira edição do livro “O Diário de Um Mago”. Paulo olha fixamente para a espada impressa em prata na capa preta e, logo acima, o nome do autor estampado em letras grandes: PAULO COELHO. MAIS TARDE. Sentada na cama, Chris termina de ler o caderno de Paulo. Ao abrir o terceiro caderno, Chris encontra o papel no qual Jay desenhou uma espada e que foi entregue por ele para Paulo na estação de trem. Chris olha fixamente para o pequeno pedaço de papel cheio de dobras e sorri. 147 INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO - DIA 149 INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA GÁVEA - NOITE Deitados lado a lado na cama, com seus abajures acesos, Pedro e Lygia leem seus exemplares de “O Diário de Um Mago”. Pedro, sem tirar os olhos do livro, pega na mão de Lygia, que corresponde ao carinho. Ela lê um trecho em voz alta: 152 119. 120. LYGIA “Ninguém gosta de pedir muito da vida, porque tem medo da derrota. Mas quem deseja combater o Bom Combate, tem que olhar o mundo como se fosse um tesouro imenso, que está ali para ser descoberto e conquistado.”-- Chris acha graça e fica impressionada com a obstinação do marido. CHRIS Eu tenho certeza que você vai conseguir, sabia? Paulo fica surpreso com a confiança e a força de Chris. Ele sente que pela primeira vez alguém realmente acredita no seu sonho. Paulo sorri, beija a mulher e se levanta da cama. Lygia ri, abraça o marido e provoca baixinho: LYGIA (CONT.) (CONT’D) Bonito, né? Com quem será que ele aprendeu isso? CHRIS (CONT.) (CONT’D) Onde cê vai? Paulo já está longe. Chris acha graça. Pedro sorri contido, tentando disfarçar o orgulho. 153 INT. QUARTO DE PAULO E CHRIS, APARTAMENTO DE PAULO - NOITE Deitado na cama, Paulo observa uma tabela grudada em um caderno com anotações e números. No alto da folha, o título do livro “O Diário de Um Mago” e a identificação da planilha: CONTROLE DE VENDAS. Paulo parece um pouco decepcionado. Ao lado dele, com cara de sono, Chris tenta animar o marido. CHRIS Foi super bem, meu amor. No próximo cê vai estourar, cê vai ver. PAULO O que é que eu tô fazendo de errado, Chris? CHRIS Como assim, Paulo? PAULO A gente conta histórias pra alguém, Chris. Se não, não faz sentido, entende? CHRIS Foram mais de mil livros, Paulo-- É muita coisa. PAULO Eu sei. Mas não é disso que eu tô falando-- Eu-- Eu não queria falar do meu livro no passado, entende? Eu queria que essa história ficasse, que tivesse um caminho diferente, sei lá, que as pessoas-- 153 154 INT. IGREJA DO CEBREIRO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA (2013) Paulo termina uma oração de agradecimento, faz o sinal da cruz, se levanta. Ao se virar na direção da porta, ele vê-P.V. DE PAULO - NA PORTA DA IGREJA: Chris está parada na porta da Igreja, observando Paulo. DE VOLTA A PAULO, que caminha na direção de Chris. Quando ele se aproxima, ela pega a mão do marido e lhe entrega algo. Os dois se olham em silêncio e ficam com os olhos marejados. Curioso, Paulo desdobra o pequeno pedaço de papel e encontra a espada desenhada por Jay. Ele sorri. Chris tenta, mas não consegue conter uma lágrima. CHRIS “O amor é a cola que gruda tudo”. Eu gostei, eu-Paulo olha ansioso para Chris, quer saber a opinião dela. PAULO Gostou mesmo? Ela se recompõe e fala mais firme. CHRIS Gostei, adorei-- Eu-- Eu só discordo de você em duas coisas, Paulo-Chris começa a andar, Paulo a acompanha e ouve o que ela diz com interesse. CHRIS (CONT.) (CONT’D) Eu acho que antes da morte, a gente chega em muitos lugares na vida-- 154 121. 122. Paulo fica pensativo. Eles seguem caminhando pela pequena vila, que tem algumas poucas casinhas de pedra e fica no alto da montanha. Chris conclui: PAULO Vem, Chris! Chris acompanha o marido e acelera o passo até que os dois caminham novamente juntos. CHRIS (CONT.) (CONT’D) -- E que cada lugar que a gente chega, não é um fim, é um começo. Pode ser-- PAULO 155 INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO - NOITE (1988) Eles seguem andando em silêncio por alguns instantes. Paulo está curioso. PAULO (CONT.) (CONT’D) E a outra coisa? A escrivaninha está cheia de papéis e anotações. Paulo, muito concentrado, exausto, obstinado, termina de escrever seu novo livro. Ele junta um grosso calhamaço de papéis e coloca uma nova folha em branco na máquina. SOBRE A FOLHA em branco, ele datilografa o título da nova obra: CHRIS A outra não tem nada a ver com o livro. “O ALQUIMISTA” DE PAULO COELHO MAIO DE 1988 Fala-- PAULO CHRIS É que-- É que nem a morte pra você vai ser um fim-- Nem ela vai conseguir acabar com a tua história. Paulo para de andar e olha para Chris sem entender. PAULO Como assim, Chris? Chris para e fala rindo. CHRIS É muito livro, meu amor! Isso não some da terra de uma hora pra outra não-Paulo pensa no que Chris está dizendo. Ela segue andando, pensa um pouco e continua num tom mais leve, mais divertido. CHRIS (CONT.) (CONT’D) Vida eterna-Paulo segue Chris. O SOM de dedos brigando com o teclado da máquina de escrever elétrica cobre o final da cena. CHRIS (CONT.) (CONT’D) É-- Coisa de alquimista mesmo, né? Paulo acha graça. Finge não levar muito a sério, mas gosta do que ouve. Ele aperta o passo e chama a mulher. 