Carolina Kotscho
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Copyright do texto © 2014, Carolina Kotscho
Copyright do projeto © 2014, Editora Master Books
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Revisão: Angela Castello Branco
Ilustração do mapa: Anna Cunha
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Kotscho, Carolina
Não Pare na Pista : a melhor história de Paulo Coelho / Carolina Kotscho. ... 1. ed. ... São Paulo : Editora
Master Books, 2014.
ISBN 978-85-63201-09-6
1. Cinema - Brasil 2. Cinema - Roteiros 3. Coelho, Paulo, 1947- 4. Escritores brasileiros - Biografia 5. Literatura brasileira 6. Não Pare na Pista, o Filme (Filme cinematográfico) I. Título. II. Título: A melhor história de
Paulo Coelho.
14-05220
CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático:
1. Não Pare na Pista, o filme : Filme cinematográfico : Literatura brasileira
869.93
Editora Master Books
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São Paulo, SP – 04536-000
tel. (11) 3078-1093
http://www.editoramasterbooks.com.br
Foi feito o depósito legal.
Carolina Kotscho
SUMÁRIO
“É preciso correr riscos, seguir
certos caminhos e abandonar
outros. Nenhuma pessoa é
capaz de escolher sem medo.”
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Para Bráulio, João e Olga, por tanto amor.
“O amor é a cola que gruda tudo”.
Paulo Coelho
São Paulo, 10 de junho de 2014
Paulo Coelho é um dos autores que mais vendeu livros até hoje.
Em pouco mais de 25 anos, as histórias contadas pelo escritor brasileiro se espalharam por todos os continentes e hoje fazem parte de muitas culturas e do
imaginário de todos nós. Mais do que um escritor de sucesso internacional, Paulo
é um hoje autor querido e respeitado no mundo todo.
O que poucos sabem é que a história de vida de Paulo Coelho, principal fonte
inspiradora de sua obra, é ainda melhor do que a ficção. Como ele mesmo afirma
em “O Diário de Um Mago”, seu primeiro livro, publicado em 1987, o autor viveu
na realidade o que na ficção seria inverossímil.
Desde a infância, a jornada de Paulo Coelho é um exemplo de determinação.
Até os 40 anos, Paulo viveu intensamente, superou muitos obstáculos e mergulhou
fundo em todos os dilemas e conflitos de um jovem dos anos 70 dividido entre
Deus e o Diabo. Flertou com a morte, fugiu da loucura, namorou com as drogas,
superou a tortura, sofreu e sorriu por amor, encontrou o sucesso com a música ao
lado de Raul Seixas e perseguiu um único objetivo: ser um “escritor consagrado,
lido e respeitado mundialmente”, como ele próprio definiu ainda na adolescência.
Ao longo dos anos, Paulo Coelho foi testado até o limite de suas forças, mas
não desviou de sua meta. Sua experiência pessoal é única, porém sua busca incessante e obstinada pelo sentido da vida é universal. Ao procurar seu lugar no
mundo, o escritor encontrou respostas para aflições coletivas e conseguiu traduzir em palavras, e dividir com seus leitores, o alento de descobrir o que hoje lhe
parece óbvio: só o que vale é o presente, só o que importa é o amor.
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O escritor procurou a magia e a alquimia, participou de sociedades secretas,
Divido com vocês neste livro as primeiras conversas gravadas em fevereiro de
estudou filosofia e religiões de todas as linhas e crenças, leu muito, perdeu e re-
2010 com Paulo Coelho, Christina Oiticica e Mônica Antunes, entre Genebra e Ma-
cuperou a fé. No início de sua busca espiritual, Paulo Coelho queria ser diferente
dri, que serviram de base para todo o desenvolvimento do projeto, e a versão de
e se sentir especial. Contudo, o que descobriu é que “o extraordinário reside no
filmagem do roteiro, antes das alterações e cortes (sempre bem-vindos) da monta-
caminho das pessoas comuns”. Ele diz que cada um carrega dentro de si a força
gem. O livro traz também muitas fotos da produção, a linda colaboração da equipe
necessária para encontrar o seu próprio destino, combater o “Bom Combate” e
de talentos do filme, e a paixão e a força do trabalho dos irmãos Julio e Ravel Andra-
cumprir sua “Lenda Pessoal”. Paulo Coelho está cumprindo a dele e a história de
de, que viveram Paulo Coelho no filme, dois atores e duas pessoas muito especiais.
Foram quase sete anos de trabalho, desde a primeira conversa por telefone
sua vida prova que ele tem razão.
Se Paulo ainda tem um laboratório secreto, se é verdade que aprendeu a
com o escritor, em maio de 2007, até o momento de mostrar o filme pela primei-
transformar qualquer metal em ouro e descobriu a fórmula do elixir da vida eter-
ra vez, ainda não finalizado, para Paulo e seus convidados, em Portugal, no dia 18
na que tanto procurou, não importa. O importante é que o escritor chegou onde
de março de 2014, às 18:00hs, como pediu o biografado.
queria e provou para o mundo que é, de fato, um verdadeiro alquimista: tudo que
Em 2007, eu ainda trabalhava com Roberto e Malu Viana no projeto da TAL -
ele toca tem valor e, como Shakespeare, o escritor vai estar para sempre neste
Televisão América Latina quando o telefone do Roberto tocou no meio de uma
mundo, através de sua obra.
reunião. Era Paulo, emocionado com o filme “2 Filhos de Francisco”, meu primeiro
Mais do que um mago, como ficou conhecido, Paulo Coelho é um peregrino:
trabalho como roteirista de ficção. Roberto me passou o telefone e nós come-
sempre em movimento, em plena transformação, na busca de cumprir o seu
çamos a conversar. E foram muitas conversas, e muitos desafios vencidos, até
destino. Nesse sentido, toda viagem do escritor é uma metáfora da própria vida.
que Paulo estivesse convencido a deixar que eu fizesse um filme sobre sua vida.
Em “O Diário de Um Mago”, Petrus, o guia de Paulo, diz: “Quando você viaja, está
Assinamos o contrato em 2009.
experimentando de uma maneira muito prática o ato de Renascer”.
A partir daí, foram muitos encontros, em oito países diferentes: França, Ale-
Como roteirista e produtora de cinema, tenho a alegria de poder escolher os
manha, Suíça, Áustria, Espanha, Itália, Turquia e Portugal. Num primeiro momen-
trabalhos que faço e só consigo embarcar em um projeto quando me apaixono
to, Paulo é o que se espera do mago: uma figura forte, misteriosa, única, intan-
pela história. Já fui chamada de louca, por roteiristas que admiro, por topar o
gível. Aos poucos, se revela um homem muito culto e inteligente, provocador
desafio de lidar com pessoas de verdade para fazer ficção no cinema. O que mais
e divertido. E, bem lá no fundo, descubro que ainda mora ali dentro um meni-
assusta, me disseram, é justamente encontrar o limite entre a vida e a tela.
no desconfiado e rebelde, apaixonado pela mulher Christina Oiticica como um
O segredo, para mim, está no respeito com as duas coisas: com a ficção e
adolescente, um homem com conflitos e dramas extraordinariamente comuns.
com a realidade. Paulo é um personagem denso, controverso, polêmico, que vi-
Descubro ali o peregrino. E descubro que a história real de Paulo Coelho é ainda
veu intensamente cada momento de sua vida. Suas histórias fantásticas parecem
melhor que todas as histórias que ele inventou e que fazem tanto sucesso mundo
inverossímeis, mas seus dramas são absolutamente universais. Um exemplo de
afora. Descubro, acima de tudo, que o segredo do sucesso de Paulo está na trans-
perseverança e superação. Um grande presente para qualquer escritor.
parência, na coragem e na generosidade com que, entre a ficção e a realidade, ele
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divide sua história com o público. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.
Assim como na história de Paulo, vivemos muitos desafios para realizar o so-
acontecer. E a Paulo Coelho, claro, pela coragem de dividir sua história com o
mundo de maneira tão transparente e generosa.
nho de fazer esse filme. Parecia realmente impossível em alguns momentos. Mas
No cinema, dizemos que um personagem não é o que ele fala, é o que ele faz.
se o que havia me encantado em sua história era justamente essa força de alguém
E costumo dizer que isso também vale para a vida: conhecemos uma pessoa de
que não desiste nunca, eu tinha que seguir em frente e só consegui graças aos
fato através de suas ações e não de suas palavras. Depois de pesquisar durante
muitos parceiros queridos que também acreditaram no projeto e se juntaram a
esses anos todos, entre tantas entrevistas, conversas e documentos, posso dizer
nós ao longo do caminho. Foram muitos encontros bonitos, com gente querida
que Paulo é um desses casos raros e bonitos de alguém cujas palavras são absolu-
e grandes talentos, que deram vida a esse projeto.
tamente coerentes com seus atos. Posso afirmar que quando ele diz “tente outra
Impossível não agradecer a Mônica Antunes e Christina Oiticica, as grandes
mulheres de Paulo Coelho, pelo carinho, pelo apoio e pela confiança ao longo
vez” em uma música, ou “quem não desistir da busca, vencerá” em um livro, ele
sabe exatamente do que está falando.
de todo o processo, e aos meus sócios Renato Klarnet e Iôna de Macêdo. Tenho
Contar a história de uma vida em duas horas de filme é sempre um grande
que agradecer muito também, para o resto da vida, ao diretor Daniel Augusto e
desafio. E contar a história de um grande contador de histórias como Paulo Co-
toda a sua equipe pela incrível parceria e pelo presente que é ver na tela, depois
elho, além do desafio, é um grande prazer. Só posso agradecer sua confiança e
de tantos anos de trabalho, um filme ainda mais forte e mais bonito do que eu
dizer que foi uma honra ajudar a contar sua história com “Não Pare Na Pista”, um
poderia sonhar. E a Roberto e Malu Viana, a Rodrigo Lowndes, Flávio Tambellini,
filme sobre um homem que se fortalece diante das dificuldades, que traça seu
Bráulio Mantovani, a equipe da Dama Filmes e a tanta gente que fez esse filme
caminho e que, sobretudo, não desiste de seu sonho. Uma história arrebatadora
que emociona profundamente e que serve de exemplo para todos nós.
Carolina Kotscho
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Um olhar por trás das câmeras
Quando recebi o convite para dirigir o filme Não Pare na Pista, senti que havia
ganho um presente. Ou melhor, não só um, mas vários.
Primeiro, porque a vida do Paulo é uma história singular. Na adolescência,
ele tentou o suicídio, foi internado numa clínica pelos pais e sofreu sessões de
eletrochoque. Mais tarde, foi parceiro do Raul Seixas, tornou-se um dos letristas
de rock mais importantes do Brasil, foi preso pela ditadura militar, experimentou
o paraíso e o inferno das drogas, entregou-se de braços abertos à contracultura.
Não bastasse essa trajetória singular, ainda virou o escritor brasileiro mais lido do
mundo, um verdadeiro superstar. Resumindo: a biografia do Paulo é não só um
pela beleza, e assim por diante, que me parecem traços do que fiz até agora.
A oportunidade de colocar tudo isso que estava em mim numa nova escala –
isto é, num longa-metragem – é algo que sinto também como um presente, a
maravilhosa contribuição de Não Pare na Pista para minha vida.
Não bastasse tudo isso, ainda consegui um elenco e uma equipe sensacionais,
e fui agraciado por um período de filmagens onde tudo parecia correr a nosso
favor. Foi um prazer tão grande filmar que eu até hesito em usar a palavra
“trabalho”. Kubrick disse certa vez que “sugerir que eu tire férias do cinema é como
dizer a uma criança que tire férias da sua brincadeira”. Para mim, fazer esse filme
foi exatamente assim: uma grande diversão, e espero que, de algum modo, o
público tenha a mesma sensação assistindo Não Pare na Pista ou lendo este livro.
Daniel Augusto (diretor do filme)
convite mas também um regalo para qualquer cineasta.
Além disso, ser convidado também foi um presente porque possibilitou que
eu finalmente dirigisse um filme escrito pela Carolina Kotscho. Admiro muito
o trabalho dela e há anos ensaiamos fazer algo juntos. Não bastasse isso, ela
elaborou um roteiro cuja progressão dramática não cronológica propunha uma
forma diferente de ver a biografia do Paulo, além de trazer o delicioso desafio de
conciliar mais de dois tempos numa só narrativa.
Terceiro, porque – permitam-me uma nota mais pessoal aqui – tenho 41 anos
de idade e sinto que me preparei a vida inteira para fazer cinema. Desde criança,
eu queria ser diretor de longas-metragens de ficção. No entanto, minha trajetória
audiovisual até agora tinha sido de documentários e programas televisivos: isto é,
marcada por trabalhos que não colocavam totalmente à prova aquilo para o qual
eu sinto que realmente me preparei. Agora, como uma mistura improvável entre
estreante (por ser meu primeiro longa-metragem) e veterano (por ter quase 20
anos de trabalhos audiovisuais), pude finalmente colocar em prática a parte mais
essencial da minha formação. Assim, quem conhece alguns dos meus trabalhos
mais pessoais, talvez reconheça em Não Pare na Pista um certo modo de olhar,
uma atração pela narrativa não linear, uma maneira de enquadrar e usar as
lentes, um determinado ritmo de montagem, um jogo com a música, uma busca
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o peregrino #01
Paulo Coelho, fevereiro de 2010
In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te
dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur,
venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as
erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit
quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam.
Carolina Kotscho: Pronto. Câmera ligada. A palavra
é sua, Paulo.
Paulo Coelho: Então, hoje é dia 11 de fevereiro de
2010. Nós estamos numa auto estrada na A1 – parece
os logs do Avatar – indo para Munich. E são dez para
as duas. Hoje é dia de Santa Helena Dante também,
então é um bom dia para gravar isso.
Eu estou aqui fazendo uma coisa que eu disse que não
ia tornar a fazer, e eu sempre digo isso e termino fazendo, que é falar da minha vida.
Ao mesmo tempo eu acho que se eu não falo da minha
vida eu esqueço a minha vida, porque eu sou tão conectado no presente... Eu simplesmente esqueço o passado.
Existe uma frase no “Manual do Guerreiro da Luz” que
diz: o Guerreiro da Luz pensa antes de começar, mas
quando ele começa ele vai até o final. E aí, respeitar o
tempo – e respeitar o tempo não significa necessariamente, enfim, aceitar que as coisas têm que estar naquele ritmo, você tem que deixar o tempo passar.
Então eu só quero fazer uma última – retiro a última – mais uma observação: eu não estou nem um
pouco ansioso, claro que eu gostaria de ver um filme
baseado na minha vida, mas se eu estivesse ansioso
ou fissurado, eu já tinha produzido o filme. Eu não fiz
isso porque eu não estou tão fissurado.
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sum dolu
Então, Carol, eu vou te fazer agora uma proposta. A
proposta é a seguinte: saiba o que perguntar, porra!
Porque eu não aguento contar as mesmas histórias!
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sum dolu
CK: Não são as mesmas histórias, não. E a pergunta é por que você acha que você chegou onde você
chegou?
PC: Vamos lá. Por que eu acho que eu cheguei onde
eu cheguei... Se eu tivesse que fazer uma escala de
valores, eu diria que a primeira razão de eu ter chegado onde eu cheguei é um milagre. Eu não tenho
dúvida de que eu sou, ou a minha vida toda é, produto de uma série de milagres que se conjugam no
mesmo milagre.
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Posso fazer uma analogia. Eu estou casado com a
Christina há 30 anos. Acontece que nesses 30 anos
essa Christina, ela virou várias Christinas, e eu idem.
Então na verdade nós nos recasamos várias vezes com
pessoas diferentes. Eu era aquele cara sonhador que
queria chegar onde eu cheguei, depois sendo um escritor famoso, e depois também com os meus conflitos. E a Christina também mudando com tudo isso.
Então, fomos seres diferentes durante esses 30 anos,
mas compondo um único casamento. A mesma coisa
ocorre com a minha vida – uma série de pequenos
milagres que se conjugaram num grande milagre.
A segunda razão, eu diria, é a minha força de vontade – não, a segunda razão é o meu talento. Eu tenho
talento para o que eu faço – é um presente de Deus,
mas eu tenho talento para o que eu faço. A gente põe
um desejo, você sonha, e se você sonha, você pode fazer. Então se eu sonhasse ser um engenheiro, eu seria
um engenheiro muito frustrado porque eu não tenho
talento para ser engenheiro. Mas estava semeado no
meu coração o talento de ser um escritor, e aí é tudo
uma questão de perseverança – seria a terceira razão:
não desistir. Uma grande diferença entre coragem e
vontade é que coragem é você enfrentar um inimigo
apesar de tudo, e vontade é você nunca desistir.
O homem corajoso pode perder uma batalha ou perder uma guerra. O homem com força de vontade, ele
sempre ganha, porque ele não desiste, ele não pode
perder nunca, o final é sempre uma vitória pelo simples fato de que ele não desistiu.
Então, repetindo as razões: a primeira é a bênção, o
milagre, o mistério; a segunda é o talento; e a terceira
é a vontade.
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CK: E quando é que você se deu conta desse sonho?
Você me disse que escreveu uma primeira redação na
escola que fez sucesso... Foi nesse momento mesmo?
PC: Foi. É engraçado que as pessoas não acreditem isso.
CK: Eu acredito. E você acha que isso foi de fora para
dentro, que isso é uma escolha de Deus?
PC: Não. Eu acho que nada nesse mundo vem de fora
para dentro ou de dentro para fora; essa divisão, ela é
arbitrária. Tudo é uma coisa só. Nós somos o que está
fora e somos o que está dentro. Então eu acho que foi
uma escolha que veio de dentro para fora e de fora
para dentro. O símbolo mais fácil da alquimia é uma
serpente mordendo a própria cauda, quer dizer...
CK: Renovação.
PC: Exatamente. Então, quando eu ganhei aquele prêmio de redação, talvez não tivesse ficado tão marcado. Quando eu ganhei no colégio esse concurso de
poesia, eu me lembro que eu estava naquele bonde,
chovendo, passando em frente ao Jardim Botânico, e
eu todo animado para dizer para a minha mãe que eu
queria ser um escritor. Enfim, pela primeira vez na minha vida, eu consegui provar, a mim e aos outros, fora
Veja. Não diga que a canção está
perdida. Tenha fé em Deus,
tenha fé na vida. Tente outra vez .
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e dentro, que eu era uma pessoa capaz. Até então eu
acho que eu não tinha conseguido provar a minha
capacidade em nada, absolutamente nada. A minha
epifania veio do fato de ter provado que eu era uma
pessoa capaz.
CK: E você traçou esse caminho?
PC: É impossível traçar esse caminho.
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CK: Você não traça o caminho, mas você coloca uma
meta?
PC: Eu coloquei duas metas: primeiro, viver de escrever.
E depois, ser o escritor mais famoso do mundo. Hoje
efetivamente eu devo estar entre os três mais famosos.
CK: E qual é o próximo passo, então?
PC: Não, aí é o caminho...
CK: É porque em vários momentos na sua obra você
repete esse tema: o que acontece depois da realização
de um sonho?
PC: Não, vem cá, o que acontece depois da realização de um sonho é ser honesto e fiel a esse sonho.
Quer dizer, você, quando vira um escritor, primeiro
sabe que você escreveu, você vai ser publicado e isso é
uma grande responsabilidade em relação aos milhões
de outros escritores que não têm essa oportunidade.
Então você nunca pode dizer: ”que saco, tenho que
escrever um novo livro!”. Porque você sabe que você
não tem que escrever nada, ninguém te obriga a fazer
absolutamente nada. Mas, por outro lado, você sonhou com isso, então a meta é ser um escritor e a partir daí é honrar esse trabalho, é continuar escrevendo
apesar de tudo o que pode ocorrer nesse caminho.
E é nessa que eu estou. Então se você me pergunta,
eu digo que tenho que ir até o final honrando aquilo
que me foi confiado, escrevendo. E não vivendo das
glórias passadas. O meu sucesso presente me dá fortíssima possibilidade de sucesso futuro.
CK: A gente está falando sobre o que é fora ou o que
é dentro – eu concordo que é uma coisa só, mas, em
muitos momentos, a gente coloca como duas coisas
separadas. E as pessoas em geral colocam a culpa no
outro pelas suas limitações, pelos seus fracassos. Por
que você acha que isso acontece?
PC: Eu acho que é difícil você segurar a barra do próprio fracasso. Você só para de colocar a culpa no outro quando você está fazendo alguma coisa que você
quer, porque aí não foi o outro que te obrigou, não
foi o outro que te sugeriu, não foi o outro que está
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te guiando – você está fazendo aquilo que você escolheu para a vida. Por isso que as pessoas relutam
tanto em fazer aquilo que elas escolheram. Porque da
parte delas, não tem quem culpar; elas são responsáveis. No momento em que você se torna o rei do seu
reino, e você sendo o rei do seu reino, sinto muito,
mas não tem outro para dizer ou para culpar. Então
eu sou o rei do meu reino.
CK: E sempre foi?
PC: Não, não... Nem sempre eu fui o rei do meu reino. Eu fui o rei do meu reino interior, mas o interior
não existe sem... Ele não se manifesta sem o exterior.
Voltando ao que a gente falou, tudo o que está fora
está dentro, então tudo é uma coisa só. Então durante muito tempo o meu reino interior estava em profunda dissonância com o meu reino exterior. O reino
exterior não era meu.
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CK: E você identifica um momento de virada especifico? Um momento de tomada de consciência?
PC: Identifico vários. Mas se você tiver que colocar um
momento de mais consciência, é quando eu fiz o caminho de Santiago. Aí foi o momento que eu parei com
tudo, e a partir de agora vou escrever, se der certo, deu,
se não der certo, como dizem os franceses... Desolé.
CK: Mas você contava com a possibilidade de não dar
certo?
PC: Não.
Lembre-se que viajar é a melhor
maneira de aprender e que toda
viagem é uma aventura.
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CK: Nunca?
PC: Não, porque se você está fazendo o que você
quer, está certo, você não tem uma escolha errada aí.
CK: Eu não consigo acreditar quando você disse “não
deu certo... desolé”.
PC: É uma coisa tão remota...
CK: Você tinha essa sensação de ver pronto?
PC: Não, tampouco, e não tenho até hoje. Eu tinha só
a sensação do momento presente. Isso vale até hoje;
se eu estou me dedicando a escrever um livro, eu não
fico pensando no que vai acontecer, como vai ser a
promoção, como vai ser...
CK: ­Não, não, eu não digo no resultado, eu digo na
obra em si, na realização em si.
PC: A minha vida sempre teve um sentido, mas agora
esse sentido se condensou num sentido só. É o clássico mote da alquimia: dissolve e coagula, dissolve e
concentra, que é um processo cíclico. Então quando
eu escrevi “O Diário de um Mago”, eu me botei todo
ali, e acho que quando você se bota todo ali, sei lá...
você pode levar, eu já levei muitas porradas, muitas
vezes custei para me recuperar. Quando eu fazia músicas com o Raul, a Sociedade Alternativa, eu estava
todo ali, todo ali... apanhei.
CK: Apanhou, mas ao mesmo tempo, no “O Diário de
um Mago”, no “As Valkírias”, no “O Alquimista”, você
se expõe muito e são obras muito fortes.
PC: Claro, mas para poder te responder essa pergunta, é que eu nunca entrei numa luta pensando na pos26
sibilidade da derrota. Eu já fui derrotado várias vezes,
já fui, mas quando eu estou ali, eu estou inteiro.
[Paulo fica sério, pensativo. Se cala por alguns instantes
e observa a paisagem branca do inverno suíço. A estrada está quase vazia e cai uma neve fina e persistente]
PC: A gente recentemente pegou essa estrada aqui...
Há exatamente dois meses, para ver o meu esporte
favorito, que é luta, boxe. Um dos. Um dos três...
CK: E quais são os outros?
PC: Primeiro, futebol, segundo, rugby, e terceiro, boxe.
E o lutador, quando ele está no ringue, ele não está sentindo, não é uma coisa da dor física, a dor física vem no
dia seguinte. Tem tanta adrenalina ali que não adianta,
você não sente a dor física. E você tem que estar ali como
um lutador no ringue, você age por reflexo, você não age
por pensar, ninguém tem tempo de – ”ah! ele vai bater
com a mão direita e com a esquerda ele vai aparar o
golpe”. Não existe isso. Você não pensa, você não pensa
quando você escreve. Eu acho que você tampouco pensa muito quando você dirige, você está na estrada e...
CK: Você não pensa, mas você deseja. Você deseja ganhar a luta, deseja terminar o livro, você deseja chegar
no seu destino.
PC: Claro.
CK: O ser humano é movido a desejo.
PC: Você deseja. Logo, você aprende que ser o melhor
não significa que todos os outros vão estar de acordo
com você. Mas eu sou o melhor.
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CK: E como você aprendeu a lidar com isso, Paulo?
PC: Eu sou o melhor; eu aprendi. Porque tudo isso
me foi dito no dia 27 de setembro de 1989, quando
eu já tinha publicado “O Diário de um Mago” e “O
Alquimista”. E eu dizia “eu tenho que conseguir, eu
tenho que conseguir, eu tenho que conseguir...”. Aí já
estava pensando realmente – “porra, eu tenho que
realizar o sonho de ser o escritor mais lido no mundo”. Eu estava dirigindo num vale, e veio um anjo no
meu carro...
CK: Você estava dirigindo onde?
PC: Num vale na França. Ele sentou e falou: “Ah!
Você quer isso e o engraçado é que você não sabe
o que é ter sucesso não, cara... Ter sucesso é todo
mundo te adorar, te achar o máximo, mas você vai
apanhar muito, você vai apanhar para cacete”. E eu
fiquei muito surpreso, porque a minha visão do sucesso era completamente diferente.
CK: Era uma visão romântica.
PC: “Todos me amam”. Aí eu fiquei tão aterrorizado
com a presença do anjo... Não com a presença do
anjo em si, mas com que o anjo me falou. E ele disse
assim, me dava 24 horas... agora eu não posso jurar
como é que foi o processo...
CK: Não precisa, basta o que ficou para você.
PC: Não, porque isso é muito importante, é a única área que eu não estou autorizado a mentir; nas
outras áreas eu estou autorizado a mentir. Por isso
que sempre eu tenho que fazer uma ressalva, enfim.
Eu não sei se o anjo falou “você tem 24 horas para
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pensar”, mas vamos colocar que ele falou isso – mas
ele me contou tudo o que ia acontecer comigo, quer
dizer, essa reação ao sucesso.
Eu fiquei tão... Foi uma revelação tão forte, eu não esperava isso. Eu falei “você me dá vinte e quatro horas”
– e seria no dia seguinte, às cinco horas da tarde. E ele
falou ainda: “você vai sonhar hoje à noite, e onde você
sonhar é onde você vai ter que fazer essa promessa”. E
eu sonhei que eu tinha que tomar um teleférico. Veja
você: eu estava ali, fazendo um caminho sagrado, onde
a coisa básica era o esforço físico e tomar um teleférico
parecia uma coisa tão fora de contexto. E aí, quando
nós chegamos, eu fiquei pensando: porra, eu nunca
tinha entendido isso, eu nunca podia imaginar isso. Aí
no dia seguinte eu subi lá às cinco horas da tarde e
disse: “eu tive um dia para pensar, então vamos fazer o
seguinte... Eu não tenho condições de dizer. Você me
dá três anos, se em três anos eu não segurar a barra...
Daqui a três anos eu volto aqui, aí eu posso ou dizer
ok, ou ‘fiz o que eu tinha que fazer, e agora, parei’”.
Se isso foi em 1989, eu estava com quarenta e dois
anos. E aí marcamos três anos depois, aí já na presença do meu mestre, com quem eu falei sempre, com
quem eu sempre falo. Aí quando chegou 1990, que foi
uma das porradas que você leva, eu já estava preparado. Eu só lembro de um momento de vinte minutos
num hotel em São Paulo, que foi tanta porrada, mas
num curto espaço de tempo aconteceu aquilo – teve
a Veja, mas todo mundo bateu – Folha, Estadão, Globo, o que tinha – ninguém falou a favor, ninguém,
ninguém. Aí nesse momento eu vi. Eu me lembro de
ir para fora do hotel, do apart hotel; só nessa hora
que eu tive 20 minutos de dúvida. Mas depois, quan29
do chegou 1992, eu fui lá com a Chris. 27 de setembro
de 1992, e eu disse: “olha, eu passei dois anos aí apanhando, eu acho que eu já cumpri a minha missão,
aqui damos uma parada”. E o meu mestre falou “então vamos aguardar até o dia 12 de outubro, dia de
Nossa senhora Aparecida. Se você continuar achando
isso, tudo bem. Mas se você não continuar, você vai
adiante nesse seu trabalho”.
Aí eu pensei até o dia 12 de outubro e – tem uma
pequena cidade nesse lugar que se chama Argelès Gazost – “Porra, o que é que eu quero? Passar o resto
da minha vida vivendo aqui nessa cidade?”. Já tinha
dinheiro... “ou eu gosto desse meu combate. O que
ocorre: ser apenas um profeta ou um apóstolo?”.
Aí nesses doze dias, ou do dia 27 ao dia 12, eu mudei de ideia: “agora é definitivo, eu não posso subir de
novo naquela montanha e negociar. A negociação foi
só aquela vez. Agora não tem volta atrás, não”.
CK: É isso que eu ia falar, porque você teve esse desejo
muito cedo. E esse sucesso todo, depois de batalhar
tanto, deve ter sido também um susto enorme.
PC: Foi uma surpresa também. Não foi um susto. Prefiro
dizer que foi uma surpresa, e o espanto com esse outro
lado que demorou esses vinte e dois minutos, no chão
desse hotel... Quer saber de uma coisa? Eles, no meu reino, eles perderam a batalha. Isso não tem importância,
nunca vou dar bola e definitivamente nunca dei bola.
A fé consciente é liberdade.
A fé instintiva é escravidão.
A fé mecânica é loucura.
CK: O que te machucava de verdade nesses 20 minutos em que você pensou em desistir? Era a inveja, era
a agressão, era não ser compreendido?
PC: Não, eu nem sei se a palavra é “machucar”. É mais
um espanto, porque machucar, nunca machucou.
CK: Não?
PC: Não, porque senão eu já tinha parado, nem ia lá
para o encontro em 1992. Eu fiquei foi muito espantado, embora eu tivesse sido muito bem-vendido. Sempre a realidade é – e é obvio que aqui a gente está falando de apenas um lado da moeda, o lado da moeda
muito mais forte é que os meus livros venderam .
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CK: Mas você tinha inicialmente esse desejo da unanimidade, né?
PC: Ah, claro. Mas não é unanimidade, não. Não é
tanto da unanimidade, é da apreciação. E eu consegui, eu só não consegui com esses caras. Mas eu estou
aqui, e as pessoas que me criticaram, cujos nomes eu
tenho, porque eu sou uma pessoa absolutamente vingativa, eles não estão mais. Eu estou aqui. Veio uma
nova geração.
Eu guardava muito logo no início, e agora eu já nem
sei quem fala mal e tal; agora eu já não guardo mais.
Essas pessoas não existem no meu reino. Não é que
elas não têm poder, elas têm, mas não um poder que
eu dou. Elas podem me prejudicar? Podem. Fazer com
que o preconceito passe para a próxima geração? Sem
dúvida nenhuma. Mas eu continuo lutando, eu sei
qual é o inimigo, então vamos para a frente.
CK: Você falou que é muito vingativo.
PC: Sou. Eu e Jesus. Jesus é tolerância zero!
PC: Também, também. As listas negras proliferam.
Quer dizer, se alguém que me atacou no passado e vai
me pedir ajuda, eu vou ser muito gentil, não vou passar recibo, mas jamais irei ajudar. Nunca aconteceu.
CK: Mas você chegaria a prejudicar essa pessoa?
PC: Não há necessidade, porque prejudicar é não ajudar.
CK: E você já se arrependeu de alguma vingança?
PC: Não, não, não.
Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar
CK: E qual foi a vingança mais saborosa?
PC: O sucesso! O sucesso é a vingança mais saborosa que existe. É eu poder chegar para a Playboy e dizer “eu sou o intelectual mais importante do Brasil”.
Deixa eles se rasgarem, e dizerem “Que absurdo! Que
arrogância!”. E eu sou o intelectual mais importante
do Brasil. E eu serei o intelectual mais importante do
Brasil. Como disse um cara recentemente lá no Rio,
“Paulo Coelho não deixará descendentes.” – é isso.
CK: Então é uma vingança que te estimula? Que te faz
querer ser melhor e não que te volta contra o outro?
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CK: Eu falo assim, lá de trás.
PC: Muito ligada a amor, nada ligada a carreira.
desculpa”. As pessoas não entendiam muito, não, porque eu já era famoso.
CK: Mas alguma coisa que você tenha aprendido?
Com alguma vingança que você tenha feito, que você
tenha se arrependido, que te transformou de alguma
maneira?
PC: Não, vingança não. Mas gestos errados, muitos...
Por exemplo, eu já fui muito injusto. Eu fui ver um
filme chamado “Flatliners” – acho que é o primeiro
filme da Julia Roberts, onde quatro estudantes resolvem experimentar a morte. É o Kiefer Sutherland, a
Julia Roberts, e outros. Eu saí do cinema impressionadíssimo com esse filme, porque o filme fala que as
pessoas, essas quatro pessoas do filme, foram torturadas e massacradas, e essas pessoas é que vão ser os
grandes demônios depois da vida. Ou seja, você morreu, está arrependido, e não tem como consertar o
que você fez.
Aí eu saí, fui para um bar, fiz uma lista de todas as pessoas que eu feri sem razão, e comecei a pedir desculpa, telefonando, mantendo contato. Demorou dois
anos para pedir desculpa para todo mundo, porque
com muita gente eu tinha perdido o contato, o telefone, ou seja lá o que fosse.
CK: E era por você e não por eles?
PC: Era por mim. Eu pedi desculpas. Eu agi injustamente, erradamente, eu não tinha a menor razão, e
assim foi. Mas continuo eventualmente dando uns
foras, mas peço logo desculpa já, bem rápido, para
evitar esse carma.
Agora uma coisa é isso, né – a injustiça. Outra coisa
é a vingança. Não me lembro, assim, de alguém que
tenha me atacado e depois tenha me pedido ajuda,
porque eu acho que já declarei tantas vezes que eu
tenho a minha lista negra... eu acho que é por aí.
CK: A a lista era grande?
PC: Não me lembro, mas devia ter uns 30 nomes, por aí.
CK: E que idade você tinha, Paulo?
PC: Foi em 1990 isso. Eu não sei que idade eu tinha
em 1990. Aí eu pedi desculpa a todo mundo, e disse
“Olha, eu não quero ser amigo, não – só quero pedir
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CK: Você falou num anjo da morte, ao qual você se
refere muitas vezes. Qual foi a primeira vez que você
ouviu isso? Quando você ouviu falar do Anjo da Morte, que imagem você tinha dele?
PC: Possivelmente eu tinha uma imagem que eu não
tenho mais hoje. Era uma imagem muito negativa.
Hoje eu acho que a morte é a sua aliada, a morte é
que faz você fazer as coisas que você gostaria de fazer.
Ou seja: “Eu vou te pegar!”, e você diz: “Deixa eu acabar!”. Eu acho que a primeira vez que eu ouvi falar foi
em literatura, eu li alguma coisa, não lembro...
CK: E era uma coisa assustadora?
PC: O inferno era assustador! Não a morte, ela não.
CK: Como era esse lugar horrível? Era cheio de fogo?
PC: Devia ser, mas eu não me lembro, não. Mas devia
ser aquilo que Jesus dizia, onde haverá choro e ranger
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CK: Ele tinha asas?
PC: Não, não era o Anjo da Morte, a figura dele. Eu
estou falando do inferno.
CK: Essa imagem que você falou do inferno, é uma
imagem que vem da Bíblia, né? Da formação católica.
PC: Acho que sim. É o diabo com rabo, é tudo aquilo.
CK: Se você tivesse que desenhar, seria assim como
na Bíblia?
PC: Seria, seria o desenho clássico.
CK: E o Anjo da Morte? Se você tivesse que desenhar,
como ele seria?
PC: Devia ser como um filme de terror: a caveira com
a foice, a cara da morte clássica.
Deus costuma usar a solidão para
nos ensinar sobre a convivência.
de dentes. Ranger de dentes é uma expressão muito
forte, sobretudo a total e absoluta ausência de esperança. Eu acho que sem esperança de redenção. Hoje
em dia, eu não vejo as coisas assim não, mas se a gente
voltar para aquela época, eu via a absoluta desesperança da salvação.
CK: E o Anjo da Morte tinha uma cara?
PC: Não me lembro.
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CK: E eu não perguntei, mas fiquei curiosa... O seu
anjo, esse que veio no vale na França, ele tinha asas?
PC: Não, não é um... Quando eu falo de anjos não é
aquela figura clássica, ele era uma luz do meu lado.
CK: E tinha alguma forma?
PC: Não, não tinha uma forma de gente. Ou algo que o
valha. Eu só vi o meu anjo lá no deserto. Quer dizer, eu
já vi várias vezes, já senti a presença dele várias vezes.
CK: E é uma conversa como se tivesse uma presença
física ali ou é uma coisa interna, de sentimento?
PC: Não, já que a gente tem que dividir, em internos e
externos, é uma coisa bem real.
CK: É uma experiência real, não é um sentimento?
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PC: É feito eu estar conversando com você. Eu ouço as
palavras, eu respondo, tanto é que eu discuti com ele, né!
CK: E é uma voz?
PC: É uma presença e também uma voz, é uma presença
de luz, embora nem sempre seja uma presença de luz.
CK: Mas é uma voz que você identifica, né? Não é
uma voz que vem de dentro de você?
PC: Não. É uma voz que vem de fora de mim.
Normalmente não tem ninguém perto. Por exemplo,
quando eu quero falar quando estou caminhando
com a Christina, eu ando mais rápido. Aí eu posso falar e escutar.
CK: E se outra pessoa estiver perto de você, vai escutar você falando sozinho. É isso?
PC: Vai achar que eu estou falando sozinho.
CK: E você já passou por essa situação?
PC: Deixa eu pensar... Acho que não. Eu não lembro.
Esses contatos precisam de muita intimidade, num
momento em que você está sozinho. Agora eu já passei muitas coisas por situações ditas milagrosas, de
sentir a presença, de ver tudo isso e aí eu já estive com
outras pessoas.
CK: Você já dividiu a sua história muitas vezes por
meio dos seus livros, com os seus leitores, em alguns
momentos como não-ficção e depois como ficção.
Mas é claramente você ali atrás, é você falando diretamente com o seu público.
PC: Sem dúvida.
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CK: E a ficção de alguma maneira permite ir mais fundo no que você quer dizer? Você sente isso?
PC: Sinto. Por exemplo, eu tenho um compromisso
de não mentir nessa área, mas eu posso por exemplo
condensar.
A ficção te dá essa liberdade, mas na essência, naquilo
que eu vou falar, eu não posso pisar na bola, entendeu? O que está ali tem que ser exatamente, quer dizer, o conteúdo tem que ser a minha experiência e a
informação que eu vou passar.
CK: Eu acho que você se expõe de uma maneira muito
explícita, muito corajosa – eu acho muito corajoso alguém que se expõe e divide com o outro essa experiência.
PC: É porque ela não é única. Nós somos todos reflexos da mesma luz. Voltando ao Alquimista, tudo
é uma coisa só, tudo é uma ilusão. Quando eu entro
em certos estados, certo transe... O mais recente que
eu me lembre assim, foi em Zurich, quando a gente
foi passear lá, cinco, seis anos atrás. Quando você tem
aquele momento... Tum! Você vê que nada faz sentido, que tudo faz sentido. Entende o que eu quero
falar? Quer dizer, você olha tudo, é tão estranho ver
carro, ver casa, ver pessoas na rua, tudo aquilo parece para você um filme de ficção científica, porque a
realidade não é essa, ou o que é a realidade? Então
você tem esse momento de conexão absoluta e total.
Você é todo mundo e todo mundo é você. Você não
é nada. É muito confuso, porque são momentos de
intensa revelação.
CK: E são momentos que você busca, ou alguma vez
você foi surpreendido?
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PC: Não vêm na hora que você está buscando, não.
Eles vêm quando eles querem vir. Você pode, vamos
dizer... Tem três graus: você pode passar para um primeiro grau, quando você conversa com você mesmo,
com a tua parte desconhecida, apenas pela tua força
de vontade. Aí nesse ponto você vai para o segundo
grau, que seria a conversa com o mundo invisível, que
já é mais complicada, mas obedecendo alguns rituais que existem para isso, você consegue. Agora esse
momento de revelação absoluta só vem quando quer,
você não consegue provocar – nem sei também, eu
nunca tentei, mas eu acho que eu não conseguiria
provocar, além do mais porque não é uma coisa muito agradável, porque te deixa despido de toda... de
tudo que é o teu referencial, o seu espaço, o tempo,
o seu ego. É um momento em que você deixa de ser
absolutamente, tudo deixa de ser o que é.
CK: Mas tem uma criatividade muito grande nas
crianças também.
PC: Não é criatividade; é tudo verdade. Depois é que a
gente começa a separar a mentira da verdade. Tampouco
é fantasia. Depende do que você entende por fantasia.
Nunca podemos deixar que cada dia
pareça igual ao anterior porque
todos os dias são diferentes,
porque estamos em constante
processo de mudança.
CK: E você acha que quem não tem essa doutrina,
não tem os rituais, não tem uma formação, não tem o
estudo, chega nessa experiência por meio do contrário disso? Pela simplicidade?
PC: Às vezes as pessoas simples, elas estão em constante contato, só que elas acham aquilo tão normal, tão natural. O que para a gente é uma grande revelação para
elas é o cotidiano. A experiência que eu tive de morar
no interior da França, conviver com o agricultor, com o
lavrador... Você vê que as pessoas ali são iguais à gente:
querem morar na cidade. Não existe essa coisa da pureza absoluta. Mas eu acho que, por exemplo, uma criança tem isso naturalmente, só que ela não se dá conta,
ela acha aquilo muito normal, conversa com anjo e acha
natural. E a gente dizendo que não existe isso.
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TÍTULO #02
Paulo Coelho, fevereiro de 2010
[Depois de uma breve parada para um café com biscoitos em um posto de gasolina, voltamos para a estrada. Faz muito frio, o dia está cinza e a paisagem é
cada vez mais branca.]
PC: Então vamos lá. Eu tenho altas expectativas... Pode
continuar.
CK: Você estava falando off the records que vocês estavam brincando ontem, dois dias atrás...
PC: Marchando.
CK: ­E que vocês se transformaram naquele personagem...
PC: E eu já não era mais eu, não era mais o famoso
escritor, porque o famoso escritor não brinca de “um,
dois, feijão com arroz” – “virando a direita, volver” –
“terreno perigoso, escorregadio”. Ou melhor, famoso
escritor faz isso sim.
CK: É o que eu ia perguntar... Famoso escritor não faz
isso sempre?
PC: Faz sim. Sempre, sempre. Baixa o Erê, e o Erê...
CK: E você não acha que é essa brincadeira, que é
essa liberdade de poder brincar que te ajuda a contar histórias?
PC: Deixa eu pensar nessa resposta... Eu acho que a
liberdade me ajuda a contar histórias, mas quando eu
conto histórias, por mais cômicas que elas sejam, elas
são sérias. Quer dizer, eu ali não estou brincando.
CK: Eu sinto que você tem muito essa preocupação,
você diz que tudo é uma coisa só, e que existe uma
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preocupação muito grande do que é sério e do que é
verdadeiro.
PC: Isso. Mas eu não falei verdadeiro, não.
CK: Não. Você falou do que é mentira e do que é verdade.
PC: Existem mentiras, mas verdades não existem.
CK: Eu acho que existem muitas verdades. A verdade
de cada um, eu realmente acredito nisso. E eu queria
entender um pouco mais por que você tem tanto essa
preocupação. Se isso é verdade para você, de separar
as coisas, quando você diz que tudo é uma coisa só e
por que a criatividade pode ser confundida em alguns
momentos com a mentira?
PC: Não é que a criatividade pode ser confundida
com a mentira. Existem coisas que você tem que ter,
digamos assim: responsabilidade. Sobretudo no meu
caso, que eu sei que eu sou escutado, eu sei que eu
sou escutado, então...
Você está habituada a ler os meus livros e o que você
não entende é que cada atitude minha é um livro per
se, então qualquer coisa em que eu me posicionar é
mais uma coisa que eu escrevi na minha biografia.
Às vezes eu sou extremamente emocional – que foi
o caso do Tony Blair, que eu chamei de criminoso de
guerra. É um cara que eu tenho uma bronca pessoal.
Então eu fui impulsivo quando eu declarei isso? Fui. E
depois eu tenho aguentar as consequências, e aguento, porque eu já deslanchei no Twitter dizendo que
ele era um criminoso de guerra.
Essa ação que eu tomei, ela é um livro, ela não é uma
ação isolada, ela faz parte da minha biografia. Um dia
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eu serei julgado pelo meu livro, mas também pelas
coisas que eu falei e pelas coisas que eu me omiti.
Eu não vou ficar falando toda hora sobre tudo o que
eu acho errado, porque senão não pararia de falar,
mas eu tenho que me posicionar. Às vezes me posiciono com emoção, às vezes me posiciono com mais
frieza, às vezes não me posiciono, quando eu acho que
seria errado me posicionar, como é o caso do papa. Eu
acho esse papa... Recentemente, quando o papa visitou Jerusalém, eu cheguei a escrever um artigo e depois não publiquei, porque achei que era errado fazer
aquilo naquela hora – enfim.
O meu silêncio ou a minha voz, é parte da minha biografia. Aliás o silêncio de todo mundo, e o que a pessoa fala – você pode ferir com as tuas palavras mas
você pode ferir também com o teu silêncio.
CK: E você, claro, hoje tem consciência da responsabilidade.
PC: Isso. Eu não brinco. Voltando então à tua pergunta – eu não brinco em serviço. Por mais bom humor
que eu tenha, e eu tenho, a pessoa que me faz mais
rir no mundo é a Christina. Eu não brinco em serviço,
não. Eu sei do que eu estou falando, sei da minha responsabilidade, se eu exagero ou deliro nela. Mas eu
não brinco em serviço, não.
CK: Então é essa separação que você faz quando o
que você fala...
PC: Vai atingir o público, eu vou falar. Hoje, por exemplo, eu adoro o Twitter. Adoro, adoro, antes de vir
eu tinha que twitar, aí twitei: “o que você sonha...” –
como foi a frase? “Se você pode imaginar, você pode
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fazer”. Eu tenho cem por cento de confiança nessa
frase de hoje, apesar de ser uma frase no Twitter, entendeu? Ou qualquer outra coisa que eu diga.
CK: Eu não vejo a imaginação como mentira, eu vejo
como ferramenta. Você acredita nisso?
PC: Totalmente. Eu acho que a imaginação é a grande
ferramenta, é a parte da alquimia também. A alquimia, ela não existe se ela não se projeta. A partir desse
momento, e no resto da viagem, eu vou, apenas por
efeito dramático, dividir realidade física e realidade
Quando você quer alguma coisa,
todo o universo conspira para
que você realize o seu desejo.
não física. Mas eu quero deixar registrado que eu não
faço essa separação na minha cabeça. Mas já que eu
estou dando uma entrevista, eu vou dar essa entrevista concreta.
Então no meu livro “O Alquimista” muita gente –
muita gente é um exagero, né? –, algumas pessoas
dizem “porra, mas o cara encontra um tesouro físico,
embora na verdade o tesouro seja o caminho espiritual”. Sim, o tesouro era o caminho espiritual... Mas e
daí? Ele não se propôs a descobrir o tesouro físico? Ele
tem que descobrir o tesouro físico. Ele não se propôs
a fazer um caminho iniciático? Ele está muito mais interessado na grana do que no aprendizado. Então ele
teve o aprendizado, mas não é por isso que ele vai deixar de chegar na grana, mesmo que essa grana, nessa
altura do campeonato no caso do Alquimista, já não
signifique o que ele está procurando.
CK: Já não signifique o que significava no início, é isso?
PC: Exatamente. Mas tem que ir até o final. Não foi
isso que eu me propus? Então não precisa mais?
Precisa sim, precisa porque foi essa a tua proposta, e isso
eu posso aplicar no meu trabalho agora: preciso escrever um novo livro? Teoricamente, não. Mas preciso sim.
Essa foi a minha proposta. Tenho o que dizer? Tenho.
CK: E você já sabe o que dizer para o próximo?
PC: Não... Sim, eu sei o que dizer. Mas ainda não sei
como dizer.
CK: Você já está escrevendo?
PC: Não, mas sinto a angústia de que eu preciso fazer
outro, mas estou esperando o sinal.
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Legenda ulpari
doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
CK: A gente chegou nesse ponto, e eu vou te perguntar uma coisa sobre processo de trabalho. Tenho um
amigo que fala: “Deixa os dedos escreverem”. É um
pouco o que você falou, quando o fazer não passa
pelo racional. O seu processo é esse? Você senta para
escrever e o novo livro simplesmente acontece ou
você enfrenta o papel em branco e...
PC: As duas coisas. Antes de escrever eu tenho varias
idéias, mas só uma está pronta. Eu custo atingir . Em
alguns casos, eu atinjo de primeira. Mas normalmente
eu custo muito a atingir a ideia. Eu escrevo e coisa,
acho que não está pronta. Aí apago, aí volto a escrever, aí tem um momento que eu sinto que conectei, aí
eu vou até o final.
CK: E em geral, é assim? Você já sabe o que quer dizer
mas ainda não sabe como?
PC: Eu tenho três ou quatro coisas para dizer, mas não
sei qual delas deve ser dita naquele momento. Qual
delas realmente eu já ruminei o suficiente para dizer.
CK: E foi assim desde o começo?
PC: Foi assim desde “O Alquimista”. No “O Diário de
um Mago”, não. Eu só podia dizer aquilo, porque eu
não tinha mais nada. “O Alquimista” foi assim, “Brida”... Eu não me lembro.
CK: Mas e nos livros anteriores, no “Arquivos do Inferno”, por exemplo?
PC: Não me lembro.
CK: Você lembra se foi alguma coisa que você queria
dizer, ou se você queria escrever um livro?
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PC: Não, eu queria escrever um livro.
CK: E você sente essa mudança olhando para trás, entre um processo e outro?
PC: Quando escrevi “O Diário de um Mago”, eu queria escrever um livro. Não era uma coisa com consciência: “Eu quero escrever isso”. Era apenas: “Eu quero
escrever um livro”.
CK: Tinha um desejo de escrever um livro ou tinha
uma necessidade de falar sobre aquela experiência?
PC: Veio do desejo de aceitar o meu destino de escrever. A partir daí, as coisas mudaram e passaram a vir
de uma maneira diferente. Estou pensando qual foram
os outros livros que eu não... Acho que “O Demônio e
a Senhorita Prym” foi um livro que eu escrevi porque
eu precisava escrever um livro, e não porque eu queria
falar daquilo. O resto não, o resto veio do desejo.
CK: A gente ainda não tinha conversado, mas eu senti
que você estava muito presente em todos os livros. E
eu sinto que isso é mais explícito ainda no “Mago”, nas
“Valkírias” e no “Aleph”...
PC: É mais visível...
CK: Mais assumido, né? Nos outros, no “Veronika Decide Morrer”, por exemplo, é a sua experiência, mas
você não é o personagem. E como é essa decisão de
ser personagem ou não? Você tem uma razão consciente para isso?
PC: Não. O processo criativo, aí ele é misterioso.
PC: Não, não é racional. Não é uma coisa “eu vou fazer
assim”. Ele vai aparecendo e vai seguindo.
CK: No próprio “O Vencedor Está Só”, eu sinto você
ali presente. É um mundo com o qual você convive
hoje em dia, que você frequentou, e a Mônica [agente
do Paulo há quase 30 anos] comentou comigo que as
pessoas não percebiam isso, né? Que parecia que você
estava falando de um mundo que não era o seu. Por
que você acha que isso aconteceu?
PC: Por que as pessoas não reagiram?
CK: Não. Por que as pessoas não acham que você está
ali tão presente quanto você está nos outros livros?
PC: Porque as pessoas me imaginam de maneira diferente. Porque eu não posso controlar a imaginação das pessoas. Eu acho que elas me imaginam como o cara que
não fuma, que não come carne, que não tem amante.
Às vezes, por exemplo, quando eu uso certas expressões – voltando ao Twitter, como “OMG”, que quer
dizer “oh my God”, entende? As pessoas ficam muito
surpresas de como é que eu uso certas expressões.
Em princípio, eu sou completamente diferente, eu
sou completamente diferente de tudo que as pessoas
estão falando hoje em dia. Eu falo. Eu tenho profunda
consciência disso, quer dizer, se hoje em dia você está
falando de uma nova consciência, noventa e nove vírgula nove por cento, ou seja, todos os outros que têm
voz, eles estão usando os termos que eu acho arcaicos
e fora da realidade. Falam em Buda, falam essas coisas que... Porra, eu tenho a maior admiração, mas que
não é a minha. Você entende o que eu quero falar?
CK: Não é racional?
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Legenda ulpari
doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
CK: Não se comunicam, né?
PC: Não. Isso. E as pessoas ficam até meio deslumbradas... Tudo é muito Dalai Lama. Eu não sou Dalai Lama,
e eu acho a linguagem dele totalmente superada.
mais poderoso?”, como se você fosse uma máquina de
marketing pessoal. É muito engraçado... Não existe o
meio termo?
PC: É difícil o meio termo.
CK: Sobre a sua imagem pública... Quem gosta de
você, os teus leitores, imaginam esse santo na Terra:
que não come, não bebe, não fuma. E quem não gosta
de você imagina um ser absolutamente racional, que
acorda e pensa “como eu vou fazer um livro para vender milhões e ficar mais rico, ficar mais famoso, ficar
CK: Claro que você não controla o que o outro imagina, o que o outro percebe... Mas de alguma maneira
você construiu essa imagem, não construiu?
PC: Eu não sei. Não está nos meus livros isso, não. No
“O Diário de um Mago”, que foi o meu primeiro livro,
eu fumo, eu bebo, eu curto. Mas como essa imagem
é uma coisa muito arraigada na consciência coletiva,
as pessoas criam essa imagem. Acho que hoje em dia
bem menos, né? Quer dizer, cada livro meu ele é...
Porra, “As Valkírias”, que você falou, é um livro que
mostra o meu lado womanizer, e mesmo assim vendeu para caramba. E ninguém veio falar, ninguém ficou chocado.
CK: Mas as pessoas não te reconhecem no “O Vencedor Está Só”, que está muito mais próximo da sua
realidade hoje, né?
PC: Não é tanto. Nunca foi. Eu acho que ali foi muito
mais àquilo que eu me propus mesmo: um fiel retrato
da minha realidade. Mas que não é a minha realidade, é o mundo em que eu vivo, que é bem diferente
da minha realidade. A minha realidade é o interior de
Genebra, o interior da França.
CK: É isso que eu ia te perguntar: onde você se sente
mais confortável?
PC: Onde eu estou. Eu não posso me dar ao luxo de
perder um minuto. Onde eu me sinto desconfortá-
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vel é às vezes fazendo coisas que eu tenho que fazer,
mas que não me dão muito prazer. Então digamos
que hoje em dia eu me sinta mais desconfortável em
hotéis. Mas se eu estou em minha casa em Paris, na
minha casa no Rio, na minha casa em Saint Martin, na
minha casa em Genebra, eu estou confortável. Agora
hoje em dia eu viajo muito pouco.
CK: E você ainda se interessa pelas pessoas à sua volta?
PC: Muito, muito. Tanto é que terminada essa primeira parte, dessa entrevista, eu vou fazer uma entrevista
com você. Porque eu me interesso muito por todo
mundo. Aliás, qualquer conversa eu acho sempre ótimo. Eu adoro bater papo. Qualquer pessoa para mim
é interessante, mas depois eu canso. Porque tem pessoas que são muito repetitivas.
CK: Eu falo que o ser humano só tem um assunto que
é ele mesmo: é o amor, é a morte, é o desafio, a sobrevivência. A gente pode falar disso de muitas maneiras,
mas a gente esta sempre falando da mesma coisa, que
é da gente mesmo.
PC: E a gente traduz para a nossa geração, mais nada,
o que já foi escrito.
CK: E o grande desafio de quem conta uma história,
seja no cinema, seja na literatura, é fazer essa ponte
entre o que é pessoal e o que é universal. E tem gente que faz isso com distância e usam palavras difíceis
para se fazer notar...
PC: É, mas essas pessoas nunca se fazem notar. Eu
acho que essas pessoas que se querem fazer notar...
Quer dizer, todos nós temos um ego, né?
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CK: É o que eu ia falar... Todo mundo quer se fazer
notar: eu quero, você quer. Então o que é diferente?
PC: O que é diferente é que você pode se fazer notar
construindo ou destruindo.
CK: No cinema sempre se fala muito que o personagem não é o que ele fala, é o que ele faz. Você não
acha que isso também se aplica à vida?
PC: Eu acho que se aplica a tudo, claro. Eu acho que
você é sempre o que você faz. Falar é tão fácil, não?
Falar é muito fácil. E é isso, essas pessoas querem se
fazer notar por falar. Os famosos críticos, analistas,
sociólogos, são pessoas que não participam, elas estão ali analisando. E essa análise daqui a pouco está
absolutamente ultrapassada. Depois, aqueles que fizeram nunca leram esses manuais – de Napoleão a
Bin Laden, ao Bush, eles vão lá e fazem, não estão nem
um pouco interessados. Aí os outros vêm e analisam.
Eu acho que é uma maldição, coitados – quem nasceu
para analisar o que os outros fazem. Eu não estou falando de crítico não, estou falando de sociólogo, psicólogo, todas essas pessoas que dedicam as suas vidas
a explicar a coisa mais inexplicável do universo, que é
o ser humano.
Acabo de pedir demissão de um conselho. Eu não
aguento essas reuniões onde as pessoas ficam batendo papo absolutamente bizantino sobre academia.
CK: E gira em torno do quê?
PC: Gira em torno de nada. Quer dizer, o que eles falam? Eles falam sobre – eles se elogiam mutuamente,
todos se cumprimentam o tempo todo por algo que
fizeram, por algum estudo obscuro.
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CK: E acreditam nos elogios uns dos outros?
PC: Profundamente. As pessoas ali só acreditam em
elogios, não acreditam em críticas.
CK: A gente estava falando antes sobre o personagem
ser o que ele faz e não o que ele fala.
PC: Isso.
CK: Olhando para trás, você acha que você sempre foi
o que você fez ou em algum momento isso mudou?
PC: O fato do meu diário ser tão abundante no tema
significa que eu não gastava a minha energia na palavra, e sim na escrita. Quer dizer, eu não ficava dizendo
“vou um dia ser conhecido, me aguarde”, essas babaquices que toda hora você ouve alguém dizendo.
não só os meus pais. Até em algum momento eu devo
ter dito para mim mesmo que eu não tinha futuro.
CK: Você lembra desse momento?
PC: Lembro, lembro bem. Porque no dia seguinte eu
fui mandado embora, foi na CBS. Eu era diretor da
CBS. Eu lembro que eu fui dormir uma noite com esse
negócio de “ser escritor não está com nada, isso é um
delírio, eu vou ser um grande executivo de gravadora”. Eu sempre pensei alto, né? “Vou ser diretor geral
da CBS, presidente da CBS...”, e no dia seguinte eu
fui mandado embora. Assim, assim, não tinha nada,
o motivo que deram para me mandar embora foi o
mais absurdo possível: uma entrevista que eu dei. O
CK: Mas era um diálogo com você mesmo?
PC: Era e tem que ser. Escreve aí, sofre aí. Sofre calado,
mas vai para a frente. Coisa que agora falando com você
eu vejo que eu escrevi muito, e nunca falei do assunto.
CK: Mas você disse que você chegou a expressar isso
para os seus pais e eles reagiram muito mal. Você acha
que foi por isso você passou a conversar mais com
você mesmo?
PC: Ah, não! Meus pais tiveram zero de influencia na
minha vida. Eu acho que eu dizia para todo mundo
que eu queria ser escritor, talvez de sucesso, talvez
não. Eu dizia assim, como eu, setecentos milhões de
pessoas. Eu queria ser escritor, e sou um escritor, e sim,
eu acho que falava, sim, para os meus amigos. Retiro
o que eu disse, pensando melhor, eu falava sim. Claro
que todo mundo me dizia que eu não tinha futuro, e
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doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
que acontece é que eles queriam me mandar embora
e não sabiam como, e me mandaram embora.
CK: E você sofreu com isso ou você ficou agradecido?
PC: Eu acho que na época eu devo ter sofrido, né?
CK: você chegou a acreditar que o seu desejo era ser
o presidente da CBS?
PC: Não na CBS, mas depois eu fiquei “Pô, como é
que eu vou continuar a minha carreira na música?”.
Sofri, é claro que eu sofri. Ninguém gosta de ser mandado embora, principalmente quando muito jovem
ainda. Eu tinha 30 anos. Você tem uma carreira, você
está chegando no cume, né? No pico. Devo ter sofrido
muito, mas depois que você olha para trás...
CK: Você vê o bem que isso te fez!
PC: Exatamente. Embora eu ache que a derrota não
faz bem, não. A derrota muitas vezes enfraquece a
pessoa, demora anos para se recuperar. Aconteceu
comigo. Muitas vezes a derrota leva anos para a gente
se recuperar. Mas graças a Deus eu me recuperei, e
continuo lutando. Sou passível de derrotas, com anos
de recuperação, mas não me intimida, não me intimida. É aquilo que eu falei no início da nossa viagem: o
poder da vontade é maior do que a coragem.
CK: Você falou da demissão e eu volto para um outro
assunto, que a gente teve antes também, que é sobre
a injustiça. Você falou de quando você se sentiu injusto com outras pessoas, e ligou para elas. E o inverso,
quando você se sentiu injustiçado?
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Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
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PC: Olha só... Deixa eu pensar. É muito forte colocar
nesses termos. Eu nunca me senti injustiçado. Eu posso
ter me sentido incompreendido, eu posso ter achado
os caras uns filhos da puta, mas eu sempre vi isso muito
mais como um combate. Você está brigando, você não
pensa em termos de justiça, você pensa em dar porrada de volta. Só depois você vai pensar que não merecia.
CK: Claro; você fez porque você quis. Você fez para
você e você estava satisfeito com aquilo.
PC: Mas eu gostaria que todos ficassem satisfeitos comigo. Comigo não, com o meu trabalho. Eu gostaria
que o meu leitor entendesse melhor. Não entendeu.
Aí é que eu digo: é um problema meu, mas... Eu me
enfraqueci nesse processo.
CK: Você nunca achou que você de alguma maneira
tivesse feito alguma coisa errada?
PC: Por aí, nunca. “O que eu fiz de errado? Por que o
outro me trata dessa maneira?”. Nunca, nunca, nunca.
CK: E você falou em derrotas que te enfraquecem, em que
momentos você se sentiu enfraquecido por uma derrota?
PC: Muitas vezes. Ser mandado embora da CBS foi
uma derrota, romper a minha ligação com o Raul Seixas foi uma derrota. Porque aí foi uma coisa muito dura
para mim, porque o Raul na hora em que eu mais precisei dele, ele não estava ali. Foi quando eu fui preso. Ali
eu entendi que tinha acabado o amor, o entusiasmo, a
entrega. Eu era um cara muito dedicado a ele. Não acabou o trabalho porque eu gostava daquilo que eu fazia,
mas ele passou a ser o meu trabalho, e não o trabalho
meu com o Raul. Esse momento da minha prisão foi a
pior derrota da minha vida. Ser preso. O que eu podia
fazer? Nada, né? Não tinha escolha, não.
CK: Não: “O que eu fiz errado para que isso acontecesse, e não conseguisse o que eu desejei?”.
PC: Ah! Sim.
CK: Que a responsabilidade pelo seu reino é sua.
PC: Mas essa é uma coisa absolutamente positiva. No
fundo, é você assumir os seus erros. Não porque as
pessoas disseram que isso estava errado, mas porque
a coisa não funcionou.
