AMOR ENTRE CONSOANTES
Alan Victor Flor da Silva
Numa escola para segmentos consonantais e vocálicos, havia uma consoante
muito diferente das outras. Ela chamava-se Y. Não falava de assuntos de consoantes,
não agia como uma consoante, não se sentava como uma consoante, não tinha voz de
consoante, não gesticulava como uma consoante, não fazia nada como uma consoante
normal. Nem gostava de estar na companhia das outras consoantes, pois não se sentia
confortável. Sentia-se indesejada, excluída e solitária. Não tinha amigos, nem mesmo
vogais. Na infância, consoantes e vogais não se misturam muito, coisas da idade.
A pequena consoante sabia que era diferente e sentia-se incomodada. Não tinha
a aceitação dos amigos. Não se sentia pertencente ao grupo do qual fazia parte. Às vezes
tentava se convencer de que não era diferente, era igual às outras, mas não conseguia
mentir para si mesma, pois se sentia diferente, e não havia nada que pudesse fazer para
reverter essa situação. Pobre Y, pior do que se sentir diferente das outras é fingir para si
mesma que é igual a elas.
Além de sentir-se diferente das consoantes, Y ainda sofria com o fato de ser uma
letra de pouca utilidade. Poucas palavras precisam de sua ajuda para serem escritas. Nos
dicionários de língua portuguesa, a situação ainda era pior. Sua seção era uma das
menores, pois quase nenhuma palavra começa com seu nome. Se não fossem os
estrangeirismos, sua importância no alfabeto de língua portuguesa seria praticamente
inexistente.
No auge da adolescência, a pobre consoante já havia superado o fato de não ser
muito útil no mundo das letras, porém ainda não havia conseguido se entrosar com
outras consoantes, sempre tão desagradáveis, estúpidas e desinteressantes. No entanto,
começou a fazer amizades com as vogais, com quem tinha muitas coisas em comum,
como sensibilidade, delicadeza e educação. Não se sentia mais sozinha nem ligava mais
se era aceita ou não no grupo das consoantes. Sentia-se agora pertencente a um grupo,
acolhida por um grupo.
Tornou-se amiga de todas as vogais. A era a mais excêntrica, pois ela sentia-se
um máximo por ser a primeira letra do alfabeto. E era a mais estudiosa; talvez fosse
assim porque com seu nome se escrevem as palavras “escola” e “educação”. I era a mais
bonita e a mais magrinha; queria ser uma modelo internacional muito famosa. O, em
compensação, era a mais gordinha; tinha uma fome canina, pois comia de tudo a toda
hora. U era a mais esquentada e durona; quando as consoantes faziam graça de sua cara,
porque na palavra “urubu” ela se repete três vezes, não contava conversa, não havia
consoante que não levasse pancada suficiente para repetir a piada. Y amava demais suas
amigas.
A adolescência, como se sabe, é a fase dos romances, das paixões arrebatadoras
e dos flertes. A distância que havia antes entre vogais e consoantes não existia mais. As
consoantes já pediam para as vogais se juntarem a elas numa sílaba. A pequena
consoante já tinha várias amigas que já haviam se juntado numa sílaba com algumas
consoantes. A única que não estava silabando era U, pois nenhuma consoante tinha
coragem de aproximar-se de uma vogal tão intimidadora. Sentia-se feliz pela felicidade
das amigas que estavam silabando, mas sentia-se ao mesmo tempo desconfortável.
Alguma coisa a incomodava, mas não sabia dizer exatamente o que era.
Quando foi indagada por suas amigas se tinha vontade de pedir alguma vogal em
sílaba, desconsertou-se. Não sabia como nem o que responder. Nunca sentiu nada por
nenhuma vogal além de uma franca amizade. Sempre acariciou, beijou e abraçou suas
amigas vogais, mas nunca alimentou por elas nenhum sentimento que julgasse anormal,
como a paixão ou o amor. Para não deixar de responder a pergunta, dizia com um olhar
de desilusão que estava apaixonada por uma vogal que já estava silabando. Suas amigas,
por mais que soubessem que havia alguma coisa errada com a amiga consoante, não lhe
fizeram mais nenhuma pergunta sobre o assunto, pois perceberam que, depois das
inúmeras indagações insistentes com as quais a bombardearam, a atmosfera ficou tensa
e desconfortante.
Embora as perguntas não lhe fossem mais dirigidas, a pequena consoante voltou
a sentir-se estranha como na infância. Coitada! A pequena Y mal sabia que estava
acontecendo consigo mesma. Era uma consoante, mas gostava de ficar na companhia
das vogais. Estava na companhia das vogais, mas não sentia atração por nenhuma delas,
assim como as consoantes, sempre tão audaciosas e perspicazes na arte da sílaba. Por
um momento, teve um lampejo e achou que não pertencia ao alfabeto. Se não pertencia
ao alfabeto, a pequena consoante, então, apenas podia ser uma coisa, algo que a
assustou profundamente. Olhou-se no espelho e disse para si mesma, em voz alta, o que
estava passando pelos seus pensamentos:
– Eu sou um número.
