Tudo por dinheiro
por Arnon Alberto Mascarenhas de Andrade*
Quando surgiu a TV no Brasil, o rádio era um veículo vigoroso e os programas
de auditório aconteciam em todo o país. Cantores, humoristas e instrumentistas
populares enchiam os teatros ou os auditórios das emissoras. Não foi difícil à
TV assimilar os mitos do radio e consagrar o gênero. Não havia "vídeo tape" e
o programa de auditório se prestava ao improviso, às câmeras fixas ou com
pequenos movimentos aos cortes simples. O espetáculo não era a TV. A TV
apenas veiculava o espetáculo dos artistas consagrados pelas emissoras de
radio. A imagem era secundária, ate porque a sua qualidade técnica era
precária.
Na década de 60, os festivais, verdadeiros especiais do gênero, foram a
grande atração. Aí, ainda, o forte eram os cantores e compositores e,
principalmente, o público, que jovem e politizado, politizava os espetáculos com
faixas, cartazes, vaias e aplausos delirantes. Em 1968 Vandré lançava num
memorável festival, que já não cabia nas casas de espetáculo convencionais,
lançava no Maracananzinho superlotado, sua música "Pra não dizer que não
falei de flores". Nesse festival, ganhou Chico Buarque com uma música suave,
melódica e poeticamente impecável, mas não politizada e por isso recebeu
estrondosas vaias da platéia. A TV continuava apenas como veículo de um
conteúdo forte, e de uma participação extremamente ativa do público.
Isso não quer dizer que não havia programas conservadores. O programa de
Flavio Cavalcanti era conservador, reacionário mesmo, mas era o seu discurso:
a TV apenas veiculava suas posições e seus ataques de moralismo e civismo
comprometidos com o preconceito e o atraso.
Hoje, as platéias são comandadas docilmente por Silvio Santos ou Fausto
Silva, cantam música de publicidade sem cachês, vaiam ou aplaudem
conforme o comando. Eles são atraídos pelo clima, pelas possibilidades de
receber prêmios ou por convites dos produtores. Os artistas se apresentam e
um júri caricato dá aos participantes, uma nota que mais tem a ver com o perfil
de cada jurado do que com o desempenho do artista. Os eventos estão todos
planejados, os imprevistos são previstos e o espetáculo é o apresentador
(como elemento de expressão da TV) e, por trás dele a própria TV. O público
presente deixou de ser o dono do espetáculo e passou a ser um elemento de
expressão do programa que tem dois objetivos, mas o entretenimento não e
nenhum deles.
A ampliação do consumo e o repasse de um certo modelo de Sociedade são
os únicos compromissos da TV. Aí ela (a TV) utiliza toda a mitologia
desenvolvida em outros programas e mantém a unidade da programação.
Cantores, atores, apresentadores de jornais, atletas, crianças-prodígio, e os
próprios programas como conteúdo de competições, são usados com a
finalidade de captar e manter o público segundo os interesses do anunciante.
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Mas os quadros relançam a competição e o mito da vitória pelo mérito: o jogo e
a consagração do risco e do destino; a naturalização do social e a legitimação
de todos os preconceitos; a felicidade pelo consumo; a liberdade de
supermercado; a natureza corrupta do homem; a caridade como forma de
minorar as desigualdades; a sociedade capitalista sem classes; a ordem e o
progresso.
Esses mitos estão em todos os gêneros mas, é no programa de auditório
(tenham ou não auditório como nos programas infantis), que eles são
transformados em quadros fixos e mais uma vez rotinizados na forma e no
conteúdo. O apresentador está sempre cercado de jovens escolhidas pela
beleza, com trajes sumários, que enfeitam o ambiente e erotizam a cena em
graus definidos pelo enquadramento. Aí está contido um forte componente
machista dos programas de TV em que a mulher é vista como objeto de
decoração ou apelo sexual. A exploração da sensualidade fora de seu contexto
e associado ao consumo de qualquer coisa.
Vivemos numa sociedade em que o profissionalismo, a competência, a
inteligência se medem pela quantidade de dinheiro que as pessoas ganham.
Claro, se se acredita nos bons serviços do capitalismo, os ricos são melhores e
mais capazes. Eles são produtos dessa competição, eles arriscaram e
ganharam e a evidência de sua superioridade é o padrão de consumo a que
chegaram. Assim se cria a expectativa de que a felicidade esta contida num
"baú" cheio de mercadorias e que as pessoas fazem "tudo por dinheiro".
Com relação a isso e se referindo ao quadro que havia num programa de
auditório (programa Silvio Santos), Campanholi diz: "Rainha por um dia
(Cinderela) é o espetáculo da miséria material e espiritual da busca do paraíso
perdido ou jamais atingido (a sociedade da abundância) da boa sorte, do final
feliz e, portanto, da felicidade para apagar o azar, o acaso (responsáveis pela
situação social)"(1). Se a miséria é casual (e natural) como nascer feio ou
bonito, o acaso também será a cura para as desigualdades. A TV é apenas um
instrumento de destino (?).
