A alteração da Lei Pelé: pouca evolução e muito retrocesso Não havia como não reconhecer a necessidade de uma significativa reforma na Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé), não obstante as singelas alterações de 2000 e 2003. Para aqueles que convivem diariamente com o esporte, mais precisamente o futebol, era inevitável admitir a carência de reforma na legislação atinente ao desporto, ainda que os pontos controversos existentes fossem mal interpretados ou até mesmo desconhecidos por muitos que os criticavam. Entretanto, uma reforma de tamanha importância não poderia ter sido elaborada com tanta disparidade e desequilíbrio. A pressa(ão)resultou em prejuízos até àqueles que se fazem de vítima. Esse texto visa esmiuçar alguns dos inúmeros pontos questionáveis da polêmica e inovadora Lei n. 12.395/2011 sancionada em 16 de março e que afeta principalmente a relação entre clubes, agentes e atletas. Inicialmente há que se destacar que dentro das significativas mudanças, há pontos positivos e que favorecem tanto os atletas quanto os clubes. A começar, a lei finalmente distinguiu o contrato de atleta ao de um trabalhador comum. Atleta profissional há tempos merecia um tratamento diferenciado e aquilo que a antiga redação tratava como contrato formal de trabalho a nova trata como contrato especial de trabalho desportivo. Acerca dos dispositivos legais em si o artigo 27‐C, IV, por exemplo, protege o atleta na medida em que se veda a existência de obrigações consideradas abusivas ou desproporcionais que eventualmente possam ser pactuadas entre agentes e atletas. Para aqueles que acreditam na inutilidade de tal dispositivo cabe a observação de que abusos nos contratos de agenciamento são mais comuns do que se possa imaginar. No corpo do artigo 28 (um dos artigos mais atingidos pela reforma) denota‐se outra mudança benéfica aos atletas, especificamente no inciso II e nos parágrafos 3º e 5º. Explico. Este era o artigo responsável pela existência da cláusula penal (multa) nos contratos de trabalho entre clubes e atletas. Os tribunais pátrios sofreram muito com este dispositivo, uma vez que nunca restou evidente o caráter bilateral desta multa, ou seja, questionava‐se rotineiramente se o pagamento desta era devido apenas do clube ao atleta ou também do atleta ao clube em casos de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral. Agora, de forma correta, a nova redação diferenciou as obrigações, tendo em vista que o valor devido pelo atleta ao clube passou a ser denominado cláusula indenizatória desportiva e o inverso de cláusula compensatória desportiva. Desta forma acaba a figura da cláusula penal que garantia aos clubes um valor pela cessão do atleta. Os clubes porém não ficarão expostos, pois a cláusula indenizatória desportiva terá basicamente a mesma finalidade. Referida mudança, todavia, não traz apenas benefícios, é também motivo de críticas severas. A redação da Lei Pelé, neste dispositivo, narrava a redução progressiva do valor da multa no contrato. Cada ano de contrato cumprido era um percentual subtraido do total da multa (10%, 20%, 40% e 80%). Ocorre que a redação dada pela nova lei expurgou do texto legal esta diminuição. Ora, isso quer dizer que o atleta que pactuar 5 anos, terá o mesmo valor – preço – em todos os anos de contrato. Na prática, o clube que quiser adquirir um atleta terá que desembolsar o mesmo valor restando 4 anos ou 1 ano para o término do vínculo, o que me parece um tanto quanto desproporcional. Adentrando em detalhes acerca da cláusula indenizatória, verifica‐se um aumento substancial no limite a ser fixado. O que antes era equivalente a 100 vezes o valor do salário anual do atleta, a nível nacional, a partir de agora terá como limitação 2.000 vezes o valor médio do salário contratual, ou seja, tornou‐se mais confuso e relativamente mais alto. Em contrapartida a cláusula indenizatória internacional permanece sem qualquer limitação. Enquanto isso, a chamada cláusula compensatória, devida pelos clubes aos atletas, serão livremente pactuadas com limitação máxima de 400 vezes o valor do salário mensal no ato da rescisão e mínima no total de salários mensais a que teria direito o atleta até o término do referido contrato. A fim de ser mais didático exemplificarei como ficará essa relação daqui por diante. Vale dizer que agora o contrato de trabalho entre clube e alteta terá dois valores de multa, um em que o atleta ou clube adquirente paga ao clube cedente e