Depois de algum pequeno intervalo tempo, olhou-se novamente no espelho e
começou a rir de si mesma. Como podia ter tido uma ideia tão estapafúrdia? Se outros
segmentos a vissem, certamente, pensariam que ela havia perdido totalmente o juízo. O
lapso de loucura, entretanto, serviu para alguma coisa, pois a consoante solitária pôde se
acalmar um pouco.
No outro dia na escola, a professora entrou em sala de aula acompanhada por
uma consoante que ninguém nunca havia visto anteriormente. Pela primeira vez, a
consoante que já chegou até a pensar que era um número sentiu alguma coisa diferente
que nunca havia sentido, uma sensação que nunca havia experimentado antes na vida,
algo que, embora lhe fosse novo, era muito bom de sentir.
Na hora do intervalo, não parava de olhar discretamente para a nova consoante.
Sua vontade era apresentar-se a ela, mas coragem lhe faltava. Passaram-se dias, mas não
conseguiu trocar nem uma palavra com a nova colega de turma. A única coisa
informação que tinha a respeito da consoante novata era que se chamava Z.
Na aula de educação física, as consoantes jogam futebol. Y não participava dos
jogos porque conseguiu um atestado médico que declarava que ela era inapta para
praticar qualquer tipo de esporte. Sua única participação nas aulas de educação física era
assistir aos jogos da arquibancada.
Quando as consoantes formavam os times de futebol, os jogadores de um lado
precisavam tirar a camisa para se diferenciarem dos jogadores do outro lado, seus
adversários. Assim, os times já estavam compostos: os sem camisa versus os com
camisa.
Talvez por vontade do irônico destino ou pelo fato de que a probabilidade de Z
fazer parte do time sem camisa era de 50% de chances, Y pôde prestar atenção no corpo
da nova consoante. Já havia visto outras consoantes sem camisa, mas era a primeira vez
que sentia uma curiosidade em relação ao corpo de outro segmento, principalmente
consonantal. Os olhos de Y não conseguiam nem queriam se desprender uma única vez
do corpo de Z. As aulas de educação física não foram nunca mais as mesmas depois da
chegada da nova consoante.
Dias se passaram e não houve nenhum contato entre Y e Z. Ou por ironia do
destino, ou porque na lista de frequência Z vinha logo depois de Y, as duas foram
obrigadas a fazer um trabalho de literatura juntas e precisavam preparar um seminário
sobre a obra Memórias póstumas de um segmento consonantal, de autoria de uma
consoante consagrada pela crítica e muito famosa na literatura alfabética. Quando as
duplas foram escolhidas pela professora, Z foi até Y para falar sobre o trabalho. Y, de
cujo impacto ainda não havia se recuperado, tentou conversar com Z naturalmente,
missão quase impossível.
As duas jovens consoantes saíram da sala de aula e caminharam juntas por um
bom tempo até perceberem que moravam próximas uma da outra. Quando percebeu o
fato, Z disse:
– Que legal! Somos quase vizinhas.
Para não ficar sem dizer nada, Y sorriu e disse:
– Sim! Somos quase vizinhas.
Antes de se despedirem, as duas decidiram que leriam a obra no final de semana
e, na segunda-feira, preparariam a apresentação para o dia seguinte. Como moravam na
mesma rua, Z sugeriu fazer o trabalho em sua casa após a escola. Y aceitou a proposta, e
depois as duas se despediram.
No final de semana, ao mesmo tempo em que lia o romance Memórias póstumas
de um segmento consonantal, se é que era possível, Y pensava em Z. Olhando-se no
espelho, talvez para que seu eu interior entrasse em contato e lhe desse algumas
respostas, procurava entender o que estava se passando consigo mesma, com suas
sensações, com seus sentimentos. Estava atrás de explicações, de repostas, de
esclarecimentos para suas dúvidas. Por mais que pensasse, apenas uma explicação
latejava em sua mente, cuja confissão, até mesmo para si própria, gerava-lhe medo,
aversão, pânico.
Sem aproximar-se de nenhuma conclusão definitiva, a segunda-feira chegou. Y
estava fisicamente presente nas aulas, mas seus pensamentos estavam distantes e
ausentes. A pequena consoante estava cansada, pois havia ficado até tarde da noite
acordada para terminar de ler o romance para o seminário, e não conseguia pensar em
muita coisa. Sua mente estava vazia. Como a expressão em seu rosto era de
preocupação, suas amigas lhe perguntaram por que estava triste. Para disfarçar, Y
forçou um sorriso que, obviamente, não as convenceu e disse que estava tudo bem.
Sentiu-se aliviada porque elas não insistiram. Não queria conversar com ninguém.
Quando a aula terminou, assim que o sinal soou, Y retirou-se da sala sem nem
dizer uma palavra a ninguém. Quando chegou a sua casa, tomou um banho demorado
para lavar a alma e depois se deitou em sua cama até pegar no sono profundo. Como
estava cansada a pequena consoante!