Por exemplo, “O Vencedor Está Só” não vendeu como
eu queria que vendesse. Então é óbvio que eu – e eu
não sou eu, eu sou uma indústria – então é óbvio que
eu reflito, embora ninguém me cobre isso. Eu me pergunto “Onde foi que eu errei aí?”. Mas aí conversando
até com a Mônica, tem uma coisa muito clara: eu fiz o
livro que eu queria fazer. Está certo isso? Está. Deveria
fazer de novo? Não. Mas pelo menos eu não menti aí,
eu não perdi o respeito por mim. Só eu não perdendo
o respeito por mim eu posso seguir adiante. Acho que
você é derrotado quando você deixa de se respeitar.
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CK: E até ali você sentia uma relação com o Raul muito forte? Não existia disputa?
PC: Claro que existia disputa.
CK: Ele aparecer mais do que você?
PC: Não, nesse ponto não. Mas claro que existia disputa. Ainda bem, porque senão o nosso trabalho não
durava até hoje. O que fez o trabalho ser tão forte
é que nunca foi um trabalho de paz, sempre foi um
trabalho de guerra.
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CK: Mas um momento onde você queria uma música
e ele queria outra?
PC: Não.
[Paulo de repente muda de expressão, olha as horas,
parece tenso]
CK: Quer que eu pare Paulo?
PC: Não, de jeito nenhum, é quero rezar às seis horas,
Faltam dois minutos.
Todo mundo que vem me entrevistar fica me perguntando do meu cacoete, e eu falo que eu não sei se eu
tenho esse cacoete de afastar uma mosca...
CK: É porque eles não estão prestando atenção no que
você fala.
PC: Não, mas eu não tenho. Você viu eu afastando
uma mosca?
CK: Não.
PC: Dizem que eu faço assim.
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doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
CK: E que te realizava.
PC: Muito, muito, extremamente.
CK: Dessa fase com o Raul, você falou que era uma
relação de conflito...
PC: Sim, de conflito. Conflito criativo.
CK: Tem algum momento em que esse conflito tenha
sido mais forte?
PC: O conflito? Foi sempre um conflito positivo.
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CK: Fazendo esse gesto eu não vi. Mas você pisca.
Quando você está pensando você pisca um pouco
mais.
PC: Deve ser... Eu penso com as pálpebras.
CK: Cada um tem o seu. Eu penso alto.
PC: Você pensa alto, é?
CK: Eu escrevo falando sozinha.
PC: Eu penso alto também, mas só quando eu ando.
Continuemos.
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Vai dar seis horas. Você me dá só um minuto para
rezar? São 6 horas agora.
[Paulo se concentra e reza em silêncio. Ao final, faz um
círculo com a mão direita sobre a cabeça]
PC: Continuemos, Carol.
CK: Sobre os rituais... Você parou agora às 6 horas
para rezar. Você sempre buscou isso? Você acha que
os rituais são necessários?
PC: Para a humanidade ou para mim?
CK: Para você, eu sei que é necessário.
PC: Para a humanidade, eu não sei.
CK: Isso é pessoal ou é um caminho que todo mundo
devia buscar?
PC: Acho que todo mundo tem isso, embora eu ache
que nenhum caminho é um caminho que todo mundo deve buscar. Esse é um princípio meu. Agora nesse
momento, eu acho que se buscasse ajudaria muito,
mas não dá para convencer as pessoas, não. Porque
o fundamentalismo está crescendo tanto que você
nem sabe...
sua responsabilidade – eu não posso fazer qualquer
barbaridade hoje e depois dizer “Ah! O padre falou
que eu podia fazer isso”. Realmente a Bíblia fala tudo.
Se você ler a Bíblia do começo ao fim, você pode fazer
qualquer negócio na Terra, inclusive o genocídio. Tem
vários capítulos de genocídio na Bíblia, autorizados
por Deus. Jesus é tolerância zero.
Agora, isso dito, você se ater à essência – a essência é
sua, mas como você não é uma ilha nesse mundo, você
precisa comungar às vezes do mesmo mistério. Então
Eu quero viver
Nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
formada sobre tudo
CK: Porque no fundo, todas as religiões, são caminhos
diferentes para o mesmo lugar.
PC: Para a mesma luz. Mas eu não acredito que a busca espiritual seja essencial. Eu acredito que a ética seja
essencial. A partir daí, cada um faz o que bem entender com a sua fé ou com a sua falta de fé.
A outra coisa são os rituais. Eu acho que você tem a
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aí você tem que aceitar os rituais que esse caminho coletivo te propôs. O mistério coletivo chama religião.
Se eu fosse muçulmano, eu estaria certamente rezando 5 vezes por dia, sempre em direção à Meca. Se eu
fosse judeu, eu estaria respeitando o Shabbat, como
eu respeito o domingo. Eu sou católico, eu tenho que
respeitar os meus rituais.
Então, no caminho coletivo, o que une as pessoas são
justamente os rituais coletivos, e a revelação. E a revelação, ela depende muito de interpretação. O ritual não.
CK: Mas você respeita que existem caminhos diferentes.
PC: Óbvio. Eu só sou cristão porque eu nasci no Cristianismo.
CK: É isso que eu ia te perguntar . Você acha que isso
vem da sua educação?
PC: Só vem da minha educação.
CK: Ou é também uma escolha pessoal?
PC: É uma escolha pessoal depois que eu experimentei um pouco de tudo. Eu experimentei o Budismo, o
Hare Krishna, o Satanismo... No final, você quer saber
de uma coisa? Eu nasci cristão. O que Jesus diz está
em qualquer outra coisa que eu li. Por que não vou
me dedicar a esse caminho, já que todos os caminhos
levam ao mesmo lugar? Mas para isso eu tive que negá-lo. É importante negar para aceitar.
CK: E o seu mergulho no Satanismo foi...
PC: “Satanismo” é uma palavra bem hollywoodiana.
Entre outras coisas, o Hare Krishna, o Budismo, o
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Marxismo. Todas essas coisas. O meu mergulho nessas coisas sempre foi de corpo inteiro, e hoje em dia o
meu mergulho é no Cristianismo.
CK: E você falou disso agora como uma decisão quase
racional, né? “Quer saber de uma coisa, eu nasci no
Cristianismo, eu fui educado assim”. É uma decisão
consciente mesmo?
PC: É, é uma decisão absolutamente consciente, pensada.
CK: Se ela é consciente, pensada, ela tem uma justificativa.
PC: É a minha raiz, é o meu sangue. Eu acredito nessas
conversões. Eu nem acredito na proposta missionária,
porque só deu merda isso... A ideia de você ir e converter alguém para a sua religião justifica muitas vidas
vazias, mas não justifica a mensagem daquela religião.
CK: Porque a religião foi a causa de muita guerra, de
muita luta por poder, causa de muita distorção e dinheiro e tudo isso.
PC: Um horror, horror.
CK: Isso te incomoda na religião ou não? Você consegue separar uma coisa da outra? A separação entre
igreja e religião é clara para você ou não?
PC: a Inquisição, as Cruzadas, as barbaridades, se isso
me incomoda? Nem um pouco. Porque você vai para
a origem, e aí tem duas coisas: uma, uma revelação,
que são os Evangelhos; e outra, que é o mistério da
missa. O resto basta você ler a vida dos papas que
você vê que não é de hoje.
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CK: Você mencionou o Papa, quando a gente parou
para comer. você acredita que ele é a voz de Deus, que
ele é o representante de Deus?
PC: Não, não, ele é o escolhido pelo Congresso. Esse é
um dogma muito recente, sem nenhum fundamento
histórico.
CK: Os reis também se diziam escolhidos por Deus.
PC: Claro. Mas uma coisa legal que você está falando é da infalibilidade papal. Isso é uma coisa recente.
Eu não posso acreditar nisso, jamais acreditaria nisso.
Agora, eu acredito na transmutação do corpo, no pão
e no sangue do vinho, pronto. Basta acreditar nisso.
Esse ritual foi aperfeiçoado ao longo de muitos séculos, que é a missa. Eu acredito nas palavras de Jesus.
CK: E você freqüentava a missa quando pequeno?
PC: Ah, eu era obrigado a ir.
CK: Era obrigado a ir e era uma experiência boa?
PC: Era um saco. Eu queria brincar e tinha que ir à
missa. Deus me livre!
CK: E a leitura da Bíblia?
PC: A leitura da Bíblia foi uma coisa muito boa.
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Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Maluco total
Na loucura real...
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TÍTULO #03
Paulo Coelho, fevereiro de 2010
CK: Do que a gente estava falando?
PC: Eu estava falando que fiz uma antologia para uma
editora inglesa e o sujeito ficou relativamente impressionado de eu ter escolhido tantos livros juvenis. Sabe
aquele negócio que você disse em algum momento,
de que “essas pessoas ficam querendo provar o que
eles fizeram, isso ou aquilo”? Então, eu escolhi muitos
livros juvenis, só não escolhi mais porque não tinha
no catálogo da Penguin, que embora seja muito vasto,
eu não pude escolher por exemplo um livro que me
marcou muito que foi Sherlock Holmes. O conceito,
a concepção, de Sherlock Holmes. Aí eu disse: “A verdade é que a leitura que vai te marcar para sempre é
aquela leitura que você leu dos 10 aos 20 anos. E parou aí. O resto você vai ler e vai esquecer”. Sabe, todo
dia eu estou lendo, mas aí você já não guarda mais.
Então a leitura da Bíblia foi muito marcante.
CK: E ela aconteceu entre os seus 10 e 20 anos?
PC: Eu lia de criança.
CK: E lia sozinho?
PC: Lia porque era obrigado.
CK: Mas alguém lia para você em voz alta ou não?
PC: Não, eu lia aquelas histórias sagradas para criança, essas coisas todas, mas o colégio obrigava. O catecismo.
CK: Que também era uma tortura?
PC: Era uma tortura, mas era uma coisa em que eu era
bom, então não era tão tortura. Tortura era o resto.
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
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sa dolupta tiost, ipsa
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CK: Um desses livros juvenis que você fala que te marcou era “Eram os Deuses Astronautas?”. Você disse
isso, mas não me disse por que ele te tocou tanto.
PC: Mas antes desse livro eu já tinha lido um livro que
tinha me tocado muito, que era “O Despertar dos
Mágicos”, ou seja, até então eu estava preso à visão
marxista da história. Se não marxista, pelo menos a
visão materialista da história. Aí, quando eu li “O Despertar dos Mágicos”, eu vi que tinha muito mais coisas
interessantes do que aquilo, e aí o meu universo se
ampliou profundamente: alquimia, magia, sociedades
secretas, essas coisas todas, coisas muito interessantes, governos ocultos, tinha muito mais sabor do que
aquele negócio do Rei Luís XV e toda essa baboseira.
CK: Mas não foi uma escolha simples, né?
PC: O que não chegou a ser uma escolha simples?
CK: A experiência que você descreve em “Verônika
Decide Morrer” e tudo isso. Você chegou a ser internado, não era compreendido. Você acha que você
buscou isso para fugir de um mundo no qual você
não se sentia aceito?
PC: Não. Você cismou com esse negócio, é a segunda
vez que você fala nessa aceitabilidade.
CK: Porque é isso que está nos livros, não é?
PC: Se eu queria ser aceito, era pelas mulheres e não
pelo mundo, entende? Para o mundo eu não estava
nem aí.
CK: Por que você coloca isso de ser aceito, de ser diferente?
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PC: Pode ser. Eu queria mulher, posso resumir assim.
Então eu era muito magrinho, não fazia esporte. Tudo
isso é tolerável, agora não arranjar namorada era intolerável, é um horror. Mas o negócio da internação,
pelo contrário, eu me senti um herói, vivendo ali coisas que ninguém viveu, né... Aí sim, o escritor que vive
essas experiências...
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sum dolu
CK: E você diz isso, que em determinado momento
você descobriu que ser maluco era bom.
PC: Me dá uma grande liberdade. Isso me salvou da
tortura inclusive, porque eu falei para os torturadores
que eu era maluco, comecei a me torturar mesmo, a me
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arranhar, a me bater, “não precisa se preocupar em me
fazer nada não, deixa que eu mesmo faço, sou maluco”.
Aí os caras levaram um susto, eu não sei o que passou
pela cabeça desses caras, mas foi isso mais ou menos.
CK: O que é genial, né? São as teorias que se autocumprem: você se fez maluco, você pareceu maluco
para eles e aquilo te ajudou.
PC: Exatamente.
CK: É um pouco isso que eu falo da criatividade, de
você poder brincar de soldado no meio da rua. Todo
mundo pode na verdade, mas quem faz isso?
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PC: Pois é. Os adultos não fazem. As crianças fazem, porque elas acreditam que são soldados, mas
nessa noite eu entrei no transe, eu comecei a marchar, foi tão engraçado. Você não achou engraçado,
Christina?
Christina: Eu achei engraçadíssimo.
PC: Porque a gente não parava de marchar no meio
da rua, marchamos durante meia hora. Direita volver! Direita volver! Esquerda volver!
CK: Isso eu acho que pode fazer parte da essência do
filme. São essas coisas que você não precisa ter um
super poder, nem uma fórmula mágica para fazer, e
você não é maluco porque você faz, mas a maioria
das pessoas não faria, não se sente capaz de fazer.
PC: É isso que eu espero que o meu trabalho venha a
mudar nesse mundo, que as pessoas se deem conta
de que elas estão numa furada, numa roubada, e que
o fato delas marcharem na rua não vai mudar nada,
ou falarem com estranhos, não vai mudar nada, só
vai dar alegria para elas. Até porque é muito difícil,
entendeu? Aí eu resolvi passar do dia 20 ao dia 30
sorrindo, vou dar uma de monge budista, vou ficar
sorrindo, e só pelo fato de ficar sorrindo, a vida melhora. Experimente isso, comece a sorrir. Fica tudo
bem. Mesmo quando você estiver mal, mal, sorria
sempre. E aí eu comecei a ver que nessa necessidade
de dividir, eu twittei para as pessoas fazerem isso, as
pessoas fizeram, ficaram encantadas com o resultado, depois eu esqueci, mas eu vou voltar a sorrir.
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Christina: E tem pessoas que sorriem naturalmente, né?
PC: Tem pessoas que sorriem naturalmente. A Christina é uma delas.
CK: Mas tem gente que acha que não pode, ou que
não deve.
PC: É, que só pode sorrir quando estiver alegre. Não,
sorrir é um gesto físico.
[A neve que cai lá fora é cada vez mais intensa e o clima
na estrada agora é tenso. Os carros começam a parar
no acostamento. Interrompemos nossa conversa por
alguns instantes. Paulo tenta um desvio, sem sucesso.
O telefone toca e é um amigo de Munique com quem
Paulo não fala há muito tempo. No instante em que
passamos em frente a uma placa de retorno, o amigo
dá a notícia de que a tempestade de neve em Munique
é violenta. Estradas fechadas. No último segundo, Paulo faz o retorno. Coincidência, sorte, destino, sinal, aviso
de Deus. Cada um chama como quer e nós agradecemos a chance de pegar a estrada de volta, em direção
a Genebra, em segurança. E eu agradeço a oportunidade de passar mais algumas horas com Paulo e Chris
no carro e poder chegar um pouco mais longe nessa
primeira de muitas conversas. Mais uma pausa para
um café com torradas e voltamos a gravar.]
CK: E como foi virar escritor de verdade, ser publicado... Você se lembra desse momento?
PC: “Os Arquivos do Inferno”, que foi o primeiro, eu
mesmo publiquei. O “O Diário de um Mago”, graças
ao Nelson Liano, o Mandarino publicou. Teve aquele
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livro do vampiro, foi aí que eu conheci o cara, mas
eu nem escrevi, foi o ex-escravo que escreveu. Mas aí
veio o “O Alquimista”, que não deu certo. E não é só
comigo não, muita gente quando faz a transição da
não-ficção para a ficção, todo mundo quer ouvir uma
história. Então quando você faz essa transição para a
ficção, as pessoas já não compram. Isso daí a literatura
está cheia de exemplos e realmente “O Alquimista”
não vendeu. Mas aí é o que eu digo...
CK: E o que o editor te disse, você lembra?
PC: Lembro. Nesse meio tempo o meu mestre me
mandou para o deserto, [a viagem que gerou o livro]
“As Valkírias”. E eu disse: “Mas agora eu tenho que lutar
aqui, eu tenho que convencer o Mandarino para continuar me publicando”. Mas ele disse: “Não, vai para o
deserto. Não vai adiantar nada você ficar aqui”. Eu fui
e no deserto eu ficava querendo me convencer: “Pô,
Jorge Amado já vendeu x, eu posso escrever um outro livro”... Sei lá o que eu fiquei me convencendo. Mas
quando eu vi o meu anjo, no dia que eu vi o meu anjo,
eu senti o vento quente soprar, como se a minha prece
tivesse sido atendida. Aí eu voltei para o Brasil e dito e
feito. O Mandarino me devolveu o contrato, mas eu estava tão convencido, nem sei se eu estava convencido
do “O Alquimista”, para falar a verdade, mas eu estava
convencido que a história não acabava aí. Aí peguei os
recortes dos jornais, onde tem noite de autógrafo, aqui,
ali e acolá, e fui falar com o Rocco. Ele mandou passar
no escritório dele, daí eu passei e ele aceitou publicar.
CK: Você não conhecia ele? Você foi bater na porta?
PC: Não, foi nessa noite de autógrafos que eu conhe78
ci ele. No dia seguinte eu estava lá, aí eu perguntei:
“Rocco, por que foi que você aceitou?”. O livro já tinha saído e não tinha dado certo. E ele me respondeu:
“Eu não sei, Paulo, essas coisas não se explicam, não”.
Então eu acho que eu estava movido pela, aí sim, a
sagrada chama da loucura, aquela loucura que não vê
obstáculos; esse é o meu destino, eu vou adiante, de
novo a vontade se sobrepondo à coragem. Falar com
o editor precisa coragem, certo? Mas aí a vontade é
muito mais importante.
CK: E o Mandarino, você conhecia?
PC: Foi o Nelson que me apresentou. E ele foi lá, editou e pronto.
CK: E você ficava intimidado?
PC: Não, não. Eu não dependia do editor, a não ser para
editar e distribuir. O Mandarino me ensinou uma coisa
muito importante. Eu fui pra ele e disse: “Meu livro não
está bem distribuído”. E ele me disse: “Existe uma lei no
mercado, que é a lei da oferta e da procura; se procurarem, eles vão ter”. Aí eu disse: “Está ótimo”. Aí, eu e
a Christina saímos panfletando, promovendo, nada de
dizer que o editor tem que arranjar, ele não tem que
arranjar nada. Eu contratei do meu dinheiro uma firma
de divulgação. No “O Alquimista” essa mesma firma de
divulgação não quis fazer, aí foi a Christina que foi fazer.
Foi bater nas portas, foi fazer tudo. Porra, se você me
pergunta, existe alguma lógica nesse caminho? Só a lógica divina. Foi o que eu falei logo no começo da nossa
viagem: existem os desígnios da providência.
CK: E a perseverança, né?
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PC: E a perseverança. Mas é um teste, né? Muita gente
persevera, mas não consegue. Então a perseverança
não é uma garantia de que as coisas vão dar certo, elas
tem que estar realmente escritas; se elas estiverem escritas, você chega lá.
CK: Você disse, falando da guerra, que você pode perder uma batalha, mas se você não desistir você é um
vencedor.
PC: Você é um vencedor, claro.
CK: E isso está escrito?
PC: Isso está escrito, está escrito na história, e mesmo
pessoas que desistem no finalzinho, mas quando já é
muito tarde para recuar, continuam sendo vencedores. Um exemplo é Jesus, que, na cruz, queria mudar
de ideia, dois dias antes queria mudar de ideia, mas
já não dava mais. Pediu para afastar o cálice, depois
disse: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Todos
nós passamos por esse momento.
CK: Mas quando você diz que já está tudo escrito,
você não tira do indivíduo a chance de buscar? Aquilo
que a gente estava falando, de que as pessoas se acomodam?
PC: Você está me perguntando sobre o eterno conflito entre o fatalismo e o destino.
CK: É. Como você vê isso?
PC: Você tem um caminho interno e esse único caminho é para um único indivíduo, que é você. E quando
você sintoniza bem, você sabe que está no caminho
certo. Mas o que acontece com a maior parte das pes80
A cada momento de nossa
existência temos que escolher
entre um caminho e o outro.
Uma simples decisão pode afetar
uma pessoa para o resto da vida.
soas é que elas seguem os outros caminhos. Imagine
um garfo. O cabo do garfo é o nascimento, depois
um desses dentes do garfo é o caminho escolhido, e
os outros são aqueles que a mãe mandou, que o pai
mandou, a vó mandou, a mulher mandou; e o garfo
acaba, é a morte. Então você pode escolher o dente do
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garfo que lhe convém ou você pode escolher o dente
do garfo que alguém te impôs. O teu livre-arbítrio não
vai além de saltar de um dente do garfo para o outro.
Quer dizer, a gente foi jantar sábado com um amigo
nosso, e as pessoas são divididas em gente que é radar e gente que é bússola. O cara que é bússola, ele
sabe o seu caminho, ele sabe que tem que se afastar
da montanha, mas o norte está para lá; o cara que é
radar está sempre jogando no impulso, para ver como
é que vai receber e vai orientando o seu caminho. Eu
tenho um exemplo político muito bom: o Bush era
uma bússola. Se você concorda ou discorda, isso são
outros quinhentos. Agora, o Obama é muito mais radar; fica sentindo ali, fica sentindo aqui. Então as pessoas acabam admirando muito mais o Bush, com a
sua obstinação assassina, do que um cara que quer
agradar todo mundo, que é o Obama. Então para
te falar do dente do garfo, quando você está no teu
dente do garfo, você pode sair e voltar, mas você sabe
quando você sai e sabe quando você volta, você não
se engana, meu bem. Engana os outros, mas não engana você. Parece que eu estou aqui pontificando a
verdade, mas não é isso não, eu só estou falando a
maneira como eu penso.
e segundo, para que eu tenha segurança de que eu
esteja perto da sua verdade.
PC: Mas seja qual for a minha verdade, o filme sempre
vai ser a tua verdade, você não concorda?
CK: Vai ser a minha interpretação, mas se eu estivesse num caminho completamente absurdo, seria bom
descobrir hoje.
PC: É verdade.
CK: Eu não quero fazer um filme contra você, nem
quero descobrir um grande segredo, nem inventar
um santo ou um personagem sem defeitos. Eu quero
um filme que seja realmente próximo da sua verdade.
PC: Claro.
CK: Eu não posso te prometer o resultado, mas eu
posso garantir a minha intenção.
PC: Não, isso não basta.
CK: Não basta o quê?
PC: Você tem que garantir o resultado. A intenção é
tudo o que a gente está falando.
CK: Mas a ideia é essa, até porque a gente já discutiu
que não existe uma verdade só.
PC: Exatamente.
CK: Eu acho que o resultado é consequência da intenção, do processo.
PC: Você tem ou não tem certeza de que vai ser um
bom resultado?
CK: Mesmo porque o que me interessa é a sua verdade. Eu acho que isso vale para as pessoas, é essa coerência que é importante a gente buscar aqui. Primeiro, para que a gente esteja falando do mesmo filme,
CK: Eu tenho certeza que vai ser um bom resultado.
PC: Então pronto. Não perca o seu tempo dizendo da
sua intenção, a intenção é como o velho ditado diz:
“de boas intenções, o inferno está cheio”.
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sum dolu
CK: Mas eu acredito que o bom resultado vem dessa coerência, de uma boa intenção e de um processo
que esteja de acordo com isso, então é muito mais
isso que eu vim buscar nessa nossa entrevista.
PC: Me dá um tempo agora, entrei errado aqui...
[Outro desvio e voltamos para a entrevista.]
PC: São dez para as dez do mesmo dia. Esse dia que
começou com uma viagem, acabou com uma viagem,
estamos de volta à Genebra, é o percurso do “Alquimista”, e eu estou aqui falando para a Carolina, que
para falar a verdade, até esse momento, com toda a
minha astúcia em perceber o que as pessoas querem,
eu ainda não entendi o que ela veio fazer aqui; ela já
conhece a minha vida, e ao conhecer a minha vida,
ela conhece bastante de mim. Mas eu acabo de dar
uma boa definição de mim mesmo, uma das melhores que eu dei recentemente. Eu estou usando aqui a
roupa do exército suíço, eu tenho um casaco do Hells
Angels que eu uso agora compulsivamente para ver se
envelhece. E eu sou uma mistura de Hells Angels com
exército suíço. Há muito tempo que eu não me definia tão bem, e é a pura verdade: tenho toda a loucura
dos Hells Angels e toda a disciplina do exército suíço.
Então, a bola está com a pessoa que veio até aqui, que
vai me fazer outra pergunta, evidentemente abstrata,
a qual eu tentarei traduzi-la em algo mais concreto.
CK: Eu só vim aqui pedir a sua benção, Paulo.
PC: Está abençoada. Mas pra isso eu preciso acabar
esse cigarro e daí eu te abençôo.
84
85
CK: As perguntas objetivas já fizeram para você um
milhão de vezes e estão disponíveis na Internet. E
você é o biografado mais transparente, mais exposto,
que uma biógrafa poderia encontrar.
PC: Dá muito trabalho ser opaco. Por exemplo, todo
esse lado mágico foi muito mal explorado na biografia mais recente. Sem crítica à biografia. Esse lado é
o lado que guia a minha vida. Aconteceu uma coisa
absolutamente relevante hoje: nós estávamos em
Lausanne, a gente ia sair da estrada, e em determinado momento eu queria pegar uma rua e não peguei,
estava desconcentrado e avancei o sinal, avancei o
sinal e não aconteceu nada. Por avançar o sinal não
quer dizer nada; eu roubo jornal, eu faço uma série
de coisas absolutamente irregulares, mas eu sei que
de alguma maneira eu não estava vendo tudo a minha volta naquele momento, então eu poderia ter
avançado aquele sinal e ter acontecido alguma coisa
séria, graças a Deus não aconteceu nada, mas de novo
eu senti a mão do anjo. E quando aquilo acabou eu
rezei uma Ave Maria e agradeci a proteção, porque
podia ter acontecido alguma coisa. Eu não vi que estava avançando o sinal e isso sempre é uma coisa séria,
então eu sou uma pessoa muito guiada pelos sinais,
não os sinais de trânsito, esses também, é claro, mas
sobretudo os sinais de Deus. Eu sou extremamente intuitivo e extremamente racional quando necessário.
E se eu tivesse que me definir, eu acho que sou uma
pessoa não necessariamente em paz comigo mesmo,
eu nunca estou em paz comigo mesmo e espero nunca estar em paz comigo mesmo. Ao mesmo tempo
eu estou em paz comigo mesmo. Eu sou uma pessoa
de muitos paradoxos, eu sou capaz de ser, ao mes86
mo tempo, deslumbrado com a magia do universo e
irritado porque o dentista quer fazer um tratamento que eu não estou afim. Eu estou dando exemplos
concretos, totalmente no momento presente, volta e
meia vou ao dentista, eu vou lá para fazer uma coisa
e ele quer fazer outra, e é claro, venço eu, você sabe
quando o cara está querendo armar em cima de você,
vem dizer que o dente pode dar um ataque cardíaco.
Aliás, esse cigarro também pode dar, tudo pode dar
um ataque cardíaco, e daí? Vou morrer. Então eu sou
capaz desses dois mundos, absolutamente conflitantes e únicos, porque na nossa conversa aqui eu falei
que eu não acredito nessa realidade.
Eu sou, como diz a música que eu fiz há muitos anos,
há mais de 30 anos, eu sou o tudo e o nada, eu sou
todos esses paradoxos, eu sou os olhos do céu e a
cegueira da visão. E isso não me incomoda absolutamente, isso me dá uma imensa liberdade, não ter
que ser coerente, embora tenha que ser honesto, coerência no sentido de combinar a gravata com a meia,
mas ao mesmo tempo procurar ter uma bússola na
minha vida, ser orientada pela luz, saber que muitas
vezes as trevas se disfarçam de luz. E eu agora estou
num período que estou lendo sobre religiões, e ao ler
muito sobre as religiões, é óbvio que você vai cair em
revelações que são às vezes manipuladas, e você vai
ver também que todas as religiões, todas sem exceção, aceitam esses paradoxos sem nenhum problema.
Por exemplo, eu resolvi reler a Bíblia, tudo porque eu
comprei um Kindle. As coisas são mais ou menos assim. E aí eu pensei: “Não tem nenhuma Bíblia aqui em
casa, vou baixar uma Bíblia e vou ler”; e aí tem um
momento em que a Bíblia, e isso acontece toda hora,
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Legenda ulpari
doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
eu estou citando um dos mil exemplos, diz lá que o
que Deus uniu na terra, continuará unido no céu. Jesus diz isso para Pedro, o que se uniu na terra, será
unido no céu, e a Igreja passou a usar isso, é óbvio,
para o casamento. Aí mais adiante um fariseu pergunta para Jesus: “a Bíblia diz que se você casar com
uma mulher, você morrer e ela não tiver filhos, teu
irmão tem que casar com ela. Vamos supor que essa
mulher não tem filhos e casa com sete irmãos. E daí
todos morrem e vão para o céu. Lá no céu ela vai ser
mulher de quem?”. E Jesus diz: “no céu não tem isso
de casamento”. Quer dizer, já aí você vê a contradição
quando ele diz uma hora que une na terra e fica unido no céu, e outra hora diz que não tem nada disso.
Acho que Buda tem isso também: um discípulo chega
para Buda e diz: “O que eu faço para atingir a iluminação? Eu tenho que rezar muito?”. Buda disse: “Não,
rezar não atinge a iluminação”. Aí, um outro cara, no
mesmo dia, diz: “Buda, o que eu faço para atingir a iluminação? Tem que rezar muito?”. E Buda diz: “Muito.
Tem que rezar muito”. E os discípulos ficaram horrorizados: “Você falou uma coisa para um e outra coisa
para outro”. E Buda diz: “Mas a vida é assim, uma coisa
é para um e outra coisa é para outro”. Então Buda não
está em contradição, Buda está agindo de acordo com
o estímulo da pessoa que veio para ele. Então, eu diria
que eu sou esse cara com essas contradições. Você
sabe as minhas qualidades, eu sou uma pessoa honesta, eu sou uma pessoa comprometida com o que eu
faço, totalmente comprometida, eu sou uma pessoa
leal, profundamente leal. Quer dizer, eu já tentei me
livrar da Mônica. Logo no começo, hoje em dia isso é
impossível, mas já tentei me livrar dela, não consegui
convencê-la a pedir demissão, continuei com ela, no
que fiz muito bem, mas na época eu não sabia que
estava tomando a decisão mais acertada da minha
vida, que era de continuar com aquela garota que não
tinha nenhum experiência quando, na verdade, eu tinha tido uma proposta de uma grande agente literária do mundo inteiro. Mas aí a lealdade falou mais alto
do que o interesse, para o meu desespero na época
e para a minha alegria hoje. Eu teria dado um passo
muito errado se isso tivesse acontecido.
Então vamos lá: Eu te abençôo. Eu te abençôo pelo
poder que me é conferido, e agora eu não estou falando como Paulo Coelho, mas como o mago mes-
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89
mo, que Deus ilumine o teu coração, que Deus abra o
teu coração, que está aberto para essa história, e que
em cada momento de dúvida ele apareça e te oriente
nessas dúvidas, que não te deixe fraquejar, nem ficar
assustada. Você tem uma confiança cega, cega porque não é cega, cega porque, como diz Saint Jean de la
Croix, a noite escura da alma é que te dá a iluminação.
Eu dei muitos passos na minha vida e darei ainda nessa luz escura, porque no fundo, cada gesto seu, cada
atitude sua, é um ato de fé, você nunca sabe quais as
conseqüências. Eu acabei de citar a história da Mônica, e naquele momento e naquele café em Rubi, onde
eu estava tentando convencê-la a todo custo que eu
tinha uma proposta irrecusável e que ela estava com
22, 23 anos, ela era uma aposta minha, na área dela
eu nunca vi um agente viver de ter um autor, ela só
tinha um autor, e a Mônica dizia não. E nesse momento você deve sentir que alguma coisa deve falar mais
alto, que é a tua lealdade, porque existem valores na
vida, esses valores tem que ser respeitados, embora
nós sempre sejamos tentados a abrir mão desses valores, mas sempre que a gente abre mão, por uma razão
ou por outra, você se dá conta que não vale a pena.
Então, quando eu falo de uma confiança cega, falo
em confiança, no sentido de escutar muito mais o
teu coração do que escutar só a tua razão, só a tua
técnica. Técnica por técnica, você escreveria um livro
por semana, mas não é sempre que o seu coração está
falando. Eu só escrevo um livro quando o meu coração fala. Eu brigo, claro, porque às vezes eu preciso
daquilo. Não é que eu preciso daquilo para viver, para
sobreviver, mas eu preciso daquilo para me respeitar,
para ter respeito por mim mesmo. Por isso que quan90
do eu falei com você, Carolina, eu disse o poder que
me é conferido, para ter um respeito por esse poder
que me é conferido, é que eu não posso trair, que é
uma coisa que é um tesouro na minha vida.
Então, você está abençoada. Essa benção implica em
tudo que você já sabe, já tem, que é um bom domínio
da técnica, que eu vi no seu trabalho. Quer dizer, tudo
isso é uma rede de sincronicidade, estou falando com
a câmera porque quando você vir o filme, eu quero
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Legenda ulpari
doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
que você olhe para a câmera, tudo isso é uma rede
de sincronicidade muito grande, o Roberto Viana que
nos apresentou, enfim... Nada é garantido, quer dizer,
aturar um fracasso seria infernal.
Eu tenho esses medos de... Medo não é bem a palavra,
mas eu tenho a responsabilidade de não defraudar,
como se diz em espanhol, as pessoas que apostam em
mim. Isso foi sempre uma coisa minha e da Mônica,
muito marcante para todos: a gente não pode vender
o que não existe, a gente não pode deixar as pessoas com a sensação da derrota. A Mônica nunca diz:
“Ah! Vendeu mais”. Não existe isso. Claro que sempre
que todo mundo ganha, a gente sempre fica contente. E quando todo mundo perde, a gente fica triste
e a gente se pergunta: “Mas o que que houve?”. Mas
além, mas muitíssimo além dos interesses econômicos, existe a missão, existe a intenção, existe a ideia
de que esse trabalho, que eu sou a ponta visível, mas
não é apenas meu, esse trabalho ele tem um sentido
agora, ele tem um sentido de ser realizado, ele não
pode ser enfraquecido, não são só as derrotas que enfraquecem o trabalho, são os eventuais momentos de
desânimo, tédio, ou preguiça mesmo. Preguiça não é
igual a raiva, a gente vigia muito mais a nossa raiva do
que a nossa preguiça, mas enfim, uma preguiça de repente pode ser muito, muito mais destrutiva do que
um acesso de fúria. E eu tenho essas tentações, mas
eu me bato com elas, eu não me acomodo, eu não me
acomodarei. Se Deus quiser, até o dia que eu morrer,
eu me baterei sempre por aquilo que eu prometi ao
meu anjo que é ir até o final. Tem tempo de duvidar,
tempo de voltar atrás, mas no momento que eu disse
sim, foi um compromisso para o resto da vida, com92
promisso esse que agora você faz parte: não se deixe
intimidar pela seriedade com a qual estou falando. Ao
contrário, esse filme tem que ser um filme alegre, e ser
um filme luminoso, mas sabendo que é um filme que
tem que tocar o coração das pessoas, como espero
que tocará.
Eu acredito no meu Deus e cada um acredita no seu
Deus. Que o seu Deus, que é o meu Deus, que é o
Deus de todos nós, te coloque nas horas certas os desafios, te coloque nas horas certas as soluções para
esses desafios. Saiba que nenhuma pergunta fica sem
resposta, desde que você saiba perguntar, porque se
ele te colocou a pergunta, ele também te colocou a
resposta. As pessoas que não perguntam e não obtém
a resposta, é porque não tem aquela pergunta. Então
que você saiba fazer isso com a dignidade com que
você fez o “2 Filhos de Francisco”, que foi um filme
lindo, lindo, lindo. Me surpreendeu muito as histórias
que vocês contaram ali, porque eles tem um trabalho
de... No fundo, “vox Populi, vox dei”: “a voz do povo é
a voz de Deus”. Então, que a Imaculada Conceição, a
grande mãe, a Terra, te abençoe. E São Jorge, o Fogo,
te abençoe. Que Jurema, a Água, te abençoe. E que
a espada de Santiago, o elemento de Ar, te abençoe.
Amém.
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TÍTULO #04
Christina Oiticica, fevereiro de 2010
In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te
dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur,
venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as
erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit
quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam.
CK: Dia 13 de fevereiro de 2010, Genebra. Bom, Chris,
ontem vocês me mostraram um vídeo lindo de como
vocês se conheceram [gravação do quadro “O Anjo
da Guarda”, do programa Fantástico, da TV Globo],
mas vocês já tinham se visto antes de começarem a
namorar, né?
Chris: Já, a gente já se conhecia antes daquilo.
CK: O seu tio é casado com...
Chris: O meu tio é casado com... Era casado com a
irmã do Paulo. Então eu sempre encontrava o Paulo
no Natal, nas festas de aniversários, nas coisas de família, né? Mas eu tive um namorado que eu namorei,
sei lá, 10 anos – a vida inteira – e o Paulo sempre teve
uma namorada também, então a gente nunca...
CK: Mas você tinha alguma impressão dele?
Chris: Tinha. Achava ele super interessante, charmoso, essa coisa toda. E eu sei que ele sempre pensava
assim – porque eu usava óculos, como eu estou usando agora, ele adora óculos – e ele dizia assim: “Ah! Essa
sobrinha do Marcos é tão bonitinha”, mas a gente
nunca demonstrou nada, até que...
CK: Que ano foi isso?
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sa dolupta tiost, ipsa
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Chris: Quando eu conheci o Paulo, eu tinha 18 anos,
ele tinha 22, porque ele é 4 anos mais velho que eu.
CK: E isso foi antes do Raul?
Chris: Isso foi exatamente... Foi perto da época do Raul.
Foi um pouco antes, eu acho que foi assim. Mas eu não
acompanhava muito a vida do Paulo; eu sabia que ele
estava fazendo música, aí as músicas fizeram sucesso.
CK: E você gostava das músicas? O que você ouvia?
Chris: Olha, eu ouvia mais Beatles, bossa nova. Eu
achava o rock brasileiro... Eu tinha um certo preconceito até. Eu sou muito preconceituosa, gente! Eu me
lembro eu que trabalhava como desenhista num escritório, e a secretária falava “Eu adoro essa música”, e
eu dizia “Mas eu conheço o compositor”. E aí eu me
achava super importante, e eu passei a gostar também das músicas, adorar.
CK: E você era desenhista onde?
Chris: Como eu fazia Belas Artes, era um estágio. Era
numa coisa do governo, que não existe mais, que era
do Estado da Guanabara. Eram desenhos técnicos
que eu fazia. Foi o meu primeiro estágio. Acho que
era IDEG, eu acho, o nome do lugar. Eu trabalhei lá
uns anos.
CK: E você já pintava ou não?
Chris: Eu pintava. Como eu fazia Belas Artes, eu fazia
desenhos, esculturas, gravuras.
CK: E você imaginava seguir a sua vida por esse caminho, você já tinha isso determinado?
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Chris: Já. Desde criança eu queria ser artista plástica.
Eu sempre ia no Museu Nacional de Belas Artes. Eu
sonhava estudar lá um dia. Eu passei no vestibular, e
depois eu estudava de manhã e logo em seguida pegava nesse trabalho à tarde, no centro da cidade. E foi
mais ou menos nessa época que eu conheci o Paulo,
como eu te falei, na casa da família dele. Mas a gente
só se olhava, se cumprimentava. A gente nem conversava, porque eu sou super fechada, né? Eu não sou
muito de ficar conversando assim. Eu fico mais retraída, sou tímida também. Mas aí chegou um momento que a gente até se aproximou, porque eu terminei
com esse namorado e comecei a namorar um rapaz
que fazia violão clássico, e ele adorava o Paulo, e gente
marcou de sair, de se ver. Foi nessa época que eu me
aproximei mais do Paulo. Inclusive o Paulo foi num
aniversário meu, que nunca tinha ido. O Paulo era casado, ele foi até com a Cecília. Depois ele se separou
dela, eu terminei com o Mário, e no Natal ele pediu
para a irmã dele levar ele. Eles iam lá pra casa, aquela
coisa de família, pra ele passar lá em casa, porque ele
queria me convidar para sair. E ele fez isso. Nem foi
propriamente ele, foi o primo dele. Foi o Serginho que
perguntou: “Você não quer ir ao cinema com a gente?”, mas eu tinha certeza que era o Paulo que estava
querendo me chamar pra sair.
CK: Você lembra que filme vocês viram?
Chris: A gente ia assistir “Manhattan”, mas estava super lotado, e aí a gente acabou indo ver “O Aeroporto”, no Condor, no Largo do Machado, que foi onde
tinha uma cobra e teve toda essa cena, o Paulo então
me perguntou se ele beijasse a cobra, se eu dava um
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sa dolupta tiost, ipsa
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beijo nele. Ele perguntou se podia beijar a cobra e beijou e a gente ali começou. Eu beijei, a gente foi para a
casa dele, a gente transou logo no primeiro dia. Nessa
época eu tinha um outro namorado e ele tinha várias
outras namoradas, e esse meu namorado demorou
muito a ligar nesse dia de Natal, então... É claro que eu
já tinha um interesse no Paulo, óbvio. Senão não teria
saído com com ele. Porque o primo dele, na primeira
esquina já saiu fora. E aí a gente namorou uns três dias
e eu achei ele um cara muito esquisito, com livros de
vampiro, coisa baixo astral, um horror. Eu fiquei começando a achar meio esquisito.
CK: E ele era baixo astral?
Chris: Não, nem um pouco, era super divertido. Eu
só achei esquisito o livro de vampiro. Eu era super religiosa, eu sou super religiosa à minha maneira, né? Eu
sou católica, mas eu estudei em colégio protestante,
sempre tive total liberdade, mas sempre tive um interesse muito grande pela... Eu sempre tive muita fé,
desde criança eu ia na igreja e rezava, era apaixonada
pelo Sagrado Coração de Jesus. Então qualquer coisa
assim que eu visse de diferente, eu não achava legal.
Preconceito também, né? Logo terminamos e logo
depois voltamos. Foi no Réveillon. Ele ligou, eu estava
lendo a Bíblia, achei que aquilo ia afastá-lo definitivamente, e ele achou ótimo, porque ele gostava também, e aí nós fomos passar o Réveillon juntos. Nesse
meio tempo eu também já tinha terminado com o
outro namorado, porque ele descobriu que eu estava saindo com o Paulo. Fomos passar o Réveillon em
Cabo Frio, ele tinha uma casa lá, e a gente descobriu
que nessa casa tinha... Você sabe essa história?
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CK: Não.
Chris: A gente foi para lá e o Paulo dizia assim: “Essa
casa é esquisita, eu escuto uns barulhos...“.
CK: Era uma casa dele?
Chris: Era uma casa dele, que ele tinha comprado,
mas ele viu construir.
CK: Nessa época ele trabalhava na gravadora?
Chris: Isso, na gravadora. Essa casa era num condomínio, e essa casa, ela foi construída, a pessoa comprava e acompanhava a construção. Então era uma
casa nova, não era uma casa antiga, então não podia
ter fantasma. Normalmente é isso que a gente deduz,
né? E a gente foi num bar em frente – isso foi logo
no primeiro Réveillon, foi logo no início – a pessoa
do bar em frente perguntou se a gente morava no
condomínio, nas cabanas (falava as cabanas de Cabo
Frio). “Nós moramos”. “Ah! Vocês sabiam que aquilo
foi construído em cima de um cemitério índio, que
encontraram várias ossadas?”. Aí a gente olhou assim
um para a cara do outro – ele tinha sonhado nessa
noite que ele não podia dormir no cemitério, olha que
coisa! E logo depois a gente ficou sabendo que realmente tinha sido um cemitério de índios.
desse bar que esclareceu tudo, e logicamente nós não
passamos o Réveillon na casa.
CK: Ele levava isso muito a sério, ou fazia graça?
Chris: Levava super a sério.
CK: Era uma coisa tensa?
Chris: Nós levávamos muito a sério, porque como eu
te falei, eu tinha esse lado religioso, então a gente acabou abandonando a casa. Nunca mais fomos para lá e
depois de alguns anos a casa foi vendida.
CK: E vocês passaram aquela noite onde?
CK: E como era a casa? Era grande?
Chris: Não. Era redonda, de sapé. Tinha uma sala,
tinha dois quartos, tinha cozinha, era bem casa de
praia. E nessa noite ele tinha sonhado isso, que não
podia dormir no cemitério. “E como é que eu vou passar o Reveillon no cemitério? Como? Isso não é possível”. Eu fiquei lá pouquíssimo tempo, e foi esse rapaz
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sa dolupta tiost, ipsa
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Chris: A gente passou nesse bar que a gente estava.
E no dia seguinte a gente foi embora. Eu não lembro
onde foi que a gente dormiu, eu sei que lá a gente não
passou, a gente saiu fora mesmo. Então esse foi o nosso início. E logo depois levei a minha prancheta para
a casa dele. Porque eu fiz Belas Artes e depois eu fiz
Arquitetura, então eu trabalhava num escritório de
arquitetura, e eu trabalhava na prancheta – eu tinha
prancheta em casa, então essa foi a minha mudança.
A prancheta era a única coisa que eu tinha realmente.
CK: E você morava com os seus pais antes?
Chris: Eu morava com os meus pais.
CK: E era uma família mais tradicional?
Chris: Era uma família totalmente liberal.
CK: É que você disse que era super religiosa. Era uma
coisa sua?
Chris: Era uma coisa minha. Meu pai era devoto de
Nossa Senhora. No mês de Maria, todos os domingos
a gente ia à missa. A minha irmã detestava, eu adorava. O culto do colégio, todo mundo detestava, eu
adorava. Mas era uma coisa minha, porque a minha
família era super liberal. Meu pai era nordestino, mas
super liberal, intelectual, super cabeça aberta. Inclusive, eu estava falando, eu dormia com os namorados
na minha casa. Eu sei que hoje em dia isso é normal,
mas naquela época não era, e logicamente não tinha
nenhum problema, era a coisa mais natural.
CK: E eles gostavam do Paulo?
Chris: Adoravam.
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CK: Ou achavam esquisito?
Chris: Não, os meus pais adoravam ele, adoravam
conversar com ele. Mas é como eu falei, ele foi se
aproximando mais nessa época mesmo, depois que
eu comecei a namorar o Mário. Depois ele foi no meu
aniversário e lá ele fez um número de mágica.
CK: Que número era? Você lembra?
Chris: Era um número de adivinhação, que as pessoas
escreviam num papelzinho uma frase, e ele descobria
de quem eram as frases. Mas tem um truque nisso, e
foi super divertido.
CK: Mas era um truque?
Chris: Era um truque.
CK: E você sabia disso ou acreditou?
Chris: Não, eu sabia que era um truque, mas era impressionante, porque ele acertou todas as frases. E foi
a festa, entendeu? Ele animou a festa, foi super legal.
CK: Ele tinha essa coisa divertida também?
Chris: Ele era super divertido, nessa época ele tinha
saído da [gravadora] CBS, como ele te contou, e era
um período que ele não estava trabalhando, e a gente
ficava muito junto. Eu trabalhava, mas logo depois saí
do trabalho.
CK: Mas vocês viviam bem?
Chris: Sempre bem. O Paulo tinha vários apartamentos nessa época da música. O Paulo é super econômico, então tinha vários apartamento, tinha dinheiro
no banco.
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CK: Dinheiro não era um problema, nunca foi uma
preocupação?
Chris: Não tinha nenhum problema.
CK: Vocês moravam num apartamento legal?
Chris: Super legal o apartamento. Ele tinha outros
apartamentos alugados. Logo depois a gente comprou um apartamento bem grande, na Raimundo
Corrêa, onde a gente passou boa parte da nossa vida,
que era um apartamento super confortável, com jardim, muito parecido com esse. Inclusive a gente foi
para a Europa com esse dinheiro, e ele até falou: “Vou
gastar até o final”. Eram dezessete mil dólares, que
para a época – e para a gente que viajava sempre para
a Europa – calculando cinquenta dólares por dia, dava
perfeitamente. A gente tinha ­– o Paulo tinha viajado
muito nesse esquema. A gente chegou até a comprar
carro na Europa. A gente fazia tudo que a gente tinha vontade de fazer. Queria ir num show, ia, queria
ir numa boate, ia, queria comprar livro, comprava. É
lógico que não saía fazendo compra adoidado, mas
era tranquilo. Eu não lembro de nunca ter me privado
de nada. E era super divertido.
Mas eu pulei alguma coisa... Eu estava falando que
a gente morava num apartamento. Eu fui para esse
apartamento, que também tem outra história. Quando eu fui pra lá, eu morei um ano mais ou menos nesse apartamento. É uma gracinha esse apartamento.
que a mulher vê outros detalhes. Eu me lembro que
tinha muitas plantas, era super bem decorada, tinha
um sofá tipo alvenaria. Era uma graça o apartamento.
Ele é virginiano, então é super organizado.
CK: Não tinha, então, aquela coisa de hippie?
Chris: Não, tinha um pouco de hippie, mas essa fase
já tinha passado, era uma fase meio de transição, as
pessoas não eram tão hippies assim. Já era anos oitenta, e a época hippie foi bem antes. Mas é claro que
tinha uns resquícios, tinha as roupas indianas, que eu
adorava, tinha os tamancos.
CK: O Paulo é cuidadoso com casa assim, ou ele não
liga para isso?
Chris: Super cuidadoso, a casa é super bem arrumada. O Paulo é uma pessoa super organizada. Lógico
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CK: Como é que vocês se vestiam?
Chris: Era uma roupa normal. O Paulo trabalhava de
camisa, não de gravata, afinal ele trabalhava na gravadora. Ele usava muito xadrez, não usava preto, não.
Ele não gostava de preto. Eu que adorava preto – era
uma briga!
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CK: E ele não curtia que você usasse preto?
Chris: Ele não curtia, não. Quando a gente ia viajar e eu
ia de preto, ele logo falava: “Você vai viajar assim?”. “Eu
não vou trocar a roupa de jeito nenhum.”. Eu que gostava bastante, mas depois ele também adotou o preto.
CK: E você lembra de quando ele adotou o preto?
Chris: Acho que foi coisa de viagem mesmo, de que
é mais prático. Mas voltando, ele não estava trabalhando e eu estava trabalhando nesse escritório de arquitetura. E eu me lembro que um dia ele chegou no
escritório com o contador e nós abrimos uma firma
juntos. Aí eu saí do escritório, deixei de trabalhar. A
firma chamava Xogun. Era tipo uma prestação de serviços; ele escrevia para umas revistas. Quando eu digo
que não trabalhava, era trabalhar num lugar fixo, mas
ele trabalhava. Escrevia algumas matérias como jornalista, eu comecei a vender quadros, comecei a fazer
projetos de decoração, então a gente tinha essa firma.
CK: E não foi planejado. Ele um dia chegou lá com o
contador, foi isso?
Chris: Acho que tinha alguma coisa mais ou menos
combinada, eu não lembro bem. A gente saía muito,
a gente andava muito, andava o Rio de Janeiro inteiro,
a gente ia até o centro da cidade a pé. A gente tinha
muito essa coisa de andar, como a gente tem, só que
lá a gente andava o dia inteiro, e isso tudo era muito
divertido. Porque a gente saía, a gente conversava, a
gente ria, fazia as coisas juntos, entrava nos cinemas,
era super divertido. A gente passava o dia inteiro juntos. Acho que durante três anos a gente não se separou. Fazíamos tudo juntos; trabalhava junto, viajava
junto. E como eu estava te contando, esse apartamento, toda vez que eu entrava nele, esse apartamento do
Flamengo, todas as vezes que eu entrava no banheiro,
eu sentia uma vontade de suicídio. Até tinha uma coisa assim de ligar o gás, uma coisa horrível.
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CK: Mas acontecia ali, nunca tinha acontecido antes
com você?
Chris: Não. Algumas vezes eu tinha pensado, mas
quando eu era mais criança, sabe aquela coisa meio
de desilusão da vida? Quando você está passando da
infância para adolescência, e depois para a fase adulta, onde você tem aqueles conflitos, onde você vê que
o mundo não muda, sabe essas coisas assim?
CK: Mas você nunca tinha tentado o suicídio?
Chris: Não. A gente fumava e adorava conversar enquanto fumava, e a gente adorava conversar com o
porteiro, né? E a gente descia para conversar com o
porteiro, e um dia o Paulo perguntou: “Quem morava
antes lá no meu apartamento?”. Ele falou que era um
funcionário da PanAir do Brasil, que era um comandante ou alguma coisa assim, e ele suicidou-se no banheiro, ele ligou o gás e foi. Eu falei: “Eu não vou ficar mais
aqui também”. Foi igual à casa de Cabo Frio: “Vamos
embora”. No dia seguinte, a gente já tinha arrumado as
malas e fomos morar na casa dos meus pais. Voltei para
a casa deles. A gente já tinha comprado um outro apartamento, mas estava em reforma, então eu acho que
a gente ficou uns cinco meses na casa dos meus pais,
e depois a gente foi morar nesse apartamento novo. E
logo depois o Paulo já estava trabalhando na TV Globo
[como roteirista], que ele resolveu sair porque não estava contente, e a gente foi para a Europa.
CK: Como foi essa passagem pela Globo?
Chris: Ele foi convidado para escrever uns shows – ele
foi convidado para escrever os roteiros dessa linha de
shows, mas ele não estava nem um pouco feliz, tra108
balhando assim, escrevendo roteiros de programas,
porque tinha sempre essa ilusão de ser escritor – esse
desejo, não essa ilusão.
CK: Mas ele tinha esse desejo e ele sentava para escrever?
Chris: Não. Ele escrevia colunas, os roteiros para a
Globo, algum conto para alguma revista – ele tinha
coluna na Revista Amiga, era uma coluna de música,
tudo direcionado muito para a música.
CK: E ele tinha, por exemplo, um projeto de um romance, alguma história? Ele pensava que tipo de literatura ele queria desenvolver?
Chris: Não, não. Pelo menos ele não me falava nada.
Apesar que ele já tinha tido uma experiência anterior,
quando ele morava em Londres. Ele ficou o tempo inteiro lá tentando escrever um livro, e ele escreveu. Mas
ele chegou à conclusão que aquilo que ele escreveu não
tinha nada a ver – eu não sei por quê, eu acho que ele
tinha mandado para várias editoras na Inglaterra (mas
eu não tenho certeza disso, isso você tem que confirmar
com ele), mas ninguém respondeu. Aquele negócio que
você manda e ninguém responde. A aí o Menescal tinha
ido para Londres buscá-lo para voltar a trabalhar com
ele, eles eram super amigos, eles se adoram, e aí eles resolveram ir num pub, deixar os manuscritos lá para que
aquilo não ficasse ali dentro da gaveta, e que podia ser
que alguém descobrisse e achasse aquilo o máximo. Tinha todo esse lado romântico também. E nessa época
quando a gente viajou, eu me lembro que ele colocou
na minha mochila, eu me lembro que eu viajei com uma
bota que tinha um salto altíssimo e ele colocou na minha
mochila uma máquina pesadíssima de escrever portátil.
109
CK: Era aquela que tinha uma caixinha que fechava?
Chris: Exatamente. E quando a gente chegou em
Londres, a gente não pegou um táxi, a gente pegou o
metrô. E eu com aquela mochila pesada e com o salto altíssimo. Logo depois eu comprei uma bota baixa.
Mas eu detestava, porque eu achava que ninguém ia
me paquerar porque eu era muito baixinha. Iam me
achar horrível porque eu era baixinha. Não tem nada
a ver, né? É ridículo, mas eu achava isso. E eu lembro
que foi nessa viagem que mudou muita coisa, que o
Paulo encontrou o mestre dele, e nessa época a gente
estava nessa fase de transição de casa.
a gente estava fazendo uma experiência numa mesa,
fazendo uma canalização com o livro, né? A mesa começou a bater assim o pé no chão, então eu ficava
muito assustada com isso.
CK: E ficava com esse sentimento só para você, ou
você verbalizava isso para o Paulo?
Chris: Eu não falava nada, eu ficava na minha, mas
com a sensação de que estava cometendo algum pecado. Ao mesmo tempo, eu achava que era legal, era
uma contradição minha. Por exemplo, tarô – logo depois eu aprendi a jogar tarô.
CK: Mas você, ali nas “Valkírias”, você rechaçava um
pouco tudo isso, né?
Chris: Sobre o quê, sobre a magia?
CK: A magia, tudo isso...
Chris: Não é que eu questionasse. Como eu te falei, eu
era fundamentalista cristã, então qualquer coisa – inclusive nesse apartamento, é importante contar isso,
o Paulo, como ele tinha muita curiosidade, depois da
prisão, depois daquela coisa de casado, ele ficou casado com a Cecília, e durante os três anos ele nunca
tocou no lado espiritual, ele ficou muito assustado.
Então quando a gente se encontrou, a gente teve –
como eu tinha esse lado muito forte, e ele também,
foi um encontro assim. Mas só que o Paulo sempre
teve umas outras buscas. Eu me lembro que a gente
comprou um livro do Alan Kardec, e a gente ficava
lendo. Mas eu te confesso que isso era para mim um
pouco de tortura, porque eu achava que era pecado
esse negócio de psicografar. Eu me lembro que um dia
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sum dolu
CK: Vocês foram atrás de tudo?
Chris: É. Apesar de que o tarô foi um pouco mais na
frente, e eu tinha preconceito, sim, o que é ridículo,
porque não tem nada a ver. Eu lembro que teve uma
época que eu frequentava – mas isso muitos anos
depois – o movimento carismático da Igreja Católica,
que é super radical também, e eu lembro de um dia
que eu não fui. Porque eu era uma pessoa que ia para
rezar, para ir antes à igreja e receber as pessoas, que
é super parecida com a magia tradicional também,
que você tem todo um lance de preparação do lugar.
E eu me lembro que teve um dia que eu não fui na
igreja, e tinha um amigo meu, um amigo de infância,
que ia comigo sempre, e ele me telefonou dizendo:
“Christina, ainda bem que você não veio, porque teve
umas mulheres, nessa reunião, que subiram no altar
e começaram a falar do Paulo, e falar que os anjos da
igreja não eram os mesmos anjos do Paulo, por causa
de “As Valkírias”.
CK: Aí já tinha saído o livro.
Chris: Já, isso foi bem mais na frente. E aí eu senti na
pele a coisa do preconceito. Eu fiquei furiosa, eu fui lá
e pedi para o cara se retratar, o coordenador do grupo
de oração, que era um rapaz jovem, mas com a cabeça fechada – não o padre, o padre era maravilhoso, o
padre da igreja, que é o padre José Roberto, que adora
o Paulo. Inclusive quando ele foi dar o depoimento
dele lá na igreja, ele falou de um islâmico que fazia o
jejum na sexta feira, eu acho que as pessoas devem
ter ficado pensando assim, “que padre é esse?”. Eu não
pensava assim, não, mas eu estou dizendo o grupo, e
eu me lembro que alguns anos depois, esse rapaz, eu
112
encontrei com ele, e ele veio na igreja. Eu estava na
missa, ele veio pedir perdão pelo que tinha acontecido. Isso foi uma coisa muito forte, nunca ninguém me
pediu perdão. Eu falei que já tinha esquecido aquilo,
que perdão nada! Então, eu tinha muito medo dessas
experiências, mas era mais por preconceito. Até tinha
curiosidade, mas era um preconceito porque estava
mexendo com alguma coisa que eu não deveria estar
mexendo. Não é que eu não acreditasse...
CK: Mas te assustava.
Chris: Me assustava muito. Eu ficava com terror. Mas
nunca falei nada para ele. Se eu falei, falei depois.
CK: E você se confessava, por exemplo?
Chris: Não. Essa coisa de confessar, de padre, isso não,
eu só confessei na minha primeira comunhão e nunca
mais. Eu não era aquela católica tradicional. Eu tinha
curiosidade de ir a vários lugares. Eu gostava muito
do lado protestante porque tem muito o dom da palavra, os pastores normalmente falam super bem, é
muito baseado na Bíblia, então eu gostava muito. E
normalmente os padres da Igreja Católica, eles não falam. Tem padres maravilhosos, mas não falam como
os pastores. É lógico, a Igreja Católica tem todo um
ritual muito mais rico, muito mais forte, que é a transformação do sangue de Cristo, e do corpo de Cristo,
mas eu gostava da leitura da Bíblia e da palavra.
CK: E você falou desse dia da mesa batendo no chão.
Foi o primeiro impacto mais...
Chris: Não. Eu psicografava, e essa coisa, então eu ficava muito assustada, mas eram experiências. Às ve113
zes, se você não sabe lidar com essas coisas – lógico
que o Paulo sabia, mas eu não tinha essa consciência.
CK: Isso você admirava no Paulo?
Chris: Não. Eu ficava assustada. O que eu sempre admirei muito no Paulo é a coragem dele, a perseverança. Ele era um homem, sabe aquela coisa? Tanto que
no momento que a gente ficou junto, eu pensava isso
– “Ele é um homem”. Sabe aquela pessoa que você
confia? Aquela pessoa que você diz: “Ele é uma pessoa
que eu amo, mas que eu confio também?”. Lógico, a
gente estava muito no início de um relacionamento, e
o amor vai crescendo ou vai diminuindo.
do. Ele não acha que ele é. Mas não é ciúmes de homem, é da minha atenção, então eu controlo isso. E
eu era super ciumenta. Também a gente teve aquela
educação que você casa e fica só com aquela pessoa,
então eu era super ciumenta, mas eu fui aprendendo
a não ser, para poder viver bem. E o Paulo sempre foi,
desde o início. Isso que eu acho legal, porque às vezes
as pessoas se modificam porque o relacionamento já
CK: E você sentiu que só crescia?
Chris: Eu sentia que só crescia, e tinha a admiração
também. Eu comecei a admirar muito a coisa do dia-adia, apesar de que nessa época a gente curtia muito,
mas era um posicionamento, não era um cara babaca, não era um bobo, não era um filhinho de papai,
não era uma pessoa perdida. Ele podia estar naquele
momento com os seus conflitos, mas ele procurava.
Ele sempre viveu intensamente. Eu fui aquela garota
super protegida, de uma família super liberal e isso
algumas vezes eu acho que te acomoda. Minha mãe
falava: “Vamos para o cinema. Não vai para o colégio,
não”. Minha mãe casou com 16 anos, era muito garota,
era uma irmã. Eu não sentia a minha mãe como mãe.
CK: E o Paulo era ciumento? Porque ele parece ciumento, apesar de dizer que não é.
Chris: Ele é super ciumento, mas ele não admite isso,
não. Se você perguntar ou falar, ele vai ficar chatea114
115
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
está desgastado, ficou muito tempo junto com aquela
pessoa, então perdeu o interesse, ou a pessoa envelheceu, engordou... E o que eu sinto no nosso casamento
é justamente o contrário; a gente está cada vez mais
unido, a gente se gosta muito. Lógico, isso não quer
dizer que amanhã não saia, não vá fazer alguma coisa,
vá viajar com outra pessoa – não estou dizendo isso.
Mas eu sinto que cresceu, e isso é bom, você às vezes
compara com outros casamentos e vê que é triste.
CK: Uma coisa que se esvazia.
Chris: É, porque se você não presta atenção – que
pode acontecer, porque tem um período que você
não está querendo prestar atenção na pessoa –, não é
porque desgastou, é porque a gente é assim. “Ah! Não,
vou viajar, vou sair com outra pessoa”– não é porque
não gosta mais, isso você vai aprendendo no decorrer
do relacionamento. Até porque naquele momento
você tem uma necessidade de fazer, você está querendo ver outras pessoas, trocar ideias com outras
pessoas. Não é que está te substituindo, porque você
ficou velha. Eu acho isso super positivo.
CK: Você acha agora, você tem essa alegria. Mas no
começo...
Chris: Não, no começo eu tinha ciúmes. Eu sou ciumenta. Normal. Quer dizer, não é normal ser ciumenta. É horrível ser uma pessoa ciumenta. Mas eu aprendi a não ser, numa boa.
CK: Isso foi conversado ou você resolveu internamente? Da mesma maneira que você tinha esse estranhamento com a magia, com o que era novidade e depois...