outra que o clube paga ao atleta. Neste último caso a multa será paga pelos clubes que de forma imotivada mandar embora seus atletas ou nos casos mais corriqueiros, inadimplir com o pagamento de 3 meses ou mais de salário (art.31), o que antes do advento desta lei gerava a aplicação do artigo 479 da CLT (pagamento da metade do valor que faltava até o término do contrato). Os explanação acima instiga para que as críticas passem a se tornar mais incisivas a respeito da nova lei. Vejamos. Os valores de ambas as multas, indenizatória e compensatória serão livremente pactuadas e guardam uma limitação. Pois bem, ocorre que o artigo 27‐C,VI veda a existência de contratos de agenciamento de atletas menores de 18 anos de idade. Cabe aqui inúmeras observações. Inicialmente, ao legislador faltou conhecimento da norma atinente ao agenciamento de atletas, qual seja, o regulamento sobre os agentes de jogadores da FIFA, entidade máxima do futebol e que autoriza aos seus credenciados a representação dos interesses dos atletas a partir dos 16 anos de idade, desde que este contrato seja registrado na federação nacional, no nosso caso a CBF. Portanto, soa contraditório, pois se a entidade máxima não vê problema na atuação de agentes junto a atletas menores de 18 anos, por que apenas no Brasil essa questão se tornou polêmica? Sendo assim, este dispositivo vai de encontro a norma da FIFA e os agentes licenciados continuarão exercendo suas atividades normalmente. Não obstante, como pode o legislador autorizar ao atleta de 16 e 17 anos firmar seu primeiro contrato como profissional, lhes garantindo inclusive a fixação do valor de uma multa e ao mesmo tempo proibir que o mesmo no ato da assinatura de um contrato de extrema importância não esteja assistido por um profissional capacitado e com conhecimento de mercado para discutir as cláusulas contratuais?! Qual critério o clube usará para convencer um pai a estipular o valor da cláusula indenizatória no limite máximo e a compensatória no limite mínimo? Isto nada mais é do que o cerceamento de um direito cabível ao atleta, imposto pelo legislador e sem objetivo algum, deixando o jovem desguarnecido. Quero crer que o legislador não tem conhecimento profundo acerca do cotidiano do futebol e desconhece o funcionamento da oferta e demanda que envolve este esporte. Tão pouco sabe das dificuldades que um pai e seu filho enfrentam ao sentarem em uma mesa com diretor de um clube para discutir termos e cláusulas de um contrato. Para mim esta é uma das mais graves aberrações jurídicas trazidas pela nova redação. E as falhas não param por ai, principalmente no artigo 27‐C. Não bastasse a infelicidade na inclusão do inciso VI, há que se destacar, negativamente, o inciso II. Este inciso encerra, por definitivo, em conjunto com o artigo 28, I, a figura do investidor no futebol brasileiro e afasta os famigerados direitos econômicos tão confundidos com direitos federativos. A título de esclarecimento cabe ressaltar que na Lei Pelé o valor pago aos clubes referentes a cláusula penal ou transferência de jogadores, poderia ser partilhado em diversas partes, o que acabava muitas vezes resultando no famoso “jogador pizza” fatiado entre inúmeros empresários e clubes. Pois bem, não há mais que se falar em direitos econômicos e percentuais de atleta divididos. Tornaram‐se nulos os contratos que “impliquem vinculação ou exigência de receita total ou parcial exlcusiva da entidade de prática desportiva, decorrente de transferência nacional ou internacional de atleta...” O assunto é delicado e certamente gera polêmica, muito embora acredite que esse seja um tiro que os clubes tenham dado em seus próprios pés. O investidor no cenário nacional passou a ser necessário e quase que fundamental. Inúmeros clubes recorrem a eles para poder montar times competitivos e de qualidade. O futebol está cada vez mais caro e as receitas dos clubes não suportam tanto investimento, haja vista que muitos deles sequer os salários em dia conseguem manter. Fica a pergunta, por que razão um investidor irá ajudar a formar um grande time se ele não poderá ter participação na futura venda? Terão os clubes essa autonomia e independência financeira para contratar? Soma‐se a isso a fragilidade das categorias de base, onde a lei além de impedir que os atletas sejam representados, ainda tirou o percentual dos empresários sobre as futuras negociações. Não se pode negar que há neste ramo diversos profissionais que maculam e denigrem a