155 156 INT. ESCRITÓRIO DO EDITOR - DIA Com o manuscrito de “O ALQUIMISTA” nas mãos, visivelmente decepcionado com a história que leu, o EDITOR conversa com Paulo. Ele tenta ser carinhoso, mas precisa ser sincero. EDITOR Paulo, eu sou teu amigo e é como amigo que eu tô te falando isso-Esse livro-- Esse livro não é bom, cara. Eu li pra gostar. Eu queria muito gostar, mas eu-- Eu não posso mais investir nisso, Paulo. Dessa vez, não vai dar. Paulo está em choque na frente do editor. EDITOR (CONT.) (CONT’D) -- Olha, eu quero te ajudar. Eu tenho uns contatos bons na imprensa-- Você escreve bem, pode conseguir um emprego legal, sabe o Julinho?-Paulo olha com raiva para o editor. PAULO Eu sou escritor. O editor, assim como o médico no começo do filme, está sinceramente preocupado com Paulo. De fato, é alguém que quer ajudar e fala com carinho. 156 123. 124. RAUL SEIXAS Tente -- Não diga que está perdida. Se é de se vive a vida. Tente EDITOR Pô, Paulo-- Cê acha mesmo que alguém um dia vai querer ler essas coisas que você escreve? Ao final, depois de recolher folha a folha e juntar o calhamaço de originais, Paulo recoloca a capa com o texto: Determinado, Paulo toma o manuscrito das mãos do homem. 157 EXT. ESTRADA QUE SAI DO CEBREIRO - MOMENTOS DEPOIS 157 (2013) Paulo e Chris caminham lado a lado, em silêncio. Seus passos aos poucos entram em compasso perfeito. Paulo segura na mão de Chris, que sorri para ele. Paulo beija Chris. SOAM os primeiros acordes da “Música Tente Outra Vez”, de Paulo Coelho, Raul Seixas e Marcelo Motta, na voz de Raul Seixas. RAUL Veja. Não diga perdida. Tenha na vida. Tente 158 Paulo está sentado na poltrona larga do canto da sala, catatônico, arrasado. Em volta dele, espalhados pelo chão, estão um contrato rasgado, algumas caixas com exemplares do livro “O Diário de Um Mago” e as folhas dos originais de “O Alquimista”. Paulo fica imóvel por algum tempo, olhando através da câmera, como se a lente fosse um ponto no infinito. De repente, Paulo se levanta determinado e começa juntar as páginas do novo livro: ele não vai desistir. A MÚSICA “TENTE OUTRA VEZ” segue cobrindo toda a sequência. RAUL SEIXAS (V.O.) -- Beba -- Pois a água viva ainda está na fonte. Você tem dois pés para cruzar a ponte. Nada acabou-Tente -- Levante tua mão sedenta e recomece a andar. Não pense que a cabeça aguenta se você parar. Há uma voz que canta, há uma voz que dança, há uma voz que gira, bailando no ar-Queira -- Basta ser sincero e desejar profundo. Você será capaz de sacudir o mundo. Tente outra vez-(MORE) “O ALQUIMISTA” DE PAULO COELHO MAIO DE 1988 TEXTO SOBRE A TELA PRETA: O ALQUIMISTA FOI PUBLICADO PELA PRIMEIRA VEZ EM 1988. EM 25 ANOS DE CARREIRA, PAULO COELHO PUBLICOU 26 OBRAS E VENDEU MAIS DE 160 MILHÕES DE LIVROS, TRADUZIDOS EM 80 LÍNGUAS. SEIXAS (V.O.) que a canção está fé em Deus, tenha fé outra vez-- INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - DIA (V.O.) (CONT'D) a vitória batalhas que outra vez. É O ÚNICO AUTOR VIVO MAIS TRADUZIDO QUE SHAKESPEARE. 158 PAULO E CHRIS ESTÃO CASADOS HÁ MAIS DE 30 ANOS E SEGUEM CAMINHANDO JUNTOS. A MÚSICA “NÃO PARE NA PISTA” cobre a sequência de CRÉDITOS FINAIS. FIM 127 M incitaquis dollatem latist repel incitae is aut qui untes dolupta turianis de exernamet as doluptatur alit pellaut accum fugit que se rehendelent ad que occusam qui berum qui a cum, sapis into voloreh endessim cus nis a quis et re labor rehent adis aut exeriat iations edicidi gnatus, sum as qui tem que occaborae cor res aut es con re nime voluptatem rem faccabore coribus essitinus, ut de doluptaqui sim eum re et debis si temped earita simus adi blam licipsum explitiam, odit porporeic tem ni adio tem ipicius, quatas dolorrum eaquam et, simos doluptatur, cus aborerferio officae explabore nos ut ut quatur sa quos velessi ncimped ipsandi psapitis aute voloriam qui odigent lit ut quia ped quatusam eicatem possit, conseque cuptat. Officim volupta epelibea es atibus experum de everaeri qui optat. Ad qui dolori dolor autasit litis aut alis sunt, volum quibus et eum quaeperum es si ipsunti oritatias sit dolupta cum quia incil. Lab ipsam quas doluptis idel mi, omnim fugitaqui seque nobis qui to ea veleni acea diore est, odit ut ut esequi debite ne magnam qui nossim alit alit eosam cus ut eaquasiti aut ea qui omnisto totatium fuga. Nequam, qui omnia sed quatiorem fuga. ISBN 978-85-63201-09-6 9 128 788563 201096