116
Chris: Internamente mesmo. A gente vai entendendo
como é natural, é uma coisa natural da vida, não é
porque você casou ou porque você encontrou uma
pessoa, que o mundo acabou. Isso serve para ele,
como para mim também. Eu acho até saudável. Por
exemplo, eu conheço pessoas que deixam de fazer as
coisas. Não é porque elas tenham medo, ou porque
elas não queiram fazer, é porque ela não quer que o
outro faça igual, entendeu? Então elas deixam de viver em função de que o outro – “Ah! Imagina se eu
vou chegar três horas da manhã em casa! Eu vou dar
chance para o meu marido chegar às três horas da
manhã em casa também”. Esse tipo de coisa que a
gente vê por aí. E eu não vi isso na minha família, porque o meu pai viajava muitas vezes sozinho, então é
uma coisa super natural.
CK: E vocês são muito companheiros agora, e foram
também nesse começo?
Chris: A gente é muito companheiro. E como eu te
disse, nesses primeiros três anos, a gente nunca dormiu uma única noite separados, e a gente sempre trabalhou em casa juntos. Nós nunca tivemos um trabalho fora de casa. É claro que tem as viagens, então
você tem a necessidade de sair também. Porque as
outras pessoas saem de manhã, vão para o escritório,
encontram outras pessoas, depois do escritório vão
tomar uma bebida, vão tomar um café ou saem com
outras pessoas. A gente, não. A gente fica muito grudado. Então chega uma hora que eu acho que tem
que... Que é bom até, mesmo que às vezes a gente
fique “Ai, estou morrendo de saudade!”. Mas acho que
isso também é bom, né?
117
CK: Nos livros tem essa coisa da busca espiritual muito presente, como se vocês saíssem para viajar em
busca daquilo. Mas vocês também se divertiam, iam
para shows, compravam livros, vocês se divertiam
muito juntos, né?
Chris: sempre, a gente se diverte muito, e até hoje.
CK: E quais são esses momentos de diversão?
Chris: Atualmente, quando a gente sai para andar. A
gente anda duas vezes ao dia, todo dia. A gente conversa muito nesses momentos. Tem épocas que todas
as noites a gente assiste a todos os filmes, tem momentos que a gente está interessado em fazer outras
coisas, de trabalho mesmo. Às vezes, a gente trabalha
à noite. Mas a gente se diverte muito. É como o Paulo
estava te contando; aquela coisa de marchar na rua,
aquilo foi divertidíssimo.
CK: E vocês sempre fizeram isso?
Chris: A gente sempre fez isso.
CK: Por exemplo, no caminho de Santiago, tinha a
coisa espiritual, tinha a busca de uma...
Chris: Porque o Paulo, ele foi com o guia. Eu não fui
com ele, eu só fui depois para entregar a espada.
CK: Então ali tem a viagem dele, mas não tem a sua.
A sua, como foi?
Chris: Eu primeiro fui para Madri, depois fui para o
Cebreiro, para esconder a espada. E no final ele ficou
três meses ou quatro meses em Madri. Eu voltei para
o Rio, eu não fiquei. Mas aí depois eu voltei. Ele ficou uns seis meses, eu acho. Mas eu voltei a Madri
118
algumas vezes, quando ele estava lá. Acho que umas
duas vezes. E numa dessas vezes que eu estava indo
embora, que veio essa coisa do escritor, eu falei assim: “Ah, Paulo, você quer ser escritor, então escreve
um livro. Eu também quero ser pintora, eu tenho que
pintar”. Eu até achava engraçado, porque nessa época
eu tinha um centro cultural no Rio, chamado Avatar,
e eu fazia toda essa parte. Nós éramos em três sócios,
a gente tinha uma livraria, tinha um bar, tinha várias
coisas de consulta, tarô, acupuntura, não sei o quê.
E toda essa parte das pessoas, eu entrevistava, para
sentir se eu gostava ou não gostava. E sempre que saía
uma reportagem do centro cultural, ou qualquer coisa assim, ou alguém me apresentava, eu era a artista
plástica – que não pintava.
CK: Ah, você não pintava?
Chris: Não, eu não pintava. Porque eu trabalhava
muito, saia de casa de manhã e só voltava três horas
da manhã, uma hora da manhã, era direto, porque a
coisa ficava direto aberta. Então eu trabalhava muito. Isso foi numa fase em que o Paulo estava viajando
muito, a minha outra sócia era cineasta, mas não fazia filme nenhum, então eu ficava com isso na minha
cabeça. E a terceira sócia era uma advogada, mas que
não advogava. Hoje em dia ela é até juíza. E eu pensava: “Se eu quero ser artista plástica, eu tenho que
pintar”. Eu pintava, eu até fiz uma exposição lá nessa
época, foi a primeira. Mas já era em 90 isso, eu já tinha
voltado do Caminho de Santiago.
CK: E isso faz uns vinte anos. Então foi mais ou menos
com quarenta, que foi na mesma época do Paulo.
119
Chris: É, o Paulo fala que eu imito ele em tudo! Eu penso
assim: “Deu certo com o Paulo, então eu vou fazer igual”.
Eu fiz o caminho com trinta e sete, trinta e oito anos,
mais ou menos como ele fez, só que eu fiz sozinha.
CK: Quanto tempo você levou?
Chris: Trinta e oito dias. E depois que eu voltei, eu
fiquei em Madri um tempo, sozinha, aí comecei a pintar. Aí quando eu voltei para o Rio, eu continuei com
o Avatar. Tinha uma editora também – que o Paulo
já não tinha mais a editora, a editora era só minha – e
aí eu fiz uma exposição lá no Avatar mesmo. Lá tinha
sala de exposição, era super legal o lugar.
CK: Onde era?
Chris: Era em Botafogo.
CK: E foi uma frustração ou não?
Chris: Não, acho que não. Ah, deve ter sido, mas não
foi nada muito sofrido. Não que eu me lembre. Normalmente você tem muita dificuldade de distribuição dos livros, você tem que ter um distribuidor – e
o meu esquema era totalmente diferente, era mais
reembolso postal, venda pelo correio.
CK: E você tem ideia de quantos exemplares do “Arquivo do Inferno” foram impressos?
Chris: Não, não lembro. Deve ter sido impresso no
máximo dois a três mil, eu acho – o que é bastante. E
a gente vendeu, mas a gente vendia mais mala direta.
CK: E você achava bom?
Chris: Adorava.
CK: Existe ainda?
Chris: Não, não, acabou há muito tempo.
CK: Mas o espaço existe ainda?
Chris: Não. E eu falei para o Paulo: “Você quer ser escritor” – a gente estava andando em Madri, eu estava
voltando para o Brasil – “Você tem que escrever um
livro”.
CK: Mas nessa época ele já tinha publicado “O Arquivo do Inferno”.
Chris: Já, mas “O Arquivo do Inferno” ele publicou na
nossa editora.
CK: E não aconteceu nada.
Chris: Não.
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CK: Você leu e gostou?
Chris: Eu gostei. Agora não me lembro mais das histórias, mas tinha várias coisas da nossa viagem, tinha
muita coisa que a gente tinha conversado, que ele tinha passado para o livro de uma maneira diferente,
mas era uma coisa que a gente tinha conversado na
viagem. Mas eu realmente não me lembro, teria que
reler. Nesse meio tempo teve o “Manual do Vampirismo”, que o Paulo também escreveu.
CK: Ele não te assustava mais?
Chris: Não me assustava mais, apesar que eu fiquei
um pouquinho radical novamente, quando voltei
para fazer os carismas da igreja, que eu adorava. Porque eu gosto muito dessa coisa de cantar, do Espírito
Santo – eu acho que isso faz muito bem.
CK: E não tinha um conflito para você? O inferno, o
Vampirismo, o Movimento Carismático?
Chris: Não, aí já não tinha mais. Graças a Deus que
eu encontrei o Paulo e abri a cabeça. O Paulo já tinha
feito um curso de vampiro.
CK: Esses assuntos não mais te assustavam, mas te
interessavam?
Chris: Me interessavam. Agora a coisa que mais me
interessava, que o Paulo tinha, que ele tinha trazido,
que ele fazia coleção desde criança, era um policial.
Ele li toda a coleção. Eu acabei com os livros, porque
você vai lendo, vai dobrando a página. Eu li toda a coleção; uma delícia aqueles livros.
Normalmente a gente não lê as mesmas coisas, às vezes eu leio algumas coisas que ele não lê. Em cinema
122
a gente tem muita afinidade, tanto que às vezes eu
vou assistir o filme antes e já falo para ele “Você não
vai gostar. Não adianta nem ir ver”. Apesar que de vez
em quando a gente discute também. Mas a gente tem
muita afinidade com cinema – eu sei o que ele vai e o
que não vai gostar. Agora com livro, não. Eu prefiro ler
romance, agora eu li toda essa coleção do Stieg Larsson – Você leu? É sensacional.
CK: E ele gosta mais de biografias?
Chris: É. Biografia eu adoro também, mas ele gosta
mais de não-ficção. Ele teve uma fase que leu todos os
livros de guerra, terrorismo, apesar que isso eu gosto
também. Mas ele gosta mais de não-ficção.
CK: E no livro “As Valkírias” ele fala muito do que vai
dentro da sua cabeça. Aquilo é interpretação dele ou
vocês conversavam muito mesmo?
Chris: A gente conversava muito.
CK: Você expôs tudo aquilo para ele?
Chris: Devo ter exposto.
CK: Você se reconhece ali?
Chris: Me reconheço totalmente no “As Valkírias”. Logicamente eu não vou dizer cem por cento, porque
tem todo o lado do escritor. Mas vamos dizer noventa
por cento.
CK: Mas partiu das conversas de vocês durante a viagem ou vocês conversavam muito durante a escritura?
Chris: A gente conversava muito. No deserto ele ficou
quarenta dias...
123
CK: Mas quando ele estava escrevendo você participou do processo?
Chris: Não. Quando ele está escrevendo eu não participo, não.
CK: Aí foi a interpretação dele, lembrando das conversas de vocês?
Chris: Antigamente eu até lia. Enquanto ele estava
escrevendo, eu lia. Mas depois eu não lembro quando
parou isso, porque eu começava a dar muito palpite
– “Não, chega!”.
CK: E no “Arquivo do Inferno” e no “Manual do Vampirismo” você deu palpite também?
Chris: Ele não escreveu o “Manual do Vampirismo”.
Foi outra pessoa que escreveu no lugar dele. Ele não
era nem um pouco a fim de escrever sobre o assunto,
era uma coisa que ele já tinha passado, e tinha um...
Uma pessoa que ele chama de “ex escravo”, que escreveu junto com o Nelsinho Liano, que é super nosso
amigo, que mora no Acre agora. Nessa época ele viveu muito com a gente.
CK: O Nelson?
Chris: Nelson Liano. O “Arquivo do Inferno” o Paulo
escreveu, o “Manual do Vampirismo”, não escreveu, e
o primeiro livro que ele escreveu foi “O Diário de um
Mago”, mas aí ele estava viajando, e ele escreveu em
Madri, e também não era nada daquilo, também jogou fora. Ele não guarda manuscrito, ele joga fora. Ele
guardou os diários, mas isso da fase da adolescência
e infância.
124
CK: E ele tinha as anotações da viagem – pelo menos
ele fala.
Chris: Eu não sei.
CK: No livro ele fala que sim.
Chris: Então deve ter feito. Isso eu não sei realmente.
Ele jogou fora. E quando ele escreveu o Diário de um
Mago, que eu me lembre, foi no Carnaval. Ele foi muito
produtivo no Carnaval, porque a gente não fazia nada
no Carnaval. A gente foi para a casa da minha mãe –
“Ah, vamos mudar de ares!” – eu acho que foi na casa
da minha mãe que ele começou a escrever o “Diário”.
CK: E ele escreveu rápido também ou não?
Chris: Escreveu rápido. Mas não foi só durante o Carnaval, depois ele continuou escrevendo. Eu não me
lembro. Eu sei que “O Alquimista” foram 15 dias. Eu
sempre acompanho muito porque ele está escrevendo e eu estou em casa – ele não sai de casa.
CK: E como faz? Ele não atende telefone? Como funciona?
Chris: Nesses primeiros ele ficava em casa. Deixa tentar me lembrar, apesar que ele não trabalhava o dia
inteiro, a gente saía para andar e fazer outras coisas.
No “Vencedor Está Só”, eu não estava em casa, ele escreveu em Paris. E os outros livros, ele escreveu um
em Saint Martin. Ele encontra as pessoas. Não tem
muito essa coisa, não. Mas acho que nos primeiros –
“O Diário do Mago” – a gente ficava em casa, ele só
escrevia 4 horas por dia – precisa confirmar isso com
ele – à noite normalmente, eu estava sempre perto,
ou estava no mesmo escritório dormindo no sofá, ou
125
lendo, ou no quarto. Com “O Alquimista” também foi
a mesma coisa, “Brida” também deve ter sido mais ou
menos assim, porque eu também não me lembro. E
no final, sempre eu leio. Eu não sei se “O Diário de um
Mago” eu fui lendo aos pedaços. No início eu ia lendo.
CK: E que tipo de palpite você dava?
Chris: Eu só lembro de um específico, que foi o do
“Rio Pedra”, que é uma experiência muito nossa, apesar de que eu não tenho nada ver com a Pilar, não,
que eu não gosto de personagem feminino que fica
enchendo o saco do cara, essas coisas, estou dizendo
da experiência espiritual do livro, da Imaculada Conceição, essa coisa da energia, da Grande Mãe, é uma
experiência muito nossa, que a gente viveu. Aquilo
que você estava falando: você escreve o que você vive,
e aquilo foi tudo vivido, entendeu? De sentir levitar
mesmo, subir numa montanha, essa coisa toda, de
entrar numa outra energia. Mas aí eu dei um palpite,
ela se apaixona pelo personagem, e eu falei: “Por que
que não coloca” – eu com esse meu lado de igreja, eu
falei – “Eu acho que seria mais interessante, se o cara
fosse padre”. Foi um comentário, assim. Esse aí ele trocou, mas às vezes eu falo e ele não troca, não. E tem
outras coisas agora que eu dei palpite mas que agora
eu não lembro. Mas nada muito...
tão legal uma mulher ser correspondente de guerra”, a
gente tinha conhecido a Christina Lamb, aí eu dei essa
ideia de ser correspondente de guerra e ele colocou
também. Umas coisas assim, entendeu? Ou eu digo
que eu não gosto. Por exemplo, ele escreveu um livro,
um que ele estava escrevendo antes do “Onze Minutos”, que ele queria escrever um livro sobre sexo, que
eu não gostei. Ele estava no início, muito, e eu falei “eu
não gosto desse livro, não”. O “Onze Minutos” acho
que foram dois livros depois, mas era uma ideia que
ele já tinha antes de escrever, mas ele não tinha encontrado o caminho. E o “Onze Minutos” é maravilhoso.
CK: Voltando para “As Valkírias”, que é uma experiência explicitamente de vocês, que tem o nome de vocês e tudo – te incomodava de alguma maneira? Porque uma coisa é você se reconhecer no personagem,
que não é você, que é uma correspondente de guerra,
CK: Nada muito estrutural.
Chris: Por exemplo, “O Zahir” é um livro que eu me
vejo muito, me reconheço muito. Porque ele fala do
casamento, então eu me reconheço muito. Ah, e o
negócio da correspondente de guerra, eu falei “pô, ela
podia ser uma correspondente de guerra – porque é
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
e outra coisa é ter ali explicitamente o teu nome, a
experiência com o teu marido. Em algum momento
vocês questionaram isso?
Chris: Não, a gente nunca questionou isso, não. Mas
eu tinha uma certa aflição, quando eu li a primeira
vez eu – porque às vezes eu leio três ou quatro vezes
o livro: quando faz, depois quando sai impresso. Nem
sempre. Mas me dava uma certa aflição, de eu me reconhecer também. “O Zahir”, nem tanto, porque eu
reconheço, mas é mais distante, porque tem algumas
coisas que não tem nada a ver. Mas “As Valkírias” eu
tinha muita aflição.
CK: Os nomes de vocês, a descrição de vocês, é uma
exposição imensa. Vocês chegaram a conversar, o
Paulo chegou a consultar você sobre isso, era uma decisão conjunta ou foi um susto?
Chris: Não, eu li. Eu fui lendo o livro.
CK: Mas você já sabia antes que seria assim?
Chris: É – ele começou, a gente tinha acabado de viver aquilo no deserto, e aí ele começou – não, ele antes das “Valkírias” ele escreveu “Brida”. Demorou para
escrever. Ele deve ter começado, eu devo ter começado a ler. Mas me incomodava, sim.
CK: Mas você não falava também?
Chris: Não me lembro se eu falei alguma coisa, realmente eu não me lembro se eu falei “Ah, não quero”,
ou qualquer coisa assim. Realmente, eu não me lembro. Nem devo ter falado, né? Mas me incomodava.
Quando eu começava e ler assim e dizia “aqui sou eu”.
Mas logicamente que tem o lado do escritor, né?
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CK: Tem um norte da viagem – o assunto é sempre a
questão espiritual. Naquela viagem que vocês fizeram,
era sempre assim ou tinha um tempo para vocês se
divertirem também?
Chris: A gente se divertia muito no deserto. Quando eu fui para o deserto, quando o Paulo falou “ah,
eu vou ficar quarenta dias no deserto”, eu disse assim
“Ah, meu Deus, boring! Ai, isso vai ser chato. Deserto!”.
Olha, o deserto é um lugar que tem a maior vida! Porque você vê que como é tudo muito deserto mesmo,
muito árido, você vê a vida brotando da terra. Então a
gente aprendeu, por exemplo, a gente andava sempre
todos os dias, o lance que a gente andou sem roupa, a gente quase morreu ali. Então eu aprendi todos
os nomes das flores do deserto, todos os cactos, que
de vez em quando eu ficava emaranhada num deles
também. Tinha um tal de cholla, que pegava que nem
pompom, era a coisa mais linda! Então eu sabia todos
os nomes das plantas do deserto, a gente encontrava
muitos rastros de cobras – isso tudo a gente se divertia muito! Os coiotes, a gente encontrava coiotes, que
eu não tinha tanto medo – lógico, eu ficava assustada, acho que eu até devia ter mais medo, que coiote
não é cachorro, né? De vez em quando a gente ia para
um motel daqueles de deserto, e eu tomava banho de
piscina no deserto. A gente conheceu vários lugares
super interessantes como o Deserto Pintado, que ele
se chama Paleta do Pintor – então tinha tudo a ver
comigo. Ele tinha a terra de todas as cores. Aí tinha
um deserto que era todo de fóssil, que era o Joshua
Desert. Aí tinha o Vale da Morte, que tinha todo um
lago de sal imenso. Então foi maravilhosa a viagem,
maravilhosa. Logicamente que a gente se divertia, na129
morava ao ar livre, transava ao ar livre. Eu me lembro
que eu fiquei super queimada, eu só andava de shorts
e tênis. Era total liberdade. Eu lembro que a gente voltou para uma cidade, eu não sei se foi Los Angeles ou
São Francisco, e eu dizia: “Ai, eu não quero ficar aqui,
eu quero voltar para o deserto!”, sabe? Você fazia pipi
em qualquer lugar, era muita liberdade. Inclusive teve
um dia que a gente estava no carro e subimos uma
montanha e a gente ficou no final da tarde vendo o
pôr-do-sol, aí a gente colocou umas músicas maravilhosas e ficou ali escutando as músicas.
CK: Que tipo de música?
Chris: A música que eu me lembro mais no deserto,
que a gente escutou muito, porque estava fazendo
muito sucesso – porque a gente escutava muito rádio
também – que foi aquela “Don’ t Worry, Be Happy” à
capela. Essa música marcou muito, ela estava fazendo
muito sucesso na época.
CK: Que ano foi isso?
Chris: Oitenta e oito, oitenta e nove, quase noventa.
E a gente ficava em cima do carro, no capô, olhando aquele pôr-do-sol, aquela coisa de total liberdade,
aquele deserto imenso, maravilhoso, lindo, e a gente
começou a ver umas luzes. A gente viu os discos voadores no deserto. E depois a gente viu também treinamento de guerra, que a gente achou que era disco
voador. Numa outra cidade que era reserva militar. Eu
lembro que o Paulo estava lendo um livro de ufologia
também, e a gente sempre achava que sempre ia aparecer um disco voador.
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TÍTULO #05
Christina Oiticica, fevereiro de 2010
CK: Você falou do disco voador no deserto, como foi?
Chris: Foi sensacional.
CK: Foi a primeira vez para você?
Chris: Eu não sei se foi a primeira vez, porque eu já vi
lá em Copacabana também. Porque eu sempre tive
muita vontade de ver e eu nunca tinha visto. E aí um
dia o Paulo estava no jardim, nesse apartamento da
Raimundo Corrêa – quando você for no Rio, você vai
lá nesse apartamento, porque foi ali que o Paulo escreveu “O Diário de um Mago”.
Então, o Paulo estava no jardim e eu estava assim
na sala, e ele começou “Chris, Chris!” – eu sabia que
era para ver um disco voador, sabe quando você tem
aquela intuição? Eu saí correndo, aí vi aquilo – tsch,
tsch, tsch, tsch, tsch! – no céu. Mas eu não sei que
época foi essa.
CK: E você já acreditava?
Chris: Eu acreditava. A gente acredita em disco voador. Acho que existe, porque – não é possível, né?
CK: Não, eu pergunto se você acreditava, antes do
Paulo?
Chris: Sim. Aquela coisa que você falou do “Eram os
Deuses Astronautas”, eu li todos aqueles livros, sem
conhecer o Paulo.
CK: Você tinha esse pudor por ser muito católica mas...
Chris: Eu tinha esse pudor, mas também eu não era
careta. Eu tinha todo esse lado religioso, mas acreditava em disco voador. Acho que isso não tem nada
a ver. Isso eu não sentia, não achava que era pecado!
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
Eu achava que essa coisa de Espiritismo, de macumba,
isso eu achava meio esquisito, sabe essas coisas? Eu
sempre achei, achava – ficava meio assustada porque
você mexe com umas energias que são diferentes, né?
E você vê que existe mesmo, que incorpora, e logicamente que no nosso dia-a-dia também acontecem
coisas que são totalmente fantásticas, e que as pessoas não acreditam, né, normalmente. As pessoas não
acreditam – por exemplo, eu acredito nos santos, de
rezar, de fazer promessa, fazer novena. Eu rezo sempre, todo dia, eu rezo um terço todos os dias – a vida
inteira eu fiz isso, só quando eu esqueço – esqueço,
não, eu durmo, porque eu rezo durante a noite, às 6
horas da manhã. Eu faço novenas, eu tenho feito novena agora direto, peço as coisas e consigo. Aí eu faço
para o Paulo, ele me pede as coisas também, mas tudo
na base da reza. Eu acredito, sim, em todas as manifestações, dos santos, dos anjos, que eu vejo. Eu não
sou vidente, tem pessoas que são videntes, que tem
esse dom da vidência, eu não tenho esse dom, mas eu
sinto. Agora eu acho que eu não tenho medo hoje em
dia – você tem que estar sempre vigilante nas coisas
para você não ser tentada. Aquela coisa do demônio
mesmo, porque tem certas coisas que você tem que
ter o discernimento que não é coisa de Deus. Até, por
exemplo, você ficar com medo. Às vezes acontece, eu
acordo de noite morrendo de medo de alguma coisa
e isso te trava na vida, isso te faz diminuir, então isso
não é uma coisa boa, isso é uma coisa do demônio.
Uma coisa simples, aquela coisa do dia-a-dia mesmo.
Tinha uma época que eu acordava todos os dias de
mau humor, e eu não sabia porque eu acordava de
mau humor, as pessoas falavam comigo, e eu queria
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bater nas pessoas, porque eu acordava de mau humor. Depois eu ficava ótima, mas acordava com um
mau humor... Então eu fiz uma promessa para nunca
mais ter mau humor, e nunca mais tive mau humor.
Aí eu vejo – o tempo passou, eu de super bom humor
de manhã – e eu falei “pô, você mudou... Ah, é porque
eu fiz a promessa!”. Então, essa coisa do lado espiritual, ele está presente vinte e quatro horas do nosso dia,
não tem uma separação. Então, por exemplo, quando
eu leio qualquer livro, lógico que eu tenho que gostar
do livro, tenho que ter afinidade com o livro, mas se
eu acho que estou lendo aquele livro, naquele momento, é porque aquele livro tem uma coisa para me
dizer, que é importante para o Paulo, que é importante para as pessoas que estão do meu lado, que eu tenho que compartir, e tenho que dizer “tem essa dica”.
E até na minha própria atitude – qualquer coisa que
eu faça, qualquer email que eu recebo, até mesmo de
trabalho, de um amigo, de alguém que eu reencontre.
Então acho que eu posso dizer que na nossa vida você
ser religioso, você ter um caminho cristão ou você
acreditar em alguma coisa, ou você ser da Umbanda,
isso esta dentro do coração da pessoa, você não pode
querer que a pessoa...
CK: Não sente mais os preconceitos, hoje em dia, em
relação a algumas coisas que você sentia antes?
Chris: Sim. Eu posso não me identificar com determinadas coisas, tem certas coisas que você não se
identifica. Mas a busca espiritual é individual de cada
um. Eu acho que se você sente com o coração, porque
você não pode enganar a Deus, até a você, você pode
enganar, mas a Deus você não engana.
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CK: O Paulo tem essa fama, essa história de loucura,
mas ele é super certinho, né? A Mônica até me falou
uma vez que vocês duas ficavam imaginando que, na
verdade, o Paulo ficava numa biblioteca e inventou
toda essa história para a vida ele.
Chris: Exatamente!
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sum dolu
CK: você tem essa sensação? Esse Paulo que você conheceu, já tinha essa casa toda organizada, essa vida
regrada, essa disciplina, ou você viveu um pouco da
loucura com ele?
Chris: A gente viveu um pouco da loucura. Viveu um
pouco não, viveu muito na loucura.
CK: E que loucura era essa?
Chris: Eu embarcava junto. Até essa coisa de você ficar experimentando – por exemplo, essa coisa de psicografar é uma coisa que eu nunca tinha feito antes e
que eu não faço mais.
CK: Mas vocês faziam sozinhos, o ritual, ou tinha bebida, ou tinha alguma droga que levava vocês para
outro estado?
Chris: Nos primeiros anos de casamento, a gente fumava maconha, muito. Todo dia. Mas fumava, assim,
de noite. Não era o dia inteiro. Às vezes até podia
fumar durante o dia, mas o Paulo, ele é virginiano, é
tudo [Chris faz com a mão um sinal que indica “regrado”]. Álcool não, álcool ele não toma.
CK: Era maconha, a droga de vocês era a maconha?
Chris: Sempre foi. Eu experimentei – mas o Paulo não
tomou – eu experimentei ácido nessa época que a
gente foi para Amsterdã.
CK: Cocaína nunca?
Chris: Não, cocaína, eu já tinha tomado antes, muito
antes quando era garota, com treze, catorze anos –
tinha um namorado que – maconha também, tudo
isso eu já tinha feito antes do Paulo. Eu tinha todo
esse lado religioso, mas não era nem um pouco careta, eu parecia certinha.
A minha sobrinha diz assim, a Paulinha: “Tia, você era
muito careta!”. Mas eu não era muito careta, não. Eu
já tinha fumado, eu fazia Belas Artes, eu bebia muito.
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CK: O que você bebia?
Chris: Ah, eu bebia tudo, qualquer coisa eu bebia. Eu
não era nem um pouco certinha, era super indisciplinada no colégio, tinha mil problemas no colégio, tanto que meus pais me emanciparam, eu detestava o
colégio. Então eu fiz artigo noventa e nove no ginásio,
eu estudei até certo ponto, até o segundo ginasial, aí
o meu pai me emancipou com dezesseis anos, porque
não tinha idade para fazer artigo noventa e nove, aí eu
fiz o ginásio, aí fiz o clássico, que eu achava mais fácil.
CK: Artigo noventa e nove?
Chris: Era que você fazia tudo num ano, os quatro
anos em um ano, mas você estudava por conta própria, tudo em casa. Aí depois você fazia a prova no
Pedro II, no André Maurois, que eram escolas do Estado – que antigamente eram ótimos os colégios públicos – e aí você passava, tinha o diploma. Acho que
eu fiz tudo num ano. Eu fiz o ginásio, o clássico e o
vestibular para – eu era super atrasada em relação às
minhas amigas.
CK: E passou?
Chris: Passei na frente de todo mundo.
CK: Isso tudo com o apoio dos seus pais?
Chris: Com o apoio dos meus pais. Eu dizia assim “Ai,
não aguento mais o colégio. Eu não estou aprendendo no colégio”– porque eu não estudava. Eu dizia “Ah,
eu não estou a fim de ficar no colégio, eu quero ser
emancipada”. Aí o meu pai me emancipou e eu fiz o
artigo. Então eu não tinha nada de certinha.
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CK: Que tipo de problema você criava?
Chris: Eu matava aula. Dizia que ia à aula e o colégio descobria que a gente estava indo numa piscina
de um hotel. O pai de uma das minhas amigas era
promotor público, e aí queria acionar o hotel, aí eu
brigava com a diretora da escola, porque ela achava
que eu ia muito maquiada, sabe? Eu tinha esse lado,
de ir muito maquiada, de namorar muito os garotos,
essa coisa toda, entendeu?
CK: Mas não era que você enfrentava o professor ou
fazia alguma outra coisa errada, era mais da sua personalidade?
Chris: É. Era da minha personalidade mesmo, porque
eu não combinava com aquilo, entendeu? De colocar
bomba no banheiro, também.
CK: Isso você fazia também?
Chris: Isso eu fazia. Botava bomba no colégio, de brigar com os garotos, de sair na porrada.
CK: Isso com que idade?
Chris: Treze, catorze anos... Quinze...
CK: E você ia vestida como para a escola? Tinha que
usar uniforme ou não?
Chris: Tinha. Mas eu estudei em colégio que não tinha que usar uniforme, que era o colégio americano,
o Bennett, eu estudava no Bennett. A minha irmã fez
todo o curso, todo mundo dizia “a sua irmã é tão diferente de você!”.
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CK: E isso o Paulo acompanhava, ele tinha interesse
pelo que você fazia também? Por esse mundo da arte,
das exposições, os quadros?
Chris: A gente dividia um pouco. Eu ia mais sozinha.
CK: O ponto comum de vocês era o cinema? Ele tinha
a literatura, você tinha a arte, e vocês se encontravam
no cinema?
Chris: Era o cinema e a literatura também. Eu adoro,
sempre li. Eu li todos os livros – todos os livros! Porque
quando você é criança, você tem em casa os livros do
seus pais. Então você lê muitos livros de adulto, todos
os livros de adulto. Eu li tudo quando eu era criança.
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CK: A sua irmã mais...
Chris: Velha. Porque eu ia muito desarrumada. Aí eu
já ia muito desarrumada, suja, rolava no chão, jogava
baleado.
CK: Baleado?
Chris: Baleado é um jogo que tinha uma argola desse
tamanho, que você vai queimando...
CK: Queimada.
Chris: Queimada. Mas a gente chamava de “Baleado”.
E eu gostava muito da aula de arte. Nisso eu era a melhor aluna.
140
CK: E pontos comuns de vocês? Filmes, por exemplo,
que filmes marcaram a história de vocês?
Chris: Ah, a gente foi ao cinema ver tanta coisa que a
gente esquece! Mas o mais assim foi “Blade Runner”. É
porque esse filme a gente tinha voltado de Amsterdã
e tinha ácido.
CK: Você trouxe ácido de lá?
Chris: Foi. o Paulo não tomou, ele não tomava mais
nessa época nada, nem maconha.
CK: Mas também não achava ruim que você tomasse?
Chris: Não, ele achava ótimo, porque era experiência,
o que que ia acontecer, o que eu ia sentir. E eu tomei
na praia até nessa vez – eu tomei umas três vezes só,
eu não tomei mais que isso, não. A primeira vez eu tomei em Amsterdã, aí eu estava totalmente viajando,
aí eu encontrei um cara, encontrei a polícia, porque
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eu tinha feito amizade com a polícia, eu me lembro.
Porque isso é outra coisa; a gente estava em Amsterdã, aí gente brigou, eu e o Paulo. Uma briga! Porque a
gente brigava de montão nesse início de casamento.
CK: E por quê?
Chris: Eu não me lembro por que a gente brigou. A
gente brigou, aí eu fiquei furiosa e aí eu falei “Eu vou
embora”, aí eu peguei as minhas coisas, e peguei – eu
estava com dinheiro, eu tinha dinheiro, mas eu não
peguei o passaporte. E aí eu saí à noite em Amsterdã,
e aí eu entrei no hotel – lógico, “E o passaporte?”. Ih!
Um frio! Inverno. Eu disse “Meu Deus do céu, deixei
o passaporte no outro hotel”. Aí eu falei “Onde que
eu vou dormir?”. Aí o cara falou assim “ah, vai lá na
polícia, que eles te ajudam”. Aí eu cheguei na polícia, e
a polícia falou assim...
CK: E isso você falava francês?
Chris: Ai, não, eu falava inglês, mas – eu não sei como
eu falava, mas eu falava. Eu não falo bem inglês, mas
eu me viro, né? Eu cheguei na polícia e a polícia falou
“Mas e o seu passaporte?”. Aí eu falei “Eu quero um
lugar para dormir aqui”. Eles perguntaram de novo
do passaporte. Eu falei “Está com o meu marido, eu
esqueci”. Aí eles queriam ir no hotel pegar, porque
eles achavam que o Paulo estava prendendo o meu
passaporte, mas não era o caso, eu tinha esquecido
mesmo. E o Paulo tinha dito “É, pode ir” – assim, “Vai,
vamos ver”, se eu tinha coragem de ir. Mas eu nem estava vendo por esse lado, eu estava furiosa com alguma coisa – vou perguntar se ele se lembra. E aí eu fui
dormir na polícia – falei “Não, não, amanhã eu pego,
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não tem nenhum problema, ele não está prendendo
o meu passaporte, é porque eu esqueci mesmo”.
CK: Mas você falou que vocês tinham brigado?
Chris: É. “Eu estou com dinheiro, mas eu estou sem o
passaporte, então eu não posso ficar num hotel, mas
eu tenho que dormir em algum lugar”. Aí eu dormi
na polícia. E eles me deram comida. Então eu fiquei
super amiga do pessoal da polícia. E no dia seguinte
eu fui no banho público também, que lá em Amsterdã tinha aqueles banhos públicos, e liguei para o
Paulo. E estava tudo ótimo já, aí a gente voltou. Essa é
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uma grande qualidade: a gente pode ficar com raiva,
na hora briga, mas cinco minutos depois, dez minutos depois – A gente nunca ficou um dia brigado. E
quando eu tomei o ácido, eu me lembro o dia que eu
tomei o ácido, foi exatamente no dia que eu encontrei
o chefe de polícia. Eu estava viajando, e eu morrendo
de medo: “Ai, meu Deus, eles vão sacar!”.
CK: Mas eles não sacaram?
Chris: Não, não sacaram. E eu tomei quando fui ver
“Blade Runner”, e foi um filme que marcou muito, porque eu não sabia o que que eu ia ver. Aquele filme já
é uma viagem, imagina você viajando de ácido! Acho
que eu já vi dez vezes. O Paulo já viu várias vezes.
CK: Você viu viajando, e o Paulo sóbrio.
Chris: O Paulo sóbrio. Porque o Paulo, ele não toma
nada há muitos anos. Nem lá em Amsterdã ele tomava, e isso já tem quase trinta anos, que ele não toma
nada. O Daime mesmo ele nunca quis tomar. Lá nos
Pirineus, esse meu amigo levou, as pessoas tomaram,
o Paulo ficou só coordenando a coisa.
A gente tinha muita coisa, assim, de fumo, mas não de
cocaína, cocaína, não. Cocaína ele terminou ali com o
Raul, em Nova York. Ele jurou naquele dia que não ia
mais cheirar, que ele ia ficar viciado. Por exemplo, eu
nunca gostei – eu tenho a maior sorte, acho que proteção mesmo – porque eu tive milhões de oportunidades, cheirei várias vezes, mas não era uma coisa que
eu sentia prazer, sabe? Achava – todo mundo dizia
“Ai, você sente um poder, você vai ficar ótima, o seu
raciocínio –“. Eu não via nada daquilo, não era uma
droga que eu gostasse. Então, eu cheirava, porque não
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era nenhum preconceito moral ou coisa assim, mas
achava que me deixava travada, sei lá. Então eu não
fazia, porque não gostava.
CK: Você falou do “Blade Runner”. Você lembra da
conversa de vocês, o que o filme causou em vocês,
ou não?
Chris: Foi muito forte, porque a estética do filme era
totalmente nova naquele momento, eu nunca tinha
visto nada igual. E tem todo um lado espiritual muito
forte no filme, é difícil verbalizar. Mas tem toda aquela coisa de Deus, do filho de Deus, de você querer ser
igual a Deus, de todo esse lado espiritual muito forte.
Agora, falando em lado espiritual muito forte, outro
filme que eu vi, e que achei muito impressionante, e
que tem toda uma coisa – nessa época passou vários
filmes com a mesma linguagem – é o “Matrix”. Você
viu o “Matrix”? Eu vi, e o Paulo estava em Portugal,
até. Eu falei “Paulo, você tem que ver de qualquer jeito, porque você vai amar esse filme.
Eu achei muito na nossa sintonia das coisas. Aquele
mundo paralelo que você não vê, ele está ali, e que as
pessoas não conseguem – e mesmo o Avatar agora,
quando eu vi, toda essa coisa desse elo perdido, do
contato do Homem com a natureza, toda essa energia. Eu acho esses filmes super importantes de você
ver, porque eles te despertam.
CK: “Blade Runner”, “Matrix” e “Avatar”.
Chris: É, são filmes muito tecnológicos, e que na realidade, eles te passam uma mensagem espiritual. Lógico que tem milhões de outros filmes.
No ano passado, teve o “Revolutionary Road” – que
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é sensacional, né? Eu gostei muito do filme porque
mostra aquela frustração das pessoas, que não têm
coragem de fazer as coisas.
CK: E você em algum momento sonhou com essa
vida, essa família tradicional, essa casinha bonita, esse
jardim florido?
Chris: Ah, sim, já. Bem no início. Mas eu acho que
sonhava com as duas coisas: de ter uma casinha, ter
quatro filhos, aquela coisa super certinha, e sonhava também com, por exemplo, essa coisa da Revista
Burda, você lembra? Eu ficava vendo aquelas roupas,
aquelas modelos, aquelas coisas da Europa, né? De outro mundo que eu não conhecia, porque eu era muito
garota, oito, sete anos, mais ou menos, então eu fazia todo um filme, que eu ia viajar, e quando voltava,
voltava com aquelas roupas, aquela coisa de criança,
fazia todo um filme na cabeça. Então tinha muito essa
vontade de morar fora, de viajar.
Chris: Eu tinha todo esse outro lado assim. E, por
exemplo, essa coisa de não ter filhos, que a gente não
tem filhos, isso foi uma decisão. Não foi uma decisão
assim, “ai, a gente não vai ter filhos!”, lógico que não.
CK: Você queria no começo?
Chris: Não, nunca quis. Quando eu conheci o Paulo,
eu tinha vinte e oito anos, e já tinha ficado grávida e
tinha abortado, umas quatro vezes, eu acho.
CK: Vocês começaram a namorar com que idade?
Chris: Eu tinha 28 anos.
CK: A primeira vez que você foi para fora foi com o
Paulo ou não?
Chris: Não, eu já tinha viajado com o meu pai. O meu
presente de quinze anos foi ir para a Europa, eu não
quis festa. Eu tinha toda essa coisa de viajar, adorava,
né? Aí eu falei: “Não, eu não quero festa, quero viajar
para a Europa”. Aí eu vim com meu pai, eu e meu pai.
A gente veio para a Copa do Mundo, em Londres, foi
em 66. Aí eu já tinha ido para a Argentina, já tinha
viajado um pouco.
CK: Mas vamos voltar para os seus sonhos com as
roupas da Burda.
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CK: Mas você conhecia ele desde os 18 anos? Foram
dez anos até...
Chris: É, dez anos. Mas a gente nunca... O dia que a
gente se aproximou, a gente namorou, nunca teve
uma paquera à distância, um charme.
CK: E para você abortar, é por que você não queria ter
filhos, é isso?
Chris: Logicamente que eu tinha um namorado de
uma vida inteira, e ele não tinha a menor vontade
também, aí se ele não tinha, eu também não tinha,
sabe assim? Lógico que foi sofrido. O primeiro que eu
fiz foi horrível, o primeiro aborto, porque eu era muito garota.
CK: E também essa coisa que você falou toda de “é
pecado”
Chris: Ah! Mas eu achava, e eu acho até hoje, que
você ter um filho, colocar alguém no mundo, é uma
responsabilidade muito grande, você tem que estar
com muita vontade. Aí, quando eu encontrei o Paulo,
eu tinha vinte e oito anos, a gente começou a viajar,
a vida foi indo, a gente não parou um momento para
dizer: “Ah, agora vamos –“. Aí, foi indo, indo.
Eu acho que foi uma coisa super natural. A gente poderia ter tido, porque ele não tem, mas ele também já
teve abortos, eu poderia ter tido, porque eu sei que
posso ficar grávida.
CK: Mas vocês curtem criança, sobrinho, filho de amigo?
Chris: As minhas sobrinhas, adoro.
CK: E o Paulo?
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Chris: Ele tem mais jeito do que eu, mas eu tenho
mais paciência. A gente tem oito sobrinhas mulheres,
eu e ele.
CK: E o Paulo tem jeito com criança?
Chris: Tem jeito. Por exemplo, chega o Gabriel, ele começa a dar porrada no Gabriel.
CK: Ele luta, ele rola no chão, para brincar com a
criança ou não?
Chris: Ele bate com um livro na cabeça do Gabriel.
Você conhece o Gabriel, filho da Mônica?
CK: Conheço. E a Mônica apareceu como? Porque ela
e o Paulo também já se conheciam antes, né?
Chris: O Paulo conheceu a Mônica, ele conheceu primeiro do que eu. Porque ele e um amigo nosso, eles
foram num teatro ou café, alguma coisa assim, eu não
sei muito bem, eu sei que tinha um negócio de teatro
e a Mônica estava lá. Então eles se conheceram ali, a
Mônica tinha lido acho “O Diário de um Mago” e a
partir dali eles ficaram amigos. Aí a Mônica resolveu
vir morar na Espanha.
CK: Vocês já estavam aqui?
Chris: Não, a gente morava no Rio. Isso tem tantos
anos. E aí ela foi para Madri, depois foi para Barcelona, e foi aí que resolveram ela representar o Paulo na
Espanha. Era uma experiência. E ela estava morando
lá e era uma coisa de não querer voltar, queria ficar
lá. Então eu me lembro que quando eles abriram a
Sant Jordi [agência literária], a Mônica e o Eduardo,
era uma pasta dentro de um armário na casa dela. E
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a Mônica começou a procurar uma editora, aí saiu “O
Alquimista”. Eu me lembro que nessa época eu fiquei
em Madri, ela foi para lá também, e a gente fez divulgação, como eu fiz no Brasil.
CK: E vocês escreviam um para o outro? Tem alguma
carta, ou alguma coisa que ele tenha te dito por escrito?
Chris: Que eu me lembre não, carta não tem. Essa
fase a gente não tem, a gente falava mais no telefone,
fax, como ele falou ontem.
CK: Mas e no começo de namoro?
Chris: Eu não sei se o Paulo tem alguma coisa guardada, porque essas coisa,s o Paulo que guarda.
CK: E você desenhava para ele?
Chris: Ah, desenhava para ele, fiz um quadro dele, alguns quadros...
CK: Vocês têm isso ainda?
Chris: Eu tenho alguma coisa na casa da minha mãe.
Eu tenho um quadro que eu fiz para ele, que é “Golden Dawn”, a “Aurora Dourada”. Que a gente nessa
primeira viagem, a gente esteve nuns lugares na Irlanda, com escritores irlandeses, que marcaram muito a
vida do Paulo.
CK: E vocês saíam com um roteiro de viagem planejado?
Chris: Não, a gente veio para Londres, porque o Paulo
já tinha morado em Londres. Ficamos um pouco em
Londres, aí fomos para Bonn, porque a minha irmã
morava em Bonn, e de lá a gente foi para todo o Leste.
Chris: Quase um ano. Aí a gente comprou um Mercedes, na Iugoslávia, voltamos para emplacar o Mercedes, que era de uma embaixada e custou baratíssimo
– era mil dólares, eu acho – ótimo! Porque era de uma
embaixada indiana e eles não podem vender para as
pessoas que moram no país, então desvaloriza demais
o carro. E era um carro em super bom estado, a gente rodou a Europa inteira e no final a gente doou em
Portugal esse carro, para uma associação de cegos, foi
uma promessa que o Paulo fez.
Aconteceu um milhão de coisas nessa viagem, inclusive o encontro com o mestre dele, depois em Amsterdã. Amsterdã foi uma fase maravilhosa, a gente ficou lá. A gente brigou! A gente ficou uns dois ou três
meses em Amsterdã. A gente morava em um hotel
super antigo, tinha um quarto maravilhoso – era baratíssimo, era tipo bed and breakfast, mas era lindo o
quarto. E eu ficava desenhando. Desenhava, desenhava, desenhava.
CK: Você tinha cadernos, eram folhas soltas?
Chris: Eu tinha um bloco. Eu fazia muito à nanquim
nessa época, porque é mais fácil de você viajar com
uma coisa assim – aquarela, né? Eu desenhei muito
o hotel, eu nem sei onde estão esses desenhos, deve
ter alguma coisa na casa da minha mãe, alguns eu dei
também. Tinha um lugar que a gente ia, mas o Paulo
não ia comigo não, ele dizia que não ia de jeito nenhum. Era um clube, e que tinha uma sauna, e todo
mundo ficava nu na sauna. Aí ele dizia: “Eu, com você,
não vou de jeito nenhum!”. Mas aí, a gente ia separado. Mas era uma experiência que a gente nunca
tinha feito. Era muito legal, muito legal. A gente fez
CK: Quanto tempo?
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algumas amizades, inclusive teve um português, umas
pessoas que moravam lá, que fizeram uma proposta,
como a gente tinha esse carro imenso, de fazer um
carregamento de heroína. Imagina! Aí, eu falei: “Nem
pensar!”.
CK: É isso que eu ia te perguntar: vocês entraram em
alguma roubada assim?
Chris: [Para Paulo] Paulo, estou contando toda a sua
vida aqui! ... [voltando à entrevista] Com Heroína?
Nem pensar! Era totalmente contra os meus princípios, nunca eu experimentei heroína porque realmente era muito barra pesada, porque você via aquelas
pessoas lá em Amsterdã – mas eu acho que isso não
era da heroína, era da AIDS que as pessoas ainda não
conheciam – todas com feridas pelo corpo, no local
da agulha, era muito forte.
Aí a gente foi para o norte da Europa com o carro,
eu sei que a gente foi perseguido, desconfiaram de alguma coisa, desmontaram o nosso carro todinho na
fronteira com a Suécia, tanto que a gente nem chegou
a Estocolmo. Eu não conheço Estocolmo, vou conhecer agora. A gente depois foi direto para a Noruega, e
não teve mais nada. E aí o carro foi todo desmontado.
Eu tinha um pouco de haxixe no bolso do casaco.
CK: E não pegaram?
Chris: Não, eles não me revistaram. Aí eu saí dali e
peguei o haxixe – era um nada, era uma caixa de fósforos – aí eu joguei fora, e pensei: “Nunca mais vou
viajar com nada”. Aí nunca mais mesmo. Acabou. Porque é super perigoso isso, né?
152
CK: A gente já falou de filme. E música? Das músicas
do Paulo, tem alguma que você gostava especialmente?
Chris: Eu gosto muito de “Gita”, a “Ave Maria das
Ruas”, você conhece? É linda, né? “Eu Nasci Há Dez
Mil Anos Atrás”... Eu gosto de quase todas.
CK: E tem alguma que marcou a história de vocês, de
alguma maneira? Que tem a ver com vocês?
Chris: Que eu me lembre, não tem nada, não tem
nenhuma música. Acho que é mais cinema mesmo,
porque música a gente escuta, mas você vê que aqui
em casa a gente não fica escutando música, né? Mas a
gente escutava muita música. O Paulo canta, o Paulo
toca violão.
CK: Ele toca ainda?
Chris: Não. Mas ele tinha violão.
CK: E você gostava de ver ele tocar?
Chris: Adorava, a gente cantava, eu adoro cantar
também. Em casa, de noite, eu e ele.
CK: E ele se apresentando, você nunca viu?
Chris: Não, só uma vez, que teve um show do Raul no
Canecão, que ele subiu no palco e cantou “Sociedade
Alternativa” com o Raul. Aliás, foi o último show do
Raul, eu acho. É, aparece nesse documentário [“Raul,
O Início, o Fim e o Meio”], eu acho, ele cantando. O
Paulo tem uma voz ótima, ele toca violão. Ele detesta
dizer que toca vilão, porque acha que toca super mal.
E à noite a gente ficava tocando violão e cantava.
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CK: E você achava que ele devia se apresentar, devia
cantar, ou não?
Chris: Não, porque aí a gente não estava mais nessa
coisa da música, era a coisa do livro mesmo.
CK: Mas no começo ainda era a coisa da música, não
era?
Chris: Não, ele já tinha saído. Eu conheci o Raul...
CK: Porque depois da prisão teve um rompimento
mesmo?
Chris: Teve o rompimento. Aí depois o Raul veio morar no Rio, quando ele casou com a Kika. E aí o Raul
154
ia lá em casa, tudo. Era uma graça, super simpático,
mas já não tinha mais nenhuma ligação assim mais
profissional.
CK: Mas ainda tinha um afeto, ou era o Raul que procurava mais o Paulo?
Chris: Era o Raul que procurava mais. Aí vinha, foi lá
em casa. Eu fui uma vez, não com o Paulo, eu fui até
sozinha na casa do Raul. A filha dele tinha nascido, e
eu fui visitar o bebê. Uma noite a gente saiu para as
noites cariocas, eu, o Raul – o Paulo não foi, não – a
Kika e mais uma outra pessoa, que até o Raul brigou,
sabe aquela coisa do cara que foi ídolo e esta na deca155
Legenda ulpari
doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
dência? Então alguém xingou, sabe aquela coisa não
legal, muito triste? Porque o Raul teve essa coisa, foi
bem antes da morte dele. É aquela coisa do artista...
Ele teve uma época de muito sucesso, e depois teve
toda essa decadência muito forte, né? E que agora a
redenção através da morte dele, do trabalho que ele
fez, maravilhoso, da pessoa mesmo. E eu me lembro
que foi muito duro nessa noite que a gente saiu, porque foi uma coisa assim: “Ah você não é mais nada!”.
Eu não me lembro exatamente.
CK: Alguém desconhecido?
Chris: Sim. Alguém desconhecido que estava lá, agressividade gratuita. Paulo, a gente tem alguma música
nossa? Que te traga alguma recordação?
Chris: Eu sei o que ele está pensando. Então, por
exemplo, se alguém fala alguma coisa eu já digo: “Ih,
nem adianta falar isso para ele, porque ele vai achar
horrível”. Eu conheço legal. Às vezes, me engano.
Acho que ele vai achar horrível e ele acha normal. Mas
normalmente... Eu conheço muito assim, mas isso é
convivência, né? São trinta anos de convivência. E eu
tenho essa coisa de querer entender muito o outro,
não só o Paulo, mas os amigos, a família, então eu
mergulho. Eu tenho espírito de detetive. Eu descubro
tudo, é impressionante, até na internet – eu descubro
tudo.
CK: O que você quer e o que não quer.
Chris: Exatamente. É isso.
Paulo: Uma música nossa? “Em vez de você ficar pensando nele...”. [Risos gerais]. Não, a gente não tem nenhuma música nossa.
CK: E tem mais alguma coisa?
Chris: Não. Quer dizer, deve ter milhões de coisas,
mas é muita coisa e eu tenho uma memória horrível...
Chris: Ah, é, eu coloquei essa música na secretária
eletrônica. Todo mundo ficava assim, achava que eu
estava achando um meio para irritar o Paulo, mas eu
coloquei porque eu achei super legal. E o Paulo: “Quê
que é isso? O quê que é isso?”. Eu falei: “Ué, legal essa
música para colocar na secretária eletrônica”.
CK: Alguma cena especial que você se lembre?
Chris: Deixa eu pensar, porque eu esqueço, eu sou
horrível para lembrar das coisas. Eu falei para o Paulo que eu tenho que ler todos os livros dele de novo,
porque eu já esqueci tudo! ... Aí depois vou ficar pensando “Ai, meu Deus, esqueci de contar aquilo!”.
[Paulo acha graça e se diverte cantando “Pense em
mim”, de Leandro e Leonardo.]
CK: o Paulo falou ontem que você é quem melhor
conhece ele, conhece os defeitos dele, as fraquezas
dele...
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157
TÍTULO #06
Paulo Coelho, fevereiro de 2010
In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te
dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur,
venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as
erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit
quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam.
PC: Sábado. Começo com a frase do Rhett Butler, no
“E O Vento Levou”: “Frankly, my dear, I don’t give a
damn”. Ok, faça as perguntas.
CK: Você não dá a mínima para quê?
PC: Eu só estou citando “E O Vento Levou”.
CK: Eu reparei que na primeira parte da nossa entrevista, no carro, eu não sei se você reparou, que você
usou as mesmas palavras para se referir às mulheres e
à morte. Você já reparou nisso?
PC: Não. Alguma associação? Não. Como eu não vejo
a morte como uma coisa feia, eu acho que...
CK: Mas no começo, te assustava? Depois tem o fascínio e depois tem a paz. Foi esse ciclo que eu vi você
falando com relação às duas coisas.
PC: Pode ser. Isso se chama interpretação psicanalítica de uma frase. Pode ser, pode ser, pode ser. Estou de
acordo, não questiono.
CK: Não questiona?
PC: Não.
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CK: Nem tem nada para acrescentar?
PC: Não.
CK: Outra coisa que a gente conversou é que você já
quis e desejou o filme e que já não quis, e você ficou
no raso para me explicar isso. Eu quero saber o por
que quis e o por que não quis.
PC: Porque eu quis? Foi um impulso, porque eu gostei
do “2 Filhos de Francisco”. Porque eu deixei de querer
uma época, foi porque eu achei que talvez ainda fosse
muito cedo para fazer esse filme. E porque eu tornei a
mudar de ideia... É porque eu gosto muito da música
do Raul: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante”.
CK: Então não tem nada claro para você, consciente,
de que papel tem esse filme na sua vida? Alguma coisa
que você espere disso?
PC: Nada, nada, nada. Não, eu espero o melhor. Sinceramente, eu espero o melhor. Sempre espero o melhor.
CK: Mas não tem uma missão específica?
PC: Mas nada na minha vida foi feito assim, bolado
para ter uma... Esse negócio que a gente falou agora,
recente que aconteceu: a capa do meu livro tem um
erro de grafia, aí dá uma repercussão. Óbvio que as
pessoas vão tomar mais consciência de que esse livro
existe, eventualmente vão comprar. Mas não é uma
coisa que eu bolei: “Faz aí um erro de grafia na capa”.
Eu vou vivendo com a minha coerência, e muitas expectativas, evidentemente, mas não sabendo que isso
é uma bênção ou isso é uma maldição. Ninguém sabe!
CK: No “Alquimista”, você fala da sorte de principian160
te e da prova do conquistador. Você tem claro na sua
vida, como escritor, que momentos foram esses?
PC: Eu acho que o “Alquimista” foi a prova do conquistador. Quando todo mundo desistiu de publicar,
eu disse: “Não vou desistir”. Ou melhor, “vou lutar até
o final”. Mas isso pode estar ocorrendo agora, aliás
pode não estar ocorrendo agora.
CK: E a sorte de principiante?
PC: Eu acho que é quando Deus põe no teu caminho... Bom, como dizem, profissionalmente na minha
vida foi publicar “O Diário de um Mago”, e ter o livro
vendido, e aí ter o boca-a-boca, e ter tido um espaço na imprensa que foi uma amiga minha que deu,
a Regina Guerra, que me chamou de “Castañeda de
Copacabana”. Essa matéria e um “Sem Censura” – ali
foi a sorte de principiante. Foi quando eu me agarrei com todas as forças. Porque também, a sorte de
principiante, você tem que saber se agarrar nela, você
dizer “que legal, que isso aconteceu comigo, agora eu
vou aproveitar”. Então a sorte de principiante foi ter
um editor para o meu primeiro livro e eventualmente
ter um editor para um livro que já não tinha funcionado, que é “O Alquimista”.
CK: E ontem você falou que você já cumpriu a sua
lenda pessoal, e que precisa ir até o fim.
PC: Eu já estou na minha lenda pessoal, eu não disse “eu
já cumpri”. E já que eu estou na minha lenda pessoal, eu
vou até o fim. A minha lenda pessoal era ser escritor.
CK: E o que é o fim?
PC: A morte.
161
Existem derrotas, mas não existe
o sofrimento. Um verdadeiro
guerreiro sabe que ao perder uma
batalha está melhorando sua arte
de manejar a espada.
CK: E você disse que a morte hoje é sua aliada, é o que
te provoca a fazer as coisas. Você tem claro que arco
é esse, desde a morte que tinha cara de terror, de desenho animado, com a foice até essa agora, que você
chama de melhor amiga?
PC: É que nós somos educados a negar a morte, isso
é uma coisa natural, é uma coisa do ser humano. É o
chamado “instinto de sobrevivência”, isso vem desde,
sei lá, desde que o primeiro organismo nasceu.
CK: Você comentou ontem sobre o atropelamento
daquele menino em Araruama. Foi o seu primeiro
contato com a morte?
PC: Não, porque ali eu não vi, eu não estava muito
consciente do que estava acontecendo. Acho que o
meu primeiro contato que eu disse “eu vou morrer”,
foi no sequestro, quando o cara botou a arma na minha cabeça.
CK: Sequestro na prisão?
PC: Não, não, no sequestro. Na hora em que ele me
tirou do táxi, botou a arma na minha nuca, e eu olhei
aquele Hotel Glória e disse: “Putz, morri”. Eu achei
muito injusto, porque é injusto morrer aos 26 anos.
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CK: E de alguma pessoa próxima, ou medo de morrer,
de perder alguém?
PC: Eu já tive.
CK: Mas você lembra qual foi o primeiro momento?
PC: Se eu tive medo de perder alguém?
CK: Não, que você perdeu alguém e teve que lidar
com aquilo, com aquele sentimento?
PC: Foi o meu avô.
CK: E você se lembra como foi?
PC: Lembro sim. Eu perdi o meu avô, chorei muito, fui
no enterro e depois fui no cinema. Estava casado com
a Vera Richter. E aí alguém me viu no cinema, que estava no enterro do meu avô também, e eu me senti
muito culpado de estar no cinema. Depois, não. Foi
o meu primeiro contato próximo com a morte. Não,
teve o meu avô lá em Belém também. E aí, “porra, eu
não vou poder ir para os meus bailes de Carnaval”,
porque foi na época do Carnaval. Eu nunca tive, assim, esse apego. Por muito tempo: “Ah, a minha mãe
vai morrer”. Depois passou essa fase.
CK: Então essa coisa de buscar a vida eterna da alquimia, não tem a ver com o medo da morte e nem com
nenhum momento específico da sua vida?
PC: Não, não. Você está fazendo uma análise psicanalítica. Não foi de jeito nenhum motivado pelo medo
da morte, foi pela curiosidade, pelo fascínio.
CK: E você não associa essa curiosidade, esse fascínio,
a nenhum momento da sua vida, uma cena específica?
164
PC: Não, a própria minha vida, que é uma vida cheia
de curiosidades e de fascínios.
CK: Foi assim.
PC: Foi, e é. Essa coisa da Internet me fascina e me
deixa muito curioso. Gasto um tempo enorme quando necessário.
CK: Você disse também no “O Alquimista”, que tudo na
vida tem um preço. Qual foi o preço que você pagou?
PC: Você nas suas perguntas, você está sendo muito
“acabou aqui, acabou aqui e acabou aqui”. Não é “o
preço que eu paguei”, é o preço que eu estou pagando, e que pagarei a minha vida inteira.
Eu comprei essa camisa na liquidação do exército suíço, e é uma camisa que me cabe, e poderia ser uma camisa justa, o preço era o mesmo, era só aquela coisa de
escolher uma camisa que te cabe ou uma camisa que
não te cabe. Então, o preço que nós pagamos sempre
na vida é o preço daquilo: do terno, da camisa. Só que
tem uns preços, uns produtos que você compra, que
você diz: “Bom, gastei dinheiro numa coisa boa”. E tem
outros produtos que você compra que você diz: “Que
droga, porque que eu fui comprar isso?”. Efetivamente
é assim. O preço que eu paguei, o preço de abstração,
o preço abstrato, é, digamos assim, foi durante toda a
minha vida a reação do sistema.
CK: Que também é um conceito abstrato.
PC: Sem dúvida nenhuma.
CK: Então o que importa é o sistema abstrato ou são
as pessoas mais próximas?
165
PC: Deixa eu completar o meu raciocínio. O preço
que eu paguei foi esse, uma profunda reação do sistema abstrato. Eu paguei com muito prazer. Eu prefiro
mil vezes pagar o preço da reação do sistema estabelecido do que de participar do sistema estabelecido.
CK: Importa mais o sistema abstrato ou quem está
próximo de você? A sua amiga ligar e dizer que não
gosta de quem você é na sua biografia, por exemplo?
PC: Não, deixa de ser amiga na mesma hora. Volta
para o sistema abstrato. Ah, sem dúvida.
CK: Deixa de ser sua amiga. Ela é imediatamente eliminada.
PC: Mas foi imediatamente eliminada. Está expulsa
do meu reino. Ah, não gostou da minha biografia? Sai
do meu reino. Aí depois, é claro, quer voltar, manda
presente, manda flores, mas aí não tem. Sem ódio,
mas sem perdão.
CK: E sempre foi assim, para você?
PC: É possível que tenha sido um aprendizado, mas
como eu te falei várias vezes durante essa entrevista, eu não lembro muito do meu passado, eu só me
lembro como sou agora. Então se você pergunta ao
mestre de Aikidô “mas você deu esse golpe porque
é um aprendizado?”, é óbvio que é um aprendizado.
Mas agora que a coisa está tão incorporada a mim, eu
acho que eu sempre fui assim. Então eu não lembro
quando foi que aprendi. Não tem aquela coisa que eu
acho que você vai precisar para a dramaturgia: esse
ponto aqui eu aprendi isso. Isso você vai descobrir.
166
CK: A gente falou também de qual a diferença entre
respeitar o tempo e deixar o tempo passar. Entre respeitar o destino e deixar a vida passar. Se tudo está
escrito, qual é o seu papel, o papel de cada um nisso?
PC: Eu já te expliquei no negócio do garfo. É achar o
que é o seu destino, qual que te dá entusiasmo.
CK: E não tem um manual?
PC: Tem, o teu coração. Você sente quando você
está entusiasmado para fazer alguma coisa ou quando você está fazendo aquilo por obrigação. Às vezes
a vida que você escolheu te obriga a fazer algumas
coisas que você não está com vontade, mas você sabe
que está fazendo aquilo por algo que você escolheu.
Como viajar... Eu não estou num período de viajar,
mas às vezes eu tenho que viajar. E viajo porque eu
sei que é importante para o meu trabalho; sacrifícios
necessários.
CK: Você falou que faria um tratado sobre sorte e
coincidência.
PC: Eu falei isso?
CK: Nos seus livros. Eu acho que foi no “O Alquimista”. Qual seria hoje a sua definição para essas duas
palavras?
PC: Eu acho que hoje eu não faria esse tratado, não.
Eu acho que usaria uma frase de outra pessoa, que
eu não sei quem disse, mas que diz que “sorte e coincidência é aquilo que acontece na tua vida quando
Deus não quer assinar”. Na verdade é uma coisa que
aconteceu porque tinha que acontecer de uma ma-
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sum dolu
neira muito discreta, vindo da divindade. Se bem que
hoje em dia eu acredito muito pouco em coincidência. E trocaria a palavra sorte por bênção.
CK: Qual é a sua definição de amizade? Você fala
muito da lista negra, da lista branca, dos amigos, dos
inimigos, quem está no seu reino, quem não está – é
preto e branco assim?
PC: Um pouco.
CK: E você tem amigos íntimos?