imagem dos demais, mas há também aqueles que ajudam os clubes e se tornaram verdadeiros parceiros e merecedores de seus percentuais. Aos mais desavisados um lembrete, os clubes sozinhos não têm condições de arcar com todos os gastos de garotos emergentes no futebol. A chuteira, o médico (os clubes não tem plano de saúde aos não profissionalizados), os remédios, a academia, o suplemento alimentar, sem contar com a divulgação do atleta país a fora, que muitos clubes carecem. Ou seja, caberá ao clube 100% da responsabilidade sobre os atletas para que façam por merecer os mesmos 100% pós venda. A lei não pode ser formulada pensando na exceção, e assim, lamentavelmente o foi. No Brasil 5% dos atletas de categorias de base conseguem chegar ao profissional de seus clubes, enquanto o restante passa por dificuldades e precisa de suporte material e financeiro para ingressar neste competitivo mundo do futebol. Fica fácil dizer que o empresário não pode ter 20% de um atleta que joga no infantil, juvenil, juniores e profissional de um clube sendo futuramente transferido para a europa, mas ninguém pensa no jogador que aos 17 anos, no juvenil, é mandado embora de seu clube e precisa de auxílio para não desanimar e retomar a caminhada em outra agremiação. Irão os clubes pagar toda despesa, viagem, alojamento e alimentação daqueles craques que eles querem ver avaliados? Ledo engano, pois é comum o clube requisitar a ajuda do empresário para custear toda essa estrutura enquanto o atleta é avaliado nas categorias de base. Esses percentuais deveriam ser encarados como divisão de responsabilidade sobre o sucesso do atleta, essa é deveria ser a proporção, mas essa idéia foi distorcida erroneamente e encarada como “aproveitamento” de empresários. Enfim, agora será um verdadeiro “se vira nos trinta” aos clubes que querem todo o bônus e terão que arcar com o ônus. Em tempo, vale citar que a escravidão na antiga Lei do Passe garantia aos atletas 15% do valor de suas vendas, enquanto a nova lei nem isso assegura. Ao realizar uma leitura minuciosa da lei, ao superar todas estas indecências jurídicas e acreditando não me deparar com outros absurdos do gênero fui surpreendido com mais um contraditório e equivocado parágrafo dentro do mesmo artigo 29. Não satisfeito em vedar o trabalho de representação e gerenciamento esportivo aos menores de 18 anos, o legislador ousou em mencionar que “a contratação do atleta em formação será feita diretamente pela entidade de prática desportiva formadora, sendo vedada a sua realização por meio de terceiros.”. Ora, o que quis com isso o legislador? Qual a finalidade deste parágrafo? Aqui dois erros, o primeiro em não especificar quem é o atleta em formação haja vista que para a FIFA é o atleta de 12 a 21 anos. Por uma leitura dinâmica da lei e ainda visualizando o artigo 29‐A, entende‐se que o atleta em formação é aquele dos 14 aos 19 anos. O segundo é autorizar que jogadores acima de 18 anos tenham representantes (agentes) e ao mesmo tempo enfatizar que a contratação destes atletas deverá ser feita somente através das entidades desportivas, sem a intermediação de terceiros. Equivoca‐se novamente e confunde a todos. Em suma, para o legislador, a partir dos 16 anos de idade o atleta pode ser profissionalizado, mas até os 18 anos ele não poderá ter um agente. Todavia, dos 18 aos 19, ainda que com agente, poderá ser negociado apenas pelos clubes e não por seus representantes. Por fim, insta salientar que o mesmo artigo 29‐A tenta inovar, corretamente, transportando do regulamento sobre transferência de jogadores da FIFA, o mecanismo de solidariedade, capaz de assegurar aos clubes formadores um percentual sobre cada venda dos atletas dentro do Brasil. O tema é complexo e extenso, impossível de ser rebatido em poucas páginas, razão pela qual abordei os temas que na ótica de um mero conhecedor e operador da matéria de imediato se tornam repugnantes e conflitantes com o cotidiano e outras normas vigentes nesta seara. Nunca é demais lembrar que a lei não pode ser feita pensando na minoria, ela visa proteger os menos favorecidos e que neste trinômio é sem sombra de dúvidas o atleta de futebol. Tentaram o progresso, mas no entanto o que se vê é um regresso. Na cronologia legal, Lei do Passe, Lei Zico e Lei Pelé, talvez esta nova redação se aproxime mais da primeira do que represente o avanço da última. Gianfranco Petruzziello Agente FIFA e Advogado 
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