Depois de aproximadamente duas horas, Y acordou com o som da campainha.
Ainda atordoada, levantou-se e correu para saber quem era. Ao abrir a porta, deparou-se
com Z em pé em frente a sua casa. Não conseguiu deixar de prestar atenção em seu
sorriso e na sua beleza.
– Você estava dormindo? – perguntou Z sem desmanchar o sorriso.
– Sim, eu estava – respondeu Y timidamente.
– Y, você esqueceu que marcamos para fazer o trabalho em minha casa depois
da escola? Procurei por você no final da aula para marcarmos o horário, mas não a
encontrei. Esperei por você em casa, mas você não apareceu. Então, resolvi vir aqui
para ter alguma notícia sua.
– Z, desculpa. Eu não estava me sentindo muito bem.
– O que você tem? – perguntou Z preocupado.
– Nada – respondeu Y balançando a cabeça. Já estou bem melhor. Vamos
preparar nosso seminário na sua casa?
– Tudo bem, então. Vamos.
Quando chegaram, Z apresentou a Y toda sua casa. Como já haviam lido o
romance Memórias póstumas de um segmento consonantal, as duas não demoraram
muito tempo preparando o seminário. Pesquisaram algumas coisas na Internet,
preparam os slides com fotos do autor, imagens de seus livros e trechos do romance e
dividiram os tópicos para saber o que cada um falaria no dia da apresentação.
Depois da finalização do trabalho, Z convidou Y para fazer um lanche. Como Y
estava faminta, pois não havia almoçado, aceitou o convite sem pensar duas vezes. Z
preparou sanduíches de peito de peru, cortou algumas fatias de bolo de cenoura com
cobertura de chocolate, separou alguns pãezinhos de queijo num prato e fez um café
quentinho. O banquete estava servido. As duas sentaram-se à mesa para lanchar, uma ao
lado da outra. Y experimentou de tudo. Quando terminaram, Z não resistiu e tirou uma
brincadeira com sua amiga:
– Nossa! Você estava faminta! – disse Z rindo.
Y sentiu-se envergonhada. Tentou explicar-se, mas não teve tempo.
Subitamente, Z levantou-se do banco da cozinha e abraçou-a por trás. Começou a
acariciar seu pescoço com os dedos e depois passou beijá-lo suavemente quase sem
tocá-lo. Y apenas se entregava ao prazer. Depois de beijá-la no pescoço, Z virou-a para
sua frente, olhou-a fixamente nos olhos, pegou-a pela cintura com as mãos e deu-lhe um
beijo ardente e demorado.
Quando as duas terminaram o beijo, Y sentiu-se desconsertada, perdida, sem
fôlego. Não sabia nem o que dizer. Olhou por algum tempo para Z, que também a
olhava, mas não lhe dizia nenhuma palavra. Com o coração a palpitar, perdeu a visão.
Desmaiou nos braços de Z, que ainda a segurava pela cintura.
Assim que acordou, Y percebeu que estava deitada numa cama. Z estava ao seu
lado segurando uma de suas mãos.
– Nossa! Como você é bonita quando dorme! – disse Z sorrindo.
Quando sentiu que já podia levantar, Y sentou-se na cama e encostou-se a uma
parede. Sem olhar fixamente nos olhos de Z, perguntou-lhe:
– O que aconteceu, Z?
– Nós nos beijamos.
– E por que fizemos isso?
– Porque gostamos uma da outra.
– Somos consoantes, Z.
– E daí? Qual é o problema?
– Qual é problema? Nós não deveríamos sair por aí nos beijando. Nós devíamos
estar procurando vogais para formarmos uma sílaba.
– E o que sentimos? Não conta?
Como Y não lhe respondeu, Z continuou a falar.
– Y, não tenho todas as respostas, mas sei que não somos iguais às outras
consoantes. Somos diferentes! Não gostamos de silabar vogais. Sentimos vontade de
ficar com outras consoantes e não há uma explicação exata para esclarecer o que
sentimos. Simplesmente, somos assim.
– E o que fazemos agora, Z?
– Y, eu gosto muito de você. Acho que você é uma consoante muito bonita,
muito legal e muito inteligente. E eu sei que você também gosta de mim. Você não
apenas deixou que eu beijasse você como também você me beijou. Além disso, eu vejo
como você me olha quando estou jogando bola. Sei disso porque eu também fico
olhando para você discretamente. Como gostamos uma da outra, quero silabar você.
– Z, você se esqueceu das aulas de fonética e fonologia? Somos duas consoantes.
Sozinhas, não formamos nenhuma sílaba. Para haver uma sílaba, é necessário que haja
uma vogal.
– Realmente, você tem razão. Então, formaremos o encontro consonantal mais
bonito que a fonética, a fonologia e a gramática já viram. Quer juntar-se a mim num
encontro consonantal, Y?
– Até quando não fizermos mais parte do abecedário?
– Até quando não fizermos mais parte do abecedário. Posso beijá-la?
– Apenas se você deixar que eu beije você.
– Você não precisa nem me pedir isso.
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