PC: Amigos íntimos pelos quais eu faço tudo. Eu tenho muito poucos inimigos, veja bem, inimigo é a pessoa que eu dou a honra. A pessoa que diz “eu vou te
bater” – Ah, eu não vou nem dar bola, porque eu não
vou aprender nada. Aí tem um cara que diz “eu vou te
bater” e eu digo “com esse eu vou brigar, porque esse,
mesmo que ele me bata, eu vou aprender alguma coisa”. Agora, eu vou também partir para matar. E aí esse
é um inimigo, será sempre um inimigo, mas inimigo é
eleito por mim, e não é qualquer pessoa que me insulte, que me fale mal.
CK: Não é qualquer pessoa que vai conseguir essa importância.
PC: Não. Seguramente os amigos são aqueles que
sempre me apoiaram. Também não existe nenhum
critério de limites, para esses eu faço qualquer negócio, mesmo que “porra, sabe? Ai, que saco! Eu tenho
que ir para Saint Maurice, mas eu vou, porque é meu
amigo”. Eu tenho essa lealdade como um dos valores
clássicos e importantes na minha vida. E sua próxima
pergunta é: quais são os meus valores?
168
169
CK: Não. Você falou que foi uma coisa que te marcou
muito, o momento da prisão, na relação com o Raul,
que era alguém muito querido para você. Mas você
não cortou ele da sua vida, né? A Chris falou que vocês chegaram a voltar a conviver, que ele ia na casa de
vocês, que ela foi ver a filha dele que nasceu. Como é
que você lidou com isso?
PC: Profissional.
CK: Profissionalmente. Não era mais uma ligação
emocional?
PC: Não, não. A ligação emocional acabou no dia que
eu fui solto da prisão e vi que ele tinha saído fora.
CK: E você entendeu que ele tinha saído fora? Você
buscou uma resposta para isso, vocês conversaram ou
você decidiu sozinho e cortou ele?
PC: Não, não. Eu procurei ele, óbvio. Mas ele já estava em outra, estava com medo, enfim. Desculpo, mas
não esqueço.
CK: Mas você desculpa?
PC: Claro. Mas aí a partir daquele momento, eu disse:
“Não tem amizade mais”. Um cara que me deixa sozinho
nessa situação, eu nunca mais vou ser amigo. Posso continuar trabalhando junto, mas é uma relação profissional.
Enquanto que duas pessoas que eu não tinha nenhuma
relação, que era o Roberto Menescal e a Hildegard Angel,
mostraram uma solidariedade que eu não esperava, e por
esses eu faço hoje em dia qualquer coisa. Qualquer coisa.
CK: Aí tem uma outra frase sua que diz o seguinte: “ É
preciso amar o deserto e jamais confiar inteiramente
170
nele”. Você sempre foi desconfiado assim? Você sempre se protegeu?
PC: Não, não. Porque eu entro no deserto. Se proteger
é não entrar no deserto. Então eu entro no deserto e
vou. Agora eu não vou ficar, porra, achando que aquilo ali é Genebra, porque não é.
CK: Você tira a roupa e sai andando...
PC: Eu já fiz isso uma vez, mas quase morri. Mas era
ignorância mesmo. Eu e ela [a Christina]. Mas eu entro
no deserto, sabendo que estou entrando no deserto.
Agora, eu não deixo de entrar no deserto porque ele
é um deserto.
CK: Essas foram as perguntas objetivas que surgiram
nesses últimos dias.
PC: Sabia! Eu pensei: “Vou dar respostas objetivas e
brilhantes”, coisa que eu consegui.
CK: Agora eu só vou te pedir uma lista de supermercado. Perguntei para a Chris sobre os filmes, ela me falou de “Blade Runner”, que foi importante para vocês.
Se você tivesse que pontuar a sua vida em filmes que
tiveram alguma importância, ou que te marcaram de
alguma maneira, que filmes são esses?
PC: O primeiro que me vem à mente é “Era Uma
Vez no Oeste”, onde eu vejo tudo aquilo que eu admiro num homem: a busca, a vingança, a conquista,
o amor. Eu acho que ali, a habilidade, a inspiração, o
desbravamento. Em seguida, acho que é “Laurence da
Arábia”, sabe? É o sujeito que se transforma pela circunstância. E que tem suas voltas, suas idas, sua vida,
e no fim é uma causa perdida, ele vê que aquilo tudo
171
vai ser manipulado pelo sistema. Mas eu acho uma
história muito bem contada, muito bonita plasticamente. Se David Lean estivesse vivo, eu pagava do
meu bolso para ele dirigir o meu filme, esse daí. Se
você quer a coisa impulsiva, seriam esses dois.
CK: E a coisa racional?
PC: Aí tem zilhões de filmes e diretores que eu gosto,
mas nenhum que descreva a minha vida ou que reflita
a minha alma.
CK: E fora David Lean tem algum outro diretor que te
emocione como ele?
PC: O Sergio Leone é um diretor que me emociona
muito, o David Lean é um diretor que me emociona
muito, o Scorsese me emociona algumas coisas, o Milos
Forman tem coisas boas, mas não é tudo. Incondicional
acho que seria Leone e David Lean. Aí vamos para o segundo time: Clint Eastwood – eu adoro tudo o que ele
fez, acho que aquele filme que ele ganhou o Oscar, “Unforgiven”, é maravilhoso, é um clássico. Tem filmes que
eu não gosto tanto, mas é um grande diretor. Buñuel é
um cara que tem coisas que eu adoro e tem coisas que
eu abomino. Mas eu sempre pagaria para ver um filme
do Buñuel, mesmo que eu fosse abominar. Eu acho que
são esses mais ou menos os meus ícones do cinema.
CK: E na música? Qual a música que você mais gosta?
PC: Uma música que sintetiza a condição humana:
“All You Need is Love”. É a música que sintetiza tudo
– e toda a obra dos Beatles, e tudo que você faz. Não
é a música que eu fico botando aí, mas é a música que
condensa tudo. Aliás, é um título que condensa tudo.
172
CK: E das que você fez, das que você escreveu?
PC: Aí a gente entra na abstração dos filhos – aí eu
gosto de todas.
CK: Mas não tem uma que tenha te marcado mais?
PC: Não. Teve uma que fez mais sucesso que foi “Gita”,
como “O Alquimista” fez mais sucesso como livro,
mas não quer dizer que...
CK: Não quer dizer mais para você do que as outras?
PC: Não, não. Eu sou mais agradecido, talvez, ao resultado.
CK: Ao resultado, mas não que você goste mais dela.
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PC: Não. Tem músicas que eu fiz sem gostar muito,
mas eu nem me lembro. Mas normalmente as músicas que fizeram sucesso, todas foram feitas com
muito amor. Não é verdade com os livros. Todos os
livros eu fiz com muito amor, mas nem todos fizeram
sucesso como eu gostaria.
CK: E dos livros, algum te marcou em especial?
PC: Nenhum também – quer dizer – mais grato ao
“O Alquimista”, porque me abriu tantas portas. Mas
todos, todos, sem exceção – talvez com uma exceção,
que é “O Demônio e a Senhorita Prym”, mas todos os
outros eu me botei inteiro.
CK: E livros de outras pessoas?
PC: O “Trópico de Câncer”, do Henry Miller, “Sherlock
Holmes”, Borges, completo – é um autor que eu releio, um dos raros autores que eu releio – Jorge Amado, George Orwell.
CK: E poesia – é uma coisa que te emociona?
PC: Não hoje em dia. Tem muitos poemas que eu gosto, tem poetas muito importantes para mim. No Brasil, eu diria que Manuel Bandeira é o meu poeta preferido, fora do Brasil é o Borges. E aí tem poesias que me
tocam mais do que outras, mas não é uma coisa que
hoje em dia eu leio com muita freqüência não. Eu já li
muito, e também acho que a poesia perdeu completamente a sua essência. Hoje em dia a poesia é a letra
de música. Se as pessoas gostam ou não gostam, é irrelevante. Mas a poesia virou a letra de música. Nesse
caso um grande poeta é o Chico Buarque. Tudo o que
ele fez é bom. Gilberto Gil...
174
CK: Do Chico e do Gil, tem alguma que você goste
muito? Qual seria a sua trilha?
PC: Do Gil, é difícil – eu gosto de quase todas. Ah,
perdão! Roberto Carlos também é um cara que eu
adoro, adoro.
CK: E depois daquele episódio da proibição da publicação da biografia dele, que você criticou publicamente, você teve alguma relação com ele diferente?
PC: Não, não. Eu não tive nem antes e nem depois.
Roberto Carlos está acima de qualquer coisa.
CK: E você ouvia muito Roberto Carlos?
PC: Ouvia muito.
CK: E tem alguma música dele que seja mais importante para você?
PC: Todas. Até um determinado momento, mas todas. “Quero que Vá Tudo Para o Inferno” é uma música que marcou muito. E além do mais, Roberto Carlos
era aquele cara que você tinha que gostar escondido.
E eu não gostava escondido, eu escancarava mesmo,
e foi uma das coisas que seduziu a Vera, porque eu
estava num grupo, e falei bem do Roberto Carlos. Aí
a Vera, a minha primeira mulher, me falou depois: “Eu
fiquei tão impressionada por você gostar de Roberto
Carlos e falar assim, publicamente”. Porque ele não é
um cara que as pessoas devem gostar – o patrulhamento, né? E eu gostava muito, adorava Roberto Carlos. Eu conheço todas as músicas dele de cor. Inclusive,
a Christina me deu de sessenta anos a caixa. Eram três
caixas. Aí eu comecei a ouvir indo para o aeroporto.
E eu nunca tive acesso ao Roberto Carlos. Encontrei
175
com o Roberto Carlos duas vezes só. Me lembro de
uma vez em Guimarães também, Portugal – me deu
uma vontade de pegar o telefone e telefonar e dizer:
“Porra, muito obrigado. Você não sabe o quanto você
foi importante na minha vida”.
CK: E você fez isso?
PC: Eu não tenho o telefone dele. Não tinha como –
isso é uma coisa no impulso, né? Se eu tivesse o telefone dele, na mesma hora eu faria – na mesma hora,
sem pensar duas vezes. É uma pessoa que foi muito
importante na minha vida, muito, muito, muito.
CK: Voltando às músicas do Roberto Carlos, você
sempre tem essa coisa das mulheres, da sedução, do
fascínio, mas você sempre teve essa coisa da companheira também.
PC: Ah, claro: gostei, casei.
CK: E é muito bonito, ver você e a Chris juntos, é emocionante.
PC: Claro – gostei, casei e liquidei o assunto. Com a
Christina agora, é para sempre, espero! Espero não, eu
tenho certeza.
CK: Eu queria essa sua definição de amor hoje.
PC: Amor – tem caras que definiram tão bem o amor.
Como é que você pode me pedir para definir o amor?!
CK: A pergunta é bem objetiva.
PC: A resposta vai ser objetiva: é a cola que gruda
tudo. Porra, que definição de amor. Vou ter que “twittar” isso. Tenho que escrever isso.
176
Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada
Nem fico sorrindo ao teu lado
CK: E o que é a vingança?
PC: Veja bem, quando eu falo que eu sou um cara
vingativo, eu também não vou perder o meu tempo
me vingando de uma cara que diz “ah, eu não gostei
do livro” ou que escreveu uma bobagem qualquer aí.
Eu não estou falando disso. Eu acho que isso está mais
ligado àquilo que a gente falou do inimigo.
CK: Você escolhe os seus inimigos.
PC: Eu escolho meus inimigos, e aí eu podendo, eu
sou uma força destruidora. Literalmente.
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CK: Mas alguém tem que merecer essa força. Senão
você não vai dedicar essa energia.
PC: Não, eu não vou dedicar essa energia. Porque no
manejo da espada, você não dedica energia nenhuma.
Olha, o Bakunin dizia que a arte de destruir é uma
arte criadora. Essa coisa que você vê na arte moderna
hoje, não há nada de mais patético. Porque eles destroem e não reconstroem nada. E a minha mulher é
das artes plásticas, então instalações – putz eu detesto isso, essas coisas todas.
pergunta quem é Jeff Koons. Ninguém sabe. Eles são
horrorosos. Entre Jeff Koons e Damien Hirst, eu ficaria mil vezes com o Damien Hirst, apesar do Damien
Hirst colecionar Jeff Koons. E possivelmente você não
sabe quem é nenhum dos dois.
CK: Da Chris?
PC: Não, da Chris, não, porque não são instalações.
São coisas palpáveis, você vê.
CK: Você gosta da Madonna?
PC: Adoro.
CK: E você gosta? Te emociona?
PC: Porra. Artes plásticas me emocionam profundamente. Eu vou dizer até uma coisa, que pode ser considerada uma heresia – e não é – mas Picasso tinha
que ter morrido antes. Chegou num momento de
desconstrução ali, pronto e acabou. Porra, pelo amor
de Deus, para que complicar. E eu sou muito mais
Salvador Dalí, com todos os problemas políticos que
ele acarreta. Porque ele é um cara que na destruição,
ele está reconstruindo muito bem. Tanto é que nos
primeiros dinheiros que eu ganhei, assim, que eu já
podia comprar uma coisa cara e não falsificada, numa
galeria, foi um Salvador Dalí. Queria ter comprado um
Roy Lichtenstein também, mas a Christina não deixou. E queria ter comprado um Andy Warhol. Acaba
ali. Para mim a história da arte acaba nesse momento,
em Andy Warholl. O resto eu acho inexistente. Eu e o
resto do mundo, né? Pergunta quem é Damien Hirst,
178
CK: Sei.
Paulo: Sabe? Porque que hoje em dia esses caras são
apagados. E olha que são os papas do... A Madonna
do...
CK: E ela gosta de você.
PC: Ela gosta de mim.
CK: E o Paul McCartney gosta de você.
PC: Não sei.
CK: Mas vocês se conheceram, né?
PC: Mas isso não quer dizer nada. Eu não sei se o Paul
McCartney gosta de mim, mas eu gosto muito dele.
Eu fui no show do Maracanãzinho, essas coisas todas.
[Paulo cantarola “All You Need is Love”]
CK: E “Imagine”?
PC: Não, não. Não é a minha viagem! Já foi, já foi há
muito tempo, mas não é por aí. Porra, eu era John
Lennon cem por cento, e foi um cara muito interessante, continua sendo, uma vida muito interessante.
E a do Paul, muito boboca. Mas “Imagine” é que nem
179
aquela poesia “Ser”, do Rudyard Kipling, já ouviu falar? É uma poesia que você aprende quando é criança. É uma música que – É muito mais honesto dizer
“The dream is over”, do que dizer “You may say I’m
a dreamer”, porque se o sonho acabou, aí você pode
pensar em recomeçar um novo sonho, agora continuar sonhando – não é por aí. “Imagine”! Lá atrás fazia
muito sentido, porque era a minha música preferida.
Ficou anos sendo a minha música preferida. Depois
eu mudei.
CK: Então vamos voltar a falar de sonho. Em vários
momentos você fala isso – o medo de realizar o sonho e não ter mais o que sonhar, não ter mais objetivos. Ontem quando eu te perguntei isso, você falou
que era ir até o fim, e hoje você me falou que ir até
o fim é a morte. Esse ir até o fim, o seu novo sonho
então, é continuar sendo um escritor?
PC: Não é um novo. É o meu sonho desde criança.
CK: Não, ser escritor era o seu sonho desde criança,
mas você realizou e se tornou um escritor famoso.
Tem algum degrau a mais?
PC: Muitos, muitos.
CK: E qual é o próximo?
PC: Não sei. Mas você não começa um caminho
achando que esse caminho tem um final, porque aí
não é um compromisso com a vida. Então quando
chega ao final o que vai acontecer? Vai mudar de caminho? Então o próximo, é o próximo livro, e depois,
é o próximo livro. Então, o meu sonho agora é ser
comprometido com aquilo que eu decidi fazer.
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CK: Nos seus livros você se expõe muito, eu estava
falando disso com Chris hoje, como foi para ela, ver
Paulo e Chris no deserto como personagens de livro.
PC: E que eu estou paquerando outra mulher.
CK: É. Exatamente. E não é protegido, não é a correspondente de guerra, e ali tem coisas da relação de vocês, e
de conversa de vocês. É muito explícito, é muito visível.
PC: É bom que seja visível?
CK: Para mim, é. Eu pergunto se para vocês é?
PC: É claro! A libertação através da verdade. Imagine
ser enganada. Quem foi? O Tiger Woods. Porra, que
saco, que coisa mais chata, que ingenuidade, que ingenuidade! Vão descobrir, mais cedo ou mais tarde que
o cara tem umas amantes, muito mal escolhidas por
sinal. Eu escolho muito melhor. Então se falarem “o
Paulo Coelho tem uma amante!”. Não só uma, várias.
CK: E essa coisa de andar, de não ficar parado no mesmo lugar, como você fazia com o emprego, e saía para
viajar. Sempre foi assim?
PC: Sempre foi assim; se eu não andar, eu enlouqueço.
Porque eu trabalho em casa, então você não tem esse
ritual de sair de casa, então não só eu enlouqueço,
como tenho a sensação de que eu não vivi aquele dia.
É claro que acontece de dias que eu não ando. Uma
vez por semana, inclusive, eu não ando, porque eu
não tenho tempo, estou com preguiça. Mas normalmente eu ando mesmo com preguiça, e aí quando eu
começo a andar, a preguiça passa. Agora, mudar de
casa, porra, não. Eu sei que eu vou mudar, mas eu já
mudei tanto de casa. A gente estava contando outro
181
dia, quantas casas cada um tinha mudado, e eu não
sei quem estava na mesa, mas eu já tinha mudado
umas vinte e duas vezes. Chris? Você estava na mesa
quando a gente estava comentando quantas casas as
pessoas viveram?
CK: A Chris me contou de duas mudanças, que vocês
estavam num lugar que o cara tinha se suicidado. Em
geral, o que motiva você a se mudar?
PC: Nada. Essa daí foi a única vez que isso aconteceu.
CK: Foi a única que foi assim.
PC: É, acho que foi a única.
CK: O resto é uma decisão pratica, objetiva.
PC: Teve a casa de Cabo Frio. Ela te contou do cemitério?
CK: Foram as duas que ela me contou.
PC: A casa de Cabo Frio não foi nem uma mudança, a gente resolveu não passar ali e depois eu vendi
a casa. Eu não vou morar em cemitério! Era uma casa
de praia, então não tem a conotação que você dá a
uma casa onde você mora.
CK: De praia. Falando de casa de campo e casa de
praia, eu conheço duas casas de vocês – a de Paris e
aqui [em Genebra], e elas são mais reservadas, você
não está em Paris olhando para a Torre, né?
PC: Não, Deus me livre! Não só ia ser mais caro, como
o espaço ia ser mais apertado. Era uma casa de 3 andares. Perto do Borges – foi a única coisa que eu gostei. Mas mesmo assim, minha admiração por ele não
chega ao ponto de querer ser vizinho dele, porque
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aliás ele está no cemitério aqui, e eu serei cremado.
Então nem ser enterrado ao lado dele eu serei.
CK: Só o apartamento do Rio, que é diferente do resto.
PC: A Christina te contou como foi que ela comprou
esse aqui?
CK: Não. Ela falou do jardim, que vocês tinham um
jardim no Rio de Janeiro...
PC: Mas que não tinha vista nenhuma, era no térreo,
na Raimundo Corrêa. Eu me virei para ela e disse “a
permissão de minha residência é Genebra, né? Quer
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saber de uma coisa? Vou comprar um apartamento em Genebra”. Só que eu não aguento comprar
apartamento! É uma coisa que eu acho insuportável,
procurar apartamento. O mesmo ocorreu com Paris,
procuramos dois ou três apartamentos e nada. Aí eu
disse “ah, o apartamento vai se mostrar”. Aí um dia eu
fui para Paris, e tinha esse meu amigo, Jean Pierre, ele
disse “estou vendendo um apartamento” e eu disse
“vamos dar uma olhada”. Foi literalmente assim: “Estou vendendo o meu apartamento, você quer vim dar
uma olhada?” – eu estava indo do aeroporto para Paris, para um hotel – eu disse, “Vou. Então te espero na
porta do apartamento”. Entrei, olhei e comprei. Nem
vi se tinha vista ou não. E aqui eu disse para Christina
assim: “Você compra um apartamento em Genebra,
você tem 3 dias para comprar o apartamento”. E todos dizem que ninguém consegue um apartamento
em três dias. É óbvio que ninguém consegue, porque
as pessoas ficam procurando, procurando, durante séculos. Aí a Christina veio e achou e falou que ia
comprar esse apartamento, no que fez muito bem.
CK: A sua residência em Genebra – por quê?
PC: Porque se eu morasse em Paris, eu tinha muito
imposto para pagar.
CK: E a vontade de sair do Brasil, fora conhecer o
mundo, teve alguma outra motivação ou não?
PC: Não. Não tem nenhuma outra motivação, não.
Quem resolveu mudar, foi a Christina, lá no Rio. Eu
por mim, ficava na Raimundo Corrêa, mas foi uma
decisão dela. Ela chegou em casa com uma chave na
mão e disse assim: “Eu comprei um apartamento na
Avenida Atlântica”. É um espaço completamente vazio, é um apartamento de 5 quartos, a gente destruiu
todos, então a sala e a sala de jantar passaram a ser o
nosso quarto, e os outros quartos lá atrás, passaram a
ser a nossa sala. E tem um jeito de fechar uma porta
e virar um quarto extra, mas de preferência eu pago
hotel, você foi muito bem-vinda, mas normalmente
não somos chegados a hóspedes. Tem gente que adora, né?
CK: E vocês têm uma natureza mais reclusa.
PC: Eu tenho essa natureza mais reclusa há muitos
anos, há décadas. Antigamente engatava seis meses
de viagem, hoje eu não tenho saco não.
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TÍTULO #07
Mônica Antunes, fevereiro de 2010
In nobis expedis et vit aliqui omnis dolori dem doluptur? Sum, te
dendit, nis sundelliqui am, unt la dolupta tectionem faccuptatur,
venihil ibuscimusda dolore sam ipicienis dusdandest fugiant odis as
erust odit, omnist doluptat magnit, elic tem rae voluptae acepedit
quiat porecti iumque voleni culpario aceprat quiatiscid modi nonsequo offictat exerovi tiniet, ut volenis vel ma volumquam.
CK: Vamos começar do começo, Mônica. Qual foi a
primeira informação que você teve do Paulo?
Mônica: A primeira informação foi o Eduardo [ex
-marido de Mônica]. A gente estava num grupo de
teatro, acho que em 1988. Eu não preciso dizer nome,
né? Porque eu teria que me lembrar, teria que usar
muito a memória. Enfim, nesse grupo de teatro, o diretor tinha recomendado o “O Diário de Um Mago”,
mas eu não tinha registrado.
CK: E o diretor conhecia o Paulo?
Mônica: Não. Ele tinha recomendado, mas eu não tinha registrado nem o livro, nem o nome, eu não tinha
me interessado. E o Paulo tinha acabado também de
publicar “O Alquimista”. Era o segundo livro. Ah, me
lembrei! O diretor recomendou pra gente mudar o
nome do grupo de teatro para “Alquimistas de Ágape”; por causa do “O Alquimista”, que acabava de sair
e “Ágape” pelo “O Diário de Um Mago”, mas a gente
já levava esse grupo de teatro desde 1987.
CK: E você é atriz?
Mônica: Bom, primeiro eram aulas de teatro, como
atriz, era um curso de teatro.
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CK: Você tinha que idade?
Mônica: Dezoito anos. E ele montou esse grupo de teatro, eu vinha já fazendo as aulas, eu não sei se desde
1986, 1987, enfim era como aula mesmo. Mas enfim,
aí ele resolveu que seria bom a gente mudar o nome
do grupo de teatro para “Alquimistas de Ágape”, e o
Eduardo leu o “O Diário de Um Mago”, eu acho, não
me lembro.
livro. Eu não saia com o Eduardo na época, a gente só
era do mesmo grupo de teatro, e eu comecei a ler o
“O Diário de Um Mago” em setembro de 1988. E eu
gostei, mas nada que tivesse me movido mais além
do que um bom livro que eu tinha gostado, só que eu
tinha parado na parte do Cebreiro, antes dele encontrar a espada, justo antes. Faltavam umas 40 páginas,
eu não tinha completado o livro.
CK: E o Eduardo participava do grupo de teatro também?
Mônica: Participava, a gente se conheceu no grupo
de teatro. E foi o Eduardo que me recomendou o livro,
que ele tinha gostado muito, e que eu deveria ler o
CK: O que mostra que realmente você não tinha se
envolvido.
Mônica: Pois é, eu tinha gostado normal. E eu acordei numa noite de novembro, às 4 horas da manhã,
e eu pensei: “Você tem que terminar essas 40 páginas
do livro agora!”. Então eu peguei o livro e terminei. E
foi justo quando o Paulo chega no Cebreiro, e ele encontra a espada, e aquilo me moveu tanto, mas tanto
naquela noite, que eu já não voltei a dormir, e no dia
seguinte eu tinha que ir para a universidade.
CK: E você estava estudando...
Mônica: Engenharia Química na UERJ. E a gente tinha,
isso eu me lembro, era uma quarta-feira, e na quintafeira a gente tinha que estudar e tinha prova na sextafeira, e tínhamos marcado na biblioteca um grupo de
quatro pessoas que a gente estudava diferenciais juntos, e eu chego com o livro, já às 8 horas da manhã, animadíssima, que eu tinha lido, que eu tinha que ler para
as pessoas, que era uma parte maravilhosa, e eu leio
essas partes e as pessoas me falam: “Não dá para você
ler na sexta-feira? Porque hoje a gente tem que acabar
de estudar e na sexta a gente escuta tudo o que você
quiser ler”. E aí eu falei: “Não, não, eu tenho que ler hoje,
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porque é muito importante, eu li essa noite”. Então naquela quinta-feira eu não deixo ninguém em paz, mas
acabo fechando um pouco a boca, estudo um pouco e
de noite, com o dia inteiro na biblioteca, o grupo fazia
uma representação num café bar e eu decido ir. E eu estava de bermuda e camiseta, eu me lembro bem, eu estava de bermuda bege e uma camiseta de veludo. E eu
chego e mostro que eu estava com o livro que eu tinha
acabado de ler, que eu tinha adorado, só que no grupo
de teatro todo mundo tinha lido, eu era a única que
não tinha lido o livro. Aí eu estou lá e de repente, eu
não sei se foi o diretor do grupo ou o Eduardo, eu não
me lembro quem foi, falou: “O autor do livro está aqui”.
Eu falei: “Como?”. E aí ele falou: “Sim, sim, é aquela pessoa sentada ali”. E me mostrou. O Paulo tinha ido com
o amigo dele, o Chico, e uma amiga do Chico, que é um
amigo dele de muitos anos. Então os 3 estavam numa
mesa, porque era um café bar, e eu tinha sentado mais
atrás, e eu fiquei muito curiosa, muito surpreendida do
Paulo estar ali, e eu fiquei olhando para ele de trás, ele
não via que eu estava olhando para ele. E o Paulo tinha
ido porque ele tinha achado muito simpático ter um
grupo de teatro que levasse o nome dos dois livros. Isso
a gente estava em novembro de 1988.
CK: Ele não era conhecido ainda.
Mônica: Eu acho que tinha vendido 5 mil cópias [de
“O Diário de Um Mago”]. “O Alquimista” tinha acabado de sair. Acabado de sair.
CK: Mas não tinha rompido ainda com o editor?
Mônica: Não, não, ainda ia dar errado, estava ainda
com este editor e o “O Diário de Um Mago” levava uma
190
maior carreira, tinha mais público, tinha mais duas ou
três edições, mas mesmo assim, não falamos em mais
de 10 mil exemplares. Eu não sei porque cargas d’água
tinha caído no diretor e que tinha sido, creio eu, um
dos primeiros núcleos de recomendação do livro.
CK: E você sabe como o Paulo ficou sabendo disso?
Mônica: Sei, depois eu soube, ele, no fim-de-semana
anterior tinha sido o meu aniversário, e eu tinha feito
uma festa, e quando o diretor do grupo, que era um
pouco mais velho do que a gente, tinha saído do meu
aniversário, ele cruzou com o Paulo na rua, e falou:
“Você não sabe, a gente tem um grupo de teatro inspirado nos seus livros e tal”. E o Paulo ficou muito surpreendido, e o diretor falou que quinta-feira ia acontecer uma representação num lugar tal, a tal hora.
CK: E você não sabia nada disso?
Mônica: Não sabia nada disso, e ele também não achava que o Paulo ia. Eles tinham se encontrado na rua.
Então nessa quinta-feira que eu não iria, que eu tinha
dito que ia estudar por causa da prova no dia seguinte,
quando acaba a apresentação, o Paulo vira para trás e
diz: “Por que você me olhou a representação inteira?”.
E eu fui, tirei o livro da bolsa e disse a ele que justamente porque nessa noite eu tinha acabado de ler o “O
Diário de Um Mago”, e contei para ele um pouco da
história, que eu tinha acordado de madrugada.
CK: E se ele não tivesse vindo falar com você, você
teria tido coragem de falar com ele?
Mônica: Não, não teria, eu acho que eu não teria ido.
E aí eu mostrei para ele o livro e contei a história, e ele
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não esperava essa do livro também, ele ficou muito
surpreendido, porque ele não tinha muitos leitores,
ele estava numa apresentação de teatro, alguém vai
e tira um livro da bolsa. Ele viu o meu entusiasmo, ele
ficou com os olhinhos brilhando, né? Puxa, ir numa
representação de um grupo amador e ver todo o entusiasmo que ele tinha, por ter influenciado um grupo de 15 pessoas que fosse. E o Paulo falou: “A gente
vai no Leblon”. Aí eu acabei indo.
Eu fui me sentindo culpada, porque eu tinha prova no
dia seguinte, já estava ficando tardíssimo. Mas eu fui lá
e o Paulo era como ele é hoje, detesta programas que
terminam depois da meia-noite, então foi uma coisa
rápida, entramos no bar e já saímos. Então a gente foi
e eu conheci a Christina nesse mesmo dia. Enfim, logo
fomos embora, e nesse pequeno encontro eu tinha
pedido se o Paulo podia autografar o livro, só que eu
contei que o livro não era meu, era emprestado. E o
Paulo, muito esperto, falou: “Não, se você comprar o
livro, eu te autografo, mas esse eu vou autografar para
a dona do livro!”. Eu falei: “Não, você tem razão, o livro
não é meu”. E ele autografou e eu levei para ela.
E a gente marcou de se encontrar um dia para ele
assinar o meu livro, no centro do Rio de Janeiro, na
Colombo, para tomar um café. E quando eu encontrei
com o Paulo nesse dia, ele falou: “Eu não posso mais ir
na Colombo, porque você não sabe o que aconteceu.
O editor não quer imprimir a próxima edição do “O
Alquimista”, ele disse que o livro não vende. Então eu
tenho que ir no Rocco porque eu marquei uma reunião e eu vou tentar que ele publique “O Alquimista”.
Então nós não entramos na Colombo, nós fomos diretamente para o Rocco.
CK: Ah, então isso não foi por telefone?
Mônica: Não existia telefone móvel, claro. Você marcava um dia e tinha que se encontrar. Ele tinha sabido
aquela manhã e o Paulo, sabe como é, ele tinha que
CK: Que era um jeito de te encontrar de novo.
Mônica: E de vender um livro, né!
CK: Era mais uma cantada ou era mais um bom negócio?
Mônica: Era um bom negócio, encontrar uma leitora!
Era uma questão econômica. Então ele me deu o telefone, e passou uma semana, eu não sei quanto tempo
passou, eu fiz a prova, acho que eu passei, e na semana seguinte eu comprei o livro. Aí eu liguei para o
Paulo e avisei que tinha comprado o livro.
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resolver aquilo no mesmo dia e não no dia seguinte.
Então nós fomos andando até o Rocco, e quando nós
chegamos eu estava com uma bermuda rosa e uma
camiseta branca, e o Paulo falou: “Você não pode entrar com essa bermuda, você vai estragar o meu negócio, você não entra comigo, você fica esperando aí
na sala de espera”.
CK: Mas você chegou a pedir para entrar?
Mônica: Não, eu estava um pouco querendo entender o que estava acontecendo. O Paulo tinha levado
umas listas dos mais vendidos nos pontos de venda,
que mostrava como o “Diário” vendia bem, que a
gente foi pegando em algumas livrarias antes de ir ao
Rocco. E o Rocco, por umas inspirações divinas, disse
sim, sem saber do que se tratava, no momento ele
não tinha nem ideia do que se tratava “O Alquimista”.
CK: A única informação que ele tinha é que era um
livro que tinha dado errado.
Mônica: Exatamente. Aí o Paulo fala com o Rocco e
quando eles saem na sala de espera, ele me apresenta:
“Essa é uma leitora”. O que era total verdade, né? Daí,
nós saímos de lá e fomos nesse editor que não queria
publicar “O Alquimista”. Porque uma das condições
da negociação com o Rocco é que o livro não falhasse
para a campanha de Natal, o livro estava esgotado.
Então o editor antigo tinha que entregar os fotolitos
para que o Rocco pudesse reimprimir para o Natal,
senão, não dava tempo.
CK: E nessa conversa você entrou?
Mônica: Nessa conversa eu entrei.
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CK: E em que tom foi a conversa?
Mônica: Foi bem, porque, afinal, foi o cara que tinha
rejeitado o Paulo e não o contrário.
CK: Ele não queria mesmo?
Mônica: Ele não viu o “O Alquimista”, ele viu o “O
Diário de Um Mago”.
CK: Então, mas aí ele resistiu a entregar o “Diário”?
Mônica: Eu acho que ele resistiu um pouquinho. Mas
eu não tenho isso muito claro. Mas não foi fácil, ele
resistiu sim.
CK: E você lembra de como foi esse diálogo? Que argumentos o Paulo usava? Ou que palavras o editor
usava para criticar o “O Alquimista”?
Mônica: Não, ele não criticou o “O Alquimista”. É
como a gente fala, era uma conjunção de vários fatos,
não tinha nada a ver com o livro, nenhum editor diz
que o livro é ruim, e sim aquela coisa de que “o mercado pede outra coisa”, enfim, esse tipo de conversa.
Jamais se atacou o livro, você ataca o mercado e não o
livro. Ele achava que a editora dele publicava livros, digamos, mais espirituais, new age, uma coisa mais direta como o “O Diário de Um Mago”, do que uma fábula.
Ele não via isso para o mercado que ele vendia, ele via
que para ele era difícil, mas ele não atacou o livro.
CK: Ele tinha imprimido 3 mil exemplares, é isso?
Mônica: Eu imagino uns 3 mil livros do “O Alquimista”, não sei ao certo, mas não tinham sido muitos,
mas ele viu o “O Diário de Um Mago” e eu sei que
demorou um pouco, mas ele cedeu, tampouco foi
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E eu fui e fiquei com o Mandarino, porque eu era uma
das poucas pessoas que conhecia o Mandarino e ele era
a única pessoa que eu conhecia na festa. E era tudo muito louco, porque eu faço aniversário dia 13 de novembro,
a Chris dia 23 de novembro, então tudo isso se passou
em 10 dias ou duas semanas, entre os dois aniversários.
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uma coisa que ele tenha resistido muito, ele entregou
os fotolitos, o livro saiu no Rocco, e eu também só
fui a essa conversa. O que eu me lembro é que ele
tinha uma poesia do Paulo na parede da editora e era
uma poesia que o Paulo tinha escrito, eu acho que
quando ele viajou para a Europa com a Chris nos anos
70 ou 80, 81, em que o Paulo diz um pouco que em
cada país que ele tinha ido, tinha ficado um pouquinho dele. Então era um pouco assim, ele ia contando
um pouco dessa viagem, e o cara tinha isso lá, então
eu vi que eles tinham tido uma relação. E o editor, eu
lembro que ele fala, “Eu gostaria de um dia ser assim,
de também poder viajar e ter um pouquinho de mim
em cada lugar”. Bom, depois a gente saiu de lá, o Paulo
conseguiu os fotolitos, e o Rocco publicou o livro. A
partir daí, eu não entrei mais em reunião nenhuma,
nem com o Rocco e nem com o Mandarino [o primeiro editor], e logo depois disso foi o aniversário da
Chris, de 40 anos, e eles tinham feito uma grande festa, e o Paulo me convidou para o aniversário.
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CK: E até aí, a sua impressão do Paulo, qual era?
Mônica: Uma pessoa que estava lutando pelas coisas.
A história do que estava acontecendo, eu via muito
como o “O Diário de Um Mago”, que ele estava lutando, ele estava buscando. E eu tinha gostado muito do
livro e um pouco dessa história que eu tinha entrado
era como num cinema mesmo, né?
E a partir daí, o Paulo, por alguma razão, eu não acho
que o Paulo tenha se apaixonado por mim, nem muito menos, mas algo tinha atraído ele muito em mim,
então ele começou a me enviar flores todos os dias.
CK: Mesmo? E dizendo o quê?
Mônica: Não dizia nada, mas eu sabia que era dele,
porque eu não conhecia mais ninguém que poderia
me enviar flores.
CK: E como foi que você descobriu que eram dele?
Mônica: Por que quem iria me enviar flores? A única
pessoa nova na minha vida era o Paulo.
CK: Que flores ele mandava?
Mônica: Rosas, cor de rosa. E a minha casa era uma
casa pequena, em Botafogo.
CK: E você morava sozinha?
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Mônica: Não, com os meus pais, mas era um apartamento pequeno de 70, 80 metros. E não cabiam mais
flores.
CK: E o que sua mãe dizia?
Mônica: Ela não dizia nada, eu dizia: “Eu acho que é o
Paulo”. Era um bouquet por dia, anônimo, e eu liguei
para ele um dia e falei: “É você que está enviando as
rosas, porque eu não conheço mais ninguém, quem é
que vai estar mandando essas flores?”.
CK: E ele falou o quê?
Mônica: Ele falou que era ele mesmo. E marcamos de
nos encontrar na saída da minha faculdade.
CK: E do seu lado tinha algum encantamento ou só
uma curiosidade de ver o que ia acontecer?
Mônica: Eu via tudo pelo lado muito mágico, o livro tinha me impactado muito, e aquilo não tinha explicação.
O livro não, 40 paginas do livro. O livro não tinha me
impactado até que eu acordei de noite e terminei o livro.
CK: Então você estava assistindo um filme?
Mônica: Um filme. As rosas faziam parte do filme,
tudo era um filme.
CK: Porque tudo isso é encantador, né?
Mônica: De repente aquele livro que eu tinha gostado, aquele editor, tudo aquilo era muito um filme.
CK: E você sabia do envolvimento do Paulo com o
teatro, você tinha alguma informação?
Mônica: Eu não sabia quem era o Paulo, eu não tinha
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a menor ideia. Raul Seixas eu conhecia, mas eu não sabia da relação. Quando o Raul Seixas morreu, eu estava com o Paulo, e a Christina falou: “O Raul morreu”. E
eu perguntei “que Raul?”, e o Paulo falou “Raul Seixas”.
Eu falei: “Ah!”. E saí andando.
CK: Quer dizer, você não tinha informação nenhuma.
Mônica: Não tinha.
CK: O encantamento era pela situação.
Mônica: Pela situação extraordinária que tinha se
apresentado. Uma vida de uma engenheira química
de Botafogo, que faz engenharia, que faz teatro, e era
a pessoa menos espiritual de todo o grupo, sabe?
CK: Bom, vamos voltar para as rosas.
Mônica: Eu liguei para o Paulo e a gente combinou
de se encontrar. E eu não me lembro como foi a conversa, mas enfim, a gente conversava muito sobre as
coisas de magia, não de livro.
CK: E você tinha algum interesse anterior nesse tipo
de assunto?
Mônica: Não, eu fiquei curiosa a partir dali.
CK: E ele já levava isso super a sério?
Mônica: Levava muito a sério. E eles tinham acabado de voltar do Deserto de Mojave, então o Paulo
me contou toda a história do deserto, das Valkírias,
muito antes dele escrever “As Valkírias”. E eles tinham
acabado de voltar de lá, então era tudo muito mágico.
Era uma coisa que eu levava a sério, eu tinha acreditado
muito no livro, era como se eu tivesse feito o Caminho
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de Santiago também, eu me lembro que as conversas
eram muito sobre as histórias dele e sobre a magia.
CK: Então alguém previu tudo isso?
Mônica: Foi com esse senhor, que morreu.
CK: E esse assunto só entrou na sua vida depois do
livro?
Mônica: Só. Totalmente.
CK: Você lembra o nome dele?
Mônica: Artur. Não lembro do sobrenome. Era na
Tijuca, era um apartamento muito simpático. Ele era
um velhinho. Depois, quando eu já estava trabalhando com o Paulo, eu queria ter voltado lá, mas ele tinha
morrido. Eu fui procurar, tentei encontrar e aí eu soube que ele tinha morrido.
CK: Você não era de “I Ching”, tirar cartas, vidente,
horóscopo?
Mônica: Não, eu tinha ido sim, como qualquer adolescente, mas eu não era de comprar livros, ou “Ah, eu vou
aprender um lado interior, ou meditação”. Nada disso.
CK: E nenhuma cartomante te disse que ia aparecer
um mago na sua vida?
Mônica: Uma das pessoas que eu fui, ele ficou absolutamente fascinado, então ele queria que eu fosse grátis, ele queria ficar na minha vida, ele era um vidente,
vidente de letra, de caligrafia, né?
CK: Você escrevia alguma coisa e ele interpretava?
Mônica: É, eu escrevia o meu nome.
CK: Pouco tempo antes?
Mônica: Um ano. E ele tinha dito que eu ia trabalhar
com cultura. Imagina ouvir isso naquela época. E que
eu ia ter muito sucesso, muito sucesso. E foi ele que
me disse: “Nunca assine Mônica Antunes seguido,
porque A com A não funciona, ponha o R no meio,
sempre Mônica R. Antunes”. Eu tinha o quê? Dezoito anos. Eu nem conhecia o Paulo ainda. Então foi a
maior relação, digamos, com o lado mais mágico.
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CK: E aquilo te marcou de alguma maneira ou você
não levou aquilo a sério?
Mônica: Quando você é jovem, é muito futuro, né.
Era muito longe.
CK: Mas você lembrou disso quando encontrou o
Paulo?
Mônica: Não, eu só fui lembrar depois, quando eu
encontrei o mapa astral. E ele disse várias coisas, inclusive que eu ia morar fora do Brasil. Mas na época
tudo eu achava ótimo, era maravilhoso, um conto de
fadas, mas depois voltava pra minha realidade. Então
eu fui numa conferência sobre as pirâmides e o Paulo
tinha ido às pirâmides, então ele conhecia a moça que
estava falando. Depois eu fui para a casa com a minha
mãe e o Chico, amigo do Paulo, me falou: “Quando
você for comer, um copo de vidro vai estourar”. E o
copo estourou.
CK: Está brincando? Do nada?
Mônica: Do nada. Aí eu liguei para o Paulo e ele falou:
“Não, é porque você não acredita nessas coisas, mas
201
existe o poder da mente”. Então, todas as conversas
eram muito mágicas, percebe? Ele disse: “A gente simplesmente focou que o copo ia estourar, e você também focou. Como a gente disse isso, você ficou com
aquilo na cabeça”.
CK: E estourou na sua mão?
Mônica: Estourou na minha mão. Mas ele tinha dito
que o copo ia estourar, não era uma coincidência, então tinha toda essa ligação.
CK: E você dizia para ele que você não acreditava?
Você questionava de alguma maneira? Era como se
isso fosse uma prova?
Mônica: Eu era muito religiosa, eu sempre fui muito religiosa, então eu acho que uma das coisas que
o Paulo ficou muito impressionado, foi nesse dia da
Colombo, nesse primeiro dia, como a gente estava na
cidade, a gente tinha passado em frente a uma igreja,
não me lembro que igreja era, mas eu era um pouco
familiarizada porque eu tinha estudado no centro do
Rio, e eu falei: “Ah, eu vou entrar nessa igreja um segundo, você espera aí”. Aí ele entrou também, e eu tinha um terço na bolsa, então ele ficou positivamente
impressionado que eu fosse religiosa. Eu era religiosa,
mas não tinha nenhuma outra coisa. Não era a minha
praia copos que estouram.
CK: Não era para provar nada, mas era para te impressionar?
Mônica: Era mais para me impressionar, mais do que
para provar qualquer coisa.
Mas sempre aconteciam coisas, um dia que ele foi me
202
buscar na análise, o carro dele quebrou ali no meio
da saída do cemitério. E eu falei: “Você espera, eu vou
fazer isso, abre o capô”. Ele ficou muito impressionado que eu sabia consertar o carro. Eu não conhecia
ninguém que estourasse copo, mas ele também não
conhecia ninguém que consertasse carro. Dois universos paralelos. Eu sei que foi quando terminou um
pouco a história das rosas e o carro.
CK: Mas na história das rosas, você achou que era
uma coisa mais romântica?
Mônica: É, um pouco.
CK: Porque eu fico imaginando, uma menina de 18
anos receber rosas todo dia, é muito encantador, né?
Mônica: Mas é que existia o elemento surpresa constante, que eram as rosas, mas eram também os copos
que estouravam, os carros que quebram, eram muitas
coisas. Livros que não se publicam e enfim, eram coisas
203
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
muito fortes, e sim, eu achava que tinha um componente romântico, não só a questão das rosas, mas a atenção,
da gente estar sempre se falando, ou em contato.
CK: Isso te deixava um pouco tensa ou não?
Mônica: Não... Aí chegamos num dia, que foi em dezembro, e eu tinha combinado com o Paulo da gente
se encontrar na sexta-feira de noite e não mais às 4
horas da tarde, então o código tinha mudado, tinha
um componente romântico. E nesse dia o Eduardo
chega na minha casa às 7 horas e diz: “Por que a gente
não vai jantar?”. E eu não vou no encontro com o Paulo, eu ligo para ele e digo que não vou. Muito tempo
depois, porque a gente deixou de se falar a partir daí,
o Paulo me contou que ele estava plantando o jardim
dele e que na hora que o telefone tocou, ele se cortou
e ele sabia que eu estava desmarcando o nosso encontro, acabando com aquela história. Aí eu comecei
a sair com o Eduardo.
CK: E o Eduardo não sabia?
Mônica: Não sabia de nada, nem das flores, de nada.
Ele tinha decidido ir na minha casa aquele dia.
CK: Nossa, é tudo muito encaixadinho. É como quando eu conto a história desse filme, ninguém acredita,
vão dizer que é coisa de roteirista.
Mônica: Era muito de filme, eu me lembro sentada
no sofá, abro a porta e fico olhando o Eduardo, tipo...
Eu ia tomar uma outra decisão dentro de uma hora.
E daí eu falei pro Paulo que não ia e nós não marcamos para o sábado ou para o domingo. Porque não
era mais o mesmo código de sexta-feira.
204
CK: Não era mais um encontro entre amigos. O fato
dele ser casado te incomodava? Você falou sobre isso
com ele?
Mônica: Eu nem cheguei a pensar que eu pudesse ter
uma relação com o Paulo. Primeiro, que eu não tinha
me apaixonado por ele, e ele muito menos, mas tampouco eu via isso, era uma coisa impossível. Eu tinha
conhecido a Chris, eu não achava que isso ia acontecer,
não via futuro. Mas que uma coisa muito forte nos ligava era patente, era muito explícito, mas não era uma
relação sexual para mim, eu não estava apaixonada.
Nunca me passou isso, nem via o rompimento dele
com a Chris. E o Paulo tampouco estava me seduzindo
sexualmente, porque ele tinha feito uma promessa na
época que ele não poderia seduzir ninguém até o ano
seguinte, isso eu também soube depois.
CK: E como foi que vocês voltaram a se falar? Você
lembra se foi você que ligou ou se foi ele?
Mônica: Acho que a gente se falou por causa do livro,
que aí o livro saiu pelo Rocco em dezembro.
CK: Você leu o “O Alquimista” em dezembro?
Mônica: Li de férias.
CK: Mas na época que vocês estavam sem se falar?
Mônica: Sem nos falar. Eu comprei o “O Alquimista”,
eu fui para a casa de um amigo e foi lá que eu li o
“O Alquimista” e eu gostei muito do livro, achei que
tinha uma comunicação imensa.
205
TÍTULO #08
Mônica Antunes, fevereiro de 2010
Mônica: Quando eu li o “O Alquimista”, eu nem sei
se eu liguei para o Paulo para comentar. A gente realmente voltou a se falar quando eu vim para a Espanha, quer dizer, a gente se falou, eu sabia que o livro
tinha saído pelo Rocco, eu acho que liguei para ele
para contar que eu tinha gostado muito do “O Alquimista”, e o Paulo me pediu para ajudar a promover o
“O Alquimista” e o “O Diário de Um Mago”, então eu
distribuía folhetos na faculdade, pregava pôster por aí.
CK: Foi um pedido que veio dele?
Mônica: Que veio dele, então a gente continuou se
falando, mas não com a magia, a magia acabou no dia
da rosa, no dia que ele estava plantando uma rosa no
jardim dele, eu acho que era uma rosa, porque ele se
cortou. Então essa parte mágica acabou e ficou uma
parte prática, uma amizade que existia realmente,
uma grande admiração pelo livro, e eu queria ajudar
que esse livro funcionasse, então eu acho que a gente
deve ter se encontrado algumas vezes, até para pegar
os cartazes, e o Eduardo até me ajudava a pregar os
cartazes nas faculdades.
CK: Na sua cabeça ainda era uma coisa por amizade?
Mônica: A magia tinha terminado, eu ali também
entendi que era uma escolha.
CK: Você tinha entendido que era uma escolha, mas
você via esse movimento de divulgar o livro como
uma coisa profissional ou era uma possibilidade de
reaproximação?
Mônica: De jeito nenhum, eu estava ajudando um
amigo e uma pessoa que eu gostava muito do traba206
207
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
CK: Isso não tinha nada a ver com o Caminho de Santiago?
Mônica: Não, eu nunca fiz o Caminho de Santiago,
nunca pensei em fazer o Caminho de Santiago. Para
mim, eu fiz o Caminho de Santiago naquelas 40 páginas [de “O Diário de Um Mago”], eu sempre falei: “O
meu Caminho de Santiago foram essas 40 páginas, já
bastou!”. Então o Paulo recomendou Madri, aqueles
4 amigos malucos que eu cheguei a conhecer não me
apontaram nada aqui, e o Paulo falou: “Se você gosta
tanto dos meus livros, por que você não tenta conseguir uma editora na Espanha? Já tem o que fazer”. Foi
a primeira vez que passou pela cabeça que aquilo poderia ser um negócio e a decisão da viagem já tinha
sido tomada, não tinha sido por isso.
A ideia era fazer alguma coisa diferente do que eu fazia
no Rio, porque senão era um dinheiro mal gasto, né.
Eu me matriculei num curso de desenho que eram três
anos e eu fiz dois anos. Mas com relação aos livros, o
Paulo tinha insistido que eu fosse atrás de uma editora.
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sum dolu
lho. E a gente seguiu com a amizade assim, eu ajudava
com a promoção, o Paulo nunca mais me enviou flor,
nem nada, acabou. Se havia sedução, ele acabou naquela sexta-feira. E quando eu decidi vir para a Europa com o Eduardo, eu procurei o Paulo e ele me disse:
“Que ótima notícia!”. Ele ficou encantado. E eu falei:
“Você tem que me dar umas dicas, porque eu nunca
viajei para fora do Brasil, eu não sei como se faz, eu
não sei nada”.
E a gente marcou nesse mesmo dia de nos encontrarmos no Leblon. Aí o Paulo disse que eu deveria ir para
a Espanha, porque ele tinha amigos na Espanha. Os
amigos na Espanha eram 4 malucos aqui de Madri.
208
CK: E tinha tradução?
Mônica: O Paulo tinha uma tradução do “O Diário
de Um Mago”, da Kátia Schummer, e eu não sabia
disso. Eu soube depois, já na Espanha, que ele tinha
combinado alguma coisa, ou não tinha combinado,
eu também não sei.
Então, quando eu cheguei em Madri, a gente ia na feira
do livro, pegar catálogos das editoras, para ver quais
eram as editoras que poderiam ter o melhor perfil, e
era justo na época da feira do livro. Então eu decorei
um trechinho no papel só: “Soy Mônica, soy brasileña,
tengo este libro.”. Era uma colinha em espanhol.
209
CK: Não falava espanhol?
Mônica: Nada, nada. Eu fiz um curso rápido no Brasil, que não serviu para nada, porque aqui eu falava
inglês, que era mais fácil de se comunicar.
Então eu fiz a minha colinha para poder apresentar
o livro e fui em algumas editoras. E em duas editoras tivemos um não e quando tivemos um sim, foi
da Martinez Roca para o “O Diário de Um Mago” e
chegamos a vender o “O Diário de Um Mago”. E o “O
Alquimista”, na época, essa moça, a Kátia Schummer,
tinha apresentado para uma editora super new age
espanhola.
A editora era um horror, tipo um lugar todo desorganizado, cheio de papel imundo, sujo. Um cara sozinho, com uma secretária. Eu falei pro Paulo: “Olha, eu
não conheço muitas editoras, mas essa não é a imagem que eu faço de uma editora”. Mas o Paulo estava
muito entusiasmado e ele resolveu aceitar a proposta
do cara. Então eu realmente nunca cheguei a vender
o “O Alquimista” na Espanha, mas eu acompanhei o
lançamento.
O que foi bom para mim, mas eu tenho certeza que
para o livro foi irrelevante. Mas para mim foi bom
porque eu conheci algumas pessoas.
Nós conseguimos um dossiê, e outro dia eu vi o dossiê e falei: “Caramba, o que um não consegue indo
por aí de porta em porta, né?”. Tinha resenhas e resenhas do livro, trilhões de revistas e jornais. Então,
quer dizer, pode ser que tenha ajudado um pouquinho, eu tenho o dossiê do que a gente conseguiu,
mas foi bom para ver como era.
CK: E o “O Alquimista” saiu antes do “O Diário de Um
Mago” ou não?
Mônica: Saiu um pouquinho antes, eles saíram simultâneos praticamente. O “O Alquimista” saiu uns
dois ou três meses antes. Quando saiu o “O Alquimista”, o Paulo falou, porque o editor não ia fazer nada,
era um editor de fundo de quintal: “Você não quer
fazer a promoção do livro? E tentar fazer acontecer?”.
Ele conseguiu uma lista da embaixada dos jornalistas
culturais da Espanha, como contatar esses jornalistas. Eu ia nas livrarias também apresentando o livro.
CK: Não, demorou muito. Demorou 40 anos.
Mônica: Não, eu digo depois que o livro foi escrito.
210
CK: Isso foi quando?
Mônica: 1990. Que foi quando o Paulo começa a
vender no Brasil. Até então os livros não estavam nas
listas. Em 90, 91, que é quando sai o livro “Brida”, que
tem todo o boom.
CK: E isso como é? É tudo tão de repente, foi tão rápido. Você atribui o sucesso a alguma coisa especificamente?
Mônica: Eu não acho que foi rápido, não.
CK: Foi uma coisa gradativa?
Mônica: Foi uma coisa gradativa, foi muito intenso,
mas gradativo. Eu li em 1988. Eu te digo, a minha tia
tinha o livro na mesinha em 1988. Já alcançava muita
gente.
CK: Mas não era um fenômeno.
Mônica: Não, não era um fenômeno.
211
CK: O fenômeno foi um susto para o próprio Paulo,
né? O que pode explicar essa virada? Tem alguma coisa que marcou esse momento?
Mônica: Porque qualquer sucesso é exponencial,
você vai de um para o dois, do dois para o três, do
três pro quatro, do quatro para o oito, do oito para o
32. Ele é exponencial. Mas no início, ele não foi. Um
best-seller hoje em dia, ele é muito mais rápido, as
pessoas não entendem porque passou tanto tempo.
CK: A vida do livro hoje é mais curta.
Mônica: Ou não. Mas é mais rápido. O que eu acho
que aconteceu, foi que sai o livro e começa um boca
-orelha, e que ia funcionando.
CK: Boca-orelha? É que no Brasil se fala boca-a-boca.
Mônica: Aqui se fala boca-orelha.
CK: Faz muito mais sentido.
Mônica: Mas começa o boca-orelha e vai gradativamente chegando. Existia um público imenso mas era
muito difícil. A grande maioria das pessoas tocavam
muito, mas não saía na mídia, não existia um apoio, e
eu acho que os livros vendiam para estar nas listas e
não entrava, porque eram livros new age ou espirituais, enfim, e não entravam.
CK: O grande boom foi a mídia?
Mônica: Não, os livros entraram na lista quando a
mídia não teve mais como ignorar. Ela teve que falar. Não vai falar do “Crepúsculo”? Você tem que falar. Mas não era um marketing apresentado, porque
vem de fora, né? Invadindo ali a realidade. E aí, nesse
212
momento que sai “Brida”, “Brida” era a novidade necessária. Então o jornalista podia falar, todo mundo
podia falar do que estava acontecendo.
Eu me lembro que o Paulo conta essa história, mas
esse pessoal disse para mim, foi uma livreira do nordeste, que eu conheci na feira do livro, na Bienal, e
ela fala que ela tinha comprado dois exemplares do
“O Alquimista”. Um ela vendeu assim que saiu o livro, o outro ela vendeu um ano depois, para a mesma pessoa, que queria dar de presente. Eu acho que
é isso que aconteceu. As pessoas começam a dar de
presente, começam a recomendar, e aí entrou no exponencial. E a nível de marketing é o “Brida”, quando
“Brida” sai, a mídia tem uma oportunidade de falar
CK: Vamos voltar para os seus três meses para divulgar o livro.
Mônica: Não era uma repercussão assim, mas eram
várias notas; não era nenhum artigo grande, mas
eram resenhas. Depois, eu voltei a encontrar com alguns desses jornalistas e eles achavam muito maluco
uma menina do Brasil vir apresentar um livro de um
brasileiro, e acabar tendo uma atenção. Mas eu não
acho que tenha sido isso. E nem recomendo ninguém
fazer isso, não é por aí, não leva a nada ao final.
CK: E o que leva?
Mônica: Eu acho que é... Primeiro, sempre é o produto mesmo, o livro mesmo, é o filme, é o que é. Você
pode ter todas as cartas, se você não tem um bom
livro, esquece, não tem como, não vai acontecer. E aí
as cartas estavam corretamente dadas, o livro ia por
si próprio. Qual é o trabalho que eu acho que eu fiz
213
crave a ponta da unha sobre
o polegar , até sangrar .
e que outras pessoas teriam feito bem? Era chamar
atenção dos editores, o importante foi que o livro
entrasse na indústria, que o livro não fosse um side
walker, que fosse à indústria, que fosse realmente visto, que as editoras dessem a atenção que tinham que
dar, e no momento que as editoras deram uma atenção séria, o livro foi adiante, o negócio foi adiante,
nós necessitávamos da indústria.
CK: Isso foi com o “O Diário de Um Mago”, essa venda que você fez?
Mônica: Sim. Não aconteceu nada com o “O Alquimista”.
214
CK: Quem tinha vendido o “O Alquimista” não foi
você, né?
Mônica: Não, mas eu fiz a promoção. Quando eu fui ao
Brasil, que foi em 1991, o Paulo já era um sucesso no Brasil. Quer dizer, eu saí do Brasil e o Paulo não era um sucesso; eu volto e ele é um sucesso. E o Paulo falou: “Nós
temos que vender mundialmente, agora é o momento”.
E a gente chegou a fazer o material. O Rocco até apoiou
com ajuda do material, mas muita fantasia o Rocco. Ele
contava histórias absurdas da feira de Frankfurt.
CK: Que tipo de histórias?
Mônica: De festas e castelos e de um grupinho. E
que é muito difícil você entrar, muito difícil você
recomendar coisas, muito difícil você poder vender
alguma coisa, ele botava muito empecilho, como se
fosse um conto de fadas. E não é verdade, as pessoas querem encontrar bons produtos, não existe nada
fantasiado. Ele fantasiava, eu acho.
215
CK: E ele fazia esse trabalho?
Mônica: Não, o Paulo é que queria que ele ajudasse,
ele vendia muito.
CK: Mas ele não estava preocupado com isso, estava
preocupado com o mercado interno dele, é isso?
Mônica: Ele não representava o Paulo internacionalmente, mas ele tampouco via que o Paulo poderia vender fora, mas tampouco jogou no meu time.
E nunca jogou contra mim. Outras pessoas jogaram
muito contra mim, diretamente. O Rocco tampouco
acreditava muito: “É, talvez a Mônica consiga, quem
sabe?”. Mas eu mantive um contato com o Rocco, assim dentro de tudo. O Rocco sempre foi muito correto comigo, a gente sempre manteve um bom contato.
CK: Isso em 1991, quando você voltou ao Brasil?
Mônica: Isso.
CK: E você não tinha um contrato formal com o Paulo?
Mônica: Não, nós não tínhamos nenhum contrato
formal.
CK: O “O Diário de Um Mago” já tinha sido lançado.
Ele foi melhor que o “O Alquimista”?
Mônica: Os dois igual. O “Mago” tinha vendido a sua
primeira edição, estava na segunda edição, e o “O Alquimista” começa a vender também. E chega 1991,
que a gente tinha essa ideia de apresentar o livro e
tal, e o mestre do Paulo diz que não é o momento.
Mas quando o Paulo não quer escutar, ele não escuta, então ele não quis escutar. O mestre disse: “Não
é o momento, você não deve fazer isso agora, você
216
deve esperar para dar um passo. Porque uma coisa é
você não estar pronto e outra coisa é você ser rejeitado, são duas coisas diferentes”. E eu ouvi isso e pensei: “Então não é o momento. Melhor talvez esperar
mais”. Aí o Paulo conhece o Alan Clark, que é o tradutor do “O Alquimista” em inglês. O Alan compra o
livro no aeroporto e decide traduzir. Ele conecta com
o Paulo por fax, enviou carta através da Rocco, ou
como seja, e diz que ele gostava muito do livro e que
ia apresentar às editoras que ele já tinha trabalhado
nos Estados Unidos. E então ele faz esse trabalho, e a
Harper Collins San Francisco decide comprar o livro.
Então nesse momento do lançamento do livro em
inglês, que tinha sido também por uma total mérito
do livro. Eu sempre digo que é o livro que abriu todas
as portas, não foi nada e não foi ninguém. Se o Alan
apresenta outro livro, não vai funcionar, funcionou
porque o editor que leu o “O Alquimista” ficou fascinado com o livro. Então era o momento da gente
colocar as coisas e realmente oferecer o livro.
CK: Mas o Alan foi diretamente nas editoras ou você
participava?
Mônica: Não, não, ele foi, e nem o Paulo participava.
Ele fez uma tradução por conta própria, ele fez um
resuminho e ele mandava aos editores que ele conhecia. Uma coisa de tradutor mesmo, de ter gostado de
um trabalho. E a Harper compra e eles se encantam,
porque eles publicam 50 mil livros na primeira edição. Isso é impensável para um livro desconhecido,
para um autor desconhecido. Então quando o livro
vai ser lançado em 1993, a gente tinha ido para Miami, eu conheci o Alan nessa ocasião em Miami, e era
217
o momento de oferecer o livro. E foi quando eu ofereci. Só foi em 1993, antes eu realmente nunca tinha
feito nada, a parte das coisas na Espanha. E os segmentos com os livros na Espanha e a feira, e não é só
a feira na Espanha, tem toda a América Latina, era o
idioma espanhol, enfim.
CK: Frankfurt você não tinha ido ainda?
Mônica: Não, o meu primeiro Frankfurt foi em 1993.
Eu tinha a distribuição na América Latina, enfim, o espanhol tinha um pouco de mercado, né, porque são
muitos países. E tinha feira aqui em Madri e tudo isso,
mas não tinha muito mais. Em 93 eu fui a Frankfurt,
mas foi na volta que eu mandei o “O Alquimista” com
uma carta para as editoras que eu selecionei de um catálogo de Frankfurt, porque eu não conhecia ninguém.
Eu fui essa, essa e essa. Essa, essa e essa. Eram três por
países. Daí eu mandei a carta e os editores que pediram o livro, eu enviei o livro. E a primeira vez que eu
encontrei com esses editores, digamos, que se fechou
a maioria dos contratos foi na feira de Frankfurt.
CK: E você tinha noção de valores ou foi meio no cheiro?