Sabemos como o homem tem facilidade de substituir o real pelo seus signos e
se isso é em parte responsável pelo acúmulo do conhecimento e pela
civilização a que chegamos, é também um labirinto em que muitos se perdem
ou se tornam presas fáceis de discursos e manipulações. A publicidade
(formação de consumidores) tem a sua eficiência avaliada pela capacidade de
condicionar no consumidor a relação e posterior substituição de signos,
necessidades e produtos. Assim, Hollywood é o sucesso, valisére é a
sensualidade, "liberdade é uma calça jeans azul e desbotada", e é por todos
esses condicionamentos de consumo e status, que "o mundo trata melhor
quem se veste bem".
Os programas fazem, a seu modo, o mesmo que os programas de auditório
das tardes e noites de fim de semana, o jogo, o sexismo, a caridade das
campanhas - Mariane (uma das muitas animadoras que já passaram por
nossas telinhas) perguntava a uma criança se ela achasse um pote de ouro o
que faria, e a resposta veio imediata: distribuiria com as crianças abandonadas.
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Isso reflete bem a realidade brasileira veiculada pela TV - só a fantasia, a sorte
e a caridade podem resolver o problema das crianças brasileiras: da imensa
maioria das crianças que sempre estiveram fora dos programas da Xuxa, Mara,
Angélica, Mariane e Sergio Malandro.
Vale a pena aqui chamar atenção para o fato de que as crianças são parcelas
significativas do público do horário nobre (2), um horário que a rigor a dedicado
a adultos. Outro dado também que a preciso relatar é que quanto mais baixa a
situação socioeconômica da família (escolaridade e poder aquisitivo), maior
número de horas dedicadas pela criança à televisão. Temos assim um numero
enorme de crianças de famílias de baixa renda (a maioria da população),
assistindo, em maior numero de horas, aos programas ditos infantis (voltados
quase exclusivamente para o consumo) e aos programas para adultos. - Se já
a demais submeter quem pode comprar, ao bombardeio da propaganda e a
ideologia de que a felicidade esta no consumo, quanto mais submeter a esse
tratamento uma população cujas condições de vida estão abaixo dos limites da
pobreza. Não estaria aí uma das raízes da violência?
Diz Lins da Silva que em 1986, embora o SBT tivesse começado a despontar
como a vice-líder de audiência, não conseguia grandes patrocinadores para os
seus programas marcadamente populistas. O SBT superou a crise e o
programa de Silvio Santos foi transformado num aglomerado de propaganda da
qual participam todos, até os que não ganham cachês. Segundo o seu
apresentador, numa entrevista na TV, o programa é responsável por 25% do
faturamento da emissora. Observem que a propaganda ali vem nos intervalos,
vem nos prêmios, vem nos brindes distribuídos, nas brincadeiras do
apresentador, e em músicas entoadas pelos presentes, jurados e auditório.
Um outro gênero que tem uma relação estreita com os programas de auditório
e o humorístico. Vindos do rádio ou do teatro, os programas humorísticos
mantiveram a presença do público como um importante elemento de
expressão. Com o tempo, as possibilidades da edição na realização de
situações humorísticas foram se modificando o foram modificando o formato
desses programas, e mais tarde, os programas de Chico Anísio, do Tom, Praça
da Alegria e mais recentemente, Casseta e Planeta se tornaram gêneros
típicos da sofisticação técnica da TV. Mas, é difícil achar humor sutil ou
inteligente. Quase todos exploram os preconceitos, o sexo, os defeitos físicos.
Quadros em que os homossexuais são ridicularizados; em que mulheres feias
são maltratadas; em que os velhos são sempre chatos, surdos ou intolerantes,
são tão numerosos que às vezes nos perguntamos se é possível achar graça
dos programas de humor no Brasil. Na velha “escolinha do professor
Raimundo”, não fossem eles grandes artistas na criação de tipos, todos
mereceriam um zero.
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Referência bibliográfica:
CAMPANHOLI, J.B. - Production Televisuelle Educative - La Relance du
discours ideologique - Universite de Caen - France - 1982
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* Arnon Alberto Mascarenhas de Andrade é Pedagogo, (Universidade Federal
da Bahia – UFBA), Especialista em Produção de Televisão Educativa (INPE –
São José dos Campos/SP), Mestre em Tecnologia Educacional (INPE – São
José dos Campos/SP) e Doutor em Ciências da Educação (Université de Caen,
França). Atualmente é professor do Departamento de Educação – UFRN.
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