Mônica: Não, eu tinha um pouco feito amizade com
o mercado na Espanha, então eu tinha algumas pessoas que tinham me orientado como funcionava o
mercado, como você faz um contrato, o que é importante e tal. E a regra não muda, você paga um
advanced de acordo com o que você acha que vai
vender. Um autor principiante você acha que não vai
vender nada. Enfim, o Paulo tinha um sucesso imenso no Brasil e tinha o negócio nos Estados Unidos que
abriu as portas. O que abriu as portas foi a Harper
218
Collins. As pessoas diziam: “A gente sabe que os Estados Unidos não publica autor estrangeiro. Para os Estados Unidos publicar, uma Harper Collins publicar,
é porque deve ser o melhor autor que tem”. Quem
assinava os contratos era a HarperCollins, quem dava
o aval era ela, a edição da Harper, e ninguém discutia. Se a Harper aposta, eu também. Então um pouco
era “quantos exemplares você vai imprimir?” e era o
entusiasmo. Eu via muito o entusiasmo das editoras,
e por ter mais experiência na Espanha e ver que um
editor mal te ajuda nunca, então isso não pode ser,
o principal é que você consiga convencer a editora
que confie naquele produto, se você não consegue
convencer a editora e a editora não tem o feeling que
você tem que aquilo pode vender muito, não adianta.
Não era uma questão de dinheiro, era uma questão
que a pessoa tivesse a visão de que aquilo ia ser um
grande best-seller, e a escolha das editoras foi baseada nisso. E eram pessoas que viam muito potencial
no livro. A maioria das editoras, mesmo uma editora
francesa que mais adiante a gente brigou, nunca foi
porque ela não viu o potencial do livro, ou porque
chegou lá embaixo. Foi porque a gente tinha um caráter muito difícil e com os anos ficou mais difícil. Mas
simplesmente foi rompido mais no pessoal do que
no profissional. E a maioria das editoras mostraram
muito grande entusiasmo, que a gente escolheu. Eu
acho que se a editora colocava umas cartas, colocava
um dinheiro na mesa para fazer uma boa campanha,
a gente também colocava o livro da nossa parte, não
tem como cobrar antes, se eu sei que isso vai ser bom,
por que eu vou cobrar antes? Era de mútuo acordo e
existe muito respeito com os editores até hoje.
219
trabalho muito era ver se a pessoa estava realmente
comprometida, controlar um pouco o trabalho que
eles estavam fazendo, se realmente aquilo ia adiante
ou não ia adiante. Você pode obviamente ter erros
mas na grande maioria tinha um compromisso, e
que dava certo. Era um cavalo ganhador, como se diz,
sabe? Você tem isso, você tem a fórmula, você tem os
meios, tem a distribuição, não vai dar certo por quê?
Era um cavalo ganhador!
CK: Que história linda!
Mônica: É um pouco por isso que o guerrila-market
eu não acho que funcione. Você necessita da indústria por detrás. Com um péssimo editor, o seu livro
não chega a lugar nenhum.
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O editor também tem que ganhar dinheiro. Se você
faz o editor perder dinheiro, onde você vai chegar
com aquilo? Você pode fazer isso uma vez, mas não
vai fazer duas vezes. Então um pouco o nosso lema é
win-win game. Então você passa a ser um ativo muito
importante da editora porque você sempre faz a editora ganhar. E saber exatamente o nosso potencial.
É claro que fomos surpreendidos em 10 milhões de
vezes com o “O Alquimista”. Todo mundo, as próprias editoras, ou como for, mas sempre foi a visão aí.
Mas o que eu fiquei era: se não tem o entusiasmo por
detrás, não dá. É o que faz funcionar. Então o meu
220
CK: E você teve alguma experiência?
Mônica: Os países do leste, por exemplo, a grande
mudança dos países do leste foi em 1995, porque muitas editoras abrem novas em 90, 95 e 96, e a maioria
foi à falência, algumas poucas sobrevivem, mas poucas nascem nessa época, então você viu muito ali um
editor que conseguiu, que entendia, que conseguiu
fazer um bom trabalho, os livros funcionavam e com
outros não acontecia nada, a gente teve que mudar
de editora e aí as coisas começavam a acontecer.
CK: E essas decisões, sempre foram mais racionais ou
mais intuitivas? Quer dizer, a mágica continuou te
acompanhando?
Mônica: Eu acho que racional e intuitivo simultaneamente, porque ao final você sabe alguns códigos.
221
CK: “As Valkírias” é o livro no qual o Paulo mais se
expõe, né? O Paulo e a Chris como personagens.
Mônica: Mais. Em ”As Valkírias” não existe ninguém
mais que ele, a Chris um pouquinho e as Valkírias. É
ele ali, as pessoas querem isso, não me interessa o que
está passando no mundo, eu acho.
CK: E o Paulo se envolve nessas decisões sobre as editoras ou não?
Mônica: Não, ele nem sabe.
CK: E no começo ele se envolvia ou também não?
Mônica: Sim, um pouco, porque, de repente, ele estava encantado de ter tantas editoras interessadas, mas
não me lembro de eu ter dito “Ah, assinamos com
essa editora aqui” e ele ter dito “Ah, assinamos com
outra”, eu não me lembro, pode ter acontecido isso.
CK: E o Paulo fala muito da questão da lealdade, “os
meus amigos, os meus inimigos”, uma coisa muito
preto no branco, e ele falou com muito carinho de
toda a história de vocês, e de um momento que ele
se questionou, de continuar com essa menina, de um
café que vocês tomaram, como foi esse momento
para você?
Mônica: Outra vez, para o Paulo foi muito mais importante, porque era a vida dele, eram os livros dele.
Para mim, nunca teve esse peso, essas palavras, como
ele coloca e eu entendo que para ele era assim. Foi
no ano de 1992, foi justo antes dessa viagem da ABA
[American Bookselles Association], foi em outubro
de 92, e a ABA foi no ano seguinte, em fevereiro, e o
Paulo vai à Espanha, não sei porque razões, não tinha
222
nada a ver com o livro, com nada, e ele recebe uma
proposta da Carmem Balcells, que eu nunca cheguei
a ver realmente.
CK: A proposta ou a Carmem?
Mônica: A proposta. Nessa época a Carmem também não, eu a vi posteriormente, nessa ocasião não.
Eu já a conhecia, sabia quem era, obviamente.
CK: E ela era poderosa?
Mônica: Uma das grandes agentes e uma pessoa super
inteligente, com uma hiperintuição, enfim, nota mil.
CK: Nessa época ela já era experiente.
Mônica: Com dois prêmios Nobel. Isabel Allende, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez. Nem sei se
tem dois Nobels, mas enfim, uma mulher com todas
as medalhas culturais da Espanha, e muito merecido,
ela divulgou toda a cultura latino-americana, é uma
pessoa de super nome. E ela propõe ao Paulo de tê-lo
no catálogo dela, acho que eu cheguei a ver a carta
sim, mas eu não me lembro, na época eram faxes.
223
TÍTULO #09
Mônica Antunes, fevereiro de 2010
CK: O que você sentiu quando viu a carta dela nesse
momento?
Mônica: Eu acho que não vi a carta dela nesse momento, eu acho que eu vi depois, mas eu digo que
para mim não teve o mesmo peso, eu vi o peso para o
Paulo quando eu li numa entrevista, ele falando para
alguém. Porque eu me lembro da conversa com ele,
eu estava em Rubi, que é onde eu morava.
CK: Isso já era 1993, então você já estava há 3 anos
com o Paulo.
Mônica: Quatro anos. 89, 90, 91, 92, 93. A oportunidade de trabalho realmente veio em 1993. E quando em
91, que o mestre do Paulo falou: “Vocês não devem
fazer isso, porque isso não vai dar em lugar nenhum”,
eu entendi, não ia dar em lugar nenhum.
CK: E você esteve com o mestre também?
Mônica: Não, ele disse para o Paulo e o Paulo me contou. Ele estava frustradíssimo dizendo que o mestre
estava errado, mas eu não sei se porque eu tinha visto
aquela editora com aqueles papéis no chão, eu falei:
“Esse guerrila market não adianta”, e o Brasil tinha
provado isso. Se tivesse continuado lá com a primeira editora, tinha chegado aonde? Sabe? Chegou porque desde de que o livro comece a vender, você está
dentro de uma boa indústria, uma boa estrutura, que
pode te levar adiante, de uma forma ou de outra. E
não são todas as editoras que tem condição de fazer
isso, não são. E um pouco eu achei que talvez ele tivesse razão, que não era realmente ainda o momento,
e que não ia ter esse momento, porque eu não ofereci
o livro a ninguém antes da edição americana. Foi ali
224
225
que veio para mim “esse é o momento”. Até então eu
ajudava com as histórias espanholas e com a história
da América Latina. E era uma dificuldade imensa com
essa pequena editora, era uma briga em cima de outra briga, terminamos numa ação judicial, me ensinou
por isso, sabe? Como é uma ação judicial, como é ter
um empresário incompetente na sua vida e ter que
lidar com isso, porque você tem um contrato ali que
não quer deixar a situação crescer. Era muito assim.
Então, se não é para ir para uma boa pessoa, é melhor não ir a nenhuma, porque outro desse na vida,
ninguém necessita. A energia que vai embora e você
pode até perder o bonde no caminho. Que a gente
tenha conseguido recuperar esses direitos numa ação
judicial também faz parte da magia e é uma coisa
muito complicada. Não é assim. E o Paulo, ele assinou um contrato na Alemanha numa editora pior do
que essa espanhola e eu consegui romper o contrato
também. O meu trabalho no começo é romper maus
contratos, mais do que assinar bons contratos. Eram
dois contratos que não tinha como ir a lugar nenhum.
versar com ela. Se chama Ângela Reinold. E a agente
me explicou: “Não existe nenhuma dificuldade, sabe?
Quantos livros você vai vender? Você faz um cálculo assim. A única coisa que impera nesse trabalho é
a integridade, não tenta ser mais esperta do que as
pessoas. E a base é uma coisa de sentido comum, se
a pessoa tem sentido comum, não tem nenhuma dificuldade. E é realmente a integridade, porque é uma
questão de confiança no final”. E eu muito segui isso.
CK: E foi essa sua amiga advogada que te dava alguma
orientação?
Mônica: Não, não. Ela era editora, também não entendia nada de Direito. Quando o Paulo escreve “Brida”, eu vendo “Brida” e conheço o Rafael Soriano. Enfim, são pessoas que eu conheço naquele momento.
E o Paulo já tinha um grande sucesso no Brasil, então
tivemos uma boa relação, e a Emelina, que era como
se chamava a editora, ela me explica como funcionam
as coisas e me apresenta uma agente literária de Londres que era amiga dela. Então eu fui várias vezes con226
227
Legenda ulpari
doluption conectur
sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
CK: Tem uma frase do Paulo no “O Alquimista”, agora eu não lembro se é no “O Alquimista” ou no “As
Valkírias”, que ele fala: “Ame o deserto, mas jamais
confie inteiramente nele”. Tem essa coisa desconfiada
do Paulo. Você também tinha isso, ou você confiava
de cara nas pessoas e você se decepcionava depois?
Nesse começo?
Mônica: Não, eu acho que eu não confiava e nem
desconfiava, era uma construção. Eu acho que o Paulo ele confia muito mais, e ele era muito mais imediatista, ele queria as coisas mais pelo resultado e ele
foi obrigado a esperar. Ele não teria esperado, mas a
circunstância fez com que ele tivesse de esperar. E isso
porque passou por essa situação na Espanha e passou
essa situação na Alemanha, onde conseguimos romper um contrato.
CK: Quanto tempo, você lembra?
Mônica: Os dois contratos a gente conseguiu romper
em 1996.
CK: 3 anos de briga.
Mônica: Mais ou menos, 3 anos de briga. Com os
alemães a gente não chegou diretamente a entrar
com processo, eu consegui uma terceira pessoa que
entrou, mas na base da confiança também. Do que
eu vi, é o que se espera de um parceiro correto. Não
adianta, não adianta, se você não tem um parceiro
correto, porque tem que ter o entusiasmo e tem que
ter a estrutura.
CK: Quais são os países onde deu mais certo?
Mônica: Eu acho que deu certo em todos os lugares.
228
CK: Igualmente? Não tem um lugar que tenha te surpreendido mais?
Mônica: Não, são momentos diferentes, são momentos totalmente diferentes. A França obviamente foi um gigantesco sucesso. Nós temos 10 milhões
de exemplares vendidos na França, 2 milhões do “O
Alquimista” em dois anos. Ou menos, não sei agora.
Mas o que passou ali acabou passando em outros lugares. “O Alquimista” ficou 10 anos nas listas na Lituânia. Ou seja, você tem sucesso em todos os lugares.
Pode ser que sejam épocas diferentes, que você olha
num momento diferente.
CK: Na Austrália, por exemplo?
Mônica: Na Austrália também foi número um. Mas
não manteve. Na Europa manteve mais do que na
Austrália, ele nunca chegou a dar um grande salto.
CK: E que outras surpresas, como a Lituânia, por
exemplo?
Mônica: Na Austrália foi o primeiro país que, fora do
Brasil, foi número um.
CK: Na Austrália? Eu não sabia.
Mônica: Foi, muito antes da França.
CK: E como foi que você foi se relacionar com a Lituânia, ou com a Austrália, por exemplo? Era nas feiras?
Mônica: Nas Feiras. Claro que o contato com a HarperCollins foi do Alan, o crédito do contato é dele, ele
vendeu para a Harper São Francisco em todo idioma
inglês e foi ela que vendeu para outras Harpers. Mas
eu já ajudei no lançamento. Tipo assim, com o meu
229
apoio para ver como a gente podia fazer, com os materiais, de tudo um pouco eu ajudei ali, mas não com
o contato. O relacionamento era nas feiras, nos faxes
e cartas, que era o que existia na época.
nham vitrines inteiras. Todas as livrarias dos 20 países
estavam tomadas pelo “Onze Minutos”. Eu fiquei tão
impressionada.
Mônica: É impressionante.
CK: E no Japão, por exemplo? Na China? Como aconteceu?
Mônica: No Japão também foi uma das primeiras traduções. Funciona bem, mas o Japão mudou muito o
mercado de 10 anos para cá, com toda parte de ficção internacional, então não é um dos lugares que a
gente tem um grande sucesso. Temos todos os livros
traduzidos, eles lançam todos iguais, mas o mercado
de ficção estrangeira no Japão, ele caiu enormemente. E nos afetou também. E na China, sempre foi um
mercado muito difícil e que agora está se abrindo. “O
Alquimista” entrou no ano passado, foi o número dois
na China, chegou a número um. E os livros estão vendendo bem, mas aí é um trabalho que a gente ainda
tem que fazer. Mas a China é também uma circunstância. É um mercado hiper controlado, as editoras
foram liberadas tem 5 anos. Metade. A outra metade
é do governo. Antes eram 100 por cento do governo.
E não que tivesse nenhum livro censurado, nem nada
disso, mas você não tem uma estrutura. É o que eu te
digo, se você não pode ter a sua criatividade com a
indústria ali é muito complicado.
CK: Eu fui aos 20 países em 40 dias e foi justo no lançamento e era emocionante de ver.
Mônica: Aí foi um trabalho fantástico.
CK: E na América Latina sempre foi super bem, né? Eu
lembro que em 2003, quando eu fiz uma viagem de
trabalho por todos os países, era bem no lançamento
do “Onze Minutos”. E foi um fenômeno. Não é que
todas as livrarias tinham o livro, todas as livrarias ti-
CK: E entre inglês e espanhol, o que vende mais nos
Estados Unidos?
Mônica: Inglês, claro, mas temos uma venda maravilhosa em espanhol. E na América Latina também.
230
CK: Cada dia eu estava em um país diferente e todas
as vitrines. Todas, sem exceção. De shopping de Caracas até a periferia de Manágua, Cidade do México,
tudo.
Mônica: Mas é isso que eu te falo: muitas vezes pode
ter havido um melhor momento aqui, um melhor
momento ali, mas os momentos acabam chegando.
Como na China agora. Nos Estados Unidos mesmo
levou 15 anos para entrar na lista dos mais vendidos
do New York Times. E as vendas nos Estados Unidos
são exponenciais, então, hoje em dia, a gente vende
mais livros do que antes. Por quê? Porque tem sim
mercados que a gente vende um pouco menos, mas
tem outros que a gente vende muito mais.
CK: E hoje, quais são os grandes mercados?
Mônica: Os Estados Unidos para a gente é um enorme mercado. Europa também é um enorme mercado.
231
CK: E era uma questão de distribuição nesse caso da
Colômbia?
Mônica: Não, não é de distribuição não porque eles
distribuíram bem, mas uma questão de você entusiasmar o livreiro, você tem que entusiasmar.
CK: Vamos voltar para aquela conversa da carta com
a proposta da Carmen Balcells.
Mônica: Enfim, a gente vai tomar um café e o Paulo fala que tinha recebido essa proposta da Carmen
e que era uma oportunidade para ele, é claro, e me
pergunta o que eu achava. Se eu achava que teria capacidade de chegar, porque parecia tudo muito difícil.
Mas na minha visão não era. Era na dele.
não tinha sido, então para mim, 91 não representava
um fracasso. E eu não fiquei apreensiva, eu não fiquei
nada, eu falei: “Olha, por mim não, eu tenho certeza
que isso vai funcionar, eu não tenho nenhuma dúvida que vai funcionar”. E ele me perguntou o que eu
achava dele ir com a Carmen Balcells e eu respondi
que não sabia. É ao menos o que eu me lembro: “O
que eu vou te dizer? Eu não sei como ela é. Eu sei que
ela é muito famosa. Mas aqui jogam duas coisas: você
ir na mão de uma pessoa muito famosa que te apresente e isso amanhã não funciona, é muito difícil você
ter uma segunda oportunidade”. Então tinha que dar
CK: E você nem chegou a se sentir ameaçada por
aquilo?
Mônica: Não. Eu acho que tudo foi tão mágico, a
história do Alan era muito mais ameaçadora, era um
cara dentro da indústria que conhece um montão de
gente, que consegue uma editora nos Estados Unidos,
para mim o Alan era muito mais ameaçador.
CK: E o Alan tinha intenção de ser agente?
Mônica: Quando o livro saiu nos Estados Unidos sim,
mas isso até então eu não sabia. O Alan era um cara
de dentro. Enfim, o Paulo disse isso, me perguntou o
que eu achava. E eu não via como um fracasso não ter
editoras naquele momento, até porque um fracasso
em que, se eu não tinha tentado? À parte da América
Latina, do espanhol e tal? Eu achava que não era ainda
o momento, que o momento vinha em breve, ou que
o momento tinha chegado naquela hora. Mas 1991
232
233
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sa dolupta tiost, ipsa
sum dolu
certo, a carta da Carmen Balcells tinha que dar 100
por cento certo. Ela não tinha uma segunda oportunidade. A minha carta, ela tinha uma segunda oportunidade, porque enfim – a Mônica não funcionou,
sabe? Eu não sei, para mim era uma escolha dele, não
era minha, eu achava que ia dar certo, e o que eu me
lembro desse café, foi de ter dito a ele que eu tinha
certeza que os livros iam funcionar, que os livros iam
dar certo. A Carmen... porque quando eu vi a carta
dela depois, ela não diz que ela acha que vai funcionar: “e pode ser eventualmente”. Não tinha o entusiasmo, não era uma carta que dizia: “É o melhor livro
que eu já li, me apaixonei, vou recomendar a todas
as pessoas”. Era um carta formal: “Você é um autor
que vende no Brasil e gostaríamos de representá-lo e
eventualmente conseguir umas editoras”, uma coisa
assim muito formal, frio, eu não me lembro exatamente da carta, mas na minha cabeça nunca foi uma
carta apaixonada. Então eu achava que a coisa ia dar
certo, eu não sei porque ele resolveu decidir por mim.
Ele diz que é pelo tema da lealdade, da fidelidade. E
porque eu não demonstrei, eu acho, nenhuma dúvida. E o Rocco também não tinha conseguido me assustar com aquela história das mil festas e castelos,
e histórias que ele tinha visto. Mas talvez eu tenha
dito isso porque eu não tinha a menor ideia de como
funcionava o mercado. Talvez se eu soubesse, eu tivesse dito: “Com certeza não funciona, é melhor você
ir com a Carmen, isso aqui não vai funcionar nunca”.
Como eu não tinha a menor idéeia, eu achava que podia funcionar. Mas eu acho que nada tem nenhuma
lógica. Eu acho que a lógica do Paulo foi mesmo da
fidelidade e do entusiasmo. De alguma forma ele veria
234
isso, que se eu rompo com isso, eu estou rompendo
com toda essa magia que foi acontecendo e que ele
também sabia ler. Se tem alguém que lê esses sinais,
é o Paulo. E a gente se conhece no dia que o editor
devolve, o Rocco acerta na mesma hora. Enfim, eram
muitos sinais para ele dizer não.
CK: A primeira Frankfurt deve assustar.
Mônica: Eu não fiquei assustada. Já era essa coisa impressionante sim, enorme, mas eu já tinha a minha
agendinha, porque senão você não fala com ninguém.
E a gente conseguiu 16 traduções no fim de 93. E eram
editoras que eu acho que tinham muita possibilidade.
Algumas a gente mudou posteriormente ou logo depois, mas a maioria não.
CK: E o Paulo comemorava ou ele tinha ansiedade
demais?
Mônica: Nessa época, não. Primeiro, eu não tinha
tanta comunicação, por não existir email, você não
podia seguir tanto as coisas. Os livros ainda tinham
que sair. E eu acho que ele teve mais assim, essa ansiedade, quando os livros foram saindo e as coisas foram
acontecendo. Não era uma questão de vender um
montão de direitos, era mais até que os livros acontecessem. Em 93 a gente já tinha vendido 16 direitos e a
história era, como isso vai sair?
CK: E você fazia esse acompanhamento como? Você
falou que não tinha email...
Mônica: No que existia na época, fax, correio. Eu tenho arquivos e arquivos de correspondência, eu me
lembro de quando eu ia nos correios, eu achava aquilo
235
tão bom. Era como se você visse tudo aquilo que você
fez durante tanto tempo seguindo o seu caminho.
CK: Mas não tinha como, né? Hoje você entra no
Google.
Mônica: É, antes as editoras tinham que informar.
CK: E você tinha que confiar.
Mônica: Então eu comecei com esse segmento, senão não tinha como entender, como saber. Eu era um
Google. Eu acho que isso ajudou muito, porque eu
enviava a todos os editores o que ia acontecendo em
todos os lugares. O que hoje você pode fazer em 5
minutos. As pessoas não tinham nem ideia de como
o “O Alquimista” funcionou na Noruega. Você não vai
saber, você não sabe as resenhas, você não sabe nada,
então eu pedia a todos que me enviassem porque eu
achava relevante, eu fazia os meus dossiês, eu enviava isso a cada mês para as editoras, que é quando ia
ao correio, eu acho que isso ajudou muito. Quando
o “O Alquimista” foi publicado, as pessoas sabiam
que aquilo era uma jóia, que elas tinham as melhores
apresentações, eu falava: “Eu acho que a gente vai por
aqui, eu acho que isso é muito importante”. Eu sempre fui mandando muita coisa para as editoras, eu dei
uma de Google. Google manual.
CK: E qual foi a primeira grande surpresa, que deu
comemoração? Que você falou: “Nossa, olha o que a
gente fez”?
Mônica: Para mim foi Frankfurt de 1995. Foi para mim
uma revelação, porque em 94 começam a sair as traduções, como no caso da tradução francesa. Porque
236
nos Estados Unidos saem 50 mil cópias, mas levam 2
anos para vender essas 50 mil cópias. De hardcover.
Mas eles seguiam apostando no livro, porque senão
eles teriam lançado o paperback depois de 9 meses,
como eles sempre fazem. E eles não queriam lançar
o paperback. Eles queriam dar tempo ao tempo. Em
março de 94, sai o “O Alquimista” na França, e eu tinha
uma boa relação com a editora nesse momento. Ela
convida o Paulo, e o Paulo vai a 30 cidades, faz um super trabalho de formiguinha, conferências que tinham
duas ou três pessoas, aprendeu o francês para poder
fazer aquelas entrevistas. E quando chega no final de
94, o livro entra em número um. Que é o nosso presente de Natal. Eu tenho uma carta muito bonita da
editora, um fax, dizend, que ele era o número um na
França. E em 94 já tinha saído em alguns outros lugares
também, mas na França ele já era o número um. Então
os livros que saem em 1995, como Itália, como Escandinávia, Holanda, eles já vêm com esse selo. É quando o livro entrou nas listas da Espanha, que até então
nunca tinha entrado, ele entra depois do sucesso na
França. E Turquia, Grécia, enfim, um monte de países.
CK: E como é essa comemoração, como foi abrir essa
carta?
Mônica: Essa carta foi um fax, eu me lembro do fax
chegando e era: “Ufa”. Era uma imensa alegria. Ficamos muito contentes, foi o ano que a gente foi passar
o ano novo com o Paulo e com a Chris, a gente foi
passar com eles lá em Lourdes [no interior da França].
CK: E o Paulo ficou morando no Rio e depois se mudou para a França.
237
Mônica: Isso foi em 2003, acho.
CK: Até então ele morava no Rio.
Mônica: Morava no Rio.
CK: Não passava temporadas aqui, nada disso?
Mônica: Passava, mas poucas. Trabalhando, com viagens promocionais só.
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CK: E isso ele sempre gostou de fazer?
Mônica: Sempre gostou. Quer dizer, ele entendia a
importância. Ele também diz o que eu sempre digo:
Podem falar “ah, as viagens para as 30 cidades francesas ajudaram que o livro entrou nas listas”. E ele diz
que nunca ajudou, ele também diz que aquilo não foi
relevante. Quando você vai ficando mais velho, aquilo
parece que não teve tanta importância. E teve.
CK: Hoje é mais difícil tirar ele de casa para trabalhar
um livro?
Mônica: Não, é diferente. Porque são outras exigências, ele não pode fazer o que ele fazia antes, seria patético, né? E tampouco é tão necessário. A festa de
Frankfurt foi maravilhosa, a gente vendeu um milhão
de “Brida”, mas são alguns eventos que você realmente pode transformar a vida de um livro hoje em dia.
Não é sempre e hoje o Paulo é conhecido demais. Porque o Paulo não é novidade, depende do momento.
Assim, se ele voltar após 10 anos num país, gera uma
mídia muito legal, mas são momentos diferentes.
Então, o grande momento foi 1995, a feira de Frankfurt. Chegar lá e ver aqueles stands que a gente viu,
imensos, e que o livro mais importante era o “O Alquimista”, de qualquer país que a gente passasse. Não
importava se era na zona espanhola, se era na zona
italiana, na zona alemã, era assim único, único. Eu me
lembro do meu trajezinho marrom e era aquela coisa:
“It’s real”. Não era só eu que pensava isso, mais pessoas pensavam realmente: “It’s really real”.
CK: E rápido, não é?
Mônica: Em 6 anos. Desde que ele escreveu o livro,
7 anos.
E nesse momento veio um agente americano, depois
vieram outros agentes americanos também, que vieram falar com o Paulo e o Paulo não aceitou. Mas
houve um agente que pegou um avião e foi ao Rio, e
por coincidência eu estava no Rio, e ele queria fazer
uma proposta para o Paulo para representá-lo, sendo que já estava sendo bem vendido em alguns lugares, nessa época até em 24 idiomas, eu não sei bem,
238
239
mas existiam mais livros e tudo isso, e ele adiantaria
ao Paulo 1 milhão de dólares. Não era uma carta fria,
o cara estava apostando naquilo. E o Paulo disse que
não, disse que não tinha interesse na proposta dele.
CK: Isso foi o Paulo que te contou?
Mônica: Não, eu estava lá.
CK: Você estava na reunião?
Mônica: Estava na reunião também.
CK: Não acredito! E o cara sabia que era você a agente
dele?
Mônica: Sabia. Mas todos esses agentes, principalmente os americanos, não a Carmen Balcells, ela sempre me tratou com respeito, mas esse pessoal me via
como “nunca vai dar certo”. Primeiro, nunca vai dar
certo ser fora dos Estados Unidos, independente se é
um gênio ou é uma estúpida, ou o que for, para eles o
mercado mundial é os Estados Unidos.
CK: E em algum momento você pensou em ir para lá?
Mônica: Não.
CK: Por que você tinha essa questão com a língua?
Mônica: Nunca pensei. E creio que muito do sucesso europeu do Paulo foi por eu estar aqui, por eu ter
viajado tanto, porque eu viajava muito em 95, 96 e 97.
E gostava muito de viajar e esse contato pessoal era
muito importante. A própria Polônia, a gente pensava juntos, acompanhava, ia nas livrarias, e ficava um
tempo, então eu acho que foi muito importante. Os
Estados Unidos eu sempre me impus respeito tam240
bém, mas eu acho que não funciona assim lá. Lá é
muito profissional. A maioria desses agentes vende os
direitos mundiais para a editora. Eles não vão vender
país por país, isso para eles não existe. “Que trabalho!
Lituânia, onde é isso?”. Eles vendem para as editoras,
as propostas são mundiais, todos os direitos, a editora
que faça o que quiser. Então ele visava muito o mercado americano, eu acho, mas o Paulo não quis. Então
não era nenhuma falta de consideração, é que para
eles uma coisa fora dos Estados Unidos para eles era
irrelevante.
CK: E qual é o próximo passo?
Mônica: O próximo passo eu acho que é seguir muito presente, seguir ocupando espaço, poder usar de
várias formas o conteúdo que a gente tem e os demais livros do Paulo, se ele vai escrever, se ele não vai
escrever.
CK: Porque o Paulo reitera essa coisa de ter medo de
realizar um sonho e não ter para onde ir depois. Você
sente isso? Você sente que o sonho está realizado, ou
ainda tem algum lugar para chegar?
Mônica: Para mim, digamos, o meu sonho ele realizou
em 1995, nessa feira de Frankfurt. Se eu algum dia tive
um sonho concreto, ele ali foi. Que era no momento
em que eu disse que eu não estava enganada, falava
para muitas outras pessoas, porque eu tinha certeza
que as pessoas do mundo inteiro iam gostar do livro.
E os meus amigos na época diziam que eu falava sempre isso, eu não me lembro, e que as pessoas achavam
que eu era verdadeiramente maluca. Era uma loucura
total. Então quando eu vi esse momento, que obvia241
mente hoje em dia a gente tem um alcance muito
maior, tudo muito maior, mas ali eu sabia que o que
eu tinha imaginado tinha acontecido. E a partir daí
eu fui construindo, dentro das possibilidades. Que o
“O Alquimista” fosse o número um na Itália, era uma
maravilha, mas que o “Onze Minutos” fosse o número um com 500 mil exemplares é impensável. Porque
com 50 mil exemplares você era número um em 1995.
Mas com 500 mil, o que é isso? É impensável. Você não
visualiza. O “Onze Minutos” foi um sucesso imenso. O
que você viu na América Latina foi no mundo inteiro.
Foi o livro mais vendido do ano 2003 no mundo! São
muitas cópias. Essa foto eu tinha do mundo inteiro!
Foi o livro, provavelmente, que mais trabalho eu tive.
Eu trabalhava constantemente. Era, assim, de muita
alegrias, mas eram muitas coisas. Eu consegui que o
Paulo desse muitas entrevistas, e a gente tinha que
ter 3 entrevistas por país. O Paulo me ligava e ele me
xingava, xingava de todos os nomes, de todos, que ele
não aguentava mais explicar a mesma coisa, eu tinha
que aguentar todo aquele stress imenso e controlar as
coisas. O jornalista tinha que ter lido o livro, você não
pode entrevistar alguém e perguntar “do que trata o
seu livro?”. E ligava para os editores, pedia para ele fazer um questionário com o jornalista, ele tem que assinar um termo que ele leu o livro, era uma prova oral.
Então até encaixar todas as coisas... Mas as reportagens eram maravilhosas, e as pessoas tinham gostado
do livro, e você não pode fazer as pessoas gostarem.
Então foi uma snow ball, positivíssima, que foi crescendo. Então qual a nossa maior venda? Foi o “Onze
Minutos”. Porque o “O Alquimista” vendeu mais, mas
vendeu muito mais tempo. Mas vender aquele mun242
daréu de cópias de “Onze Minutos” em meses era impressionante, ele vendeu dez vezes mais rápido que o
“O Alquimista”. Eu não sei como te dizer. Ele é o autor
mais querido da América Latina.
243
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sum dolu
TÍTULO #10
Mônica Antunes, fevereiro de 2010
Mônica: Teve um sonho, num dia, que para o Paulo
foi muito importante, porque eu escrevi para ele esse
sonho. E eu tenho o sonho escrito também no meu
diário. Eu tinha encontrado um livro, que era um livro
muito importante, e que esse livro ia ajudar muito a
humanidade. Eu já tinha lido os livros do Paulo, a gente
está falando de outubro de 1989, e um pouco passa
um monte de história que eu não me lembro, isso dentro do sonho, e termina um pouco assim: eram os dois,
era como uma montanha, era uma coisa assim. Quer
dizer, o Paulo morava no Rio, em frente a praia, não tinha nada a ver. E ele via esse importante livro seguindo
a sua vida, e ele passava a olhar, ele não interferia mais.
CK: E você acha que é esse momento que ele está
agora?
Mônica: Não, não, eu acho que não. Eu acho que ele
ainda está no barco, olhando o mundo e fazendo coisas. Quer dizer, ele antes olhava muito para ele, não
muito o mundo, muito para ele mesmo. Aí ele passa a
olhar muito o mundo, e ele tem que olhar o mundo e
ele simultaneamente, e depois ele vai chegar.
Ter o equilíbrio das duas coisas, e depois ele vai seguir.
Ele vai ter que seguir sozinho, porque já tem um caminho. Então eu não vejo no Paulo uma pessoa ansiosa,
eu acho que ele vai deixar ir.
CK: De alguma maneira, você acha que a maior lição
do Paulo seria essa essência? Que você falou que influenciou essa geração, é realmente buscar o seu caminho verdadeiro?
Mônica: Buscar o seu caminho, absolutamente. De
seguir os seus sonhos. Até por mim, eu não tinha ne244
245
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nhum sonho. Não é uma questão de “ah, eu quero ser
médico”. Isso é facílimo, eu acho. “Não, eu quero ser
escritor”. Mas você descobrir o seu caminho e olhar o
presente. Não adianta não olhar. É viver o dia-a-dia, o
hoje é muito importante, o amanhã a gente não sabe o
que é. Literalmente. Viver esse dia-a-dia, deixando descobrir as coisas e deixando a vida ser uma aventura,
porque eu nunca posso dizer que eu tinha um sonho.
Eu vou ter um sonho de ser agente literário? Ninguém
sonha isso. Não é nem minha experiência de poder dizer isso. Mas realmente de não ser ovelha, eu acho que
a gente tem que dar essa liberdade. As coisas não são
tão sérias e nos apresentam tudo muito sério.
CK: O que você vai ser quando crescer, né?
Mônica: Com tudo, né? E não é algo do tipo: “Você
tem que saber lidar, viver e fazer as coisas”. Tampouco
é uma questão de ser “paz e amor”, não é isso. Mas de
realmente se dar essa autoconfiança. E de poder descobrir as coisas. Eu acho que no meu caminho era mais
complicado isso. E deixar que as coisas venham, porque
muito dessas histórias eu acho que as coisas vem.
CK: Tem mais alguma coisa de importante?
Mônica: Não, não. Eu acho que você tem, o que você
falou agora, e que eu falei para o Paulo: “A Carol já
tem esse livro escrito, perdão, esse filme escrito há
muito tempo”. Eu acho que você já sabe a história. E
tem a história de amor dos dois, que é uma história
linda. A Chris sempre esteve ali. Não que ela tenha
ajudado, ela nunca ajudou o Paulo a escrever, não é
isso. Mas ele escreveu depois da Chris. O apoio emocional, o espiritual.
246
CK: Ela falou que ele escrevia e ela ficava deitada no
sofá, do lado, dormindo. Não para dar palpite, ou escrever, mas estava ali, né, então é bonito ver no depoimento dele também a importância que isso tem. E se
o amor é a cola que gruda tudo, como ele me disse,
então esse vai ser um filme de amor. E tem, claro essa
coisa da busca, da viagem. Eu falei para o ele: “Paulo,
eu não sei se você tem um laboratório escondido aqui
nesse apartamento, onde você mistura coisas e faz
ouro, eu não sei se você vai viver um milhão de anos,
mas você é um alquimista, porque você transformou
o que você faz em ouro e você conseguiu a vida eterna
247
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como Shakespeare. Tem 120 milhões de livros espalhados nesse mundo, que nunca vão desaparecer. Na
essência, você não precisa me provar nada. Está feito”.
E para mim essa é a essência. E foi aí que eu senti que
ele era sincero. Ele parou, ficou me olhando e disse: “É
isso mesmo, você entendeu tudo”.
Mônica: Mas você vai colocar a parte da infância no
filme?
CK: Eu sempre imaginei começar com ele adolescente, lacrando a cozinha com a fita crepe. Alguém que
está prestes a desistir de tudo, literalmente, e que
decide ficar. Isso eu sempre achei muito forte, muito
bonito. Agora, tem imagens da infância, tem cenas,
que para mim são muito fortes. São momentos que
trazem a essência do que ele aprendeu e dividiu através dos livros, que eu acho que tinham que estar ali de
alguma maneira. Não pode ser simples assim: nasceu,
cresceu, a primeira redação, virou escritor. Eu acho
que um filme do Paulo pede...
Mônica: Pede o mágico, né? A vida dele é mágica.
CK: É, eu acho que ele ficou mais seguro com isso
quando eu falei: “Eu não preciso de três testemunhas,
provar que é tudo verdade, checar documentos e
datas”. Não é isso que interessa nesse filme. Interessa a essência, para mim você é um alquimista, tendo
um laboratório ou não, vivendo para sempre ou não.
Você chegou lá. E quando ele me perguntou: “O que
você veio fazer aqui?”; eu falei: “eu vim ver se eu estou no caminho certo. Vim pedir a sua benção”. Que
era exatamente o que eu sentia que era importante.
E só de estar ali com ele e com a Chris, aquilo para
248
mim foi importantíssimo. Ele pode não ter entendido
nada, pode ter achado que perdeu três dias da vida
dele com essa maluca que veio aqui, para tomar chá
e comer torrada. Mas foi fundamental para entender
o quanto aquilo é verdadeiro, o quanto é bonito tudo
aquilo, a relação dos dois, e isso me dá uma segurança muito maior para trabalhar. E me traz essas outras
possibilidades. Então, quando você me pergunta se
tem a infância do Paulo no filme, cronologicamente,
249
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Quando alguém encontra
seu caminho, precisa ter
coragem suficiente para dar
passos errados. As decepções,
as derrotas, o desânimo são
ferramentas que Deus utiliza
para mostrar a estrada.
250
eu acho que não. Não precisa ter o capítulo da infância, o capítulo da adolescência, agora ele vai virar escritor, agora ele vai ficar famoso. Eu acho que é um desafio enorme, por isso eu preciso testar essa estrutura
não linear que eu quero fazer, sentar para escrever.
Porque o roteiro funciona como um reloginho. Uma
cena tem que puxar a outra, e de repente uma cena
nessa viagem imaginária que eu estou pensando em
fazer, do Paulo e da Chris, puxa uma cena da infância,
que puxa ele tentando escrever e não conseguindo, o
medo de não conseguir escrever. E aí uma costura que
é mágica mesmo. Que é mais difícil, dá um trabalho
do cão, mas quando tem um norte muito claro, é possível. E foi esse norte que eu vim buscar com vocês.
Quando eu me identifico com a história que eu estou
contando, de alguma maneira passa a ser a minha história e por isso pode ser também a história de todo
mundo. É como se eu fizesse essa ponte. Quando a
gente mexe nesses botões que são universais, como
eu falei para o Paulo: “O ser humano é muito óbvio.
A gente tem um assunto só, que é a gente mesmo”.
E os dramas são os mesmos. E essas histórias muito
especiais como a história do Paulo, ajudam a gente
a viver ... de uma maneira segura, numa sala escura,
em duas horas ... uma experiência muito intensa, que
pode mexer com a gente de uma maneira importante. Pode ajudar a mudar a nossa própria história.
251
Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu
Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu
“A vida de Paulo Coelho é cheia
de sinais, cheia de caminhos.
Um garoto que disse que seria
escritor e foi. A verdadeira
história do Mago, o peregrino
que não parou na pista.”
“Durante 8 dias, usei uma
prótese de látex que cobria
o rosto inteiro, pesava cinco
quilos e levava cinco horas de
maquiagem. A maior dificuldade
foi integrar a minha expressão
com o resultado.”
Ravel Andrade
Júlio Andrade
252
253
Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu
254
255
Legenda ulpari doluption conectur sa dolupta tiost, ipsa sum dolu
256
NÃO PARE NA PISTA
A Melhor História de Paulo Coelho
roteiro
Carolina Kotscho
Inspirado na vida e na obra de Paulo Coelho
3º Tratamento
(POLIMENTO FINAL)
23 de abril de 2013
Dama Filmes
www.damafilmes.com
2.
1
INT. SALA/CORREDOR/COZINHA, CASA DA VILA - DIA
1
(1963)
As MÃOS MAGRAS terminam de lacrar os vãos da PORTA da cozinha
com fita adesiva.
As MÃOS MAGRAS de um jovem franzino arrastam uma poltrona
pesada. Os versos iniciais da canção “CANTO PARA MINHA
MORTE”, de Paulo Coelho e Raul Seixas, em gravação original,
cobrem a cena:
O garoto franzino abre o forno, liga o gás, e se senta na
poltrona. É o JOVEM PAULO COELHO, aos 16 anos, muito magrinho
e com os cabelos compridos e desgrenhados. Ele mantém os
olhos fixos no FORNO ABERTO.
RAUL SEIXAS (V.O.)
Eu sei que determinada rua que eu
já passei--
RAUL SEIXAS (V.O.)
Cada vez que eu me despeço de uma
pessoa--
O móvel é levado da sala para a--
CORREDOR, HOSPITAL EM GENEBRA (2013)
COZINHA
O homem na maca é o escritor PAULO COELHO, AOS 66 ANOS. Ele
está coberto por um lençol branco, tem apenas a cabeça
descoberta, e recebe medicação intravenosa. Um ENFERMEIRO
empurra a maca.
-- e posicionado na frente do velho FOGÃO.
RAUL SEIXAS (V.O.)
-- Não tornará a ouvir o som dos
meus passos.
Letreiro em sobreposição:
GENEBRA, 2013
As mesmas mãos agora carregam um ROLO DE FITA ADESIVA e
lacram cuidadosamente todos os vãos das JANELAS.
Paulo, bastante dopado, vira o rosto e se emociona ao ver-P.V. DE PAULO, COM A VISÃO DISTORCIDA - AO LADO DELE:
CHRISTINA OITICICA (62) -- mulher de Paulo, bonita, elegante,
uma mulher muito forte e muito doce --, caminha aflita ao
lado da maca. Ela para de caminhar e acena para o marido com
um sorriso cheio de carinho e angústia. A imagem de Chris vai
ficando cada vez mais longe, até que a PORTA DO CENTRO
CIRÚRGICO se fecha entre eles.
RAUL SEIXAS (V.O.)
Tem uma revista que eu guardo há
muitos anos-- E que nunca mais eu
vou abrir.
Letreiro em sobreposição:
RAUL SEIXAS (V.O.)
-- Pode ser que essa pessoa esteja
me vendo pela última vez.
RIO DE JANEIRO, 1963
Início de montagem paralela com-2
COZINHA, CASA DA VILA (1963)
I/E. CORREDOR/CENTRO CIRÚRGICO, HOSPITAL EM GENEBRA/RUA - DIA
CORREDOR, HOSPITAL EM GENEBRA (2013)
O teto branco e iluminado do corredor de um hospital é
observado do PONTO DE VISTA de um paciente que está deitado
sobre uma maca em movimento.
MAIS ADIANTE NO CORREDOR, sempre do ponto de vista do
paciente, se revela, através da parede de vidro, a imagem
cinza e branca da cidade de Genebra num dia de chuva, com a
rua quase deserta. As imagens ficam aos poucos mais confusas
e distorcidas, como a visão de alguém que acaba de ser
sedado.
2
CENTRO CIRÚRGICO, HOSPITAL EM GENEBRA - EM CONTINUIDADE
A EQUIPE MÉDICA cerca a maca. Aparelhos, instrumentos
cirúrgicos, sons e luzes se fundem na visão de Paulo, como
numa alucinação. A forte LUZ do centro cirúrgico se acende
sobre a maca, cegando Paulo. SILÊNCIO.
COZINHA, CASA DA VILA (1963)
Sentado na frente do forno aberto, o jovem Paulo respira
fundo algumas vezes.
RAUL SEIXAS (V.O.)
A morte, surda, caminha ao meu lado
-- E eu não sei em que esquina ela
vai me beijar.
3.
4.
Paulo tira um TERÇO DE CONTAS coloridas do bolso, o segura
firme com as duas mãos, respira fundo novamente e fecha os
olhos. TELA PRETA. Soam os primeiros acordes da música “NÃO
PARE NA PISTA”, de Paulo Coelho e Raul Seixas, que é
apresentada ao vivo na próxima cena.
3
INT. CASA DE SHOW NO RIO DE JANEIRO - NOITE
PALCO
Paulo e Raul pulam alucinados e enlouquecem a plateia.
PAULO E RAUL (O.S.) (CONT.) (CONT’D)
Se você para o carro pode te
pegar-- Você me xingando de louco
pirado-- E o mundo girando. E a
gente parado. Meu bem, me dê a mão,
que eu vou te levar-- Sem carro e
sem medo do guarda multar--
3
(1974)
PAULO COELHO, AOS 27 ANOS, está tão magro, cabeludo e
barbudo, quanto seu parceiro de palco, RAUL SEIXAS (29). Os
dois estão doidos e felizes, assim como o público animado que
lota uma grande casa de show no Rio de Janeiro.
P.V. DE PAULO - PISTA
Perto do palco, encostada em uma coluna e alheia ao agito do
público, LUIZA (35) -- uma morena linda e sedutora -- encara
Paulo no palco e sorri com ar de apaixonada.
Início dos CRÉDITOS INICIAIS, que entram em sobreposição.
Acompanhados da BANDA, Paulo e Raul estão abraçados e cantam
juntos a música “Não Pare na Pista”.
DE VOLTA A PAULO, NO PALCO, os quatro policiais passam por
Luiza, chamando a atenção de Paulo. Mais à frente, ao sinal
de Plínio, o grupo se dispersa.
PAULO E RAUL
Não pare na pista. É muito cedo
pra você se acostumar.
Amor, não desista. Se você para, o
carro pode te pegar.
Bibi! Fonfon! Pepê!
Se você para o carro pode te
pegar--
PAULO E RAUL (CONT.) (CONT’D)
-- Meu bem me dê a mão, que eu vou
te levar. Sem carro e sem medo, pra
outro lugar.
O público grita, canta junto.
Raul parece passar meio mal e se apoia em Paulo, que também
tem alguma dificuldade para parar em pé.
Fim dos CRÉDITOS INICIAIS.
PALCO
PORTA
Paulo e Raul vão ao delírio. A mistura de rostos e luzes
coloridas parece alucinante para Paulo, mas algo chama sua
atenção na plateia. Sua expressão muda imediatamente da
euforia para a tensão.
Um soldado da Polícia Militar, PLÍNIO (35), sem uniforme,
mostra a carteira de identificação (com o brasão da
corporação) para o PORTEIRO e é autorizado a entrar. Ele faz
um sinal e mais TRÊS SOLDADOS -- LUCAS (30), TÚLIO (28) E
MOURA (25) -- passam pela roleta.
P.V. DE PAULO - PISTA: Encostado na coluna perto do palco, ao
lado de Luiza, o soldado Plínio agora tira fotos de Paulo e
Raul. A LUZ FORTE do flash da câmera do soldado preenche a
tela.
PISTA
Os quatro soldados caminham pela pista. Mesmo à paisana, eles
destoam completamente do resto do público por conta de suas
roupas formais e ar sóbrio.
PAULO E RAUL (CONT.) (CONT’D)
Não pare na pista. É muito cedo
pra você se acostumar.
Amor, não desista. Se você para, o
carro pode te pegar.
Bibi! Fonfon! Pepê!
O TÍTULO DO FILME entra em sobreposição: NÃO PARE NA PISTA.
4
INT. COZINHA/CORREDOR/SALA, CASA DA VILA - DIA
(1963)
O jovem Paulo Coelho segue sentado diante do forno aberto, de
olhos fechados. Por uma fresta da janela, um raio de sol
invade a cozinha e ilumina o rosto do garoto. Paulo,
assustado, abre os olhos. Prende a respiração, estica o
braço, e desliga o gás.
4
5.
6.
Paulo se levanta, guarda o terço no bolso, e olha preocupado
para os lados, muito assustado, como se alguém o estivesse
observando. É alguém que ele não pode ver, mas sente -- e
teme -- essa presença.
P.V. DE PAULO - RUA: Seu cachorro é violentamente atropelado
por um carro.
DE VOLTA A PAULO. Em choque, horrorizado e culpado, o garoto
deixa a faca cair no chão. Ele sente como se tivesse acabado
de matar seu cachorro. Paulo olha para cima como se encarasse
Deus. A LUZ do sol cega o menino. TELA BRANCA.
Paulo abre a gaveta da bancada da pia e pega uma FACA grande,
muito afiada. Ele tenta manter a calma e aceitar algo que lhe
parece muito cruel, mas inevitável. O garoto fica com os
olhos cheios d'água e caminha determinado na direção da
porta. Com a faca na mão, Paulo abre a porta da cozinha e
caminha pelo longo--
6
Aos poucos, se revela o modesto sobradinho de classe média,
que fica em uma pequena vila do bairro de Botafogo, no Rio de
Janeiro. A casa é antiga e bem decorada, mas boa parte dos
cômodos está estranhamente ocupada por uma grande quantidade
de materiais de construção -- tijolos, sacos de cimento e
cal, caixas de piso cerâmico e metais -- estocados de maneira
muito organizada e metódica. Paulo parece procurar por algo
ou alguém. Ao final do corredor, ele chega na--
Um interno -- MARCÃO (35), esquisito -- passa, coça as mãos
algumas vezes, e sorri para Paulo.
Paulo abaixa a cabeça. Ele está sentado em um banco de
madeira, ao lado dos pais, LYGIA (40) -– uma mulher forte,
bonita e doce como Christina, porém mais séria e um pouco
envelhecida para sua idade -– e PEDRO (50) -– um homem de
olhar duro e cabeça erguida. O clima entre eles é tenso e
todos seguem em absoluto silêncio.
SALA.
DOUTOR EDGAR MUTARELLI (50) -- muito seguro e gentil,
psiquiatra da instituição -- abre a porta do consultório e
chama:
O menino encontra TOBIAS, o velho cachorro de estimação da
família. Os dois se encaram por alguns instantes.
MUTARELLI
Paulo Coelho de Souza?
Paulo se abaixa e faz um carinho no animal. O cachorro lambe
a mão do dono, que sorri profundamente triste. Paulo balança
a cabeça para os lados, como quem nega algo que lhe parece
ser imposto neste momento. Uma PORTA BATE. Paulo olha para os
lados novamente, como se ainda estivesse sendo perseguido. O
menino olha fundo nos olhos de Tobias e levanta a faca
determinado: vai matar o cachorro. Falta coragem. Apavorado,
sem largar a faca, Paulo sai correndo em direção à porta da
frente.
EXT. CASA DA VILA/VILA/RUA - EM CONTINUIDADE
O menino olha para a mãe, pedindo ajuda. Lygia se levanta e
chama Paulo.
LYGIA
Vem, filho.
Pedro discretamente puxa Lygia de volta e diz em voz baixa:
PEDRO
Ele vai sozinho.
5
Lygia olha para o médico, que concorda com Pedro. Angustiada,
ela cede, e se despede com um beijo carinhoso na cabeça do
filho. Pedro encara Paulo. Paulo encara o pai por alguns
instantes, se levanta e entra no consultório sem olhar para
trás.
Paulo sai da casa transtornado e bate a porta, que não fecha
totalmente. O menino atravessa a vila correndo.
ATRÁS DELE, o cachorro da família consegue abrir a porta da
casa e segue Paulo.
Paulo sai da vila e, sem olhar para os lados, atravessa a-RUA.
O menino segue em direção a um TERRENO BALDIO. SOM de freada
brusca. Paulo para imediatamente e se vira, a tempo de ver--
6
O jovem Paulo protege com a mão os olhos dos raios de sol que
entram pelas grades das janelas de um corredor do segundo
andar da Casa de Saúde Doutor Eiras.
CORREDOR.
5
INT. CORREDOR, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - OUTRO DIA
7
INT. CONSULTÓRIO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - MOMENTOS DEPOIS
Dentro do consultório, médico e paciente estão sentados
frente a frente. O psiquiatra encara Paulo com interesse e
simpatia. Ele abre um sorriso sincero, mas não diz uma única
palavra.
7
7.
Mutarelli pega o abridor de cartas, uma bonita FACA DE PRATA,
e começa a abrir calmamente alguns envelopes que estão sobre
a mesa. Paulo observa o movimento da faca e fica realmente
incomodado. Sem se dar conta, o médico faz movimentos um
pouco mais agressivos com o objeto. Já quase transtornado,
Paulo começa a se explicar confusamente. Fala rápido, aflito.
PAULO
Eu não queria fazer aquilo. Eu tive
que fazer aquilo, mas eu não
queria. Eu juro. É que o Anjo da
Morte-- Quando a gente chama o Anjo
da Morte, ele tem que levar alguém,
entende?
Mutarelli fica surpreso com o estado de confusão de Paulo.
MUTARELLI
Um Anjo da Morte?
Paulo fica cada vez mais angustiado.
PAULO
É. Ele. Então-- Quando ele vem, ele
tem que levar alguém e eu-- Eu
chamei, mas eu não queria mais ir
com ele, entende? Então o Tobias
apareceu e aí eu-- Eu tive que-Preocupado, o psiquiatra pousa a faca sobre a mesa. Paulo
chora. Mutarelli abre uma gaveta e pega um DIÁRIO. É um
caderno de capa dura, todo rabiscado, com o nome de Paulo na
capa. Paulo parece indignado. O médico abre o caderno em uma
página marcada e lê com dificuldade os garranchos do menino,
escritos de maneira confusa, compulsiva e tensa.
MUTARELLI
“-- Eu não queria, mas era como se
aquela faca tivesse entrando em
mim. Um pedaço de mim morreu hoje,
quando eu matei o Tobi”.
O médico levanta os olhos e encara Paulo.
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
Foi isso mesmo que você escreveu? É
muito difícil entender a sua letra,
Paulo.
Indignado, o menino arranca o diário das mãos do médico.
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
Mas não foi assim que aconteceu,
não é? O seu cachorro morreu
atropelado, não foi?
8.
PAULO
Foi a minha mãe quem te deu isso?
O médico confirma. Paulo abraça o caderno com raiva, não se
conforma. Mutarelli se levanta, dá a volta e se encosta na
mesa, mais próximo de Paulo.
MUTARELLI
É verdade que você nunca teve uma
namorada, Paulo--?
Paulo olha para o médico e confirma em silêncio.
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
E por que não?
Cada vez mais incomodado, Paulo encolhe os ombros.
PAULO
Porque eu sou feio.
O médico olha com pena para o garoto, que sorri triste,
envergonhado.
MUTARELLI
E foi por isso que você tentou se
matar?
Paulo nega em silêncio, contendo o choro. Ele deixa o caderno
escorregar até o colo, revelando os peitos um pouco inchados
sob a camiseta. O médico nota os peitos de Paulo. O menino
percebe e reage:
PAULO
Isso é hormônio-MUTARELLI
Olha pra mim, Paulo. Isso é o quê?
Paulo só levanta os olhos.
PAULO
Hormônio que minha mãe me dá pra
ver se eu cresço mais-- Deixa o
peito assim.
MUTARELLI
Igual o de uma menina?
Paulo se irrita, ergue a cabeça e encara o médico.
PAULO
Igual de quem toma hormônio pra
crescer.
9.
MUTARELLI
Me conta uma coisa, Paulo-- Você já
se imaginou beijando um homem? Pode
ser algum amigo seu, um conhecido-Paulo fica perplexo e sem reação por alguns instantes. O
médico se curva e fala baixinho, querendo parecer um amigo
confiável.
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
Fica tranquilo. Tá tudo bem-- Os
seus pais tão preocupados, mas a
gente vai cuidar disso. A
homossexualidade é-Paulo ri de nervoso e se levanta.
Acabou?
PAULO
MUTARELLI
Calma-- Senta aí, rapaz. Vamo
conversar mais um pouco-Paulo continua de pé. O médico volta para sua mesa e observa
o menino em silêncio por alguns instantes. Mutarelli toca uma
campainha, coloca uma folha de receituário na MÁQUINA DE
ESCREVER que tem na mesa lateral e começa a datilografar.
Visivelmente ansioso para ir embora, Paulo olha fascinado
para os DEDOS RÁPIDOS de Mutarelli batendo no teclado, ao
mesmo tempo que tenta ler disfarçadamente o que o médico
termina de escrever.
Paulo agora olha fixamente para a máquina de escrever e não
nota quando Mutarelli abre uma caixa de papelão que está no
chão, ao lado de sua cadeira. O médico começa a empilhar
dezenas de cadernos com os manuscritos caóticos e compulsivos
de Paulo sobre a mesa. Quando percebe o movimento do
psiquiatra, o menino enche o peito e fala com certo orgulho.
PAULO
É-- É que eu quero ser escritor,
eu-- Eu nunca pensei em ser outra
coisa, não, e eu-O médico parece feliz com a animação de Paulo.
MUTARELLI
Isso é bom-- Escrever é muito bom.
Eu acho que é o melhor jeito de
organizar o que a gente sente e o
que a gente pensa, não é não,
Paulo?
10.
Paulo sorri para o médico. Mutarelli sorri de volta,
confiante de que finalmente estabeleceu uma boa conexão com o
novo paciente. Ainda com um sorriso no rosto, Mutarelli
pergunta animado:
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
-- E uma profissão? Você já
escolheu uma profissão?
Paulo fecha a cara e fuzila o médico com um olhar de ódio.
Mutarelli não entende a reação do menino. Paulo, altivo e
muito seguro, enfrenta o psiquiatra.
PAULO
Eu sou escritor.
Mutarelli sorri com carinho. Parece realmente preocupado com
o menino. Paulo está cada vez mais irritado. Mutarelli,
apesar de direto, tenta ser doce e trazer Paulo para a
realidade.
MUTARELLI
Cê acha mesmo que alguém um dia vai
querer ler essas coisas que você
escreve?
PAULO
Agora acabou?
O médico não responde. Sem pressa, ele pega um carimbo na
gaveta, carimba com capricho o papel e assina. Mutarelli
agora olha fundo nos olhos de Paulo, coloca a mão sobre a
pilha de cadernos do menino, e fala com serenidade e carinho,
como quem dá um conselho importante.
MUTARELLI
Isso aqui-- Ser escritor não é
isso, Paulo. Essas coisas, são
coisas que a gente escreve só pra
gente-- A sua história só interessa
pra você mesmo, entende?
Paulo encara o médico, dividido entre a raiva e as lágrimas.
Tenta conter as duas. Mutarelli tenta fazer graça:
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
E com essa letra, rapaz, sei
não-- Acho que nem você vai
conseguir ler esses garranchos que
você escreve.
O médico acha graça da própria brincadeira. Paulo, não. Ele
encara o médico por alguns instantes e se vira para ir
embora. Mutarelli toca novamente a campainha. DOIS
ENFERMEIROS entram imediatamente no consultório e impedem a
passagem de Paulo, que fica acuado. Mutarelli entrega a
receita para o ENFERMEIRO 1.
11.
12.
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
Ala 2. Dieta liberada.
Paulo abre um vão na persiana da janela e observa.
O ENFERMEIRO 2 segura no braço de Paulo. Aflito, ele se livra
do enfermeiro e vai até a porta.
8
I/E. CORREDOR/ESTACIONAMENTO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - EM
CONTINUIDADE
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO VÃO DA PERSIANA - RUA
8
PAULO (O.S.)
Vamo embora daqui, Chris.
Paulo abre a porta e procura pelos pais.
P.V. DE PAULO - CORREDOR: O banco em que ele estava sentado
com os pais antes da consulta está vazio.
DE VOLTA A PAULO, que arranca o acesso que tem preso no
braço. Chris se aproxima e tenta detê-lo com carinho.
DE VOLTA A PAULO. Angustiado, ele olha para os lados.
Ninguém.
Paulo--
Paulo vai até o outro lado do corredor e olha através das
grades.
PAULO
Eu tenho que sair daqui-CHRIS
Volta pra cama, por favor. Você
podia ter morrido, eu--
e Lygia discutem ao lado do carro. Não é possível ouvir
eles falam. Pedro abre a porta do passageiro e faz um
para Lygia entrar. Ela olha na direção de Paulo, mas
vê. Pedro e Lygia entram no carro.
PAULO
Mas eu não morri, certo?
O carro parte, passa pelo portão da clínica e se afasta,
desaparecendo do campo de visão de Paulo.
Paulo--
A deslumbrante paisagem do Rio de Janeiro vista através das
grades de ferro.
Dela quem?
DE VOLTA A PAULO. Atrás das grades, Paulo está desolado. Ele
tenta se conter, mas uma LÁGRIMA corre em seu rosto.
I/E. QUARTO, HOSPITAL EM GENEBRA/RUA - DIA
(2013)
Uma GOTA de soro cai lentamente do dosador e caminha pelo
acesso em direção ao braço do paciente. Quando outra GOTA vai
cair, o dosador balança bruscamente. É Paulo Coelho (66) -cabelos quase raspados, com um pequeno rabinho na nuca (como
os dos Hare Krishnas) e cavanhaque brancos -- quem levanta
agitado da cama do hospital. Ele segue com alguma dificuldade
na direção da janela.
DO OUTRO LADO DO QUARTO, Chris, a mulher de Paulo, dorme de
roupa e toda torta em uma poltrona. Ela acorda assustada e
observa os movimentos do marido.
CHRIS
PAULO
Tá tudo bem-- Eu tô aqui, Chris. E
eu-- Eu não tenho mais medo dela.
P.V. DE PAULO - AO FUNDO
9
CHRIS
Paulo olha fundo nos olhos de Chris.
P.V. DE PAULO - ESTACIONAMENTO
Pedro
o que
gesto
não o
A chuva cai na rua em Genebra. Algumas POUCAS PESSOAS
caminham apressadas, com suas capas pesadas e
guarda-chuvas escuros.
9
CHRIS
Chris, preocupada, faz menção de apertar a campainha para
chamar a enfermeira. Paulo segura com carinho o braço da
mulher e a detém.
PAULO
Vem cá, vem-Paulo leva Chris até a janela e abre novamente um vão na
persiana.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Olha lá-- Tá vendo aquelas pessoas
lá fora? Tá vendo? A maioria tá só
respirando. Eu-- É isso que a morte
me diz, Chris-- Eu quero morrer
vivendo, entende? Eu quero viver de
verdade.
13.
14.
Paulo, determinado, tira a camisola do hospital e veste a
roupa.
O PONTEIRO DOS SEGUNDOS parece girar mais lentamente a cada
segundo, e o som que ele produz é onipresente, abafado,
angustiante.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Liga lá pra Mônica, meu amor. Diz
que a gente vai na festa.
O jovem Paulo está sentado na beira da cama, catatônico. Com
os cabelos cortados bem curtinhos, ele olha para o relógio
fixamente, sem piscar, com a boca entreaberta.
Chris acha graça e sorri, como se Paulo estivesse brincando.
Ele não gosta da reação da mulher.
O que foi?
SOBRE O CRIADO-MUDO, ao lado da cama de ferro, um diário todo
rabiscado, o TERÇO DE CONTAS coloridas (o mesmo da cena de
abertura) e um PRATO DE SOPA intocado.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Uma MOSCA se aproxima do prato de sopa. O ZUNIDO alto da
mosca agora compete com o SOM do ponteiro do relógio. Paulo
divide o olhar entre o relógio e a mosca. O relógio e a
mosca. O relógio e a -- Paulo, num gesto rápido, inesperado,
pega a mosca com a mão antes que ela consiga pousar na sopa.
CHRIS
Ninguém sai viajando depois de uma
cirurgia no coração, Paulo.
Paulo começa a perder a paciência e corta Chris.
P.V. DE PAULO - PRÓXIMO AO ROSTO: Paulo abre lentamente os
dedos e revela a mosca agonizando na palma de sua mão. Ele
observa a mosca por alguns instantes. Paulo leva o dedo
indicador da outra mão até a mosca e a esmaga lentamente.
PAULO
Não foi uma cirurgia, foi um
procedimento.
Chris encara o marido com muita preocupação.
DE VOLTA A PAULO, que observa fixamente a mosca agonizando em
sua mão.
CHRIS
Viajar pra ir numa festa agora,
Paulo? Você não--
Uma ENFERMEIRA entra no quarto e entrega um copinho com
comprimidos e um outro copo com água para Paulo.
PAULO
Que dia é hoje? É hoje que eles
vêm?
PAULO
É a minha festa, Chris.
Chris se esforça para segurar a angústia e as lágrimas.
ENFERMEIRA
Visita é só na terceira semana.
CHRIS
Espera o médico chegar e a gente--
PAULO
Falta muito?
Paulo nota a preocupação de Chris e abaixa o tom, falando com
mais carinho.
Eu--
A enfermeira olha para o prato cheio de sopa.
PAULO
ENFERMEIRA
Se não comer, vai faltar cada vez
mais.
O fim deste diálogo cobre o início da próxima cena.
10
INT. QUARTO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - TARDE
(1963)
P.V. DE PAULO, DEITADO NA CAMA - PAREDE: Um velho RELÓGIO
analógico pendurado na parede marca as horas.
PAULO (V.O.)
-- Eu não tenho esse tempo pra
perder, Chris. Não tenho.
10
PAULO
Falta quanto?
ENFERMEIRA
Toma o remedinho, toma. Vai ficar
tudo bem--
15.
11
INT. QUARTO, CASA DE SAÚDE DR. EIRAS - PASSAGEM DE TEMPO
16.
11
Paulo, sentado na cama, com cara de quem acabou de acordar -no mesmo quarto, na mesma posição e com o mesmo pijama da
cena anterior --, vira um copinho de plástico cheio de
remédios na boca. Ele deixa o copinho vazio sobre o criadomudo que fica ao lado da cama, pega um outro copinho com
água, e dá um grande gole, engolindo todos os remédios de uma
só vez.
GRAVAÇÃO
[[Anúncio interno para os
passageiros do trem indica o nome
da estação.]]
14
PAULO (O.S.)
Pega a sua bolsa, Chris.
No mesmo quarto -- com outro pijama e na mesma posição -Paulo tem um copinho de plástico em cada uma das mãos: um com
remédios; outro com água. Está mais dopado e mais magro. Com
movimentos que parecem mecânicos, ele vira um copo e depois o
outro. Tem o olhar distante, triste.
CHRIS (O.S.)
Mas ainda não é aqui que a gente
desce, Paulo-PAULO (O.S.)
Agora é. Eu falei com a Mônica, já
tem um carro aqui esperando a
gente.
OUTRO DIA
Na mesma posição, com outro pijama e com uma aparência ainda
mais frágil e decadente, Paulo vira o copinho de remédios na
boca e engole os comprimidos a seco. Ao lado dele, SOBRE O
CRIADO-MUDO, além do TERÇO DE CONTAS, há uma pequena pilha de
CADERNOS COM ANOTAÇÕES.
A cena segue do ponto de vista de Paulo, que se levanta e
caminha entre os outros passageiros em direção à porta.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Vem, Chris. Eu preciso fumar um
cigarro.
OUTRA NOITE
15
Paulo, de pijamas, completamente dopado e com olheiras
profundas, está sentado na cama e encara a IMAGEM DE JESUS
CRISTO presa ao crucifixo que está pendurado na parede, sobre
a cabeceira da cama.
Ao passar na frente de uma LIVRARIA, Chris se detém por
alguns instantes e sorri ao notar-A VITRINE DA LIVRARIA, que está repleta de obras de Paulo
Coelho em comemoração aos 25 anos da publicação do livro “O
ALQUIMISTA”.
Na montagem, as cenas dessa passagem de tempo são
intercaladas com-12
Do ponto de vista de uma passageiro, através da janela, se
revela a paisagem do interior da Espanha.
13
EXT. ESTAÇÃO DE TREM NA ESPANHA - DIA
(2013)
Um TREM para na estação.
INT. ESTAÇÃO DE TREM NA ESPANHA - DIA
Paulo e Chris caminham determinados pela área de desembarque
da estação. Os dois vestem roupas pretas, formais. Paulo está
de terno, camisa e gravata.
Paulo, irreverente, imita a expressão resignada de Jesus por
alguns instantes. Sem tirar os olhos da imagem de Cristo,
Paulo toma os remédios a seco, comprimido por comprimido. Ao
terminar, ele se deita e apaga a luz para dormir.
INT. TREM - EM MOVIMENTO - DIA
14
P.V. DE PAULO: DENTRO DO TREM, PERTO DA PORTA, alguns
PASSAGEIROS se apressam para descer com suas malas.
OUTRO DIA
12
INT. TREM - DIA
13
Paulo segue reto. Está de óculos escuros e tenta seguir
despercebido. Sem sucesso. Por onde passa, ele chama a
atenção de todos. Com muito respeito, ALGUNS FÃS se aproximam
para pedir autógrafos ou simplesmente para cumprimentar
Paulo. Paulo dá um autógrafo.
Chris se aproxima. Está um pouco aflita. Ela fala baixinho
com o marido:
CHRIS
Eu vou no banheiro e já volto.
15
17.
18.
Chris se afasta. Paulo recebe os fãs com carinho e atenção.
Depois de tirar algumas fotos, Paulo sai andando apressado na
direção do banheiro, à procura de Chris. No caminho, ele
passa na frente de um espelho e se olha:
JAY
¿¿Lo sabes? ¿Y celebrar con una
fiesta una conquista tan antigua es
lo mejor que puedes hacer? Si Dios--
P.V. DE PAULO - NO ESPELHO: Paulo tem o ar cansado,
envelhecido. Passa a mão na cabeça e no cavanhaque.
PAULO
Dios debe tener mejores cosas que
hacer que preocuparse por mí, Jay.
Y tu también, ¿no?.
DE VOLTA A PAULO que, um pouco incomodado com a imagem
refletida no espelho, tira a gravata e a guarda no bolso do
paletó. Ele olha em volta novamente, à procura de Chris.
Jay sorri, não se abala. Ele tira um papel e uma caneta do
bolso e anota algo. Paulo avista Chris vindo ao longe.
P.V. DE PAULO - DENTRO DE UMA LOJA DE ROUPAS
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Ahora viene Chris.
Um MANEQUIM veste uma bonita e jovial JAQUETA DE COURO PRETA.
16
INT. LOJA DE ROUPAS - MOMENTOS DEPOIS
Jay dobra o papel e o entrega para Paulo.
16
JAY
Lo sé. Entrégale esto.
Dentro da loja, na frente de outro espelho, Paulo (já sem o
paletó) posiciona a jaqueta diante de seu corpo. Paulo veste
a jaqueta de couro e abre o primeiro botão da camisa.
Jay se afasta. Chris, distraída, se aproxima sem notar Jay.
Paulo enfia o papel que recebeu de Jay no bolso da calça, se
esforça para sorrir e mostra a jaqueta para a mulher, pedindo
aprovação. Chris sorri.
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO REFLEXO NO ESPELHO - ATRÁS DELE:
JAY (65), o mestre de Paulo -- grisalho, um executivo bem
sucedido, com cara de boa gente -- sorri com ironia.
CHRIS
Tá engraçado.
Paulo, surpreso, se vira assustado como quem acaba de ver um
fantasma. Mas Jay realmente está ali e o cumprimenta com um
sorriso largo no rosto. Paulo fica feliz como quem reencontra
um velho amigo.
Paulo não gosta muito do comentário. Ele tira a jaqueta,
desistindo de comprá-la, e fica sério novamente.
PAULO
Vamo, Chris. A gente tá atrasado.
PAULO
¿Vienes a mi fiesta?
Chris pega a jaqueta, sorri, e se dirige ao caixa.
Jay é de uma sinceridade cortante.
JAY
¿Vas tu? Creí que no tenias más
tiempo que perder con eso.
Paulo fica incomodado, mas não responde. Jay segue
provocando.
JAY (CONT.) (CONT’D)
El secreto de cualquier conquista,
Paulo-Paulo termina a frase por Jay, sem muita paciência.
PAULO
-- Es saber que hacer con ella. Ya
lo sé, Jay.
Já venho.
17
CHRIS
E/I. ESTAÇÃO DE TREM NA ESPANHA/CARRO - MOMENTOS DEPOIS
Do lado de fora da estação, JUAN (35) -- o motorista, de
terno -- espera o casal ao lado de um CARRO LUXUOSO. Juan
fala em espanhol. E fala sem parar.
JUAN
Juan. Encantado-- oye, es un placer
¿eh? Me encanta llevar a famosos.
¿Escritor, verdad?
Yo también quería ser escritor,
vivir de contar historias-- Eso si
es vida ¿a que si?
17
19.
20.
JUAN (CONT.) (CONT’D)
Yo-- yo quería ser actor, pero
todavía no me ha tocado.
Simplemente, no me ha tocado. Todo
en la vida es suerte ¿Verdad?
Seguro que usted conoce a mucho
famoseo ¿Verdad?. A mi madre, le
encantan esas revistas donde salen
los famosos. Mi sueño es ser
portada de una de esas revistas.
Esas dónde solo hay fotos ¿Me
pillas? Ya me gustaría que mi madre
me viera en una de esas revistas.
¡Le encantaría! Seguro que hay un
mogollón de fotógrafos en la fiesta
esa dónde os vaís. ¿Verdad?
Paulo cumprimenta o motorista e abre um sorriso amarelo. Juan
coloca a mala de Chris e a sacola da loja no porta-malas e
abre a porta de trás para ela. Chris entra no carro. Paulo,
incomodado com o papo do motorista, olha no relógio, encosta
no carro e acende um cigarro. Ele observa sua jaqueta nova,
com certo desconforto.
DENTRO DO CARRO PARADO
O motorista, ansioso, olha no relógio.
CHRIS
¿Está muy lejos de aquí?
JUAN
Sin atasco, unas dos horas.
18
E/I. ESTRADA/CARRO, ESPANHA - EM MOVIMENTO - TARDE
Paulo, a ponto de explodir, avista um posto de gasolina na
beira da estrada e faz um sinal para o motorista.
PAULO
Salimos ahí, por favor.
18
O carro luxuoso segue por uma autopista.
DENTRO DO CARRO, o motorista não para de falar. O clima é de
constrangimento.
19
19
Chris e o motorista descem do carro e seguem na direção da
LANCHONETE. Paulo desce também, mas encosta no automóvel e
pega um cigarro. Ele mostra o cigarro para Chris.
JUAN
¿ ¿Ah, entonces “La Justicia del
Universo” no es suyo? Creía que sí--
PAULO
Eu te espero aqui.
No banco do passageiro, Paulo, irritado, segue em silêncio.
Chris ri disfarçadamente no banco de trás. Juan não desiste.
JUAN (CONT.) (CONT’D)
Pero “El Alquimista” sí que lo es
¿verdad? Ese lo he leído. Soy
gallego. Por eso lo leí en
portugués directamente. Es casi lo
mismo, ¿verdad? Creo que tenía unos
15 años o algo así-- No me acuerdo
muy bien de la historia, pero creo
que me gustó ¿eh? Ese me gustó y
recuerdo que a mis padres también.
Mi padre-- Mi padre también es
escritor. Bueno-- la verdad es que
es conductor. Trabaja para una
funeraria, pero escribe poesía. Es
precioso lo que escribe el hombre-debería haberse dedicado a eso,
pero-- Con lo difícil que es tirar
pa’delante-- Mi padre puede no
haber tenido la suerte que usted ha
tenido, pero tiene talento, el
hombre. Eso sí que lo tiene. Pero
hace falta tener suerte en la vida
y la vida ha sido dura con mi
padre.
(MORE)
EXT. ESTACIONAMENTO, POSTO DE GASOLINA - MOMENTOS DEPOIS
P.V. DE PAULO: Chris se afasta em direção à lanchonete. Mais
adiante, um GRUPO DE CINCO JOVENS chama a atenção de Paulo.
São mochileiros, com roupas surradas e cabelos desgrenhados.
Eles dividem um único sanduíche e parecem leves, realmente
felizes. Um dos garotos -- de cavanhaque e óculos aviador,
vestindo uma jaqueta de couro surrada -- é muito parecido com
o Paulo jovem que estava cantando no palco com Raul Seixas. O
jovem olha para Paulo.
DE VOLTA A PAULO, que não consegue tirar os olhos do grupo.
Está mexido com o que vê.
20
EXT. ESTACIONAMENTO, POSTO DE GASOLINA - MOMENTOS DEPOIS
Chris volta e não encontra o carro no lugar em que estava.
P.V. DE CHRIS - AO FUNDO: Nos fundos do estacionamento, o
carro luxuoso vai e volta alguns metros, repetidamente, em um
estranho movimento.
Ao se aproximar, Chris reconhece Paulo no comando do carro.
NO ASFALTO, sob as rodas do carro, a JAQUETA DE COURO nova é
atropelada algumas vezes.
20
21.
22.
Paulo desce do carro e recupera a jaqueta, agora com uma cara
mais surrada. Ele veste a jaqueta e olha para a mulher,
pedindo aprovação novamente. Chris ri e se aproxima do
marido. Ela limpa a poeira do casaco com as mãos e brinca.
22
Em outro ponto da estrada, Paulo para o carro no acostamento,
pega o celular e disca um número. O nome de MÔNICA ANTUNES
aparece no mostrador do aparelho de som do carro, mas a
chamada não se completa. Paulo, aflito, tenta novamente.
MÔNICA (45) atende, dando início a uma CHAMADA em VIVA VOZ
nos auto-falantes do carro.
CHRIS
Bem melhor. Parece até que tá cheia
de história pra contar.
Paulo tenta rir, mas realmente não gosta muito do que ouve.
MÔNICA (V.O.)
(no viva-voz)
Pelo amor de Deus-- Cadê você,
Paulo? Você tá bem? O motorista me
ligou desesperado-- Como é que você
larga o sujeito assim no meio da
estrada e não me avisa? Eu--
PAULO
Pô, Chris-Ela sorri carinhosa, um pouco arrependida do que disse.
CHRIS
Ficou bom. Ficou assim-- Mais--
PAULO
Fica tranquila. A gente tá no
caminho-- Em menos de duas horas eu
tô aí.
Chris não sabe muito o que dizer para melhorar a situação.
Aflito com o horário, Paulo olha novamente no relógio. Ele
olha em volta, mas nem sinal do motorista. Paulo entra no
carro, assume a direção, abre a porta do passageiro e faz um
sinal para que a mulher o acompanhe. Chris hesita. Paulo
insiste.
MÔNICA (V.O.)
(no viva-voz)
Vem devagar, que eu já desmarquei
todas as entrevistas. Que susto! Eu
fiquei com medo que-- Sei lá--
PAULO
Vem, Chris!
SOM de interferência. A voz de Mônica some. Na tela do
aparelho de som, aparece a mensagem: SINAL PERDIDO. Paulo
observa a tela do celular com a mesma mensagem.
PORTA DA LANCHONETE - MOMENTOS DEPOIS
21
I/E. CARRO/ESTRADA NA ESPANHA - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE
O motorista sai com algumas garrafinhas de água mineral nas
mãos, no exato momento em que o carro dirigido por Paulo
passa por ele.
PAULO
E se for um sinal, Chris?
P.V. DO MOTORISTA: O carro segue para a estrada, acelera, e
some no horizonte.
CHRIS
É o sinal. Daqui a pouco volta.
I/E. CARRO/ESTRADA, ES - EM MOVIMENTO - MOMENTOS DEPOIS
Chris olha para Paulo, esperando uma explicação. Paulo, muito
sério, olha para Chris.
Que foi?
PAULO
Chris balança a cabeça e sorri. Paulo sorri com uma cara
marota para Chris. Os dois começam a rir juntos. É uma risada
gostosa, cúmplice. Paulo liga o rádio e encontra uma estação
que toca um ROCK. Paulo aumenta o volume, canta junto e
acelera o carro com prazer, como um garoto que acaba de
ganhar um brinquedo novo.
Chris observa o marido e ri com certa tensão, numa mistura de
encantamento e preocupação.
21
PAULO
Não é desse sinal que eu tô
falando, Chris-Chris fica séria e encara Paulo.
CHRIS
Não, Paulo. Você disse que ia e
agora tá todo mundo lá te
esperando. Nem pensa nisso.
PAULO
São seis horas, Chris.
O relógio marca 18:00hs. Paulo e Chris, em perfeita
sincronia, fazem o sinal da cruz, fecham os olhos e, em
silêncio, fazem uma breve oração. Ao final, com a mão
direita, Paulo faz um movimento circular sobre a própria
cabeça.
22
23.
23
E/I. ESTRADA DE TERRA, CAMINHO DE SANTIAGO/CARRO - ENTARDECER 23
VISTO DE LONGE, o carro de Paulo cruza uma estradinha sinuosa
no meio do nada.
DENTRO DO CARRO: a estradinha é linda, mas não há qualquer
placa ou sinalização. Paulo diminui a velocidade, aperta
nervoso o GPS, que está sem sinal, e abre o porta luvas.
Estão perdidos.
PAULO
Vê se tem um mapa aí, Chris.
Ela olha e balança a cabeça para os lados, em negativa. Paulo
segue em frente, até encontrar uma encruzilhada. Ele para o
carro e olha para Chris, esperando uma decisão.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
O que cê acha, Chris?
CHRIS
Eu acho que a gente já passou aqui,
não passou?
Paulo abraça a direção e observa a estrada, pensativo. Ele
pega o celular. Sem sinal. Paulo abre a porta.
DO LADO DE FORA, Paulo desce do carro, caminha alguns metros
e observa a tranquilidade de um HOMEM que caminha sozinho e
passa por ele, a PAISAGEM BUCÓLICA, os PÁSSAROS.
Paulo tira o maço de cigarros do bolso e pega junto o papel
que Jay lhe deu na estação de trem e pediu que ele entregasse
para Chris. Curioso, Paulo desdobra o papel e encontra o
desenho simples de uma ESPADA. Paulo sorri, respira fundo e
levanta a cabeça.
P.V. DE PAULO - AO LONGE: Uma FLECHA AMARELA pintada num
poste e uma PLACA de madeira rústica que indica: SANTIAGO DE
COMPOSTELA, 247KM.
A expressão de Paulo se transforma. Agora ele tem certeza:
era um sinal.
Paulo volta para o carro e encontra Chris tentando ligar para
Mônica, sem sucesso. Paulo pega o celular da mão de Chris. O
celular começa a tocar. É o nome de Mônica que aparece na
tela. Paulo desliga o celular. Imediatamente, o celular de
Chris começa a tocar dentro da bolsa. Paulo estende a mão,
Chris lhe entrega também o outro aparelho. Paulo atende a
chamada de Mônica.
PAULO
Oi, Mônica.
CHAMADA ENTRECORTADA COM--
24.
24
EXT. PARADOR/PRAÇA DE SANTIAGO - MESMO TEMPO
É um castelo imponente, sóbrio. Os CONVIDADOS, vestidos
formalmente, começam a chegar. A entrada principal está
enfeitada para a festa. Uma enorme FAIXA indica que o evento
comemora 25 anos do lançamento de “O Alquimista” e apresenta
o sucesso do livro no mundo, com fotos das capas em diversas
línguas e números de vendas. Mônica fala ao celular enquanto
atravessa a confusão de convidados e fotógrafos que começa a
se formar.
MÔNICA
(ao celular)
Só um minuto, Paulo.
Mônica está aflita com a ligação que foi cortada e a falta de
notícias. Ela tem dificuldades de ouvir o que Paulo fala.
Mônica se afasta da entrada da festa, deixando a confusão
para trás, e segue andando pela imponente praça central de
Santiago de Compostela.
MÔNICA (CONT.) (CONT’D)
Como? -- Como não vem mais, Paulo?
O que é que aconteceu?
ESTRADA DE TERRA
Paulo fala ao telefone.
PAULO
Faz vinte e cinco anos que eu
escrevi essa história, Mônica-- Já
foi.
MÔNICA
Você disse que chegava em duas
horas. Eu confirmei, eu-- Eu
preciso de você aqui, Paulo.
PAULO
E eu preciso de outra história pra
contar, Mônica.
MÔNICA
Que história, Paulo? Você precisa
se cuidar-- Você só veio até aqui
por causa dessa festa, não foi?
Então vem. Seus amigos, a imprensa-Tá todo mundo aqui.
PAULO
Eu não vou, Mônica.
MÔNICA
Então você foge do hospital, você
não vem pra sua festa--
24
25.
26.
PAULO
Confia em mim--
Paulo segue em silêncio. Lygia insiste, carinhosa.
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
Cê engordou um pouquinho, né? Tá
tão bonito-- Foi bom lá, não foi?
MÔNICA
-- Você vai pra onde, Paulo? Aonde
é que você quer chegar?
Paulo olha para Lygia e demora um pouco para responder. Ele
parece muito frágil, está ainda mais magro do que antes da
internação, abatido e meio dopado pelo efeito dos remédios.
PAULO
Confia em mim, Mônica. Eu chego. Em
algum lugar eu vou chegar.
Mônica de repente para de caminhar. Ela olha para cima e
sorri.
Foi ótimo.
Paulo desliga o rádio, vira o rosto e fica com o olhar
perdido na paisagem em movimento que vê através da janela do
carro.
P.V. DE MÔNICA: A Catedral de Santiago.
DE VOLTA A MÔNICA, que ri e desiste de discutir com Paulo.
MÔNICA
Vai, claro que vai. Você sempre
chega onde você quer, Paulo.
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA JANELA - RUAS DO RIO DE JANEIRO
A linda paisagem de um dia de sol no Rio de Janeiro: GENTE
BONITA caminha pelo calçadão de Copacabana; um MENINO passeia
com seu CACHORRO; PESSOAS se divertem na praia; uma MULHER
BONITA atravessa a rua, vestindo apenas um biquíni.
E/I. ESTRADA DE TERRA, CAMINHO DE SANTIAGO/CARRO - ANOITECER
Paulo sorri e desliga o celular. Ele enfia os dois aparelhos
desligados no bolso e entra no carro.
LYGIA (O.S.)
Posso te contar uma coisa,
Paulinho? Promete que não conta pro
seu pai?
DENTRO DO CARRO, Paulo liga o motor. Chris observa,
intrigada.
DE VOLTA A PAULO, que agora olha para a mãe com mais
interesse. Ela abre um sorriso maroto.
MOMENTOS DEPOIS, DO LADO DE FORA, o carro parte e segue na
direção indicada pela flecha amarela, rumo a Santiago de
Compostela.
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
Eu comprei um biquíni-- E já usei
duas vezes!
DENTRO DO CARRO, mais leve e relaxado, Paulo liga o aparelho
de som do carro e procura novamente uma rádio que toque
música.
25
I/E. CARRO DE LYGIA/RUAS, RJ - EM MOVIMENTO - DIA
(1963)
A MÃO de Lygia, mãe de Paulo, sintoniza uma MÚSICA SUAVE no
antigo RÁDIO DO CARRO. Em seguida, a MÃO do jovem Paulo gira
o botão do aparelho até encontrar um estridente SOLO DE
GUITARRA. Ele aumenta o volume.
Dentro do carro em movimento, Lygia e Paulo seguem em
silêncio. A mãe olha um pouco aflita para o filho, que parece
apático, fora do ar. Lygia abaixa o som do rádio.
LYGIA
Conversa comigo, Paulinho. Me conta
alguma coisa--
PAULO
Paulo quase consegue sorrir. De alguma maneira, ele se sente
acolhido e confortado pela pequena transgressão da mãe.
25
26
E/I. CASA DA VILA - DIA
SÔNIA MARIA (14) -- a irmã caçula de Paulo -- o espera na
porta de casa. Ela sorri um pouco intimidada para o irmão.
Lygia observa de longe. Paulo ainda está meio dopado, não
consegue responder, nem dar qualquer atenção para a irmã.
Sônia acha tudo muito estranho.
SÔNIA
Paulo? Tá tudo bem?
Sônia, preocupada, olha para a mãe pedindo uma explicação.
Lygia faz um sinal para Sônia não insistir. Sob o olhar
preocupado de Sônia e Lygia, Paulo passa reto pela sala e
sobe direto para o--
26
27.
27
INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - MOMENTOS DEPOIS
28.
27
Amém.
É um quarto pequeno, muito arrumado, com uma cama marquesa,
paredes brancas, uma estante com alguns livros e uma
escrivaninha de madeira. Paulo deixa a mochila no chão e
deita de roupa e sapatos sobre a cama. Não tira sequer a
colcha de renda que cobre os lençóis.
28
INT. SALA DE JANTAR/COZINHA, CASA DA VILA - MAIS TARDE
Os três jantam calados. O clima não é bom. Depois de algum
tempo, Pedro rompe o silêncio.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Ele te disse alguma coisa?
28
Nada.
Já é noite. Lygia põe o jantar na mesa. Ao fundo, Sônia Maria
lava as mãos na cozinha. Pedro, o pai de Paulo, acaba de
chegar do trabalho. Ele deixa a pasta sobre o aparador,
pendura o paletó na cadeira, coloca um LP de ópera para tocar
na vitrola e se prepara para sentar.
PEDRO
O que é que a gente fez com esse
menino, Lygia?
Sônia observa os pais em silêncio. Os olhos de Lygia se
enchem de lágrimas. Ela olha fundo nos olhos de Pedro e fala
baixinho, fazendo força para acreditar nas próprias palavras.
SÔNIA
Tá dormindo. Chegou tão abatido-PEDRO
Chama ele pra jantar, por favor,
Sônia.
LYGIA
Vai ficar tudo bem. Ele vai ficar
bem.
LYGIA
Não, Pedro. Deixa ele descansar--
31
Pedro se levanta e sobe a escada na direção dos quartos.
Lygia o segue.
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA JANELA - VILA
Pedro Coelho orienta o MOTORISTA do caminhão de uma loja de
materiais de construção que faz uma complicada manobra para
estacionar na frente da casa.
LYGIA
Deixa ele dormir, Pedro. Amanhã ele
acorda mais disposto, vocês
conversam com calma.
QUARTO DE PAULO
Pedro fica visivelmente abalado com o estado do filho e
concorda com Lygia. Com a expressão triste, ele apaga a luz
do quarto.
Pedro, Lygia e Sônia terminam de fazer uma oração silenciosa
antes do jantar.
31
P.V. DE PAULO, AO ABRIR OS OLHOS: O quarto está na penumbra,
parcialmente iluminado pela luz do sol que atravessa a
veneziana da janela. SOA mais uma vez a BUZINA do caminhão.
Paulo se levanta ainda meio sonado, segue até a janela,
afasta a cortina e olha por uma fresta da veneziana.
INT. CORREDOR/QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - MOMENTOS DEPOIS 29
INT. SALA DE JANTAR, CASA DA VILA - MOMENTOS DEPOIS
I/E. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA/VILA - MANHÃ
Sobre a TELA PRETA, SOM de buzina de caminhão.
Pedro abre a porta do quarto de Paulo e acende a luz. Paulo
está largado na cama, dormindo profundamente. Pedro observa o
filho e hesita por alguns instantes antes de acordar o
garoto. Lygia chega, segura no braço do marido com carinho e
pede baixinho.
30
LYGIA
Pedro, angustiado, balança a cabeça para os lados e encara a
mulher.
PEDRO
Cadê o Paulo?
29
PEDRO
Paulo respira fundo e estica o corpo, dolorido depois das
muitas horas de sono profundo.
30
32
INT. QUARTO DO ANDAR DE BAIXO, CASA DA VILA - MAIS TARDE
Em um dos quartos do andar de baixo da casa, Paulo ajuda o
pai a organizar o material que acaba de chegar. São peças de
louça de banheiro.
32
29.
30.
O quarto está quase todo tomado por sacos de cimento,
azulejos e caixas de piso cerâmico. O menino ainda parece um
pouco apático, distante.
PAULO
Você sabe o que eu quero.
Paulo desloca uma pilha de caixas, enquanto Pedro confere as
novas cubas, bidês e vasos sanitários. São quatro jogos, de
cores diferentes.
PEDRO
Eu tô falando sério, Paulo. Eu me
preocupo com você.
Paulo segue encarando Pedro, mas seu olhar agora é de raiva.
Paulo deixa estampado em seu rosto que não aguenta mais essa
conversa e que já não dá a mínima para a opinião do pai.
Pedro insiste.
PEDRO
Qual você gosta mais, Paulo?
Paulo apenas olha e dá de ombros, dando a entender que não se
importa em nada com a cor da louça. Ele volta a empilhar as
caixas e fala de costas para o pai.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
-- Eu tô falando de coisas
concretas, filho. De ser alguém, de
ter um objetivo na vida.
PAULO
Essa casa que cê quer fazer não vai
existir nunca.
Paulo corta o pai. Ele aponta para si mesmo e imita Pedro.
Pedro olha orgulhoso para o quarto lotado e aponta o material
estocado.
PAULO
Eu já sou um escritor, não tá
vendo?
PEDRO
Ela já existe, Paulo. Não tá vendo?
Pedro não se conforma. Olha para Paulo como quem sente pena
diante de tanto delírio. Paulo mantém a cabeça erguida e o
olhar desafiador. Pedro está realmente preocupado.
Paulo ri com desdém e volta a empilhar as caixas. Pedro
resolve aproveitar a oportunidade para ter uma conversa séria
com o filho.
PEDRO
Ninguém vive de ser escritor,
Paulo-- João Cabral é diplomata,
Drummond de Andrade é funcionário
público, Jorge Amado é jornalista.
E você? Você vai ser o quê, meu
filho?
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Olha pra mim, Paulo.
Paulo obedece.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Tudo o que eu quis na minha vida,
eu fiz, filho. Eu quero a casa da
Gávea e eu tô fazendo. Aos poucos,
do jeito que eu posso, mas eu tô
fazendo -PAULO
Sem cinema, sem viagem, sem a
máquina de escrever que eu te pedi
tanto-- Do teu jeito. Sempre do teu
jeito.
PEDRO
Do jeito que eu posso, filho. Eu
não desisto do meu sonho.
Paulo só olha para Pedro com ar de reprovação, mas se cala.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
E você? Você sabe o que você quer,
Paulo?
O SOM de um disco girando na vitrola cobre o final da cena.
Começa a primeira estrofe da música “MEU AMIGO PEDRO”, na voz
de Raul Seixas, em gravação original.
RAUL SEIXAS (V.O.)
“Muitas vezes, Pedro, você fala-Sempre a se queixar da solidão.
Quem te fez com ferro, fez com
fogo, Pedro--”
33
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - NOITE
(1986)
O DEDO INDICADOR de uma mão feminina percorre a lista de
músicas impressa na contra-capa do LP “Eu Nasci Há Dez Mil
Anos Atrás” até o título “MEU AMIGO PEDRO”.
PAULO (O.S.)
Tira isso, Chris. Tira essa merda.
33
31.
As mãos são de Christina Oiticica, a mulher de Paulo, mais
jovem, AOS 36 ANOS. Ela parece determinada e ignora o pedido
do marido. De pé na frente do móvel que abriga o aparelho de
som, Chris aumenta o volume. Ela se vira, encara o marido e
canta junto.
RAUL SEIXAS E CHRIS
“-- É pena que você não sabe não.
Vai pro seu trabalho todo dia.
Sem saber se é bom ou se é ruim.
Quando quer chorar, vai ao
banheiro. Pedro, as coisas não são
bem assim. --”
DO OUTRO LADO DA SALA, Paulo Coelho, 40 ANOS -- mais velho e
mais sério do que no show, cabelos e barba aparados -- está
afundado em uma confortável poltrona e tem um copo de uísque
na mão. Ele veste camisa social para dentro da calça, cinto e
sapato formal. A roupa está amarrotada e ele tem o ar cansado
de um executivo entediado depois de um dia de trabalho
desinteressante. Indignado, Paulo encara a mulher.
PAULO
Que porra é essa?
Chris ignora a pergunta e continua cantando. É um apartamento
charmoso e bem decorado, em estilo “hippie-chique”, que fica
no andar térreo e tem um pequeno jardim ao fundo.
CHRIS
Como é que chama mesmo essa música,
Paulo?
Paulo não entende onde Chris quer chegar e responde
secamente.
Você sabe.
PAULO
RAUL SEIXAS E CHRIS
“-- Toda vez que eu sinto o
paraíso.
Ou me queimo torto no inferno.
Eu penso em você, meu pobre amigo.
Que só usa sempre o mesmo terno --”
Chris para de cantar e provoca:
CHRIS
Sabe o que eu acho? Eu acho que
essa música podia era chamar “Meu
Marido Paulo”.
PAULO
Porra, Chris. Não fode.
32.
Paulo vai até a vitrola e desliga o aparelho. Ele se vira e
segue de volta na direção da poltrona. Chris segura Paulo.
CHRIS
Há quanto tempo que a gente tá
junto?
PAULO
Sei lá. Faz tempo.
CHRIS
Eu me apaixonei pelo cara que
escrevia essas coisas, Paulo. Pelo
cara que sonhava em ser-PAULO
Eu sou um escritor, Chris. E eu
ainda vou-CHRIS
Faz seis anos que eu ouço essa
história e eu ainda não vi você
escrever uma única linha.
PAULO
Eu tô tentando.
CHRIS
Tentando como, Paulo? Tomando
uísque? Reclamando da vida?
PAULO
Pega leve, Chris-CHRIS
Me diz que história você quer
contar fazendo um trabalho que você
não gosta, pra ganhar um dinheiro
que você não precisa? É essa a tua
história?
Paulo fica arrasado.
PAULO
Chega, Chris! Se você não me ama
mais, a gente-CHRIS
Ex-maluco que agora usa o cinto
combinando com o sapato? Um
compositor genial que virou gerente
de gravadora?
Paulo fica perplexo, olhos marejados, não consegue reagir.
Chris também fica com os olhos cheios d’água: foi longe
demais, não queria ter dito isso. Ela respira fundo, muda o
tom e sorri carinhosa. Paulo não entende.
33.
34.
Chris se aproxima sedutora, passa as mãos pelo corpo de Paulo
e fala baixinho no ouvido do marido.
Paulo neste momento olha para o homem, como se tivesse
acordado de um transe. Ele olha fixamente para o sujeito.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Mas eu sei que tem um artista aí
dentro. É esse artista que eu amo--
AGENTE (CONT.) (CONT’D)
Cê vai levar muita porrada, vai
apanhar pra cacete, sabia? Aí eu
digo: você precisa é de humildade,
rapaz-- Vai ter que ralar muito,
ralar de verdade.
Chris beija a orelha e o pescoço de Paulo, que fecha os
olhos, sem se mexer. Paulo afasta Chris, ela insiste.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Desculpa. É que escritor-- Escritor
tem que escrever, Paulo. Ninguém
vai ler e respeitar um escritor que
não escreve. Se você desistiu, tudo
bem, mas--
O homem faz uma pausa solene e estufa o peito de orgulho.
AGENTE (CONT.) (CONT’D)
-- Mas a gente vê que é um artista.
A pessoa quando nasce pra uma
coisa-- Se Deus quiser--
Paulo olha fundo nos olhos de Chris. Soa firme, determinado:
A boca do agente
de Paulo, já não
retratos que tem
tirada na frente
PAULO
Eu não vou desistir nunca.
CHRIS
Então escreve, porra. Faz alguma
coisa da tua vida.
P.V. DE PAULO: Sobre a foto, escrito à mão com caneta
grossa, a legenda: AMSTERDÃ, 1982.
DE VOLTA A PAULO, que encara o agente e pergunta muito sério:
Paulo transtornado, agarra Chris. Os dois se beijam com
paixão. Ela ri. Paulo segue transtornado.
34
INT. SALA DE PAULO, GRAVADORA - DIA
PAULO
Cê já foi para Amsterdã?
O homem não entende a pergunta e fica sem reação. Paulo abre
sua pasta, guarda o porta-retratos e recolhe mais alguns
poucos objetos sobre a mesa: uma agenda, algumas canetas, uma
caneca e um abridor de cartas em forma de ESPADA. Paulo se
detém alguns instantes com a pequena espada nas mãos e sorri
para o homem.
34
Paulo está em sua confortável sala de gerente na gravadora.
Ele veste suas roupas formais e é a própria imagem do pai que
tanto criticou. AO FUNDO, na parede, alguns discos de ouro de
Raul Seixas e fotos de Paulo com Raul e outros parceiros na
música: VANUSA e SIDNEY MAGAL.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Deus não faz nada sozinho não, meu
amigo.
NA FRENTE DE PAULO, o AGENTE de um aspirante a cantor defende
seu representado com afinco. O homem fala rápido,
entusiasmado. Sobre a mesa, algumas fotos do jovem talento e
uma fita cassete.
Paulo fecha a pasta e encara o agente. O homem encara Paulo
um pouco assustado. Paulo sorri novamente. O homem acha tudo
muito estranho. Paulo se levanta, pega o paletó que está
pendurado na cadeira e a pasta, e sai da sala sem dizer uma
única palavra. O homem observa os movimentos de Paulo sem
reagir.
Paulo olha para o homem, mas não parece prestar nenhuma
atenção no que o sujeito fala. Está longe, entediado, absorto
em seus pensamentos.
AGENTE
É só uma chance que ele precisa-Só uma. O garoto tá pronto pra
estourar, sabe como é? É o caminho
dele, tá escrito. Desde de
pequenininho que o moleque só fala
disso. Aí eu falo pra ele: tu não
sabe o que é ter sucesso não, cara-Todo mundo vai te adorar, mas não é
só isso, não--
continua se mexendo, mas do ponto de vista
emite qualquer som. Paulo pega um portasobre a mesa, com uma foto dele com Chris,
de um café.
35
EXT. PRAIA DE IPANEMA - MESMO DIA
Num canto vazio da praia, Paulo está sentado sozinho na
areia, com o olhar perdido no horizonte. Ele segura os
sapatos nas mãos e ainda veste suas roupas formais.
Paulo parece estar em transe. Como que hipnotizado pelo mar,
ele se levanta e começa a tirar a roupa.
35
35.
36.
Fica só de cueca e segue em direção à água. Paulo mergulha e
sai nadando em direção ao horizonte.
37
(1986)
Início de MONTAGEM. As braçadas de Paulo no mar são
entrecortadas com-36
INT. CAFÉ, AMSTERDÃ - DIA
(1982)
O olhar inquisidor de Jay -- o mestre que Paulo encontrou na
estação de trem na Espanha, aqui aos 34 anos -- parece
perseguir o escritor, assim como os policias no show que abre
o filme. Jay está de pé na porta de entrada e encara
fixamente Paulo, que está com Chris tomando um café no
balcão.
É o mesmo lugar que aparece na foto sobre a mesa do
escritório de Paulo: um café muito simples, quase sombrio, em
Amsterdã.
Um GRUPO DE TRÊS PESSOAS se levanta para sair e se posiciona
entre Paulo e Jay. Jay se desloca e segue encarando Paulo com
uma expressão serena. Paulo se incomoda. Jay não se altera.
Desconfiado, Paulo se levanta, vai até Jay e o enfrenta.
PAULO
Hey man, are you with the Police,
or something?
No.
JAY
36
Sentado em uma cadeira da mesa de jantar, Paulo faz o ritual
de R.A.M.. Tem à sua frente um copo com água e a Bíblia nas
mãos. Paulo lê trechos do Novo Testamento em voz alta
(Mateus, cap. 23, vers. 10, 11, 12).
PAULO
“Nem vos chameis mestres, porque um
só é o vosso mestre, que é Cristo.
O maior dentre vós será vosso
servo. E o que a si mesmo se
exaltar, será humilhado. E o que a
si mesmo se humilhar, será
exaltado.”
A conversa com Jay em Amsterdã cobre a cena.
JAY (V.O.)
Por el poder y por el amor de
R.A.M., yo te invito a hacer parte
de la Orden.
PAULO (V.O.)
¿Qué orden?
JAY (V.O.)
“Erre" de rigor, “A" de amor, “Eme"
de misericordia. “Erre" de regnum,
“A" de agnus, “Eme" de mundi.
¿Para qué?
PAULO
Then what do you want from me?
Chris observa o marido de longe, curiosa.
Nada.
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - DIA
JAY
PAULO
¿Cómo qué nada? ¿Por qué me sigues?
JAY
Me has buscado tú. Es el discípulo
quien elige a su maestro.
PAULO
¿Maestro? ¿Maestro de qué?
A conversa de Paulo e Jay em Amsterdã cobre em V.O. a próxima
sequência.
PAULO (V.O.)
JAY (V.O.)
Para que encuentres lo que tanto
estás buscando.
¿Cuándo?
PAULO (V.O.)
JAY (V.O.)
Cuando estés listo.
PAULO (V.O.)
¿Tu te crees que estoy loco?
JAY (V.O.)
Lo que estoy es viendo que me vas a
dar mucho trabajo.
PAULO (V.O.)
Pero ¿por qué yo?
37
37.
38.
JAY (V.O.)
Porque sabes lo que quieres. Y vas
a conseguirlo.
Pedro não se controla e sobe um pouco o tom. Parece realmente
preocupado.
PEDRO
Eu não tenho mais nada pra dizer
pra ele, Lygia--
Paulo fecha a Bíblia e fecha os olhos. Ele faz uma oração
silenciosa.
JAY (V.O.)
Que delante de la imagen sagrada de
R.A.M., toques con tus manos la
palabra de vida, y recibirás tal
fuerza que serás testigo de ella
hasta los confines de la tierra.
LYGIA
Fala baixo.
DUAS MULHERES, sentadas no banco da frente, olham feio para o
casal. Pedro, envergonhado, volta a falar baixinho.
PEDRO
Eu não sei mais o que fazer.
Sozinho no apartamento, Paulo termina sua oração.
Amém.
38
PAULO
INT. IGREJA, RJ - DIA
LYGIA
Vamos dar a máquina de escrever que
ele quer, Pedro. Quem sabe--
38
PEDRO
Você enlouqueceu, Lygia?
(1964)
Lygia respira fundo e tenta ser prática.
Pedro, Lygia, Sônia e Paulo assistem a uma missa. É domingo e
a igreja está lotada de FIÉIS. Enquanto o PADRE JOSÉ faz o
sermão (Jó 14:11-14), Paulo observa as assustadoras imagens
das pinturas e obras sacras espalhadas pelo altar, assim como
a expressão de dor dos fiéis que lotam a igreja.
LYGIA
Eu tenho meu piano e não sou
pianista, Pedro-- Ele quer
escrever, deixa ele escrever.
Pedro está quase convencido. Lygia insiste.
PADRE JOSÉ
Como as águas que se retiram do
mar, e o rio que se esgota, e fica
seco. Assim o homem se deita, e não
se levanta; até que não haja mais
céu, não acordará do teu sono. --
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
Dá a máquina. Logo ele cansa e
desiste disso.
AO FUNDO, NO ALTAR, o Padre termina o sermão. Os fiéis se
ajoelham. Pedro encara Lygia com os olhos marejados de
desgosto e respira fundo. Ele se vira para o altar, encara em
silêncio a IMAGEM DE SÃO JOSÉ com o menino Jesus nos braços
por alguns instantes e se emociona. Como os outros fiéis,
Pedro e Lygia se ajoelham, cruzam as mãos, fecham os olhos e
abaixam a cabeça. Eles rezam com fervor pelo futuro de Paulo.
P.V. DE PAULO - ALTAR: As imagens parecem ainda mais
assustadoras. O olhar de Paulo se detém no rosto sofrido e
ensanguentado de Cristo.
PADRE JOSÉ (O.S.) (CONT.) (CONT’D)
-- Quando morre um homem, por acaso
volta a viver? Todos os dias do meu
combate eu espero, até que venha a
minha mudança.
DE VOLTA A PAULO, que encara a imagem de Jesus crucificado e
balança a cabeça para os lados em sinal de desaprovação. Ele
se levanta e sai da igreja. Pedro olha para Lygia, esperando
uma explicação. Lygia não sabe o que dizer, está tão surpresa
quanto o marido.
LYGIA
Vai lá. Fala com ele, Pedro.
39
INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA VILA - NOITE
No quarto escuro, SOAM os gemidos discretos de prazer de
Pedro e Lygia. Sobre a respiração ofegante do casal, se impõe
o BARULHO cada vez mais alto e incômodo de dedos sem treino
que brigam com o teclado da máquina de escrever no quarto ao
lado.
Pedro acende o abajur. Lygia faz o mesmo. O casal ainda tem a
respiração ofegante e as bochechas coradas. Seguem em
silêncio por alguns instantes.
39
39.
40.
SOBRE O ESPALDAR DA CAMA, NA PAREDE, um enorme crucifixo.
Pedro se descobre e senta na beira da cama. Faz menção de
levantar. Lygia o detém. Ela o abraça por trás e fala
baixinho no ouvido do marido.
Paulo fica pensativo e passa disfarçadamente as mãos na
cabeça para bagunçar um pouco os cabelos curtos,
engomadinhos. Ele veste roupas mais formais que Jorge: camisa
de gola engomada e manga comprida (para esconder os braços
finos), calça e sapato social. Jorge veste camisa de manga
curta para fora da calça, calça mais justa e sapatos
surrados. Jorge tira da mochila um pote de xampu, abre a
tampa e oferece para Paulo, que não entende. Jorge ri, toma
um longo gole e oferece novamente para o amigo. Paulo,
curioso, pega a embalagem e cheira.
LYGIA
Deixa, Pedro. Deixa-Pedro respira fundo e abaixa a cabeça.
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
Ele ainda é criança, deixa ele ser
um pouco artista--
JORGE (CONT.) (CONT’D)
É doze anos, porra. Manda ver.
Pedro se vira e faz um carinho na mulher, agradecido pelo
esforço que ela faz para confortá-lo. Lygia sorri e sonha
alto:
Paulo dá um golinho, mas não consegue disfarçar o desconforto
com o gosto da bebida. Paulo dá mais um gole, agora mais
longo. Ele fica pensativo por alguns instantes olhando para o
frasco de xampu, depois ri e vira o frasco inteiro.
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
-- O Paulinho ainda vai ser um
grande engenheiro, vai te dar muito
orgulho. Cê vai ver--
42
Felizes e embalados pela bebida, Paulo e Jorge caminham pelo
pátio. Paulo olha fascinado para as meninas -- e seus peitos,
bundas, coxas. Elas sequer notam a presença dele.
Lygia finalmente consegue fazer Pedro sorrir.
40
INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - NOITE
40
Sentado na cadeira em frente à escrivaninha, Paulo está
radiante.
INT. BANHEIRO, COLÉGIO - DIA
O jovem Paulo está sentado no chão de um reservado do
banheiro do colégio, fumando cigarro escondido com o amigo
Jorge. Paulo parece bem menos experiente que o amigo, mas
tenta disfarçar.
JORGE
E você é comunista?
PAULO
Como assim?
JORGE
Ué-- Escritor que é escritor, usa
óculos, não penteia o cabelo e é
comunista.
DO OUTRO LADO DO PÁTIO, Paulo nota uma movimentação diferente
e se aproxima. Os cartazes improvisados anunciam que é uma
apresentação para arrecadar fundos para o grupo de teatro
amador do Colégio.
Paulo deixa Jorge para trás e se enfia no meio da RODA DE
ALUNOS formada em torno do grupo. Maravilhado, ele assiste à
apresentação.
DIANTE DELE, a reluzente SMITH CORONA VERMELHA que ele tanto
queria. Usando apenas os dedos indicadores, Paulo datilografa
rápido, batendo em letras aleatórias, apenas para se sentir
como um escritor de verdade. O garoto faz pose e sorri
satisfeito.
41
INT. PÁTIO, COLÉGIO - MOMENTOS DEPOIS
P.V. DE PAULO: Oito alunos, atores e atrizes de 16 e 17 anos,
participam da encenação bastante precária de uma cena de
Romeu e Julieta, de William Shakespeare.
41
Enquanto os atores que interpretam Romeu (MARCO -- fortão,
vestindo uma boina com estrelinha, como Che Guevara) e
Julieta (ANA -- a menina mais bonita da escola) declamam seu
texto duro, com ar canastrão, duas meninas -- GILDA e PAULA -seguram cartazes de promoção do grupo e os outros QUATRO
GAROTOS passam o chapéu para a pequena plateia.
MARCO/ROMEU
Se minha mão profana o relicário,
em remissão aceito a penitência:
meu lábio, peregrino solitário,
demonstrará, com sobra,
reverência-ANA/JULIETA
Ofendeis vossa mão, bom peregrino,
que se mostrou devota e reverente.
(MORE)
42
41.
42.
ANA/JULIETA (CONT'D)
Nas mãos dos santos pega o
paladino. Esse é o beijo mais santo
e conveniente.
PAULO
Capitalista de merda.
ALBANO
Tá me chamando de quê?
“Romeu” e “Julieta” se beijam apaixonadamente. Paulo parece
hipnotizado com a cena.
43
INT. SALA DE JANTAR, CASA DA VILA - NOITE
43
Otário!
Lygia, Sônia e Pedro já estão sentados à mesa para jantar.
E o Paulo?
ANA
Para, Albano! Bedel! Chama o bedel!
Lygia completa, sem esconder o orgulho e o alívio.
Caído no chão, entre um soco e outro, Paulo vê que as meninas
finalmente reparam nele. E gosta.
LYGIA
Tá estudando matemática, Pedro.
INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - MESMO TEMPO
P.V. DE PAULO: As COXAS das meninas, reveladas sob as saias
dos uniformes.
44
SOBRE A ESCRIVANINHA DE PAULO, cadernos abertos com equações
matemáticas por fazer, uma pilha de livros didáticos e uma
revista de quadrinhos eróticos.
INT. PÁTIO, COLÉGIO - DIA
Paulo, vestindo uma camisa de manga curta para fora da
calça -- aberta, deixando aparecer por baixo uma camiseta
vermelha com a foice e o martelo estampados --, está no
centro de uma roda de ALUNOS. O clima é tenso entre ele e
ALBANO, um menino da mesma idade, porém bem maior e mais
forte que Paulo.
ALBANO
Tá querendo aparecer pra quem com
essa camiseta, otário?
PAULO
Só tô mostrando o que eu penso.
ALBANO
E tu lá pensa? Tu nem sabe o que é
isso aí, cara--
NO CHÃO, quase desacordado, Paulo sorri de prazer. Um BEDEL
chega e segura Albano. As meninas socorrem Paulo, que no
fundo adora a situação.
ANA (CONT.) (CONT’D)
Como cê chama?
DO OUTRO LADO, Paulo está sentado no chão do quarto,
encostado na cama. Ele tem um livro nas mãos e está muito
sério e concentrado na leitura. NA CAPA DO LIVRO, o título:
SHAKESPEARE, OBRAS COMPLETAS
45
ALBANO (CONT.) (CONT’D)
Albano parte para cima de Paulo e enche o garoto de porrada.
Paulo não consegue reagir. As três meninas do teatro -- Ana,
Gilda e Paula -- se aproximam e gritam em defesa de Paulo.
PEDRO
SÔNIA
Não saiu do quarto a tarde inteira--
44
Paulo fica quieto.
PAULO
Paulo-- Você é a Julieta, né?
Ana acha graça.
45
ANA
Ana. Meu nome é Ana-- Eu sou atriz.
Paulo se apresenta com orgulho.
PAULO
Eu sou escritor.
Ana abre um sorriso lindo.
ANA
Eu já te vi lá em Araruama.
Pego de surpresa, Paulo fica sem reação por alguns instantes.
PAULO
Eu-- O meu avô tem uma casa lá.
Ana sorri, sedutora.
43.
44.
ANA
E você vai passar o carnaval lá
esse ano?
Para surpresa de Paulo, a menina enfrenta a mãe e se levanta.
Ela estica a mão para Paulo, que, muito constrangido, não
consegue corresponder. Paulo balança a cabeça para os lados.
Paulo só consegue balançar a cabeça, confirmando que vai.
46
INT. SALÃO PAROQUIAL DE ARARUAMA - NOITE
PAULO
Desculpa, eu-- Desculpa, Ana.
46
Paulo, agoniado, deixa Ana e sai andando com passos rápidos,
tentando segurar o choro.
É um salão grande. A decoração de carnaval é simples e de
gosto duvidoso. NO PALCO, uma banda ruim, mas muito animada,
toca marchinhas tradicionais de carnaval.
P.V. DE PAULO - AO REDOR: A expressão de felicidade das
pessoas em volta parece tão assustadora para Paulo quanto a
expressão de dor dos fiéis da igreja. É como se ele não
existisse ali, como se não fizesse parte daquele mundo. Paulo
anda cada vez mais rápido, até que sai correndo pelo salão em
direção à porta.
SALÃO
Paulo caminha sozinho. De longe, ele observa as PRIMAS e as
AMIGAS DAS PRIMAS que dançam de maneira sensual. MARINA, uma
das amigas gostosas das primas de Paulo, faz sinal para que
ele se junte a elas. Sem coragem, Paulo fica paralisado.
49
Ao sair do salão, Paulo respira fundo, tentando segurar o
choro. ALFREDO (18) -- o primo gordinho de Paulo -- aparece
com os amigos CABEÇÃO (17) e FRED (16).
PAULO
Eu vou no banheiro-- Já volto.
47
INT. BANHEIRO, SALÃO PAROQUIAL DE ARARUAMA - MOMENTOS DEPOIS
47
Num canto mais escuro, escondidos, Paulo, Alfredo, Cabeção e
Fred tomam duas garrafas de rum barato no gargalo.
P.V. DE PAULO: no chão imundo, seus pés ensaiam passinhos
tímidos e desencontrados de samba.
INT. SALÃO PAROQUIAL DE ARARUAMA - MOMENTOS DEPOIS
De volta ao salão, Paulo atravessa a pista cabisbaixo. Mais
adiante, ele vê a jovem Ana -- a menina linda da escola -sentada na mesa com a família. Paulo toma coragem, ajeita o
cabelo e a camiseta, e se aproxima da mesa.
PAULO
Quer dar uma volta, Ana?
Ana sorri tímida. Ela gosta do convite. A menina olha para a
MÃE, pedindo autorização. A mãe fica um pouco aflita e olha
para o PAI, que faz uma cara feia. A mãe puxa Ana de lado.
Meio bêbada, ela tenta ser discreta, mas fala alto, meio
rindo:
MÃE DE ANA
Mas logo com o menino mais feio e
mais esquisito da festa, minha
filha?
Ana fica muito constrangida e olha para Paulo, que não
consegue reagir.
ALFREDO
Vem com a gente, moleque.
Paulo, calado, se junta ao grupo.
No reservado apertado e sujo, Paulo está sentado sobre o vaso
tampado.
48
EXT. SALÃO PAROQUIAL - NOITE
P.V. DE PAULO - AO LONGE, ATRAVÉS DO VIDRO DO SALÃO: a
alegria dos foliões.
48
Arrasado, Paulo vira uma das garrafas quase sozinho. Fred
tira a bebida da mão de Paulo, dá o último gole, e joga a
garrafa vazia no chão.
FRED
Aí, meus pais tão viajando-- Alguém
aqui sabe dirigir?
Paulo, bêbado, estufa o peito para sustentar a mentira.
PAULO
Eu dirijo bem.
ALFREDO
E tu lá já sabe dirigir, Paulinho?
PAULO
Melhor do que você, eu dirijo.
Alfredo ri. Cabeção e Fred dão risadas também. Paulo segue
sério.
49
45.
50
E/I. RUAS DE ARARUAMA/CARRO - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE
46.
50
Paulo obedece o avô. Mestre Tuca tenta tirar a arma da mão do
homem, que se livra dos braços de mestre Tuca e olha fundo
nos olhos do velho.
Paulo dirige com muita insegurança o Corcel do pai de Fred,
que está muito bêbado tentando acender um cigarro no banco de
trás do carro, na companhia de Cabeção. É uma rua estreita,
mal iluminada, e alguns FOLIÕES que acabam de desfilar na
avenida principal da cidade caminham por ali com suas
fantasias pobres, rotas. NO BANCO DO PASSAGEIRO, Alfredo,
ainda mais bêbado que Paulo, tenta se manter acordado.
ARISTEU
Tá certo. Eu vou embora em respeito
ao senhor-- Mas esse animal aí só
sai daqui da cidade quando meu
filho ficar bom--
MAIS ADIANTE, para desviar de um bêbado que caminha
fantasiado de mulher pelo meio da rua, Paulo vira à direita e
dá de cara com--
Aristeu faz menção de guardar a arma na cintura, mas volta a
apontar o revólver para mestre Tuca.
ARISTEU (CONT.) (CONT’D)
Mas se o Vadinho morrer, doutor--
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO VIDRO DO CARRO - NA OUTRA ESQUINA:
Uma viatura da polícia que bloqueia a rua e DOIS POLICIAIS
que fazem a vigilância.
QUARTO DOS MENINOS - MESMO TEMPO
DE VOLTA A PAULO. Assustado, Paulo vira bruscamente a direção
para fugir da polícia, acelera e ouve o grito de Alfredo:
Paulo, apavorado, está empoleirado com as primas assistindo à
discussão por uma fresta na parede.
ALFREDO
Olha o moleque!
SALA - MESMO TEMPO
Apesar da forte batida, Paulo continua acelerando. Fred olha
para trás e dá o alerta:
Aristeu conclui a ameaça.
FRED
Vai embora, Paulo. Foge daqui. Cê
matou o menino!
51
INT. SALA/QUARTO DOS MENINOS, CASA DO AVÔ EM ARARUAMA - DIA
No dia seguinte, ARISTEU (40) -- desesperado, bronco, pai do
menino atropelado -- está armado fazendo um escândalo na sala
da casa de MESTRE TUCA (70) -- o avô gente boa de Paulo. A
casa é grande e divertida, mas o clima está muito tenso. É
tempo de férias e onze crianças e jovens, entre 12 e 17 anos,
estão reunidos ali. Alfredo, Cabeção e Fred, que jogavam totó
na sala, estão paralisados. Paulo está encolhido em um canto,
sozinho e amuado.
ARISTEU (CONT.) (CONT’D)
-- Se o meu Vadinho morrer, eu
enterro o teu neto na mesma cova
junto mais ele. Eu juro que
enterro!
51
QUARTO DOS MENINOS - MESMO TEMPO
Desesperado, Paulo empurra as primas, pega o TERÇO DE CONTAS
na gavetinha do criado-mudo, sai correndo e entra no-52
52
Paulo tranca a porta do banheiro, entra no box do chuveiro,
se abaixa e fica encolhido no cantinho, segurando firme o
terço e abraçando as próprias pernas. Ele olha para cima e se
encolhe ainda mais, como se Deus o estivesse observando.
ARISTEU
Eu sei que foi ele!
Mestre Tuca segura Aristeu. Paulo olha assustado. Está
pálido, de ressaca, e tem os olhos inchados. As meninas -- as
mesmas cinco que chamaram Paulo para dançar no baile -deixam seu jogo de cartas sobre a mesa de centro da sala e
seguem em silêncio para o quarto.
MESTRE TUCA
Vai lá pra dentro, Paulo!
INT. BANHEIRO, CASA DO AVÔ EM ARARUAMA - MOMENTOS DEPOIS
Paulo, se sentindo traído e abandonado, enfrenta Deus com
raiva nos olhos e arrebenta o terço. As pequenas contas
quicam no chão do box, algumas delas entram pelo ralo. O
menino chora.
53
E/I. ESTRADA/CARRO DE PEDRO - EM MOVIMENTO - DIA
Pedro dirige, Lygia e Paulo seguem em silêncio. A estrada
está vazia.
53
47.
48.
Paulo está triste, tenso, com o olhar perdido na paisagem
cinza que vê através da janela. Pedro, ainda mais tenso que o
filho, vai acelerando cada vez mais o carro nas curvas. A
conversa é entrecortada em uma MONTAGEM que avança em vários
pontos diferentes da estrada.
Desce.
Paulo desce. Sob o olhar apreensivo de Lygia, Pedro arrasta o
filho pelo braço e se afasta com ele alguns metros.
PEDRO
Acabou a mesada, acabou a farra.
Você vai trabalhar e não entra mais
em casa depois das onze horas da
noite.
Mas, pai--
NA BEIRA DA ESTRADA, Pedro olha fundo nos olhos do filho e
fala de coração aberto.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Você é meu filho, Paulo. E tudo que
um pai pode querer de um filho é
que ele seja correto e que ele seja
feliz.
PAULO
PEDRO
Depois das onze não entra. E com o
que você conseguir ganhar, você vai
me pagar cada centavo do que eu
tiver que gastar com esse garoto e
com o conserto do carro, tá me
ouvindo?
Tudo?
Paulo balança a cabeça para os lados, desafiando o pai. Pedro
é firme.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Você escolheu o caminho mais
difícil, mas um dia você ainda vai
me agradecer.
PAULO
Pedro se vira para voltar ao carro. Paulo responde altivo:
PAULO
Um dia é você quem vai me pedir
desculpa!
PEDRO
Cada centavo, Paulo. E vai ficar
sem a máquina de escrever também.
Pedro, indignado, se vira para o filho.
PAULO
A máquina não--
PEDRO
O que você disse, Paulo?
PEDRO
Principalmente a máquina. Como é
que você-Do ponto de vista de Paulo, Pedro continua falando, mas sua
voz vai aos poucos desaparecendo. Um pequeno CRUCIFIXO
balança pendurado no espelho retrovisor. NO BANCO DE TRÁS DO
CARRO, Paulo escuta em silêncio. Ele olha pela janela e já
não presta nenhuma atenção no sermão do pai. Paulo olha com
desprezo para Pedro, deixando claro que já não está nem aí
para as ameaças dele. Pedro olha pelo retrovisor e sobe o
tom.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Tá me ouvindo, Paulo?
Paulo encara Pedro e não responde. Pedro para bruscamente o
carro no acostamento.
ACOSTAMENTO
Pedro abre a porta, desce do carro, levanta o banco e dá a
ordem a Paulo:
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Paulo encara o pai com arrogância. Lygia os observa de longe.
A VOZ DE JAY cobre o final da cena.
JAY (V.O.)
Por el poder e el amor de R.A.M.,
yo te nombro Maestro y Caballero de
la ord-54
EXT. ALTO DA MONTANHA - ENTARDECER
(1986)
P.V. DE PAULO - NO CHÃO: Entre os joelhos de Paulo e os pés
de Jay, há uma ESPADA nova e reluzente. Paulo estende a mão
para pegar sua nova espada. Quando a toca, o PÉ de Jay pisa
com violência os seus dedos.
DE VOLTA A PAULO, que geme de dor, e olha para Jay -- o
mestre de Paulo na ordem de R.A.M., o mesmo que ele encontrou
na estação de trem e no café em Amsterdã --, como quem
implora uma explicação. Sem dizer nada, Jay pega a espada no
chão, se vira e a entrega para Chris.
54
49.
50.
Os três estão ao redor de uma fogueira. É o final da
cerimônia de iniciação de Paulo. Jay e Chris estão de pé.
Paulo está de joelhos na frente de Jay.
CHRIS
Ele falou pra procurar no mapa da
Espanha, falou alguma coisa de uma
rota medieval. Um caminho, sei lá--
P.V. DE PAULO - ACIMA DELE: O rosto furioso de Jay.
JAY
Si fueses más humilde, habrías
rechazado la espada, Paulo. Y yo te
la habría dado de todos modos,
porque sabría que estarías listo.
Pero yo--
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DO PARA-BRISA DO CARRO - RUA
O sinal continua fechado.
56
PAULO
E/I. AV. ATLÂNTICA/CARRO - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE
P.V. DO MOTORISTA, ATRAVÉS DO PARABRISA DO CARRO - DO LADO DE
FORA: O sinal de trânsito muda de vermelho para verde.
DENTRO DO CARRO
Paulo (66), ao volante, e Chris (62) ao seu lado. Ele
acelera.
55
CHRIS
Aonde que a gente tá indo, Paulo?
Paulo dirige e Chris segue no banco do passageiro. Estão em
silêncio, com o carro parado em um sinal na beira da praia de
Copacabana. Paulo está arrasado.
Paulo apenas sorri. Chris fica confusa.
PAULO
Isso é ridículo, Chris.
DO LADO DE FORA
O carro avança pela pequena vila e sobe
com calçamento de pedra. Quando o carro
branco com uma FLECHA AMARELA pintada à
Paulo viu na estradinha de terra -- que
direção que eles seguem.
CHRIS
Como assim, Paulo?
PAULO
Ridículo. Um homem de quarenta anos
sair por aí atrás de uma espada é
ridículo.
CHRIS
É só uma espada pra você?
Paulo pensa um pouco antes de responder. Chris sorri
carinhosa. Ele perde a pose.
PAULO
E ele te falou mais alguma coisa?
CHRIS
Disse que eu vou ter que esconder a
espada pra você achar.
PAULO
Ele te disse isso?
56
(2013)
JAY
Callate. A causa de tu arrogancia,
tendrás que volver a caminar entre
los hombres sencillos en busca de
tu espada. Y tendrás que luchar
mucho para conquistar lo que
quieres.
55
I/E. CARRO/RUA, VILA DA ESPANHA - ANOITECER
57
uma ladeira estreita,
passa, revela um muro
mão -- como a que
aponta para a mesma
E/I. PORTA/SALÃO, ALBERGUE - MOMENTOS DEPOIS
É um modesto albergue de peregrinos, identificado por uma
placa artesanal com o desenho de uma concha de vieira.
Pela porta sem trancas, Paulo e Chris entram no albergue que
funciona numa antiga casa de pedras, restaurada com muito
capricho e simplicidade: o brasileiro EDUARDO e a italiana
ORNELA, um simpático casal de aproximadamente 50 anos.
O ambiente -- um salão que integra a cozinha, a sala da
lareira e a mesa de jantar -- é muito simples e acolhedor.
Paulo nota-NO CHÃO, AO LADO DA PORTA, um grande CESTO DE DOAÇÕES,
identificado com uma PLACA que diz (em espanhol):
MENOS É MAIS. DEIXE AQUI O PESO QUE VOCÊ NÃO PODE MAIS
CARREGAR.
57
51.
52.
Paulo sorri e joga no cesto a chave do carro. Sob o olhar
apreensivo de Chris, ele tira do bolso da calça os dois
celulares desligados, pensa um pouco, se abaixa e os coloca
ali também. Paulo se sente aliviado com esse gesto. Chris
observa preocupada.
EDUARDO
We are all Pilgrims here. That’s
all.
MAIS TARDE
Eles seguem para o SALÃO. É hora do jantar e o casal serve
comida caseira a três peregrinos: OLIVIA (18), uma jovem
americana, sua avó judia MARCIA (86) e FRANK (50), um senhor
alemão, que estão fazendo o Caminho de Santiago de
Compostela. Os três, de banho tomado, parecem cansados e
renovados após um longo dia de caminhada.
Paulo e Chris, vestidos elegantemente, ela carregando sua
pesada mala de rodinhas, destoam completamente do lugar e
causam certo espanto. Depois de alguns segundos de silêncio,
Eduardo se levanta e abre um sorriso largo, que Paulo
corresponde. Chris observa, sem entender muito o que está
acontecendo. Eduardo estende a mão para Paulo com um sorriso
largo no rosto. Paulo aperta a mão de Eduardo e os dois se
abraçam como amigos que não se veem há muitos anos. A jovem
americana, com o livro “O Diário de Um Mago” (em inglês) nas
mãos, reconhece Paulo e não acredita no que está vendo.
Encantada com a presença do escritor, ela fala em inglês:
Paulo e Chris jantam com o grupo.
EDUARDO (CONT.) (CONT’D)
¿Sabes lo qué buscas de esa vez,
Paulo?
PAULO
Todavía, no -- Pero estoy seguro de
que lo voy a encontrar.
Eduardo sorri para Paulo.
58
ORNELA
Podéis dormir aquí. Las luces se
apagan a las diez en punto y
pedimos que se respete el silencio
después de ese horario.
Marcia observa Paulo profundamente, com o olhar experiente e
o ar cansado de quem carrega o peso da sabedoria (fala em
inglês).
Paulo sente o golpe.
PAULO
Each of us tells their story as
best as they can, my good woman.
MARCIA
Or the way they want to, my friend-OLIVIA
But he’s the Magus, grandma!
Eduardo intervém.
58
Ornela mostra para Paulo e Chris um quarto com três beliches
e, ao fundo, o banheiro coletivo. Ela indica um beliche.
OLÍVIA
You-- Are really you-- ? You’re
really who I think you are, aren’t
you?
MARCIA
Of course he is, my girl. It’s a
shame that, from up close, no one
is what they seem-- You see? He’s
old, just like me-- Always coming
back to the same place.
INT. QUARTO, ALBERGUE - MAIS TARDE
Paulo e Chris se entreolham.
59
INT. BANHEIRO, ALBERGUE - MAIS TARDE
É um banheiro coletivo grande, simples e muito limpo, com
três privadas e três chuveiros separados em cabines. Paulo e
Chris tomam banho em chuveiros separados. DO LADO DE FORA DAS
CABINES, aparecem apenas as toalhas penduradas nas portas e
os pés dos dois.
CHRIS
Quem é ele, Paulo?
Um amigo.
PAULO
CHRIS
E você já sabe pra onde a gente
vai?
PAULO
Vamo em frente, Chris. Em algum
lugar a gente chega.
Chris sorri. Paulo desliga o chuveiro e puxa a toalha.
59
53.
60
INT. QUARTO, ALBERGUE - MAIS TARDE
54.
60
Na penumbra, Paulo e Chris se preparam para dormir. Duas
camas de baixo já estão ocupadas por Marcia e Frank. Olivia
dorme em cima de Marcia. Paulo senta na cama. Chris se
aproxima.
Paulo?
CHRIS
Você quer fazer um lanchinho antes
de dormir? Quer um chazinho, uma
bolachinha-- ?
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Você quer que eu vá embora, Paulo?
PAULO
Para de me tratar como se eu fosse
uma criança, Chris.
PAULO
Não é nada com você, Chris.
CHRIS
Você não tá bem-- Eu-- Eu fico
achando que--
Chris engole seco, sente o golpe, mas não reage. Ela dá um
beijinho triste em Paulo, sobe no beliche e logo se deita.
Depois de alguns instantes, ela interrompe o silêncio,
falando muito baixinho.
PAULO
É o dinheiro, Chris. O dinheiro que
escraviza as pessoas--
CHRIS
Isso é loucura, Paulo.
CHRIS
Do que cê tá falando, Paulo?
PAULO
Que bom-- Foi por esse maluco que
você se apaixonou, não foi?
Paulo fica em silêncio, pensativo. Determinado, ele se
levanta e segue em direção ao-INT. SALÃO, ALBERGUE - EM CONTINUIDADE
61
Paulo cruza o salão vazio na penumbra e se senta na frente do
computador. Tenta acessar a internet, sem sucesso. Paulo pega
uma caneta e um caderno que estão sobre a mesa e começa a
fazer algumas anotações. Paulo pensa um pouco, lê o que
escreveu, e risca o texto. Paulo, visivelmente
desconfortável, vira a página e encara a folha em branco.
Angustiado, ele acende um CIGARRO.
62
INT. QUARTO, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - NOITE
(1986)
Um CIGARRO queima num CINZEIRO abarrotado de bitucas,
iluminado pela luz fraca de um abajur.
NA CAMA, Chris se vira e não encontra Paulo. Ela levanta a
cabeça e vê--
CHRIS
Paulo não responde, nem se mexe. Chris se levanta, vai até a
escrivaninha e se abaixa ao lado do marido. Está triste,
preocupada.
Paulo olha feio para Chris.
61
P.V. DE CHRIS - DO OUTRO LADO DO QUARTO: Paulo está sentado
na cadeira da escrivaninha e encara catatônico sua MÁQUINA DE
ESCREVER ELÉTRICA, com uma folha de papel em branco.
PAULO
Cê tem razão-- Eu ganho muito
dinheiro com as músicas que eu fiz,
mas eu faço o quê? Nada-- Eu não
produzo mais nada, eu não sonho
mais nada, eu não existo mais.
CHRIS
Eu nunca disse isso.
PAULO
Mas você acha isso.
Chris fica sem resposta, não consegue negar. Paulo completa.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
E você tem razão.
62
CHRIS
Não é verdade. Você tá tentando-PAULO
Eu não consigo, Chris. Não sai.
CHRIS
E de onde você tirou que ia ser
fácil, Paulo?
55.
63
INT. FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - DIA
56.
63
PAULO
Tô pronto pra começar. Onde fica a
minha sala?
(1964)
O jovem Paulo, de terninho e gravata, com o cabelo engomado,
destoa completamente do ambiente. É o caótico galpão de uma
pequena fábrica de autopeças. OPERÁRIOS passam de um lado
para outro carregando peças enormes e pesadas. O lugar é sujo
e bagunçado. Desconfortável, Paulo checa o nome que está
anotado no papelzinho que tem nas mãos e chama um dos
trabalhadores.
65
INT. DEPÓSITO, FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - MOMENTOS DEPOIS
65
Com toda a sua elegância e indignação, Paulo está de joelhos
esfregando o chão do depósito da fábrica. Alceu observa.
ALCEU
Me avisa quando terminar.
PAULO
Oi-- Por favor-- Alceu Nogueira?
Paulo olha com ódio para Alceu, depois olha para cima, como
se estivesse encarando Deus com a mesma indignação. Paulo
segue esfregando a enorme mancha de graxa.
Um OPERÁRIO aponta o mezanino ao fundo. Lá do alto, ALCEU
NOGUEIRA -- um senhor bronco, 60 anos -- grita:
ALCEU
É o filho do doutor Pedro?
66
INT. FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - MONTAGEM - DIA
66
Com roupas mais adequadas, Paulo faz todo tipo de trabalhos
braçais no novo emprego.
Paulo confirma. O homem faz um sinal com a mão para Paulo
subir.
BANHEIRO
64
INT. MEZANINO, FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - MOMENTOS DEPOIS
64
Paulo, morrendo de nojo, limpa o banheiro dos funcionários da
fábrica.
Paulo está de pé na frente da mesa de Alceu Nogueira, que
“assiste” a uma partida de futebol no radinho de pilha. Ele
ignora Paulo e olha com atenção para o radinho, enquanto o
locutor narra um lance tenso.
LOCUTOR (V.O.)
Jairzinho avança, passa o primeiro,
olé no segundo, toca para Garrincha- É pânico na grande área do
Flamengo. Garrincha chuta para o
gol e-- Marcial pegou. Brilhante
defesa do mineiro Marcial para o
Flamengo.
Paulo, ansioso, segue imóvel esperando a atenção de Alceu.
ALCEU
Filho da puta!
Paulo acha graça, mas continua imóvel na frente do sujeito,
que finalmente olha para ele e arregala os olhos, achando
graça da elegância.
ALCEU (CONT.) (CONT’D)
Tem festa hoje é, rapaz?
Paulo estufa o peito e ajeita a gravata, orgulhoso de sua
aparência.
DEPÓSITO - OUTRO DIA
Paulo varre o enorme e imundo depósito de peças.
ESTOQUE - OUTRO DIA
Paulo organiza caixas e confere notas no estoque da fábrica
67
INT. SALA, CASA DA VILA - NOITE
(1964)
Sentado diante da mesa da sala de jantar, Pedro termina de
contar um bolo de dinheiro trocado e faz anotações em um
caderno.
NO CADERNO, Pedro completa as anotações sobre a prestação de
contas da dívida de Paulo -- para cobrir as despesas médicas
do menino atropelado e os gastos com o conserto do carro que
ele dirigia na noite do acidente em Araruama. Ao fechar a
conta, Pedro encara Paulo, que está de pé na frente dele.
PEDRO
Ainda falta, Paulo.
67
57.
58.
Paulo tira do bolso e entrega para o pai a caderneta de notas
da escola com ar vitorioso. Pedro a pega, com ar desconfiado.
PEDRO
Deixa, Lygia.
Para surpresa de Pedro, as notas do terceiro trimestre de
Paulo são todas azuis. Nenhuma nota maior que 6, mas são
azuis. Pedro fica aliviado, mas não perde a pose.
LYGIA
Mas, Pedro-PEDRO
Melhor deixar. Você tem razão-- Uma
hora ele vai desistir.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Que bom, Paulo. Ainda dá pra
melhorar até o final do ano.
PAULO
Mas você disse que--
69
70
PAULO
Mesmo que--
INT. QUARTO DE PAULO/SALA, CASA DA VILA - MONTAGEM
NO PAPEL, surgem as letras datilografadas:
A mim não importa o barulho do mundo ruindo,
PAULO
Eu quero a minha máquina de
escrever de volta.
A música-expressão criou paredes,
Impenetráveis paredes à minha volta,
PEDRO
Isso de novo, Paulo?
e elevou-me ao encantamento e à ternura.
PAULO
Você disse que eu podia escolher.
SALA
Lygia toca piano. Quando faz uma pausa para virar a página da
partitura, ela ouve o som da máquina de escrever de Paulo e
sorri. Volta a tocar com prazer. Essa sequência segue em
MONTAGEM paralela com:
PEDRO
Mas, filho-PAULO
Você disse que cumpre o que fala.
71
Pedro engole seco. Vai ter que cumprir o combinado.
Pedro e Lygia tentam dormir, mas é impossível com o infernal
BARULHO de máquina de escrever que vem do quarto de Paulo.
Dessa vez é Lygia quem acende a luz primeiro, senta na cama e
se prepara para levantar.
LYGIA
Eu vou falar com ele.
Pedro segura na mão da mulher.
70
Os dedos de Paulo “brigam” com o teclado da mesma Smith
Corona vermelha que ele ganhou de presente do pai.
PEDRO
Eu cumpro o que eu falo. É pro
Nordeste que você quer ir?
INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA VILA - NOITE
69
O sol começa a nascer do lado de fora, iluminando o pequeno
sobrado da família Coelho.
PEDRO
Eu disse que se você passasse,
podia escolher um presente.
68
EXT. CASA DA VILA - AMANHECER
68
EXT. CASA DA GÁVEA - MONTAGEM/PASSAGEM DE TEMPO
Sobre o telhado, Pedro comanda o trabalho de uma equipe de
CINCO PEDREIROS. Eles terminam de fixar as últimas telhas da
nova casa. Suado, Pedro sorri vitorioso.
QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA
Sobre a mesa, Paulo tem alguns cadernos manuscritos abertos
do lado esquerdo e uma pequena pilha de folhas datilografadas
do lado direito.
NO PAPEL:
71
59.
60.
Se contorcendo em espasmos cósmicos
Vomitando galáxias putrefactas
Enquanto as outras estrêlas sorriem com alegria e desprêzo
PAULO COELHO DE SOUZA
TEXTOS REUNIDOS
1957-1967
Paulo, AGORA COM 20 ANOS (é o mesmo jovem Paulo, mas agora
parece um pouco mais velho, com os cabelos um pouco maiores e
um bigodinho tímido), organiza as folhas e as coloca
cuidadosamente dentro de um grande envelope. Ele sela o
envelope e escreve em letras grandes -- SOBRE O ENVELOPE:
SALA, CASA DA VILA
Lygia toca piano.
CASA DA GÁVEA
Um PINTOR faz o teste de cores na parede externa da casa com
três diferentes tons de rosa. Diante dele, Pedro e Lygia
estão muito sérios e divididos. Pedro olha para Lygia,
esperando uma opinião. Ela aponta o tom intermediário, um
rosa queimado.
CORREIO DA MANHÃ
COLUNA ESCRITORES E LIVROS
AOS CUIDADOS DO SENHOR JOSÉ CONDÉ
72
INT. SALA, CASA DA VILA - OUTRO DIA
QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA
Paulo desce correndo as escadas, ainda de pijamas. Pedro está
sentado na poltrona da sala, com o jornal Correio da Manhã
nas mãos.
Sobre a mesa, Paulo tem outros cadernos manuscritos abertos
do lado esquerdo e uma pilha já bem maior de folhas
datilografadas do lado direito.
DO OUTRO LADO DA SALA, um COMPRADOR/AFINADOR testa o piano de
Lygia, que divide a atenção entre os movimentos do homem e a
conversa de Paulo e Pedro.
NO PAPEL:
Paulo fica rodeando o pai, tentando ler o que está no jornal.
Estou livre para traçar os planos que quiser, sem qualquer
compromisso mesquinho com o passado. Porque a vida só vale
mesmo a pena se nós podemos mudá-la.
SALA, CASA DA VILA
Lygia toca piano.
CASA DA GÁVEA
Na cena aberta, o imponente sobrado cor-de-rosa recebe os
últimos retoques de tinta de 3 PINTORES, enquanto uma equipe
de 5 JARDINEIROS começa a arrumar o jardim, que ainda tem a
terra toda revirada.
De pé na porta da casa, Pedro está radiante e observa o
trabalho da equipe.
QUARTO DE PAULO, CASA DA VILA - PASSAGEM DE TEMPO
(1967)
Paulo termina de escrever com orgulho o texto da capa do
calhamaço:
PEDRO
Algum problema, Paulo?
PAULO
Eu-- Eu só queria dar uma olhada no
jornal.
PEDRO
E desde quando você se interessa
pelo que acontece no mundo, meu
filho?
Paulo tenta pegar o jornal. Pedro o puxa de volta,
desconfiado. O pai encara Paulo, esperando uma explicação.
Lygia, incomodada com o barulho dissonante que o comprador
tira do piano, tenta encurtar o sofrimento.
LYGIA
O senhor vai mesmo ficar com o meu
piano afinal?
O homem tenta afinar mais alguns acordes.
COMPRADOR
Tá pior do que eu pensei.
Lygia fica ofendida, mas não responde. Aflita, ela está mais
interessada em ouvir a conversa do filho. O menino fala sem
nenhuma modéstia:
72
61.
62.
PAULO
É a coluna do Condé-- Sai hoje.
Deve falar alguma coisa de mim aí.
Paulo, com o orgulho ferido, responde secamente.
PAULO
Não precisa.
Pedro só respira fundo, sem ânimo para discutir com Paulo.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Deixa eu ver, por favor--
73
PEDRO
Aqui. Achei.
NA RUA
O caminhão de mudanças está parado na frente da entrada da
imponente casa cor-de-rosa, na esquina de uma rua arborizada
do elegante e praticamente deserto bairro da Gávea.
Pedro passa os olhos no texto, em silêncio.
PAULO
Fala de mim?
O carro de Pedro Coelho para atrás do caminhão.
Do outro lado da sala, Lygia também espera a resposta com
expectativa. Pedro encara Paulo com um pouco de pena e um
pouco de satisfação.
Pedro desce imediatamente do carro e olha radiante para a
casa que conseguiu construir com muito esforço e que
representa a realização de seu maior sonho. A obra ainda não
está completamente finalizada, mas Pedro Coelho está
orgulhoso de seu feito.
PEDRO
Não. De você não fala nada.
Lygia e Sônia descem do carro logo depois de Pedro e parecem
felizes e ansiosas.
Paulo fica muito decepcionado. Lygia disfarça a frustração.
PAULO
DENTRO DO CARRO
Paulo tenta ler o jornal que está nas mãos do pai. Ele aponta
para um texto de rodapé, em letras menores.
Paulo, no banco de trás, olha fixamente para a casa através
do vidro do carro. Ele está pensativo, introspectivo. Logo,
Paulo volta o olhar para a MÁQUINA DE ESCREVER que carrega no
colo. O garoto se sente desafiado: assim como o pai, ele
também deseja realizar seu sonho.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
E essa notinha aqui, diz o quê?
Pedro lê friamente o texto.
PEDRO
“Aos jovens afoitos, ansiosos para
aparecer e publicar livros,
conviria lembrar o exemplo de
Carlos Drummond de Andrade que
durante quinze anos publicou
somente três pequenos volumes, com
um total de cento e quarenta e
quatro poesias-- “.
Paulo está indignado, mas mantém a pose. Tem certeza de que o
texto é dirigido a ele. Lygia sofre por Paulo. Pedro encara o
filho por alguns instantes e o provoca.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Quer que eu continue?
73
Um PIANO DE CAUDA é carregado pelo JARDIM FLORIDO por 4
FUNCIONÁRIOS UNIFORMIZADOS da empresa de mudanças.
Pedro segura o jornal e procura pela coluna de José Condé.
Paulo está ansioso.
Nada?
E/I. CASA DA GÁVEA/CARRO DE PEDRO - DIA
74
INT. QUARTO DE PAULO/SALA, CASA DA GÁVEA - MONTAGEM
O quarto de Paulo agora é maior, mais arrumado e com móveis
mais sofisticados. Do quarto antigo, mantém apenas a mesma
estante com alguns livros e a pequena escrivaninha de
madeira, com a máquina de escrever sobre ela. Na parede, há
uma imagem de Jesus Cristo.
Sentado diante da escrivaninha, Paulo coloca um papel em
branco na máquina e começa a escrever. Ele agora datilografa
com todos os dedos, mas ainda é lento e tem alguma
dificuldade de encontrar as letras certas.
NO PAPEL:
Acabou o passado.
Onde está o passado?
O passado só existe para mim quando você lê as cartas.
74
63.
64.
Ali tudo está escrito - doenças graves, viagens, casamentos
e morte.
AO FUNDO, na SALA DE JANTAR, Lygia faz um prato de comida e
chama o filho de longe:
LYGIA
Vem jantar, Paulo. Chama a sua
irmã.
QUARTO DE PAULO, OUTRO DIA - PASSAGEM DE TEMPO
Paulo escreve mais rápido. A estante tem mais livros e os
cabelos de Paulo estão um pouco mais compridos e o bigode
mais encorpado.
Paulo não responde e segue reto em direção à porta da rua.
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
Quer que eu guarde um prato pra
você, filho?
QUARTO DE PAULO, OUTRO DIA - PASSAGEM DE TEMPO
Os dedos de Paulo agora dominam o teclado com desenvoltura. A
estante está lotada de livros que também estão empilhados e
espalhados pelo chão do quarto. Os cabelos de Paulo estão
compridos e desgrenhados e no lugar da imagem de Jesus há
agora um pôster com a imagem de Che Guevara.
Paulo mal olha para a mãe.
PAULO
Não precisa.
Na ponta da mesa, Pedro, visivelmente incomodado com a
atitude de Paulo, dá o recado.
O SOM da ópera que o pai ouve na sala invade o quarto. Paulo
se incomoda, pega um disco e põe para tocar na pequena
vitrola. Aumenta o volume.
PEDRO
Lembra que depois das onze eu
tranco a porta e você não entra
mais nessa casa.
SALA
Paulo volta a fechar a porta da casa e se aproxima do pai.
A MÚSICA que vem do quarto de Paulo se sobrepõe à ópera que
Pedro ouve. Incomodado, Pedro aumenta o volume do imponente
aparelho de som que tem no móvel da sala.
AO FUNDO, Lygia termina de por a mesa para o jantar.
PAULO
Eu já tenho vinte anos. A vida é
minha, eu faço o que eu quiser.
QUARTO DE PAULO
PEDRO
Não enquanto eu pagar as suas
contas.
Ao final da sequência, Paulo datilografa o título de sua
primeira peça de teatro. As LETRAS aparecem uma a uma sobre o
papel na máquina de escrever:
PAULO
Você só pensa nisso. É chocante.
“O INVENTOR AUSENTE”
UMA PEÇA DE PAULO COELHO DE SOUZA
PEDRO
Em pagar as contas? Em ganhar
dinheiro? “Chocante” é você não
pensar nisso, seu moleque.
O quarto de Paulo agora destoa completamente do ar
aristocrático da casa. Tem pilhas de livros, jornais,
revistas e discos espalhados por todos os lados, as paredes
todas pichadas e rabiscadas com desenhos e textos, e um
pôster dos Beatles ao lado do pôster com a imagem de Che
Guevara.
75
INT. SALA, CASA DA GÁVEA - MAIS TARDE
Paulo desce correndo a imponente escadaria de mármore branco
que fica no meio da enorme sala da casa nova, com um amplo
jardim de inverno ao fundo.
PAULO
Pra quê? Pra ser igual a você? Pra
jogar a minha vida fora que nem
você jogou a sua juntando dinheiro
pra construir essa casa ridícula?
75
Pedro tem o impulso de bater no filho, mas se segura. Paulo
encara o pai em silêncio por alguns instantes e ainda
completa:
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Capitalista. Mercenário!
65.
Pedro tenta se controlar e ri de nervoso.
PEDRO
E você é o quê? Comunista por
acaso?
PAULO
Qual é o problema de ser comunista?
LYGIA
Ai, meu Deus-Lygia se senta e apoia a cabeça nas mãos. Pedro está
transtornado, mas tenta parecer não dar importância à
provocação do filho e abaixa o tom com desdém.
66.
76
INT. TEATRO - NOITE
76
Sozinho na plateia vazia, com os manuscritos de sua peça nas
mãos, Paulo assiste ao final do aquecimento de um grupo
amador de teatro.
P.V. DE PAULO - NO PALCO: Ao final do exercício, todos batem
palmas e se dispersam. Entre os cerca de DOZE ATORES E
ATRIZES no palco, estão Marco, Ana, Gilda e Paula, a turma do
teatro amador, que Paulo conheceu no colégio. Ana reconhece
Paulo e acena de longe.
DE VOLTA A PAULO, que se levanta, acena de volta e se
aproxima do grupo.
PEDRO
Você nem sabe o que é isso, Paulo--
ANA
Achei que você tinha abandonado a
gente--
PAULO
Todo escritor é comunista.
PAULO
Tava trabalhando muito--
PEDRO
O presidente do Brasil é um
general-- Você sabe o que é uma
ditadura militar, Paulo? Você sabe
o que os generais fazem com os
comunistas?
ANA
Emprego novo?
Paulo mostra o calhamaço de papel.
Peça nova.
PAULO
PAULO
Se eu aguentei você, eu aguento
qualquer coisa.
Ana se empolga.
PEDRO
Deus-- Deus é testemunha da tua
ingratidão. Você ainda vai ter o
que merece, Paulo. Eu juro que vai.
Marco, enciumado, observa a conversa e se aproxima.
Paulo olha para cima com ironia, como se encarasse Deus, e
volta a encarar Pedro em tom desafiador. O que Pedro rogou
como praga, para Paulo soa como uma bênção: ele tem certeza
de que só merece coisas boas.
PAULO
Deus te ouça.
PEDRO
Vai embora. Sai daqui.
Paulo sorri satisfeito. Sair de casa era tudo que ele queria
e provocar o pai é agora seu maior prazer.
ANA
Verdade? Deixa eu ver!
MARCO
Vem, Ana. A gente vai começar.
Paulo fica com o texto da peça suspenso no ar. Marco se
adianta e pega o manuscrito.
MARCO (CONT.) (CONT’D)
Depois ela vê isso. Agora a gente
tem que ensaiar.
ANA
Mas, Marco, o Flavinho nem chegou
ainda-MARCO
Ele não vem. E o magrelo aí pode
fazer o papel dele, não pode? Vai
ficar bem de palhaço--
67.
68.
ANA
Não, o Paulo--
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Quem quer bombom?
Paulo não deixa a oportunidade passar e encara o desafio na
maior cara-de-pau, sem se importar com o desaforo de Marco.
A pequena plateia grita em peso:
PLATEIA
Eu quero! Eu quero!
PAULO
Eu? Eu faço. Eu quero fazer sim.
Sério?
Paulo faz charme e joga o doce para as crianças. A plateia
aplaude e grita o nome do personagem:
ANA
PLATEIA (CONT’D)
Batatinha! Batatinha! Batatinha!
Ana olha surpresa para Paulo, que sustenta a mentira:
PAULO
Claro, eu-- Eu sou ator também. Não
te falei, não?
P.V. DE PAULO - PLATEIA: A plateia é pequena, mas muito
animada, com crianças acompanhadas de seus pais. A garotada
está atônita, vai ao delírio. Ao contrário da igreja e do
baile de carnaval, aqui as pessoas olham para Paulo e
finalmente o enxergam. O público parece feliz e caloroso.
Ana fica confusa.
77
INT. TEATRO - MAIS TARDE
Paulo, de terno troncho e nariz de palhaço, está no centro do
palco. A luz se acende sobre ele, que fica paralisado alguns
instantes olhando para holofote, maravilhado, como se
estivesse vendo Deus. É o intervalo da apresentação e atrás
de Paulo a cortina está fechada.
ATRÁS DO PANO, os atores fazem a troca de cenário. Ana
observa Paulo por uma fenda da cortina.
NO PALCO, Paulo é tomado de força e coragem, como se a luz do
palco o tivesse transformado. Ele deixa de ser o garoto
tímido e desengonçado por alguns instantes e domina o palco
como se fosse um grande ator interpretando seu melhor
personagem -- apesar do figurino patético, do público
diminuto e do texto sofrível:
PAULO
Batatinha quando nasce, se
esparrama pelo chão, a menina
quando chora, põe a mão no coração.
NA COXIA
Ana sorri com carinho e todo o grupo cai na gargalhada, menos
Marco.
NO PALCO
Paulo senta na beira do palco, tira um bombom do bolso, o
desembrulha bem devagar e começa a degustar com prazer
exagerado a guloseima. Ele encara um MENININHO na primeira
fila e pergunta:
DE VOLTA A PAULO, que está em êxtase. Pela primeira vez ele
sente que é notado e que existe como artista.
77
78
E/I. BAR GÔNDOLA - NOITE
Paulo toma uma cerveja com a turma do teatro em uma mesa na
calçada do agitado bar Gôndola. A conversa está animada, mas
Paulo não tira os olhos de-P.V. DE PAULO - DENTRO DO BAR
Ana, que discute com Marco perto do balcão. O bar está cheio
e não é possível ouvir o que eles falam. Marco parece
furioso; ela, sem muito interesse na conversa.
Ana olha para Paulo, os olhares se cruzam. Ela sorri sem
graça. Marco percebe e o clima entre eles fica ainda pior.
Marco grita com Ana e vai embora do bar.
CALÇADA - MOMENTOS DEPOIS
Ana chega na mesa da turma com uma garrafa de pinga e vários
copinhos nas mãos. Ela serve todo mundo e deixa Paulo por
último. Ana entrega o copinho de pinga para Paulo e se senta
ao lado dele.
Paulo está evidentemente babando em Ana, mas ainda não sabe
muito como agir nessa situação. Ele vira o copo de pinga em
um só gole.
78
69.
70.
CALÇADA - PASSAGEM DE TEMPO
CALÇADA
A cena se repete e Paulo vira alguns copinhos de pinga. Ao
final da sequência, Paulo está com os olhos vermelhos e o
cabelo mais desgrenhado do que nunca. Ana também está bêbada
e dá em cima de Paulo, encostando seu corpo no dele. Paulo
não sabe muito como reagir, fica completamente perdido. De
repente, Paulo olha para dentro do bar e sua expressão muda
completamente.
Ana tira um espelhinho da bolsa e retoca a maquiagem. Paulo
encara o relógio e coça a cabeça. Sabe que vai ter problemas
em casa.
PAULO
Tem colírio aí?
Ana tira um enorme par de óculos escuros de dentro da bolsa e
oferece para Paulo. Paulo veste os óculos. Ana morre de rir.
P.V. DE PAULO - NA PAREDE DO BAR, ATRÁS DO BALCÃO
Um enorme RELÓGIO marca as horas: são 22 horas e 47 minutos.
79
Paulo fica aflito. Ele se levanta e se despede secamente de
Ana.
PAULO
Eu tenho que ir.
Paulo toca a campainha, ninguém responde. Paulo enfia a mão
na campainha e não tira. Nada. Uma luz se acende no andar de
cima da casa. Descontrolado, Paulo começa a esmurrar e dar
chutes na porta.
Ana ri.
Paulo fica sem jeito.
PAULO
Mais ou menos isso-Ana abre um sorriso lindo e segura na mão de Paulo.
ANA
Fica, vai-- Fica aqui comigo-Paulo se derrete.
80
INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA GÁVEA - MESMO TEMPO
Lygia e Pedro estão sentados na cama desarrumada, com os
abajures acesos. O SOM da campainha e o BARULHO dos murros e
chutes que Paulo dá na porta da casa invadem o quarto. Os
pais de Paulo estão de pijamas, com cara de sono e os cabelos
desalinhados. Lygia está transtornada; Pedro, impassível.
PAULO (O.S.)
Abre essa porta, seu filho da puta!
Abre essa porta, capitalista de
merda!
Pedro fecha os olhos.
CALÇADA - PASSAGEM DE TEMPO
LYGIA
Faz alguma coisa, Pedro, pelo amor
de Deus!
Entre beijos em Ana e copos de pinga, o tempo passa. Ao
final, o bar está quase vazio e os funcionários recolhem as
mesas e cadeiras da calçada.
PEDRO
Ele precisa aprender a respeitar as
regras dessa casa, Lygia.
DENTRO DO BAR, AO FUNDO
O RELÓGIO do bar marca 4 horas e 25 minutos.
79
Paulo, completamente bêbado e com os óculos escuros de Ana,
tenta abrir o portão, que está trancado. Ele pula a cerca
baixa e tenta abrir a porta da casa, que também está
trancada. Paulo procura pela chave debaixo do tapete e nos
vasos de flores-- Nada.
NA CALÇADA
ANA
Que foi? O Batatinha vai virar
abóbora?
EXT. CASA DA GÁVEA - AMANHECER
O SOM de um vidro sendo quebrado assusta Lygia. Pedro está a
ponto de explodir. Mais vidros se quebram.
LYGIA
E os vizinhos, Pedro?
80
71.
81
EXT. CASA DA GÁVEA - AMANHECER
72.
81
MUTARELLI (CONT.) (CONT’D)
-- Garanto que vai. É um tratamento
novo--
Paulo atira mais uma pedra em uma das janelas da casa. Estão
quase todas destruídas, assim como os vasos, as flores e o
jardim. Pedro abre a porta da casa de pijamas, encara Paulo
com ódio e não diz uma única palavra.
Paulo tenta se soltar da maca. A voz de Mutarelli na
ambulância cobre o início da próxima cena.
Paulo passa reto por Pedro como se nada tivesse acontecido e
sobe a imponente escadaria de mármore em direção ao quarto.
No meio do caminho, ele para para fazer xixi em um vaso de
porcelana. Pedro observa impassível.
82
INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA GÁVEA - MOMENTOS DEPOIS
86
INT. SALA DE CHOQUES, CLÍNICA DR. EIRAS - DIA
DOIS ENFERMEIROS, sob a supervisão de Mutarelli, aplicam em
Paulo o tratamento de eletrochoques na clínica Doutor Eiras.
82
MUTARELLI (V.O.)
-- O mais moderno que existe. Sem
dor, sem sofrimento. Confia em mim.
Paulo entra no quarto e tranca a porta. O quarto está ainda
mais bagunçado.
83
INT. CORREDOR, CASA DA GÁVEA - MESMO TEMPO
A sala, revestida de azulejos, é toda branca, assim como os
uniformes do médico e dos enfermeiros, a camisola e a camisa
de força que Paulo veste. Paulo está amarrado com cintas de
couro na maca. Tem um tubo de plástico na boca e dois
eletrodos grudados nas laterais da cabeça e ligados por fios
finos a um pequeno aparelho que fica ao lado da cama. Um dos
enfermeiros gira a manivela. A cada volta, o corpo de Paulo
estremece com mais intensidade e, como vômito, uma espuma
branca sai de sua boca. TELA PRETA.
83
No corredor, na frente do quarto de Paulo, Lygia e Pedro,
muito assustados, ouvem apenas os BARULHOS da quebradeira que
acontece do outro lado da porta trancada. De repente, o
barulho para. Lygia e Pedro se entreolham preocupados.
84
INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA GÁVEA - MOMENTOS DEPOIS
84
No quarto destruído, Paulo pega a máquina de escrever sobre a
escrivaninha e ameaça jogá-la pela janela. Desiste. Paulo
abraça a máquina e se joga na cama com ela, de roupa e
sapatos, com os pés na cabeceira. Ele apaga. TELA PRETA.
85
INT. AMBULÂNCIA - MANHÃ
87
DE VOLTA A PAULO, que tenta se levantar, mas percebe que
veste uma CAMISA DE FORÇA e está amarrado na maca. O médico
fala com carinho, tem mesmo a segurança de estar oferecendo o
melhor para o garoto.
MUTARELLI
Fica tranquilo, Paulo. A gente tá
aqui pra cuidar de você-- Cê vai
ficar bem, rapaz-Paulo está completamente dopado, ele olha angustiado para o
médico, mas não consegue dizer nada.
INT. QUARTO COLETIVO, ALBERGUE - DIA
87
(1986)
Sobre a TELA PRETA, a respiração ofegante de Paulo. Ele
acorda assustado.
85
Não!
Sobre a TELA PRETA, SOM ALTO de sirene de ambulância. Paulo
acorda meio dopado.
P.V. DE PAULO: Imagens disformes do interior de uma
ambulância. Na frente dele, está o doutor Edgar Mutarelli, o
mesmo psiquiatra que atendeu Paulo na clínica Doutor Eiras,
onde esteve internado.
86
PAULO (O.S.)
Ainda sobre a TELA PRETA, a voz de Paulo chama por Chris.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Chris-- Chris?
88
EXT. FONCEBADÓN, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
(1986)
Paulo caminha sozinho pelo Caminho de Santiago, na beira do
vale de Foncebadón, a caminho da Cruz de Ferro. Jay o observa
à distância. DO ALTO, a imensidão e a imponência do vale
deserto fazem Paulo parecer ainda menor e mais sozinho no
mundo.
Paulo está exausto, sujo de lama. Tem a pele ressecada, as
botas rotas e as roupas surradas. Agora sozinho, ele caminha
com dificuldade e determinação. Está machucado, com dor.
88
73.
74.
EM OUTRO PONTO DO CAMINHO, a estrada acaba subitamente no
muro de pedras de um vilarejo abandonado. Paulo fica
angustiado. Como um bicho encurralado, com raiva e desespero,
ele tenta vencer o obstáculo. Suas mãos feridas se esforçam
para agarrar pequenos vãos entre as pedras e sustentar o
corpo muro acima. Com muito esforço, ele chega ao topo.
89
90
O delegado olha para os dois sem muita paciência.
DELEGADO
É desajustado ou não é?
(1967)
LYGIA
Ele só tava fazendo um tratamento
rápido, sabe? -- Coisa simples,
delegado. O Paulo é uma pessoa
boa--
Paulo acaba de pular o muro e corre feliz pela rua deserta,
deixando para trás o portão alto da clínica.
DELEGADO
Sei-- Uma pessoa boa internada pela
segunda vez na Doutor Eiras?
MAIS ADIANTE, ele pula a cerca baixa do quintal de uma casa e
rouba as roupas do varal: camisa e calça social de gosto
duvidoso e tamanhos inadequados. O fugitivo se troca ali
mesmo, deixando os pijamas da clínica para trás, e segue
correndo pela rua.
PEDRO
Isso. Ele-- O meu filho é uma
pessoa boa-- Com algum grau de
esquizofrenia e paranoia, entende?
É isso que os médicos dizem, eles
acham que--
EXT. CASA DE SAÚDE DR. EIRAS/CASA VIZINHA/RUA - MADRUGADA
INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA GÁVEA - NOITE
89
90
Na penumbra do quarto de Lygia e Pedro, toca o TELEFONE.
Lygia e Pedro acordam assustados na cama. Pedro acende a luz
do abajur. É madrugada. O RELÓGIO sobre o criado-mudo marca 4
horas e 48 minutos. Pedro atende o telefone. Ele fica muito
sério; Lygia, preocupada.
Pedro!
DELEGADO
Entendi. E sumiu faz dois dias?
PEDRO
Dois dias, doutor.
Lygia senta na cama e espera Pedro desligar o telefone.
LYGIA
Quase três--
LYGIA
O Paulo? Aconteceu alguma coisa com
o Paulo?
INT. DELEGACIA, RIO DE JANEIRO - MADRUGADA
DELEGADO
Então o menino é desajustado?
Pedro e Lygia discordam e respondem ao mesmo tempo:
PEDRO
Não.
DELEGADO
Hospitais, necrotério-- ?
91
Na delegacia do bairro, Pedro e Lygia estão sentados em
frente ao DELEGADO, que come um sanduíche murcho e parece
entediado. Os pais de Paulo estão arrasados.
É.
LYGIA
O delegado deixa o sanduíche de lado e começa a levar o caso
mais a sério.
PEDRO
(ao telefone)
Sou eu.
(pausa)
Não. Aqui ele não apareceu.
91
Lygia olha indignada para Pedro, censurando o marido por
revelar a vergonha da família.
LYGIA
Lygia chora. Pedro tenta se controlar, mas não consegue
conter a angústia. Ele fica com os olhos cheios d’água e a
voz embargada.
PEDRO
Já fui em tudo que é lugar,
delegado. A gente não sabe mais o
que fazer--
75.
92
I/E. ÔNIBUS/ESTRADA/PRAIA - EM MOVIMENTO - AMANHECER
76.
92
PAULO
Bom dia, Joselino. Eu queria dizer
que é uma alegria muito grande
estar aqui em Aracaju divulgando o
meu trabalho, divulgando a minha
arte e as minhas ideias.
Paulo dorme no ônibus. Está sujo, com os cabelos desgrenhados
e a barba por fazer. Ele acorda, abre a cortina e olha pela
janela.
P.V. DE PAULO - ATRAVÉS DA JANELA DO ÔNIBUS EM MOVIMENTO
LOCUTOR
E o que você tem a dizer pros
nossos ouvintes, Paulo?
O dia amanhece cor-de-rosa em uma praia longa, que parece
interminável. A imagem é linda. NA BEIRA da estrada, uma
PLACA indica: ARACAJU, 1227 KM.
PAULO
Olha, eu não viajei milhares de
quilômetros até Aracaju pra ficar
quieto, Joselino. Eu não vou calar
a minha boca só porque um general
de merda pegou um fuzil e diz que
tá aí defendendo a moral e a
liberdade de um povo que nem sabe o
que é liberdade, tá me entendendo?
Eu--
DE VOLTA A PAULO, que sorri e, logo, começa a rir alto,
feliz. Gargalha. Alguns PASSAGEIROS reclamam, outros acordam
sem entender o que está acontecendo.
Na mesma fileira de Paulo, no banco do outro lado do
corredor, uma MENININHA balança a mão diante do nariz e olha
para Paulo com cara de nojo, dando a entender que o cheiro
dele é insuportável. Paulo repara na menina e faz uma careta
engraçada. A menina ri.
Joselino, apavorado e furioso, corta o som do microfone de
Paulo e coloca uma música regional para tocar.
Ao lado da menina, junto à janela, a MÃE coloca o dedo na
boca, fazendo um sinal para ela ficar quieta e não se meter
com essa gente. Depois, dá voltas no ar com o dedo indicador
em torno da orelha, dizendo para a filha que o sujeito é
maluco.
93
INT. ESTÚDIO DE RÁDIO, ARACAJU - DIA
Paulo dá uma entrevista ao vivo no estúdio de uma pequena
rádio. Ele está um pouco mais arrumado, com os cabelos
presos, mas ainda veste a mesma roupa que roubou na fuga e
que vestia no ônibus.
NA FRENTE DE PAULO, JOSELINO, o locutor da rádio, se prepara
para voltar ao ar ao final de uma música. A LUZ vermelha
acende no estúdio.
LOCUTOR
Rádio Aracaju, a rádio que toca o
seu coração. Estamos aqui de volta
com o famoso escritor, jornalista,
ator e dramaturgo Paulo Coelho de
Souza, direto do Rio de Janeiro
para os nossos estúdios. Bom dia,
Paulo!
Paulo, muito sério, faz pose de intelectual.
LOCUTOR
Tu é maluco, é?
Paulo começa a rir. UM SEGURANÇA aparece do outro lado do
vidro do estúdio. Paulo para de rir imediatamente.
93
P.V. DE PAULO - DO OUTRO LADO DO ESTÚDIO: Uma porta
identificada como SAÍDA DE EMERGÊNCIA.
94
INT. ESCADARIA DA RÁDIO, ARACAJU - MOMENTOS DEPOIS
94
Paulo corre escadaria abaixo para fugir do segurança.
95
EXT. RUAS DA PERIFERIA DE ARACAJU - MOMENTOS DEPOIS
Paulo sai sozinho pela porta da “Rádio Aracaju” e corre pela
rua. LOGO ADIANTE, o fugitivo entra numa RUA UM POUCO MAIS
MOVIMENTADA, com algumas BARRAQUINHAS e CAMELÔS.
Paulo rouba discretamente uma fruta de uma das barracas e
segue correndo. MAIS ADIANTE, ele se distrai ao comer sua
banana e derruba uma outra barraca, que vende panelas. O
BARULHO das panelas chama a atenção de DOIS SOLDADOS DA
POLÍCIA MILITAR que fazem a ronda na feira. Na confusão
armada, sob protestos dos COMERCIANTES e TRANSEUNTES, Paulo
entra em um beco para escapar dos policiais. Passado o susto,
ele dá risadas.
95
77.
96
INT. SALA, CASA DO AVÔ - DIA
Sentado numa enorme poltrona da sala da casa de Mestre Tuca,
o avô, e de DONA LILISA (70) -- a simpática avó -- Paulo
parece um indigente. Ao lado dele, no sofá, Lygia e Pedro
parecem resignados, vencidos. Tuca e Lilisa estão de pé, ao
lado de Paulo, dando apoio ao neto.
78.
96
97
ANA
Num jornal, Paulo? Que máximo!
GILDA
Por isso que você sumiu de novo?
PAULO
Posso trabalhar no jornal?
As meninas parecem encantadas. Paulo joga seu charme.
PAULO
É-- Eu-- Eu tava fazendo uma
matéria especial, uma investigação
política-- Uma coisa complicada,
sabe?
Pedro respira fundo.
PEDRO
PAULO
Você fala com o seu amigo?
ANA
Nossa, Paulo-- Isso não é perigoso?
PEDRO
Eu acho melhor você--
PAULO
Nada-- É muito emocionante. Meu
trabalho é-- É adrenalina pura. Na
veia.
Lygia cutuca Pedro. Pedro volta atrás.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Eu falo com ele.
Pedro e Lygia se entreolham aflitos. Paulo começa a rir.
Pedro se controla e tenta manter a fala doce, como quem fala
com uma criança.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
A gente só quer o seu bem, meu
filho.
Paulo sorri e comunica:
PAULO
Então eu vou morar aqui com eles.
Pedro e Lygia olham surpresos para Tuca e Lilisa, que
confirmam a possibilidade com um sorriso sereno e cúmplice.
LILISA
Pelo menos por um tempo-Mestre Tuca olha fundo nos olhos de Lygia.
MESTRE TUCA
Vai ser bom pra todo mundo, minha
filha.
Pedro e Lygia, constrangidos, não sabem muito como
reagir -- mas concordam.
97
Paulo está cercado por cinco ATRIZES, entre elas, Ana, Paula
e Gilda, a velha turma do teatro da escola.
PEDRO
O que você quiser, Paulo.
Pode.
INT. TEATRO - DIA
98
INT. REDAÇÃO DO JORNAL - DIA
A redação está fervendo. JORNALISTAS e FOTÓGRAFOS circulam e
o SOM frenético dos teclados das máquinas de escrever domina
o lugar.
AO FUNDO, NA PORTA DO BANHEIRO, Paulo está sentado em uma
pequena mesa, com uma máquina velha, um telefone e um
banquinho improvisado.
NA FRENTE DELE, O CHEFE DA REDAÇÃO -- 50 anos, cara de boa
gente -- esculhamba Paulo. Ele tem algumas laudas
datilografadas nas mãos e amassa uma por uma na frente do
garoto.
CHEFE DA REDAÇÃO
Olha aqui, moleque-- Obituário não
é editorial não. Eu já te disse que
ninguém aqui tá interessado na tua
opinião?
PAULO
Mas, chefe, eu-CHEFE DA REDAÇÃO
Me escuta. Você liga pra Santa
Casa, liga pros outros hospitais,
pega a lista dos defuntos, passa
essa porra a limpo e pronto. É
(MORE)
98
79.
80.
CHEFE DA REDAçãO (CONT'D)
isso. É só isso. Duas linhas por
defunto e acabou.
101
CHEFE DA REDAÇÃO
Não pensa, não. Pensa, não-- Faz o
teu servicinho aí e não enche o meu
saco, entendeu?
Paulo, meio desajeitado, transa com Ana. É ela quem toma as
iniciativas. Ele está em êxtase.
Paulo encara o chefe com raiva, mas não responde. O chefe é
irônico.
102
CHEFE DA REDAÇÃO (CONT.) (CONT’D)
O quê? Eu ouvi você falando alguma
coisa? Vai desistir? Eu acho que tá
na hora de você desistir, não tá?
Em dias diferentes, Paulo transa com várias mulheres, usa
drogas variadas, e a garagem vai ganhando outra cara.
- Paulo toma um vinho e transa com Gilda.
99
Sentado numa mesinha da calçada do mesmo bar Gôndola, Paulo
está novamente rodeado pelas meninas do teatro. Encantada,
Ana provoca Paulo.
- Paulo toma uísque e transa com uma MULHER BEM MAIS VELHA do
que ele.
- Paulo toma chá de cogumelos e transa com uma MOÇA GORDA. A
garagem ganha os pôsters dos Beatles, do Che Guevara e
pinturas psicodélicas de grafite.
Paulo responde com orgulho e malícia.
PAULO
Não, agora eu moro sozinho.
INT. SALA, CASA DO AVÔ - NOITE
Mestre Tuca está sentado em uma poltrona lendo o jornal.
AO FUNDO - ATRÁS DELE, Dona Lilisa está de costas, segurando
a cortina com uma das mãos e espiando pela janela.
LILISA
Cê acha que eles querem tomar um
suco, Tuca?
Tuca sorri com malícia.
TUCA
Deixa os meninos, Lilisa. Eles
devem tá estudando.
- Paulo fuma maconha e transa com Paula. A garagem já está
cheia de livros e discos.
- Paulo transa com uma PUTA. Ela cheira cocaína. A garagem
tem as paredes forradas com folhas de jornal, inclusive no
teto.
ANA
E você ainda tem que voltar antes
das onze pra casa ou--
100
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - MONTAGEM/PASSAGEM DE TEMPO
(1967 - 1970)
Paulo balança a cabeça para os lados sem se alterar.
EXT. BAR GÔNDOLA - OUTRA NOITE
101
A garagem da casa do avô que agora abriga Paulo é espaçosa,
só tem um colchão de casal no chão e, ao fundo, a antiga
escrivaninha de madeira, com a máquina de escrever vermelha
em cima. No canto, há alguns caixotes de madeira onde estão
guardados alguns poucos livros e peças de roupa.
PAULO
Mas eu pensei que--
99
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - MESMO TEMPO
100
- Paulo, de cabelos ainda mais compridos e desgrenhados, com
bigode e cavanhaque, toma ácido e transa com uma JOVEM HIPPIE
esquelética. A garagem está cheia de cristais e incensos.
- Paulo, só de cueca, agora está com 23 anos [[mudança de
ator]], cabeludo e barbudo, com cara de doidão. E a garagem
está uma bagunça completa.
UM GAROTO DE PROGRAMA -- feio e forte -- agarra Paulo e o
encosta na parede, de costas para ele. O homem coloca a mão
na bunda de Paulo, abaixa sua cueca e o penetra por trás.
Paulo não gosta do que sente e corta o clima:
PAULO
Parou. Parou aí, irmão.
O garoto de programa não entende e insiste.
GAROTO DE PROGRAMA
Você vai gostar-Paulo se vira. Parece um pouco triste, mas é gentil.
102
81.
82.
PAULO
Não, não, não-- Valeu. Eu-Desculpa, mas não vai rolar.
PAULO
Entrar pra quê? Cês não vão me
internar?
Paulo sobe a cueca, pega algum dinheiro no bolso da calça que
estava jogada no chão e o entrega ao garoto de programa. Ele
se explica, meio sem graça.
MESTRE TUCA
Só se você quiser.
Paulo deixa o avô entrar. Mestre Tuca senta na cama e olha o
estrago feito por Paulo: tudo quebrado, menos a máquina de
escrever que Paulo carrega debaixo do braço.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Valeu mesmo. Nada contra, tudo
certo-- É que era só pra tirar uma
dúvida mesmo. -- Quer uma cerveja?
103
INT. REDAÇÃO DO JORNAL - DIA
103
Paulo não entende nada.
(1970)
MESTRE TUCA (CONT.) (CONT’D)
Ótimo. Já que você já destruiu o
passado, Paulinho-- Agora dá pra
pensar um pouco no futuro, não dá
não?
Paulo, com cara de chapado, enfrenta o chefe no meio da
redação, na frente dos colegas. Ele fala alto e chama a
atenção de quem passa, causando certo constrangimento.
PAULO
Eu tenho condições de ajudar o
jornal fazendo um trabalho melhor.
Eu -- Eu mereço e eu quero ser
efetivado.
Paulo senta ao lado do avô na cama, pensativo. Ele está cada
vez mais desconfiado e não disfarça uma certa decepção.
PAULO
Mas cês não vão mesmo me internar?
Eu tive um surto, eu sou maluco, eu
tenho que--
O chefe responde friamente.
CHEFE DA REDAÇÃO
E eu quero muito que você junte as
suas coisas e vá embora daqui.
104
MESTRE TUCA (CONT.) (CONT’D)
Quebrou tudo, hem. Genial. Muito
bom.
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - NOITE
O quarto de Paulo, montado na garagem da casa do avô, está
destruído. Ele acaba de repetir o ataque de fúria que teve na
casa dos pais. Paulo está sentado no chão, agarrado à sua
máquina de escrever. Um SOM alto de SIRENE invade o lugar.
Paulo sorri. BATIDAS na porta. Do outro lado, Mestre Tuca
tenta contato com Paulo.
MESTRE TUCA (O.S.)
Posso entrar?
Paulo, abraçado à máquina de escrever, estranha o tom gentil.
Desconfiado, ele se levanta e abre a porta. Paulo olha
curioso e ainda mais desconfiado para o avô ao descobrir que
ele está sozinho.
PAULO
Cadê o doutor Mutarelli?
MESTRE TUCA
Tá lá fora. Posso entrar?
104
MESTRE TUCA
Sabe o que eu acho? Eu acho que
você não é maluco não, Paulinho. Eu
acho que você tá é gostando dessa
história de ser maluco, sabia?
Paulo coça a cabeça, pensando no que acabou de ouvir.
PAULO
Mas os meus pais-MESTRE TUCA
Eles só querem o que é melhor pra
você, Paulo. Só isso.
Mas eles--
PAULO
MESTRE TUCA
Eu vou conversar com eles também.
Fica tranquilo.
83.
105
INT. TEATRO - NOITE
84.
105
Quando os pais se aproximam para cumprimentar Paulo, o ator
da peça chega, levanta Paulo no colo e o enche de beijos:
Paulo foi realmente um sucesso. Pedro para no meio do caminho
e ameaça dar meia-volta. Lygia segura o marido. Muito a
contragosto, Pedro se aproxima e cumprimenta o filho
friamente. Ele apenas estica a mão e não consegue dizer uma
única palavra. Paulo retribui o gesto no mesmo tom.
É a cena final da apresentação de uma peça num teatro
pequeno, bem pobrinho. A casa está quase cheia. Lygia e Pedro
estão presentes na plateia, com certo desconforto. Pela cara
de poucos amigos de Pedro, está claro que para ele o teatro é
um reduto de vagabundos e marginais, um péssimo ambiente para
o filho.
NO PALCO, um ATOR interpreta o texto com emoção, olhando
fundo nos olhos da ATRIZ que interpreta a personagem Dayse.
107
Paulo está em uma mesa de quiosque no calçadão de Ipanema,
fumando e bebendo com os atores da peça “O Inventor Ausente”
e mais 4 AMIGOS que comemoram o sucesso da apresentação. Meio
chapado e triste, o autor está alheio à conversa e à animação
do grupo. A atriz da peça provoca baixinho:
ATOR
E quando o meu destino sai ruim,
você para um pouco, acende um
cigarro, faz uma prece e joga as
cartas de novo. E pronto. Eu tô
salvo! Em dois minutos, você muda o
meu futuro, Dayse.
ATRIZ
Que foi, Paulo? Não tá feliz?
O ator agora encara a plateia e dá o texto final como quem
conta um segredo:
Paulo não responde, apenas esboça um sorriso triste.
ATRIZ (CONT.) (CONT’D)
Até parece que não gosta de
aplauso--
ATOR (CONT.) (CONT’D)
No quartinho dos fundos, a Bruxa e
o Deus da Chuva se encontram-- O
destino da humanidade é lido e
modificado. E as grandes coisas são
construídas e desfeitas em frações
de segundos.-- E a voz da bruxa não
para, não para-- Não para nunca!
Paulo pensa um pouco antes de responder. Está realmente
introspectivo e, mesmo com o sucesso da peça, ainda se sente
frustrado, insatisfeito.
PAULO
Eu não gosto da peça.
Lygia, embora contida, olha com curiosidade e interesse para
o PÚBLICO ALTERNATIVO que aplaude efusivamente. Alguns se
levantam para aplaudir.
A atriz faz uma careta e volta a bater papo com os outros.
Logo Paulo é atraído pelas palavras que SOAM ao longe:
NO PALCO, o ator e a atriz se abraçam e se curvam para
agradecer. Paulo, com uma expressão séria, entra no palco e é
aplaudido com entusiasmo pelo elenco e pela plateia. NA
PLATEIA, Pedro está surpreso com o sucesso do filho. Lygia
agora aplaude o filho orgulhosa e não se intimida nem ao
encontrar o olhar repressor do marido. Ela sussurra:
HIPPIE (O.S.)
“Tú que procrastinas, que no
piensas en la llegada de la muerte,
dedicándote a las cosas inútiles de
la vida”
Paulo nota o movimento na areia da praia.
LYGIA
Ele é um sucesso, Pedro.
P.V. DE PAULO - PRAIA
Pedro olha em volta, quase sorri, mas se fecha novamente ao
ver um casal de homens andando de mãos dadas.
106
INT. CAMARIM, TEATRO GRANDE - MOMENTOS DEPOIS
Nos bastidores do teatro, Paulo e o elenco comemoram o
sucesso do espetáculo. Um grande CARTAZ com a foto dos atores
indica: “O INVENTOR AUSENTE”, ESCRITA E DIRIGIDA POR PAULO
COELHO
EXT. CALÇADÃO/PRAIA DE IPANEMA - MAIS TARDE
106
Um grupo de 8 HIPPIES, embalados a ácido e percussão, quase
em transe, faz uma espécie de ritual. Entre eles, se destaca
Luiza -- a mesma morena linda que aparece no show de Raul no
começo do filme, aqui ainda mais sedutora e elegante em um
vestidão de seda colorido e esvoaçante -- sentada ao lado da
fogueira. Ela tem na mão um copo de uísque e olha fixamente
para Paulo. O HIPPIE segue lendo os “Versos Básicos do Bardo
Thödol”, no “LIVRO TIBETANO DOS MORTOS”, de W.Y. Evans-Wentz
(org), em “portunhol” sofrível:
107
85.
86.
HIPPIE (CONT.) (CONT’D)
“-- Insensato eres tú que
desperdicias tú gran oportunidad”--
LUIZA
Quer casar comigo?
Quero.
NA PRAIA, Paulo se aproxima e vai direto ao Hippie que lê,
como se o texto fosse especialmente declamado para ele.
LUIZA
Como é que cê chama mesmo?
HIPPIE (CONT.) (CONT’D)
-- “Desengañado con certeza, será
tu propósito ahora que vuelves de
manos vacías de esta vida”.
Paulo.
Os dois dão risadas e se agarram de novo.
109
PAULO
“Pero todos los hombres buenos y
santos al ver a los mensajeros de
la muerte no actúan sin pensar,
sino que escuchan lo que la noble
doctrina dice. Y en ese lazo,
amedrentados, ven la fuente fértil
del nacimiento y de la muerte. Y se
liberan del lazo, extinguiendo,
así, el nacimiento y la muerte.
Ellos son seguros y felices--”.
LUIZA (O.S.)
Você acredita em Deus, Paulo?
PAULO
Ele me assustava muito. Agora-Luiza, apaixonada, vestindo só uma camiseta do namorado, se
aproxima por trás e vira Paulo.
Agora?
LUIZA
-- “Libres de todo ese espectáculo
fugaz; De todos los pecado y miedos
isentos, dominarán todo el
sufrimiento”.
LUIZA
PAULO
Se ele existe ou não já não é mais
problema meu.
Paulo e Luiza seguem se encarando em silêncio.
Paulo acorda na cama pelado, ao lado de Luiza. Ele olha em
volta e se espanta. É um apartamento luxuoso, grande. A
enorme cama fica no meio da sala, de frente para a praia de
Ipanema. Através da parede de vidro, só é possível ver a
imensidão do MAR, iluminado pelos primeiros raios do sol da
manhã. Do ponto de vista de Paulo, a sala toda parece flutuar
no oceano. Luiza acorda e abraça Paulo. Ela fala baixinho em
espanhol no ouvido dele.
INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - OUTRO DIA
Paulo já está instalado e muito à vontade na casa de Luiza.
De cuecas e meias, ele está tomando um café de pé na sala,
enquanto lê os títulos dos livros que ela tem na estante. São
livros de muitas crenças, religiões e assuntos místicos, em
português, inglês e espanhol.
Luiza se aproxima e começa a lamber o pescoço de Paulo, que
se desconcentra. Ela ri, pega o livro das mãos dele e
continua a leitura, em espanhol perfeito e muito sensual,
olhando fundo nos olhos de Paulo:
INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - AMANHECER
PAULO
LUIZA
Eu sou a Luiza, Paulo.
Sob o olhar curioso do grupo, especialmente de Luiza, Paulo
pega o livro das mãos do Hippie, abre numa página qualquer e
começa a ler um trecho que cita Aguttara-Nikâya, III, 35. O
espanhol de Paulo é um pouco melhor do que o do Hippie.
108
PAULO
DE VOLTA A PAULO. Hipnotizado pelo texto, Paulo se levanta da
mesa e segue na direção do grupo.
108
Luiza sorri.
“O DESPERTAR
FANTÁSTICO”,
livro e fica
Um LIVRO na estante chama a atenção de Paulo. É
DOS MÁGICOS - INTRODUÇÃO AO REALISMO
de Louis Pauwels e Jacques Bergier. Paulo pega o
muito interessado.
INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - ENTARDECER
Paulo, muito concentrado, está sentado numa poltrona da sala
fumando e lendo obsessivamente o livro que pegou na estante.
Ao fundo, um lindo entardecer na praia. Luiza, toda arrumada,
de saia longa com fenda, chega em casa. Ela sorri e se
aproxima em silêncio. Luiza faz uma massagem sensual nas
costas de Paulo, que não tira os olhos do livro.
109
87.
88.
Luiza escorrega a mão pelo peito de Paulo, em direção ao
sexo. Paulo intercepta a mão de Luiza no meio do caminho.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Mas na nossa força-- Na nossa força
eu tenho que acreditar. Se esse
cinzeiro quebrar, significa que a
gente--
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Como é que um cara feio como eu
pode acreditar no amor de uma
mulher tão linda?
Luiza se levanta e acende a luz.
Luiza tira o cigarro da outra mão de Paulo e dá a volta na
poltrona. Ela levanta a saia longa e se senta no colo dele,
de frente, de pernas abertas. Luiza encara Paulo com o
cigarro aceso na mão.
LUIZA
Chega, Paulo. Vamo dormir.
Luiza apaga as velas, pega o cinzeiro no chão e segue na
direção da cozinha.
LUIZA
Quer que eu prove?
SOM de coisas caindo e vidro quebrando. Paulo se levanta
correndo e vai atrás de Luiza.
Paulo, intrigado, encara Luiza com ar desafiador. Luiza pega
o cigarro, abre ainda mais a fenda da saia, e queima a
própria coxa, enfrentando a dor e olhando fundo nos olhos de
Paulo. Os dois ficam com os olhos cheios de lágrimas e se
beijam com amor.
P.V. DE PAULO - COZINHA - MOMENTOS DEPOIS
Luiza está no chão, entre os cacos vermelhos do cinzeiro
quebrado. Paulo está radiante.
VISTO DE FORA
PAULO
Viu? Deu certo, Ziza!
O reflexo vermelho do mar e das montanhas iluminados pelo sol
poente e, ao fundo, dentro da sala, o amor intenso de Paulo e
Luiza -- que choram emocionados e tiram suas roupas sem
deixar de olhar fundo nos olhos um do outro.
110
INT. SALA/COZINHA, APARTAMENTO DE LUIZA - NOITE
Paulo e Luiza -- com roupas hippies -- estão sentados frente
a frente no chão da sala e olham fixamente para um grande
CINZEIRO de cristal vermelho que está entre eles. Ao redor,
velas, incensos acesos e o livro que Paulo estava lendo.
Cansada, Luiza sai do transe e entrega os pontos.
Luiza, com dor, estica o braço para Paulo.
LUIZA
Me ajuda, Paulo.
110
Paulo ajuda Luiza.
PAULO
Você entendeu o que aconteceu?
LUIZA
Eu levei um tombo ridículo.
LUIZA
Eu desisto, Paulo. Não vai rolar.
PAULO
Não. Tá provado. Agora tá provado!
PAULO
Pô, meu amor-- Não estraga a
parada-- Tava quase. Eu senti que
faltava pouco.
LUIZA
Foi só um tombo, Paulo.
LUIZA
Você disse que não acreditava em
Deus.
PAULO
Se Deus existe, ele tem mais o que
fazer, né Ziza-Luiza acha graça.
PAULO
Não! Foi a força do pensamento.
Isso é genial! A gente pode tudo,
meu amor. Tá tudo aqui, ó-Paulo aponta para a própria cabeça e sorri maravilhado. Luiza
olha meio desconfiada para Paulo e acha graça do que
considera um delírio dele. Ela olha para as próprias mãos:
estão sangrando.
89.
111
EXT. ESTRADA DE TERRA, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
90.
111
SPOK
-- É um verdadeiro Eden. Há o
pertencer e o amor.
(1986)
Concentrado, Paulo faz um ritual de R.A.M.: Ele está sentado
no chão, com as pernas cruzadas, e olha fixamente para seu
próprio reflexo numa poça d’água.
CAPITÃO KIRK
Sem desejo ou necessidade?
Kirk anda ao redor da mesa.
112
EXT. CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
112
CAPITÃO KIRK (CONT.) (CONT’D)
Não fomos feitos pra isso; nenhum
de nós. O homem estaciona se não
tem ambição, nenhum desejo de ser
mais do que é.
(2013)
Um PÉ MASCULINO, que veste tênis moderno, pisa a mesma poça
d’água desfazendo a imagem dos dois Paulos. É o pé de Paulo,
aos 66 anos, que caminha pelo mesmo ponto da estrada de terra
no Caminho de Santiago.
NA FRENTE DA TV, Paulo parece arrebatado pelas palavras de
Kirk. Luiza não entende nada.
Chris segue um pouco atrás e aperta o passo para alcançar o
marido. Quando ela chega ao lado de Paulo, ele acelera o
passo para ficar sozinho de novo. Chris se detém no meio da
estrada e observa o marido. Com serenidade e alguma tristeza,
ela deixa que ele se afaste.
113
INT. SALA, APARTAMENTO DE LUIZA - NOITE
SANDOVAL (O.S.)
Temos o que precisamos.
CAPITÃO KIRK (O.S.)
Menos o desafio.
Luiza sorri meio preocupada com o namorado, sem saber o que
dizer. Paulo, na maior cara de pau, faz o pedido.
113
PAULO
Vem cá-- Cê tem uma grana pra me
emprestar?
(1973)
Paulo e Luiza, como um velho casal entediado, estão na sala
da casa dela assistindo televisão. Luiza está deitada no sofá
e Paulo está sentado no chão, encostado no mesmo sofá. Ao
lado dele, NO CHÃO, um LIVRO de “I CHING” aberto e três
MOEDAS CHINESAS.
114
- Limpa o lugar, joga fora o entulho acumulado, organiza
livros e discos.
O APRESENTADOR DE JORNAL dá a notícia [[material de
arquivo]].
- Coloca a velha máquina de escrever vermelha na estante,
como um troféu.
APRESENTADOR
[[Lançamento do General Ernesto
Geisel como candidato a Presidente
da República pela ARENA]].
NA TELA DA TV:
CAPITÃO KIRK conversa com SPOK e ELIAS SANDOVAL (colono do
planeta Ômicron Ceti 3), que tomam chá a uma mesa.
114
Paulo arruma a garagem, agora como escritório improvisado:
NA TELA DA TV:
SALA. Paulo não se interessa minimamente pela notícia
política. Ele se levanta e muda algumas vezes de canal até
que para no canal 9, da TV Tupi, que passa a versão dublada
do episódio “This Side of Paradise” [”Deste Lado do Paraíso”,
ep. 25 (s01e25)] do seriado americano JORNADA NAS ESTRELAS.
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - MONTAGEM - DIA
- Sentado em uma imponente cadeira presidente de couro
rasgado, atrás de sua nova mesa de trabalho -- uma mesa de
escritório grande e velha -- Paulo olha orgulhoso para sua
novíssima máquina de escrever, grande, não portátil.
- Na parede ao fundo, Paulo pinta um disco voador colorido e
a logomarca do novo empreendimento: REVISTA 2001.
115
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - OUTRO DIA
Luiza, linda, acende um incenso e defuma o lugar. Ela observa
Paulo, que está concentrado tentando fazer funcionar seu
mimeógrafo. Luiza deixa o incenso de lado e se aproxima de
Paulo com ar sedutor.
115
91.
92.
Paulo termina de imprimir orgulhoso a primeira página do
primeiro exemplar de sua revista e entrega a folha para
Luiza. Luiza fica eufórica e tenta agarrar Paulo. Ele não
entra no clima, corta Luiza e volta ao mimeógrafo. Luiza
tenta se conter, mas fica triste.
116
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - OUTRO DIA
SALA
Paulo, cada vez mais tenso, disca um número de telefone.
Ninguém atende. Mestre Tuca fecha a cortina e encara Paulo.
MESTRE TUCA
Vai lá, Paulinho.
116
Paulo está compenetrado escrevendo um artigo para sua
revista. Batidas na porta. Paulo estranha. Mais batidas, mais
fortes.
PAULO
Eu tenho certeza que é meganha, vô.
Paulo se levanta, abre a porta e encontra RAUL SEIXAS (28) -um sujeito de terninho escuro e gravata fina, com cabelos
engomados, óculos escuros e sotaque baiano -- carregando uma
pastinha de executivo.
E daí?
PAULO
Eu tenho certeza que ele vai me
levar.
RAUL
Augusto Figueiredo?
MESTRE TUCA
Você não é tão importante assim--
PAULO
O Augusto não tá. Posso ajudar?
PAULO
Mas eu sou comunista!
RAUL
Não. É só com ele mesmo. Eu vou
esperar.
Mestre Tuca não consegue conter o riso. Paulo fica ofendido.
Mestre Tuca se recompõe.
MESTRE TUCA
Anda, Paulo. Lembra: se vai doer--
Raul observa o mimeógrafo, senta em uma velha poltrona,
acende um cigarro e pega um exemplar da revista 2001 para
folhear. Paulo fica muito incomodado.
Paulo completa a frase do avô.
PAULO
-- Enfrenta o problema logo, que
pelo menos a dor acaba.
PASSAGEM DE TEMPO - ANOITECER
O cinzeiro de Raul já tem cinco PONTAS DE CIGARRO apagadas e
ele acende mais um. Sobre a mesa, três exemplares da revista.
Isso.
Paulo, nervoso, abre discretamente a gaveta de sua mesa,
recolhe algumas pontas de cigarro de maconha e as esconde no
bolso. Ele se levanta.
INT. SALA/GARAGEM, CASA DO AVÔ - MOMENTOS DEPOIS
Paulo, ao lado do avô, espia o intruso discretamente, pela
janela da sala.
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA CORTINA ENTREABERTA - GARAGEM
Raul se levanta da mesa e caminha pelo “escritório” de Paulo,
olhando os detalhes com curiosidade.
MESTRE TUCA
PAULO
Manda um beijo pra Ziza, vô. Se eu
morrer, diz que eu morri amando
ela, diz que o Universo--
PAULO
Eu já volto.
117
MESTRE TUCA
Mestre Tuca corta o drama do neto.
MESTRE TUCA
Vai, Paulo. Anda.
117
118
INT. GARAGEM, CASA DO AVÔ - NOITE
Paulo, cheio de coragem, está de pé na frente de Raul.
PAULO
É o seguinte, bicho. O Augusto
Figueiredo não existe.
(MORE)
118
93.
PAULO (CONT'D)
Sou eu mesmo que assino todas as
matérias aqui da revista e se é pra
me prender, vamo resolver logo essa
parada.
94.
119
RAUL
É tu mesmo que escreve todas essas
ondas loucas sobre disco voador?
LUIZA
Caretinha de terno e gravata,
Paulo? Não tem nada a ver com a
gente--
Paulo desconfia do sujeito.
PAULO
Todas. Meu nome é Paulo Coelho de
Souza, pode me levar.
PAULO
Não é careta não, Ziza. Só parece-Ele é-- Ele é-- Sei lá.
RAUL
Que isso, levar pra onde? Eu
gostei. Papo sério--
Luiza ri. E consegue se levantar um pouco na cama para falar
com Paulo.
Raul abre um sorriso largo e estende a mão para Paulo, que
fica sem reação.
LUIZA
Cê acha mesmo que ele bota anúncio
na revista?
RAUL (CONT.) (CONT’D)
É com tu mesmo que eu quero falar,
então. Eu sou o Raul. Raul Seixas,
velho. Prazer enorme.
PAULO
Vou tentar, né-- Mas tem esse lance
da música também-- Vai que dá
certo?
Paulo, desconfiado, aperta a mão de Raul.
LUIZA
Até pode-- Mas-- Porra, amor,
executivo de gravadora? Baiano
querendo cantar rock no Rio de
Janeiro? Difícil pacas--
RAUL (CONT.) (CONT’D)
Vem cá-- Quantas pessoas leem essa
tua revista?
PAULO
Ah-- É-- Um monte. Muita gente
mesmo. Por quê?
Paulo continua sério.
PAULO
O cara é meio esquisito, mas-- As
coisas que ele fala-- Eu tirei o “I
Ching” outro dia e depois na TV--
RAUL
Eu sou produtor, sou gerente lá da
CBS-- A gravadora, tá ligado?
Música e tal--
LUIZA
Tá de sacanagem, Paulo?
PAULO
RAUL
Então-- Tô com umas ideias aí-- Um
lance sério. Música, parceria e
tal-- Tá a fim?
Paulo olha para Raul com uma mistura de desconfiança e
interesse.
PAULO
Tu é gerente de onde mesmo?
119
Paulo e Luiza estão na cama. O relógio, sobre o criado-mudo,
marca mais de 2:00hs da madrugada. Paulo acaba de chegar e
ainda veste as mesmas roupas do encontro com Raul. Ele está
sentado ao lado de Luiza, todo animado. Luiza, que estava
dormindo, luta contra o sono para prestar atenção no que ele
fala, mas mal consegue abrir os olhos.
Raul se levanta e encara Paulo muito sério e desconfiado.
Sei--
INT. APARTAMENTO DE LUIZA - NOITE
PAULO
É um sinal, Ziza. Eu tenho certeza
que é um sinal.
120
INT. BAR - NOITE
É fim de noite num bar de música ao vivo. O lugar é pequeno,
alternativo, quase decadente. Paulo e Raul conversam animados
numa mesa de canto. Sobre a mesa, uma garrafa de uísque
barato quase vazia e dois copos sem gelo.
120
95.
AO FUNDO, NO PALCO pequeno, improvisado, o BATERISTA desmonta
seu instrumento e, NO SAlÃO, DOIS GARÇONS terminam de colocar
as mesas para cima.
Raul tem o violão nos braços e dedilha alguns acordes da
música “AL CAPONE”. Ele tenta cantar enquanto lê -- no papel
que está sobre a mesa -- a letra rabiscada, cheia de
garranchos, escrita por Paulo (no mesmo ritmo do refrão: “Ei,
Al Capone, vê se te orienta”).
RAUL
“A liberdade do homem-- e a justiça
do universo. Quando Al Capone--”
Raul balança a cabeça e fala com carinho com Paulo.
96.
Raul confirma com a cabeça, Paulo se anima, dá risada e
arrisca:
PAULO (CONT.) (CONT’D)
“Ei, Al Capone, vê se te orienta--”
Raul abre um sorriso largo, vibra. Os dois dão risadas
juntos, cúmplices, parceiros.
RAUL
Na veia, sem grilo-- Sacou tudo!
PAULO
Porra. Que loucura-- Vou tentar,
vou tentar.
RAUL (CONT.) (CONT’D)
Careta pra caralho irmão. Não é por
aí--
RAUL
Tá feito, Paulo. Agora só botar no
papel e arrebentar.
PAULO
Eu nunca fiz isso, Raul-- Eu só sei
escrever assim.
PAULO
Sei-- Pode ser-- Mas depois eu
queria falar contigo também daquela
ideia da CBS investir na revista e
tal-- E--
RAUL
-- Nada, velho-- Pra falar sério
com as pessoas, cê não precisa
falar difícil não, cara. Pode ser
simples. Tem que ser simples, saca?
PAULO
Não dá, Raul. Não vai dar certo.
RAUL
Porra, claro que vai, irmão. Tu é
gênio com as palavras. Tu põe
palavra na minha música e a gente
arrebenta, pode crer que arrebenta.
Paulo gosta do que ouve, mas segue desconfiado. Raul insiste.
RAUL(CONT.) (CONT’D)
Simples, sacou? O segredo é esse-Dá pra falar umas paradas sérias de
um jeito que todo mundo entende.
PAULO
Simples como?
RAUL
Mais direto, mais jogado, sacou?
Vai lá-Raul volta a dedilhar o violão com os acordes do refrão.
PAULO
Mais jogado? Qualquer lance, tipo--
RAUL
Esquece isso, maluco. O lance é a
música. É a música que entra na
alma das pessoas, entende?
PAULO
Mas a revista-RAUL
Cara, é o seguinte: você quer falar
pro mundo, tá aí querendo dizer um
monte de coisa, não tá? Tu quer ser
mais do que tu é, não quer?
Paulo muda radicalmente de postura e de expressão ao ouvir de
Raul quase a mesma frase dita pelo Capitão Kirk na TV. Fica
realmente intrigado. Raul é firme:
RAUL (CONT.) (CONT’D)
Vem comigo, irmão.
Raul volta a dedilhar o violão. Cantam juntos.
PAULO E RAUL
Ei, Al Capone, vê se te orienta-Paulo se anima e continua.
PAULO
-- Assim dessa maneira, nego,
Chicago não te aguenta--
97.
98.
PAULO (CONT'D)
Eles são incríveis-- É o nosso
caminho, Raulzito. Umas paradas
fortes.
Raul fica radiante.
Gênio!
RAUL
RAUL
Quem é Crowley?
MAIS TARDE
A garrafa de uísque já está vazia e há outra ao lado, recém
aberta. Paulo termina de enrolar um baseado, acende e oferece
para Raul. Raul hesita um pouco.
PAULO
“Faz o que tu queres” -- O Livro da
Lei, manja?
RAUL (CONT.) (CONT’D)
Tô bem. Sou disso não, parceiro--
RAUL
Pode crer-- É tudo da Lei, não é
isso?
Paulo insiste. Raul resolve experimentar e curte o baseado.
PAULO
Me ouve, porra-- Fiquei duas horas
com o cara e ele aceitou receber a
gente.
MAIS TARDE
Raul toca o violão e os dois cantam juntos “Al Capone” aos
gritos.
Raul dá uma olhada na matéria da revista e não curte.
PAULO E RAUL
Ei, Al Capone, vê se te orienta.
Assim dessa maneira, nego, Chicago
não te aguenta--
RAUL
Pô, Paulo. Que viagem-- Barra
pesada demais. Uma onda que não é a
nossa, velho.
O SOM do show da próxima cena cobre o final desta sequência.
A música cantada pelos dois emenda com-121
INT. BAR - NOITE
PAULO
A gente tem que falar com esses
caras.
121
No palco improvisado do mesmo bar caído, em outra noite, Raul
canta a música “Al Capone” para um público de cerca de 40
PESSOAS. Ele veste camiseta justa, calça jeans grudada e
óculos escuros. Raul age como se fosse uma grande estrela se
apresentando no Maracanã lotado, embora o público esteja mais
interessado em beber e bater papo. Aos poucos, as pessoas se
animam e começam a dançar e a cantar o refrão da música.
PAULO
Eu sei o que eu tô falando-- Você
disse que a gente ia mudar o mundo,
não disse? Falar com a alma das
pessoas, não é isso?
Raul balança a cabeça para o lados e ri. Não está levando
Paulo a sério.
DO OUTRO LADO, ENCOSTADO NO BALCÃO, Paulo está fascinado com
a força de Raul no palco e a euforia das pessoas na pista.
Está feliz: começa a acreditar que a parceria pode dar certo.
122
INT. BAR, SHOW DE RAUL SEIXAS - MAIS TARDE
Depois do show, no bar já quase vazio, Paulo e Raul tomam um
uísque. Raul está chapado e tem dificuldade de entender o que
o acelerado Paulo está falando tão animado. Paulo tem um
exemplar da revista 2001 nas mãos e mostra uma matéria para
Raul com o título: O.T.O. NO BRASIL: ENTREVISTA EXCLUSIVA COM
O ÚNICO HERDEIRO DE CROWLEY.
PAULO
Consegui entrevistar esses caras
aqui.
(MORE)
RAUL
Pra que, velho? Pirou?
122
RAUL
Porra, Paulo. Eu falei de fazer
música-- Falar com as pessoas
através da música-PAULO
Cê não disse que a gente ia
arrebentar? Não é isso que a gente
quer?
Raul tira um barato de Paulo e cantarola:
RAUL
Se eu quero e você quer--
99.
100.
PAULO
Tô falando sério, porra!
REPRESENTANTE DE CROWLEY (CONT.)
(CONT’D)
Um juramento mágico que não
expressa a verdadeira vontade,
desperta as forças da oposição, e
destrói o homem-- Vocês estão
preparados?
RAUL
Nem fodendo, Paulo-- Tô fora.
PAULO
“Vem comigo, irmão.” -- Não foi
isso que você me disse?
Sim.
Raul sente o golpe.
Raul fica quieto. Paulo o incentiva com o olhar. Raul faz que
sim com a cabeça.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
A gente é parceiro ou não é, porra?
123
INT. SÍTIO DA O.T.O. - DIA
Sim.
123
REPRESENTANTE DE CROWLEY
Vi - Veri - Vniversum - Vivus Vici. Pela força da verdade, eu
conquistei o universo ainda vivo.
Repete!
Numa espécie de altar de pedra, o homem está vestido com um
lençol branco, tem o rosto coberto por uma máscara
assustadora e faz barulhos estranhos sem mexer a boca.
PAULO E RAUL
Vi - Veri - Vniversum - Vivus Vici. Pela força da verdade, eu
conquistei o universo ainda vivo.
Paulo Coelho e Raul Seixas estão ajoelhados na frente dele.
Paulo está de olhos fechados, bem concentrado. Ao lado dele,
Raul abre os olhos e olha tudo em volta bastante desconfiado.
Os versos finais da música “Rock do Diabo”, de Paulo Coelho e
Raul Seixas -- interpretada ao vivo por Raul Seixas na
próxima cena -- cobre o final desta sequência.
AO FUNDO
Os seguidores de Crowley sacrificam uma cabra e algumas
galinhas.
RAUL (V.O.)
O Diabo é o pai do rock. O Diabo é
o pai do rock--
NO ALTAR
REPRESENTANTE DE CROWLEY
Um juramento mágico é o elo entre a
consciência humana e a consciência
divina da natureza do ser-- E tem
que ser a afirmação da verdadeira
vontade.
O homem faz um barulho assustador e encara os novos
discípulos, que agora estão de olhos arregalados.
RAUL
O homem levanta as duas mãos para cima e fala alto, com a voz
impostada.
É uma cerimônia bem barra pesada, ao som de tambores, um
ritual macabro que acontece no sítio do REPRESENTANTE DE
CROWLEY.
Paulo abre os olhos e repreende Raul. Os dois fecham os olhos
novamente. Paulo e Raul, olhos fechados e cabeça baixa, fazem
o juramento. O representante de Crowley vocifera:
PAULO
124
INT. CASA DE SHOW NO RIO DE JANEIRO - NOITE
Do
na
DA
da
PONTO DE VISTA de alguém que caminha ansioso, se revela,
penumbra, a coxia do show de Raul Seixas. É O MESMO SHOW
MÚSICA DA CENA ANTERIOR E DO COMEÇO DO FILME. Raul, fora
cena, termina de cantar a música.
RAUL (O.S.)
-- Enquanto Freud explica, o Diabo
dá uns toque.
Termina a música. SOAM os APLAUSOS e GRITOS eufóricos. A
pessoa continua caminhando atrás do palco, na penumbra,
procurando por algo ou alguém. Só para quando vê-Paulo, de pé na lateral do palco, transa com duas garotas. AO
FUNDO, no palco, Raul Seixas agradece o público.
124
101.
102.
A BANDA começa a tocar os primeiros acordes da música
“Sociedade Alternativa”, de Paulo e Raul. A plateia vai ao
delírio.
DE VOLTA A PAULO, perplexo com a euforia e a força do
público. Ele se anima e faz um discurso:
PAULO
Todo homem e toda mulher é uma
estrela. Tem o direito de pensar o
que quiser. Tem o direito de falar
o que ele quiser. De fazer o que
quiser--
Paulo finalmente nota que está sendo observado e vê-P.V. DE PAULO - NA FRENTE DELE: Quem o encara é Luiza,
arrasada. Em choque com o que acaba de ver, ela chora, mas
não diz uma única palavra.
DE VOLTA A PAULO, que está paralisado, sem saber como reagir.
PISTA
AO FUNDO, NO PALCO, Raul -- cabelos desgrenhados, cavanhaque
enorme e roupas bem mais extravagantes -- está completamente
alucinado e tem um branco. Fica paralisado e não consegue
começar a música. A plateia começa a bater palmas e a gritar
em looping o refrão da música.
Luiza, arrasada, alheia à euforia do público, caminha entre
as pessoas, de costas para o palco, em direção à saída. O
público canta com Paulo.
PLATEIA
Viva! Viva! Viva a Sociedade
Alternativa!-- Viva! Viva! Viva a
Sociedade Alternativa!--
Se eu
banho
Noel,
Então
A banda se entreolha, sem saber muito o que fazer.
MAIS À FRENTE, Luiza passa por Plínio, o soldado da polícia
militar infiltrado no show, que tira fotos, o mesmo da cena
de créditos iniciais que abre o filme.
COXIA
PAULO E PLATEIA (CONT.) (CONT’D)
Faz o que tu queres pois é tudo da
Lei! Da Lei! Viva! Viva! Viva a
Sociedade Alternativa! Viva!
Viva!--
Quem interrompe o impasse entre Paulo e Luiza é Raul, que se
aproxima de Paulo pedindo socorro.
RAUL
Não consigo, Paulete. Vem aqui-Segura essa pra mim.
O soldado com a câmera tira muitas fotos de Paulo. Os outros
três soldados -- Lucas, Túlio e Moura --, espalhados pela
pista, se entreolham.
Paulo fica muito preocupado com Raul, corre para segurar o
parceiro. Raul se apoia na parede e insiste.
PALCO
RAUL (CONT.) (CONT’D)
Eu tô bem. Tudo certo-- Eu vou
ficar bem-- Vem aí--
Paulo adora as luzes que o iluminam e os aplausos e gritos
histéricos que o saúdam. Com o punho cerrado, dando socos no
ar, em tom de protesto, ele canta com o público:
PALCO
PAULO E PLATEIA (CONT.) (CONT’D)
Viva! Viva! Viva a Sociedade
Alternativa!-- Viva! Viva! Viva a
Sociedade Alternativa!--
Paulo e Raul entram no palco. Raul o apresenta.
RAUL (CONT.) (CONT’D)
Com vocês, de novo, meu parceiro
querido: Dom Paulo Coelho.
Raul entrega o microfone para Paulo Coelho e sai do palco.
Paulo observa preocupado enquanto Raul, cambaleando, se
afasta. A plateia grita alucinada.
P.V. DE PAULO - PLATEIA: É um show imenso, grandioso. Ele
olha para as LUZES que iluminam o palco.
PAULO E PLATEIA
quero e você quer-- Tomar
de chapéu, ou esperar Papai
ou discutir Carlos Gardel-vá!--
125
I/E. SALA/BANHEIRO/CORREDOR/COZINHA, APARTAMENTO DE
LUIZA/PRAIA DE IPANEMA - AMANHECER
Ainda SOAM a MÚSICA e os GRITOS da plateia do show da cena
anterior.
125
103.
104.
Sozinho no apartamento de Luiza, Paulo recolhe suas roupas no
armário e alguns objetos espalhados pela sala.
DE VOLTA A PAULO, que se detém no meio do
observa quando o homem tira Luiza da água
Luiza reage. Paulo fecha os olhos. Quando
se vira e sai andando sozinho pela praia,
AO FUNDO, ATRAVÉS DA PAREDE DE VIDRO, um dia tenebroso e
cinza, como o anúncio sombrio de uma tempestade, começa a
nascer em Ipanema. O SOM do show continua cobrindo a cena.
Paulo entra no--
A voz de Elis Regina cobre a cena.
ELIS REGINA (V.O.)
Quando me pedes por favor que a
nossa lâmpada apague-- Me deixas
louca. Quando transmites o calor
das tuas mãos pro meu corpo que te
espera-- me deixas louca--
BANHEIRO
Paulo abre o armário que fica sobre a pia e recolhe um
aparelho de barbear e uma escova de dentes. Quando Paulo olha
para baixo, ele vê-P.V. DE PAULO - DENTRO DA PIA: Vários frascos de remédios
abertos e vazios. SILÊNCIO.
128
EXT. VILAREJO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
Num pequeno vilarejo deserto e abandonado, Paulo, destruído e
arrasado, caminha com Jay na beira de um penhasco. A vista do
vale é linda e assustadora. Paulo, de repente, fica
paralisado. Ele está frente a frente com o cachorro -- um
enorme vira-lata cinza, grande, forte e feroz. Paulo está
aterrorizado. O cachorro arreganha os dentes e rosna para
Paulo, que segue encarando o bicho.
SALA
Paulo, visto de costas no contra-luz, fica paralisado ao se
aproximar da enorme janela.
JAY (O.S.)
La lucha con el perro sólo termina
cuando uno de los dos triunfa. Él
regresará y tendrás que luchar
hasta el final. Si no, su fantasma
te perseguirá toda la vida.
AO LONGE, NA PRAIA
Luiza -- com o mesmo vestido colorido de seda esvoaçante que
vestia na noite em que conheceu Paulo -- caminha cambaleante
na praia vazia em direção ao mar. Começam a soar os primeiros
acordes à capela da MÚSICA “Me Deixas Louca”, versão em
português (de Paulo Coelho) da música original de Armando
Manzanero, gravada por Elis Regina.
O cachorro, feroz, encara Paulo. Paulo encara o cachorro com
segurança. O animal rosna, está prestes a atacar.
129
INT. HALL/ESCADARIA, APARTAMENTO DE LUIZA - EM CONTINUIDADE
126
Paulo chama o elevador. Transtornado, ele aperta várias vezes
o botão. Nada. Paulo decide descer pelas escadas. A imagem
dos pés de Paulo lutando contra os degraus da escadaria
entram em montagem paralela com-127
EXT. PRAIA DE IPANEMA - AMANHECER
Luiza, cambaleando, sob efeito da overdose de remédios que
tomou, caminha lentamente no mar em direção ao horizonte. Ela
cai e começa a afundar lentamente.
Quando Paulo chega correndo na areia da praia, ele vê-P.V. DE PAULO - NO MAR: Um HOMEM nada na direção de Luiza.
Uma, duas-- TRÊS PESSOAS se aproximam pela areia para ajudar.
128
(1986)
DE VOLTA A PAULO, que se desespera. Ele começa a andar aflito
pelo apartamento de Luiza, procurando por ela. Passa pelo
CORREDOR, olha na COZINHA. Nada. Quando chega de novo na--
126
caminho. Ele apenas
e tenta reanimá-la.
abre os olhos, ele
na outra direção.
E/I. ATERRO DO FLAMENGO/CARRO DE PEDRO - EM MOVIMENTO - DIA
(1974)
Na larga pista do Aterro do Flamengo, Pedro -- terno e
gravata, com a pasta ao lado, apoiada sobre o banco do
passageiro -- dirige seu carro e ouve rádio. Ao final de uma
música, entra o locutor.
127
LOCUTOR
-- e agora, uma canção do disco “Eu
Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”,
sucesso da dupla Paulo Coelho e
Raul Seixas, na voz de Raul Seixas-Pedro sorri. Está orgulhoso do filho. Começa a tocar a música
“Meu Amigo Pedro”.
129
105.
RAUL (V.O.)
Muitas vezes, Pedro, você fala-Sempre a se queixar da solidão.
Quem te fez com ferro, fez com
fogo, Pedro-Pedro faz menção de mudar a estação, mas desiste.
RAUL (V.O.)
-- É pena que você não sabe não.
Vai pro seu trabalho todo dia.
Sem saber se é bom ou se é ruim.
Quando quer chorar, vai ao
banheiro. Pedro, as coisas não são
bem assim.-Parado no sinal, o pai de Paulo olha para si mesmo, depois
olha para a pasta de couro no banco ao lado.
RAUL (V.O.)
-- Toda vez que eu sinto o paraíso.
Ou me queimo torto no inferno. Eu
penso em você, meu pobre amigo. Que
só usa sempre o mesmo terno.-Pedro tenta conter as lágrimas. Mesmo contido e tentando se
manter altivo, é uma figura triste. Está arrasado.
VISTO DE FORA, o carro parte.
130
E/I. ATERRO DO FLAMENGO/TÁXI - EM MOVIMENTO - SEGUNDOS DEPOIS 130
106.
131
INT. SALA DE TORTURA, DOI-CODI - DIA
Numa sala soturna do Primeiro Batalhão de Polícia do
Exército, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Paulo está nu na
frente do DELEGADO DO DOI-CODI.
É uma sala de tortura e dois soldados armados de cacetetes -Plínio e Moura, os mesmos do show -- estão de pé ao lado de
Paulo.
Com olheiras profundas, tremendo de frio, corpo cheio de
marcas e feridas, Paulo é a imagem angustiante de quem já
sofreu muito nas mãos da polícia.
AO FUNDO, uma máquina de tortura com choques elétricos e um
tambor cheio de água. O delegado mostra a capa do primeiro LP
de Raul Seixas em parceria com Paulo: “KRIG-HA, BANDOLO!”.
DELEGADO DOI-CODI
Que merda é essa?
PAULO
É o álbum que eu gravei com o Raul
Seixas.
DELEGADO DOI-CODI
E o que significa “Krig-Ha,
Bandolo!”?
PAULO
Significa: “Cuidado com o
inimigo!”.
Um táxi passa pelo mesmo ponto da pista em alta velocidade.
DELEGADO DOI-CODI
Que inimigo, o governo?
DENTRO DO TÁXI
PAULO
Não, nada contra o governo não,
doutor. Os inimigos são os leões
africanos-- Isso aí tá escrito na
língua falada no reino de Pal-U-Don
e--
Paulo ocupa o banco de trás do táxi. De repente, ao passar em
frente ao Hotel Glória, QUATRO CARROS fecham o táxi em que
Paulo está.
QUATRO HOMENS armados, à paisana, descem de duas Veraneios e
abrem as portas de trás do táxi. Um dos homens arranca Paulo
a tapas do carro. Paulo é algemado e atirado de bruços sobre
o gramado.
Paulo está apavorado e não consegue ver o que está
acontecendo. Um dos homens enfia um CAPUZ NEGRO na cabeça de
Paulo. TELA PRETA. O SOM do motor da Veraneio arrancando se
sobrepõe à respiração ofegante de Paulo.
DELEGADO DOI-CODI
Tá de sacanagem? Tá achando que
todo mundo aqui é palhaço?
Paulo olha para a máquina de tortura e se apavora.
PAULO
Não, de jeito nenhum-- Eu tô
falando a verdade. A nossa onda é
outra mesmo, sacou? É tirar o mundo
desse tédio e capitalizar o fim do
hippismo e o lance da magia e--
131
107.
108.
DELEGADO DOI-CODI
Moura, liga a máquina. Vamo ver se
a gente organiza as ideias do nosso
amigo aqui.
Paulo está acabado e parece muito deprimido. Ele disca com
raiva um número de telefone.
PAULO
Como não quer falar comigo? Como
vai pra Nova Iorque? A gente é
parceiro, porra-- Manda ele me
atender. O Raul tem que falar
comigo-- Manda ele me atender!
Paulo fica transtornado. Ele se transforma e encara o
delegado com cara de louco.
PAULO
Vai me torturar de novo? Olha, não
precisa, não. Eu sou louco. Pode
confirmar aí na minha ficha-Maluco. Doidão.
Paulo, arrasado, bate o telefone e toma um largo gole de
uísque no gargalo. Ele se levanta e liga a TV.
Paulo começa a rir. O delegado se assusta. Os agentes fazem
menção de segurar Paulo, mas o delegado faz um sinal para
deixarem o preso falar.
NA TELA DA TV
Uma propaganda com tema natalino. Paulo muda de canal. Entra
um especial com Raul Seixas no programa Fantástico, da Rede
Globo, apresentado pelo jovem e formal SÉRGIO CHAPELIN
[IMAGEM DE ARQUIVO].
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Já fui internado e tudo. É-Choque! Choque é muito bom-- Mas
não é tortura-- Tortura é tirar
sangue-- Você gosta de sangue
também, não gosta?
SÉRGIO CHAPELIN
Para São Cipriano, Lucifer deu um
golpe de Estado em Belzebu, tomando
o poder. E as divergências entre os
dois atrasaram o mal na Terra por
quinhentos anos: cinco séculos que
acabam de terminar.
Paulo começa a se bater e a arranhar o próprio corpo. Os
soldados se entreolham. O delegado, aflito com a cena,
balança a mão no ar, fazendo um sinal para levarem Paulo da
sala. O delegado olha com pena para Paulo, que começa a tirar
SANGUE do próprio corpo.
132
EXT. CRUZ DE FERRO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
Na sequência, Raul faz seu depoimento em tom sério, vestido
com roupas sóbrias, e um ar de intelectual.
132
(1986)
Paulo, cada vez mais derrubado, faz mais um ritual de R.A.M.:
ele crava a unha do dedão da mão direita na base da unha do
dedo indicador da mão esquerda até SANGRAR. As bases das
unhas dos outros dedos da mesma mão também já estão muito
machucadas. Ele está sentado na base da Cruz de Ferro, no
alto de uma montanha.
133
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO - NOITE
(1974)
Paulo está sozinho no seu novo e espaçoso apartamento, que
fica no andar térreo, com um pequeno jardim ao fundo. É o
mesmo apartamento em que ele vive com Chris em outras cenas
do filme. Mas aqui o imóvel está mais vazio, sem reforma,
mais decadente, mais masculino.
Paulo está sentado numa poltrona velha e tem um aparelho de
telefone nas mãos, com um fio comprido que atravessa a sala.
133
RAUL
Esse fenômeno mágico, esse
interesse súbito, vamos dizer
assim, por essa magia, por essa
coisa toda que tá pintando agora,
como o filme “O Exorcista”-- Essa
coisa tá sendo considerada causa,
quando na realidade é um efeito, tá
entendendo? E a música “Gita”, que
eu fiz agora, ela coloca bem isso,
ela desperta em cada um o que a
pessoa é, o bem e o mal como sendo
uma coisa só. Desperta, na pessoa,
Deus como um todo.
DE VOLTA A PAULO, que se aproxima da TV e assiste de pé à
declaração de Raul. Braços cruzados. Seus olhos se enchem de
lágrimas. Ele fala baixinho.
PAULO
Eu fiz? A gente fez, porra!
Começa o clipe. É um vídeo bem produzido para a época, com
muitos efeitos especiais, no qual Raul interpreta a música
“Gita”, de Paulo e Raul.
109.
RAUL
Eu que já andei pelos quatro cantos
do mundo procurando, foi justamente
num sonho que ele me falou-Às vezes, você me pergunta, por que
é que eu sou tão calado-Não falo de amor quase nada, nem
fico sorrindo ao teu lado-Você pensa em mim toda hora. Me
come, me cospe, me deixa-Talvez você não entenda, mas hoje
eu vou lhe mostrar--
110.
Paulo se arrasta, pega a BÍBLIA na estante, e segue até o-134
PAULO
Se tu podes crer, tudo é possível
ao que crê. E logo o pai do menino,
clamando, com lágrimas, disse: Eu
creio, Senhor! Ajuda a minha
incredulidade. E Jesus, vendo que a
multidão concorria, repreendeu o
espírito imundo, dizendo-lhe:
Espírito mudo e surdo, eu te
ordeno: sai dele, e não entres mais
nele. E ele, clamando, e agitando-o
com violência, saiu; e ficou o
menino como morto, de tal maneira
que muitos diziam que estava morto.
Da mesma estante de livros, de joelhos, Paulo começa a tirar
os discos de Raul Seixas de uma prateleira mais baixa.
Arrasado, Paulo se encolhe no chão, abraça as pernas e chora.
Paulo tenta se levantar, mas não consegue. O mundo parece
girar em torno dele e vai ficando mais escuro, como se o
apartamento todo estivesse envolto numa enorme nuvem negra.
Com muita dificuldade, Paulo se arrasta até o par de tênis
que está ao lado do sofá e faz um esforço tremendo para
calçar os sapatos. Paulo começa a alucinar. OUVE risos,
vozes, coisas quebrando. Uma cacofonia angustiante mistura as
vozes do Padre José com a do Hippie, a do Anjo na praia e a
de Raul Seixas em trechos que parecem se complementar.
Um novo trovão. Paulo olha para cima e encara a lâmpada acesa
no teto do banheiro.
PADRE JOSÉ (V.O.)
Assim o homem se deita, e não se
levanta; até que não haja mais céu,
não acordará nem despertará de seu
sono.
O telefone toca. Paulo tenta se arrastar até o aparelho, mas
não consegue. O SOM da campainha do telefone se mistura à
CACOFONIA de vozes e aos acordes da música “CANTO PARA MINHA
MORTE” que cobre todo o resto da cena.
ANJO (V.O.)
Você vai levar muita porrada, vai
apanhar pra cacete.
RAUL (V.O.)
A morte, surda, caminha ao meu lado
-- E eu não sei em que esquina ela
vai me beijar.
PAULO
Água corrente! Água corrente-- Água
corrente--
134
É um banheiro velho, lúgubre. Paulo consegue se levantar com
dificuldade. Ele abre a torneira da pia e joga água no rosto.
Com a Bíblia debaixo do braço, ele vai até o chuveiro. Abre a
torneira. O BARULHO da água escorrendo parece um trovão. A
água escorre em seu corpo. Ele escorrega pela parede e fica
inerte por alguns instantes, sentindo a água limpar sua alma.
Paulo abre a Bíblia molhada em uma página qualquer e lê em
voz alta (Marcos 9:23-26):
Paulo contém o choro e dá um chute seco na TV. Determinado,
ele tira todas as imagens do demônio da sala, rasga
documentos e arranca os livros de ocultismo da estante.
HIPPIE (V.O.)
Improvido és tu que desperdiças tua
grande oportunidade”--
INT. BANHEIRO, APARTAMENTO DE PAULO - EM CONTINUIDADE
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Eu creio. Eu creio! Eu quero fazer
uma troca-- Eu te ofereço a minha
vida, eu te ofereço tudo o que eu
tenho pra salvar a minha alma.
135
I/E. RUAS DO RIO/ÔNIBUS - EM MOVIMENTO - MAIS TARDE
É noite de Natal. A cidade está enfeitada para a festa.
DENTRO DO ÔNIBUS. O coletivo está quase vazio. Paulo, de
cabelos ainda molhados, com cara de quem acaba de voltar de
uma guerra, observa a paisagem na janela.
P.V. DE PAULO, ATRAVÉS DA JANELA DO ÔNIBUS - CALÇADA
Uma FAMÍLIA se encontra feliz na porta de uma casa, com
presentes nas mãos.
MAIS ADIANTE
Um CASAL caminha abraçado pelo calçadão.
135
111.
112.
DE VOLTA A PAULO, que está sozinho DENTRO DO ÔNIBUS, muito
triste, com os olhos marejados.
136
E/I. RUA/SALA, CASA DA GÁVEA - NOITE
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Me desculpa, filho.
PAULO
Por que isso agora?
136
Paulo está do lado de fora da casa e observa de longe,
através da janela, o que acontece lá dentro: é noite de Natal
e a família dele está toda reunida em torno da mesa de
jantar: os pais, Sônia Maria e o MARIDO, os avós e alguns
TIOS e PRIMOS. Cerca de 30 PESSOAS.
137
INT. SALA, CASA DA GÁVEA - MOMENTOS DEPOIS
PEDRO
Porque você é meu filho e eu tenho
muito orgulho de ser seu pai-- De
ver você construir a sua “casa da
Gávea”.
Paulo encara o pai.
137
PAULO
Do meu jeito.
Paulo -- cabelos compridos, cavanhaque grande, calça de
couro, botas, camiseta justa e óculos escuros -- está parado
na porta da casa, que acaba de ser aberta por Lygia. A
família inteira -- todos muito arrumados e formais -- fica
imediatamente em silêncio e olha para ele como se fosse um
extra-terrestre chegando de Marte. Paulo tira os óculos e
olha para Pedro, que está sentado na cabeceira da mesa.
Depois de algum silêncio, Pedro autoriza:
PEDRO
Do seu jeito.
Pedro entrega o disco para Paulo, sai do quarto e fecha a
porta. Paulo fica pensativo e encara a porta por alguns
instantes.
PEDRO
Pode entrar, Paulo. Puxa uma
cadeira pra ele, Sônia.
139
INT. QUARTO DE PAULO, CASA DA GÁVEA - NOITE
PAULO
Valeu, velho.
138
Paulo observa seu antigo quarto, mantido mais ou menos como
ele deixou com o que deu para recuperar depois do ataque de
fúria. Paulo encara o pôster de Che Guevara por alguns
instantes. Vai até lá, afasta o quadro e pega um LP que
estava escondido. Paulo sorri.
Pedro se emociona, mas mantém a pose. Lygia observa e sorri.
Paulo faz um prato, se senta e começa a comer. Ele olha
intrigado para uma moça morena, baixinha e encantadora, que
está do outro lado da mesa -- É CHRISTINA OITICICA, AOS 24
ANOS. Paulo pergunta baixinho para a irmã Sônia, que está
sentada ao lado dele.
Com o LP nas mãos, Paulo se senta na cama.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
Quem é aquela menina ali, Sônia?
Pedro entra no quarto. Paulo fica tenso. Constrangido, ele
deixa o disco de lado e faz menção de se levantar. Pedro faz
um gesto para Paulo ficar. O pai se senta ao lado do filho e
pega o LP nas mãos.
SÔNIA
Você conhece, Paulo. É a Chris,
sobrinha do Marcos, não lembra?
PEDRO
Eu gosto da faixa três. Mas a cinco
é boa também.
Paulo estranha. Olha para Pedro desconfiado. Pedro sorri.
PEDRO (CONT.) (CONT’D)
Eu também tenho os meus segredos-Paulo não entende onde Pedro quer chegar.
139
Todos já estão na sobremesa quando Paulo aparece na sala,
como se nada tivesse acontecido. Ao passar atrás da cadeira
onde Pedro está sentado, ele curva o corpo e fala baixinho,
só para o pai:
Paulo passa batido e sobe as escadas, em direção ao seu
antigo quarto.
138
INT. SALA, CASA DA GÁVEA - MAIS TARDE
Paulo olha encantado para a moça. Os olhares se cruzam. Ela,
tímida, disfarça.
140
EXT. VILAREJO, CAMINHO DE SANTIGO - DIA
(2013)
140
113.
114.
No pequeno vilarejo deserto e abandonado, o mesmo vira-lata
cinza, grande, forte e mal-encarado arreganha os dentes. Na
frente do animal feroz, pronto para atacar, agora está Paulo,
aos 66 anos, paralisado, porém sereno. O cachorro arreganha
ainda mais os dentes e rosna para Paulo, que encara o
cachorro com segurança. O animal rosna, está prestes a
atacar.
Paulo!
CHRIS
Pra mim chega sim, Paulo. Chega
dessa viagem, chega de fingir que
tá tudo bem quando a gente sabe que
não tá-- Você não é mais um menino,
Paulo!
Paulo olha fundo nos olhos de Chris. Realmente ouve como uma
facada o que ela acaba de falar.
CHRIS (O.S.)
Paulo se vira para olhar para Chris. O cachorro aproveita a
distração de Paulo e o ataca, derrubando Paulo no chão. Paulo
e o cachorro ficam cara a cara. O vira-lata olha com ódio e
rosna a centímetros do rosto de Paulo, que o encara.
Que pena.
CHRIS
Chega. De verdade, Paulo-- Agora
chega. Por favor.
PAULO
Você não tem mais nenhum poder
sobre mim-- Nenhum!
PAULO
O único lugar que a gente chega na
vida é a morte, Chris. O resto é o
caminho--
O cachorro encara Paulo, como se entendesse o que ele está
falando. O animal rosna mais uma vez e sai correndo. Paulo
fecha os olhos, aliviado. Está salvo do demônio.
141
EXT. CRUZ DE FERRO, CAMINHO DE SANTIAGO - MAIS TARDE
Chris fica com os olhos cheios d’água. Esse é o Paulo que ela
conhece, é o homem por quem ela se apaixonou há mais 30 anos.
Não quer e não vai mudar o marido. Ele continua:
141
PAULO (CONT.) (CONT’D)
O que importa é o caminho--
Paulo está sentado aos pés da mesma Cruz de ferro. Agora, aos
66 anos, está acabado e seu estado físico deixa claro que não
foi fácil chegar até ali.
Chris chega depois e se senta ao lado do marido em silêncio.
Depois de algum tempo, ela tira uma garrafinha de água da
mochila e a entrega para Paulo. O marido agradece com o
olhar, ainda não tem condições de falar. Ele bebe a água.
Estava precisando dela. Chris observa.
CHRIS
Chegou onde queria, Paulo?
Paulo pensa um pouco e reúne forças para responder.
PAULO
Chegar aonde, Chris? A gente nunca
chega.
CHRIS
A gente pode voltar pra casa agora?
PAULO
Não tem mais volta, meu amor. A
gente tem que seguir em frente.
Sempre em frente.
Chris explode, mas fala baixinho, quase como uma súplica.
PAULO
Chris fica paralisada. Os dois se encaram, mas seguem
distantes, e agora ele também tem os olhos marejados.
142
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS- DIA
(1986)
Paulo e Chris transam com paixão e urgência na mesa de
trabalho de Chris, entre desenhos, pincéis e tubos de tinta.
Ela veste só uma camiseta e está toda suja de tinta colorida.
AO FUNDO, NUM CANTO DA SALA, a prancheta de Chris e uma tela
inacabada.
É uma cena de amor intenso, os dois gozam juntos. Dão
risadas, estão em completa sintonia. Chris beija o corpo de
Paulo e faz menção de se levantar.
PAULO
Não, não-- Fica aqui-Chris acha graça.
CHRIS
Eu já falei que eu te amo?
PAULO
Não. Hoje você não me disse nada.
142
115.
116.
Chris ri. Ainda encaixada em Paulo, Chris se estica, pega um
envelope na bolsa que está ao lado e o entrega para o marido.
Madame Lourdes coloca um antigo chapéu na cabeça de Paulo,
lhe entrega um cajado de madeira e se aproxima ainda mais do
rapaz. Ela coloca as mãos espalmadas sobre a cabeça dele,
fecha os olhos e dá o texto em tom burocrático, em espanhol:
PAULO (CONT.) (CONT’D)
O que é isso, Chris?
Abre.
MADAME LOURDES
Que Santiago el Apóstol te acompañe
y te enseñe la única cosa que
necesitas descubrir; que no camines
ni demasiado lento ni demasiado
rápido, sino siempre de acuerdo con
las leyes y necesidades del camino;
que obedezcas a quien vaya a
guiarte, aunque te dé una orden
homicida, blasfema o insensata.
Tienes que jurar obediencia a tu
maestro.
CHRIS
Paulo abre. É uma PASSAGEM AÉREA RIO DE JANEIRO - MADRI.
PAULO
Como assim, Chris?
Chris olha fundo nos olhos de Paulo.
CHRIS
Você quer a sua espada, não quer?
Lo juro.
PAULO
Eu não posso levar isso a sério,
Chris. Eu já te disse, isso é
ridículo-- Eu preciso conseguir
escrever o meu livro, eu preciso--
Com pressa e com certo mau-humor, Madame Lourdes recolhe o
manto, o chapéu e o cajado e os guarda em uma caixa no canto
da sala. Ela se vira novamente para Paulo e o encara.
MADAME LOURDES
Que la bendición de Santiago, de
Dios y de la Virgen María te
acompañen todas las noches y todos
los días. Amen. Ahora vete, que hay
más gente esperando.
CHRIS
Você precisa de uma história pra
contar, Paulo. É disso que você
precisa.
Paulo baixa a guarda. Chris insiste.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Você é um artista, Paulo. Um
artista tem que--
143
PAULO
144
INT. SALA, ALBERGUE NO CEBREIRO- NOITE
(2013)
PAULO
Não. Não-- Isso é loucura, Chris.
Paulo está sozinho, escrevendo compulsivamente num caderno,
com prazer e brilho nos olhos. Ao final, ele escreve a frase:
CHRIS
E se for? E daí?
NO PAPEL: Só o que importa é o caminho, só o que importa é o
amor. O amor é a cola que gruda tudo. FIM.
INT. CASA DE MADAME LOURDES, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
(1986)
É o interior sombrio e bagunçado de uma casa medieval, toda
de pedra. MADAME LOURDES (50) -- uma mulher rude, de roupas
comuns e sem nenhuma paciência -- está de pé na frente de
Paulo, que veste bermuda jeans, tênis surrado e uma camiseta
“I Love NY”. Por cima da roupa de turista, Paulo carrega uma
manto que parece antigo e roto, todo roxo e com conchas de
vieiras douradas bordadas sobre cada um dos ombros.
143
Paulo sorri e fecha o caderno satisfeito, estufa o peito como
se recebesse uma injeção de energia, como se fosse novamente
um menino. Ele pega o Iphone, coloca os fones de ouvido, e
procura uma música: ALL YOU NEED IS LOVE, dos Beatles. Paulo
aumenta o som e começa a dançar sentado, feliz, comemorando
sozinho sua vitória.
Chris, com cara de sono, aparece na porta do quarto e observa
a cena por uma fresta: Paulo dança sozinho no silêncio do
albergue. Chris ri e volta a encostar a porta.
144
117.
145
E/I. IGREJA DO CEBREIRO, CAMINHO DE SANTIAGO - AMANHECER
118.
145
Paulo, que ainda tem as bases das unhas machucadas, termina
de escrever uma lauda. Ele coloca uma nova folha em branco na
máquina elétrica e datilografa o título da obra:
Visto de fora, Paulo entra na igreja e segue em direção ao
altar.
146
INT. QUARTO/SALA, ALBERGUE DO CEBREIRO - MANHÃ
O DIÁRIO DE UM MAGO
DE PAULO COELHO
MARÇO DE 1987
146
Chris acorda e nota que Paulo não está no quarto. Ela se
levanta e vai até a porta entreaberta. Olha pela fresta e vê
a sala vazia. Chris caminha pelo lugar procurando por Paulo,
sem sucesso. Preocupada, ela volta para o--
Paulo está orgulhoso.
150
QUARTO. Chris procura algo pelo quarto e encontra, no criadomudo ao lado da cama, um BILHETE no qual está escrito: EU TE
AMO. Chris vê que o bilhete está sobre TRÊS CADERNOS
completos com manuscritos de Paulo. Chris fica surpresa.
INT. IGREJA DO CEBREIRO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
Paulo olha encantado para o livro que tem em suas mãos. Ele
mal pode acreditar no que está vendo. Paulo cheira o livro e
olha para cima. Ele sorri um sorriso cúmplice para Deus e
agradece em silêncio.
147
(1986)
151
EXT. IGREJA DE CEBREIRO - EM CONTINUIDADE
148
CHRIS
Esse livro, olha, vai mudar a vida
de vocês, como mudou a minha-- É
muito bom, viu? Vale a pena de
verdade--
JAY
Caigan mil a tu lado y diez mil a
tu derecha, tú no serás golpeado.
Ningún mal y ninguna plaga llegarán
a tu tienda, porque Dios te
protegerá en todos tus caminos.
Paulo observa a dedicação de Chris e sorri emocionado.
152
Paulo se ajoelha e Jay apoia a lâmina da espada no ombro do
discípulo.
INT. QUARTO, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - NOITE
(1987)
151
DO OUTRO LADO, Chris se aproxima de um pequeno grupo de TRÊS
ESTUDANTES.
Na porta da igreja, Jay desembainha a espada e conduz a mão
de Paulo para que os dois segurem juntos seu punho. Jay
aponta a lâmina para cima.
149
EXT. RUAS DO RIO DE JANEIRO/PORTA DO CINEMA - NOITE
Paulo e Chris distribuem folhetos com a capa do livro “O
DIÁRIO DE UM MAGO” para as PESSOAS que saem do cinema. Paulo
observa que um HOMEM joga o folheto no chão sem ler. Ele fica
frustrado, mas não desiste. Paulo vai até lá e recolhe o
folheto do chão. Mais adiante, ele vê mais dois folhetos no
chão e também os recolhe. Determinado, ele volta a entregar
os folhetos.
Visto de dentro, Paulo entra na igreja. Ele vê Jay, o mestre,
que tem nas mãos a mesma espada que foi negada a Paulo pela
falta de humildade durante o ritual no alto da montanha. Jay
caminha em silêncio até a porta da Igreja. Paulo o segue.
148
150
Paulo, ansioso, abre uma grande caixa de papelão que está no
meio da sala. De dentro da caixa, ele tira um exemplar da
primeira edição do livro “O Diário de Um Mago”. Paulo olha
fixamente para a espada impressa em prata na capa preta e,
logo acima, o nome do autor estampado em letras grandes:
PAULO COELHO.
MAIS TARDE. Sentada na cama, Chris termina de ler o caderno
de Paulo. Ao abrir o terceiro caderno, Chris encontra o papel
no qual Jay desenhou uma espada e que foi entregue por ele
para Paulo na estação de trem. Chris olha fixamente para o
pequeno pedaço de papel cheio de dobras e sorri.
147
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO - DIA
149
INT. QUARTO DE LYGIA E PEDRO, CASA DA GÁVEA - NOITE
Deitados lado a lado na cama, com seus abajures acesos, Pedro
e Lygia leem seus exemplares de “O Diário de Um Mago”. Pedro,
sem tirar os olhos do livro, pega na mão de Lygia, que
corresponde ao carinho. Ela lê um trecho em voz alta:
152
119.
120.
LYGIA
“Ninguém gosta de pedir muito da
vida, porque tem medo da derrota.
Mas quem deseja combater o Bom
Combate, tem que olhar o mundo como
se fosse um tesouro imenso, que
está ali para ser descoberto e
conquistado.”--
Chris acha graça e fica impressionada com a obstinação do
marido.
CHRIS
Eu tenho certeza que você vai
conseguir, sabia?
Paulo fica surpreso com a confiança e a força de Chris. Ele
sente que pela primeira vez alguém realmente acredita no seu
sonho. Paulo sorri, beija a mulher e se levanta da cama.
Lygia ri, abraça o marido e provoca baixinho:
LYGIA (CONT.) (CONT’D)
Bonito, né? Com quem será que ele
aprendeu isso?
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Onde cê vai?
Paulo já está longe. Chris acha graça.
Pedro sorri contido, tentando disfarçar o orgulho.
153
INT. QUARTO DE PAULO E CHRIS, APARTAMENTO DE PAULO - NOITE
Deitado na cama, Paulo observa uma tabela grudada em um
caderno com anotações e números. No alto da folha, o título
do livro “O Diário de Um Mago” e a identificação da planilha:
CONTROLE DE VENDAS.
Paulo parece um pouco decepcionado. Ao lado dele, com cara de
sono, Chris tenta animar o marido.
CHRIS
Foi super bem, meu amor. No próximo
cê vai estourar, cê vai ver.
PAULO
O que é que eu tô fazendo de
errado, Chris?
CHRIS
Como assim, Paulo?
PAULO
A gente conta histórias pra alguém,
Chris. Se não, não faz sentido,
entende?
CHRIS
Foram mais de mil livros, Paulo-- É
muita coisa.
PAULO
Eu sei. Mas não é disso que eu tô
falando-- Eu-- Eu não queria falar
do meu livro no passado, entende?
Eu queria que essa história
ficasse, que tivesse um caminho
diferente, sei lá, que as pessoas--
153
154
INT. IGREJA DO CEBREIRO, CAMINHO DE SANTIAGO - DIA
(2013)
Paulo termina uma oração de agradecimento, faz o sinal da
cruz, se levanta. Ao se virar na direção da porta, ele vê-P.V. DE PAULO - NA PORTA DA IGREJA: Chris está parada na
porta da Igreja, observando Paulo.
DE VOLTA A PAULO, que caminha na direção de Chris. Quando ele
se aproxima, ela pega a mão do marido e lhe entrega algo. Os
dois se olham em silêncio e ficam com os olhos marejados.
Curioso, Paulo desdobra o pequeno pedaço de papel e encontra
a espada desenhada por Jay. Ele sorri. Chris tenta, mas não
consegue conter uma lágrima.
CHRIS
“O amor é a cola que gruda tudo”.
Eu gostei, eu-Paulo olha ansioso para Chris, quer saber a opinião dela.
PAULO
Gostou mesmo?
Ela se recompõe e fala mais firme.
CHRIS
Gostei, adorei-- Eu-- Eu só
discordo de você em duas coisas,
Paulo-Chris começa a andar, Paulo a acompanha e ouve o que ela diz
com interesse.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Eu acho que antes da morte, a gente
chega em muitos lugares na vida--
154
121.
122.
Paulo fica pensativo. Eles seguem caminhando pela pequena
vila, que tem algumas poucas casinhas de pedra e fica no alto
da montanha. Chris conclui:
PAULO
Vem, Chris!
Chris acompanha o marido e acelera o passo até que os dois
caminham novamente juntos.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
-- E que cada lugar que a gente
chega, não é um fim, é um começo.
Pode ser--
PAULO
155
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO - NOITE
(1988)
Eles seguem andando em silêncio por alguns instantes. Paulo
está curioso.
PAULO (CONT.) (CONT’D)
E a outra coisa?
A escrivaninha está cheia de papéis e anotações. Paulo, muito
concentrado, exausto, obstinado, termina de escrever seu novo
livro. Ele junta um grosso calhamaço de papéis e coloca uma
nova folha em branco na máquina. SOBRE A FOLHA em branco, ele
datilografa o título da nova obra:
CHRIS
A outra não tem nada a ver com o
livro.
“O ALQUIMISTA”
DE PAULO COELHO
MAIO DE 1988
Fala--
PAULO
CHRIS
É que-- É que nem a morte pra você
vai ser um fim-- Nem ela vai
conseguir acabar com a tua
história.
Paulo para de andar e olha para Chris sem entender.
PAULO
Como assim, Chris?
Chris para e fala rindo.
CHRIS
É muito livro, meu amor! Isso não
some da terra de uma hora pra
outra não-Paulo pensa no que Chris está dizendo. Ela segue andando,
pensa um pouco e continua num tom mais leve, mais divertido.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
Vida eterna-Paulo segue Chris. O SOM de dedos brigando com o teclado da
máquina de escrever elétrica cobre o final da cena.
CHRIS (CONT.) (CONT’D)
É-- Coisa de alquimista mesmo, né?
Paulo acha graça. Finge não levar muito a sério, mas gosta do
que ouve. Ele aperta o passo e chama a mulher.
155
156
INT. ESCRITÓRIO DO EDITOR - DIA
Com o manuscrito de “O ALQUIMISTA” nas mãos, visivelmente
decepcionado com a história que leu, o EDITOR conversa com
Paulo. Ele tenta ser carinhoso, mas precisa ser sincero.
EDITOR
Paulo, eu sou teu amigo e é como
amigo que eu tô te falando isso-Esse livro-- Esse livro não é bom,
cara. Eu li pra gostar. Eu queria
muito gostar, mas eu-- Eu não posso
mais investir nisso, Paulo. Dessa
vez, não vai dar.
Paulo está em choque na frente do editor.
EDITOR (CONT.) (CONT’D)
-- Olha, eu quero te ajudar. Eu
tenho uns contatos bons na
imprensa-- Você escreve bem, pode
conseguir um emprego legal, sabe o
Julinho?-Paulo olha com raiva para o editor.
PAULO
Eu sou escritor.
O editor, assim como o médico no começo do filme, está
sinceramente preocupado com Paulo. De fato, é alguém que quer
ajudar e fala com carinho.
156
123.
124.
RAUL SEIXAS
Tente -- Não diga que
está perdida. Se é de
se vive a vida. Tente
EDITOR
Pô, Paulo-- Cê acha mesmo que
alguém um dia vai querer ler essas
coisas que você escreve?
Ao final, depois de recolher folha a folha e juntar o
calhamaço de originais, Paulo recoloca a capa com o texto:
Determinado, Paulo toma o manuscrito das mãos do homem.
157
EXT. ESTRADA QUE SAI DO CEBREIRO - MOMENTOS DEPOIS
157
(2013)
Paulo e Chris caminham lado a lado, em silêncio. Seus passos
aos poucos entram em compasso perfeito. Paulo segura na mão
de Chris, que sorri para ele. Paulo beija Chris. SOAM os
primeiros acordes da “Música Tente Outra Vez”, de Paulo
Coelho, Raul Seixas e Marcelo Motta, na voz de Raul Seixas.
RAUL
Veja. Não diga
perdida. Tenha
na vida. Tente
158
Paulo está sentado na poltrona larga do canto da sala,
catatônico, arrasado. Em volta dele, espalhados pelo chão,
estão um contrato rasgado, algumas caixas com exemplares do
livro “O Diário de Um Mago” e as folhas dos originais de “O
Alquimista”.
Paulo fica imóvel por algum tempo, olhando através da câmera,
como se a lente fosse um ponto no infinito. De repente, Paulo
se levanta determinado e começa juntar as páginas do novo
livro: ele não vai desistir. A MÚSICA “TENTE OUTRA VEZ” segue
cobrindo toda a sequência.
RAUL SEIXAS (V.O.)
-- Beba -- Pois a água viva ainda
está na fonte. Você tem dois pés
para cruzar a ponte. Nada acabou-Tente -- Levante tua mão sedenta e
recomece a andar. Não pense que a
cabeça aguenta se você parar. Há
uma voz que canta, há uma voz que
dança, há uma voz que gira,
bailando no ar-Queira -- Basta ser sincero e
desejar profundo. Você será capaz
de sacudir o mundo. Tente outra
vez-(MORE)
“O ALQUIMISTA”
DE PAULO COELHO
MAIO DE 1988
TEXTO SOBRE A TELA PRETA:
O ALQUIMISTA FOI PUBLICADO PELA PRIMEIRA VEZ EM 1988.
EM 25 ANOS DE CARREIRA, PAULO COELHO PUBLICOU 26 OBRAS E
VENDEU MAIS DE 160 MILHÕES DE LIVROS, TRADUZIDOS EM 80
LÍNGUAS.
SEIXAS (V.O.)
que a canção está
fé em Deus, tenha fé
outra vez--
INT. SALA, APARTAMENTO DE PAULO E CHRIS - DIA
(V.O.) (CONT'D)
a vitória
batalhas que
outra vez.
É O ÚNICO AUTOR VIVO MAIS TRADUZIDO QUE SHAKESPEARE.
158
PAULO E CHRIS ESTÃO CASADOS HÁ MAIS DE 30 ANOS E SEGUEM
CAMINHANDO JUNTOS.
A MÚSICA “NÃO PARE NA PISTA” cobre a sequência de CRÉDITOS
FINAIS.
FIM
127
M
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Nequam, qui omnia sed quatiorem fuga.
ISBN 978-85-63201-09-6
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788563
201096
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A melhor história de Paulo Coelho – por Carolina Kotscho