ALIANÇAS, DISPUTAS E CONFLITOS: ENTRE A FAVELA E UMA ESCOLA DE ELITE OLIVEIRA, Amanda Prado de – FE - USP [email protected] Eixo Temático: Didática: Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: Fapesp Resumo A pesquisa tem como principal objetivo analisar as relações – alianças, disputas e conflitos – entre duas instâncias fundamentais do processo de socialização: a escola e a família. Tais relações são abordadas por meio de uma investigação sobre o projeto Escola da Comunidade do Colégio Visconde de Porto Seguro, que há 40 anos concede bolsas de estudo, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, a crianças e jovens moradores da favela de Paraisópolis, propiciando, assim, um encontro improvável: de um lado famílias de baixa renda, cujos pais têm pouca ou nenhuma escolarização e, de outro, uma tradicional escola paulistana reconhecida como uma “escola de elite”. Mais especificamente, interessa-nos, nesta pesquisa, analisar as trajetórias de jovens ex-alunos bolsistas, tendo em vista apreender quais são os efeitos sobre esses jovens da circulação cotidiana entre universos tão díspares, como o colégio Porto Seguro e a favela, e como as diferenças curriculares entre estes alunos e os alunos pagantes se configuram no dia-a-dia escolar e no futuro. Mais do que isso, analisa-se, aqui, como família e escola se relacionam em uma situação tão pouco comum. As perguntas norteadoras da pesquisa são: Qual a natureza dos conflitos e alianças entre essas duas instâncias socializadoras na formação das trajetórias de vida desses jovens? Bem como, na constituição dos seus projetos de futuro, sobretudo, no que tange à sua inserção sócioocupacional? Para tanto, nesta pesquisa, primeiramente, buscamos por meio de redes sociais já constituídas, famílias que participaram do projeto em questão para entrevistar pais e filhos, visando compreender como se dão as relações aqui expostas. As principais referências aqui utilizadas serão de Pierre Bourdieu e suas conceituações acerca do capital cultural e do habitus, Norbert Elias e os processos de socialização e Nadir Zago, que trata do avanço dos estudos em camadas populares. Palavras-chave: Socialização. Currículo. Escola. Relações intergeracionais. Introdução Esta pesquisa tem o intuito de analisar as relações entre duas instâncias fundamentais de socialização – família e escola – em uma situação pouco comum: famílias de baixa renda, com pais que possuem escolaridade muito reduzida, moradores da favela de Paraisópolis e do 5856 seu entorno, cujos filhos participam ou participaram de um projeto de escolarização regular (Projeto Escola da Comunidade) promovido por uma escola privada, reconhecida como uma das instituições de ensino responsáveis pela formação de grupos considerados de “elite” na cidade de São Paulo, o Colégio Visconde de Porto Seguro.1 A família representa um papel fundamental na vida escolar dos filhos, papel que se dá por meio de ações simbólicas ou materiais, desenroladas de maneiras muitas vezes sutis, e que não ocorrem necessariamente de forma intencional ou consciente (ZAGO, 2000, p.20). Estudos demonstram que as relações entre a família e a escola podem apresentar diferentes níveis de conflito e/ou cooperação, o que está relacionado diretamente ao menor ou maior nível de confluência de objetivos entre essas duas instituições (PRESTA & ALMEIDA, 2008). Neste sentido, as famílias de maior poder aquisitivo que, no Brasil, gozam do privilégio de escolher as escolas de seus filhos dentro de uma extensa oferta de instituições de ensino privadas, teriam maiores chances de constituir uma relação cooperativa com a escola (PEROSA, 2009). Por outro lado, as famílias de classes populares, cujos conhecimentos sobre o próprio funcionamento do sistema de ensino tende a ser bastante limitado, enfrentam maiores dificuldades na relação com as escolas de seus filhos; além disto, estas famílias vivem num contexto no qual a vida escolar é marcada, em geral, por um percurso acidentado, permeado por reprovações e/ou evasões. (ZAGO, 2000). O caso analisado nesta pesquisa, guarda a especificidade, como dito acima, de reunir famílias de classes populares e um projeto de escolarização formal concebido por uma escola privada, que seleciona seus bolsistas entre os moradores da favela de Paraisópolis. Neste sentido, as relações existentes entre as famílias de Paraisópolis que participam do Projeto Escola da Comunidade e o Colégio Visconde de Porto Seguro tem-se mostrado um campo fértil para uma pesquisa com os objetivos centrais de (i) compreender de maneira aprofundada as múltiplas dimensões das relações entre família e escola e (ii) analisar os efeitos desse processo específico de escolarização sobre as trajetórias dos jovens bolsistas do projeto em questão. A partir disto, é importante destacar algumas características da favela de Paraisópolis, que é a segunda maior da cidade de São Paulo (a primeira é Heliópolis), contando atualmente 1 A noção de “elite” é bastante controversa e será mais bem explorada ao longo da pesquisa. Provisoriamente, estamos associando a noção de elite, basicamente, a dois aspectos: alto poder aquisitivo e alto nível de escolarização, materializado em diplomas relativamente raros. 5857 com pouco mais de 80.000 habitantes. A região é formada pelos núcleos Paraisópolis, Jardim Colombo e Porto Seguro, e localiza-se geograficamente na zona sul da cidade, ao lado de bairros de classe média alta, como o Morumbi. A área onde hoje está situada a comunidade fazia parte da Fazenda do Morumbi, que foi dividida em 2.200 lotes pela União Mútua Companhia Construtora e Crédito Popular S.A., em 1921. A infraestrutura do loteamento não foi completamente implantada, e muitos moradores que adquiriram esses lotes nunca tomaram posse deles, deixando a área abandonada por muitos anos.2 A atual configuração dessa região é resultado de um processo de sucessivas ocupações que tiveram início ainda na década de 1950, mas que se intensificaram a partir do final dos anos de 1970 e início de 1980. De acordo com estudo de Almeida e D’Andrea (2004), Paraisópolis é uma favela considerada como “local de ascensão social relativa”, comparativamente a outras favelas da cidade. De acordo com esses autores, devido à localização próxima a bairros da elite paulistana, a oferta de empregos (serviços domésticos, prestação de serviços, como pedreiros, encanadores, eletricistas) é, em certa medida, muito maior e mais regular do que se pode encontrar na maioria das favelas de São Paulo, o que tenderia a minimizar a probabilidade dos jovens se envolverem com a criminalidade. Para além disso, Paraisópolis também tem se constituído como um núcleo potencial de ações sociais e culturais que visam o “bem-estar e desenvolvimento da comunidade”, colocadas em prática por uma rede de instituições religiosas e organizações não-governamentais, o que também parece ter efeito sobre as condições de vida da população desta favela. Entretanto, considera-se aqui que, apesar dessa aparente “vantagem”, a população de Paraisópolis apresenta demandas crescentes por trabalho formal, áreas de lazer e esporte, saúde pública, segurança e direito à escola. É preciso ainda considerar que a proximidade entre os moradores dessa favela e dos bairros de classe média alta explicita cotidianamente a concretude e gravidade da desigualdade social em nosso país, o que parece fomentar e aprofundar alguns conflitos, que já se materializaram em manifestações coletivas (interpretadas como atos de vandalismo pelos meios de comunicação) e confrontos com a polícia militar. Assim, poderíamos dizer que a favela de Paraisópolis, como qualquer outra, também é marcada pela vulnerabilidade social de sua população, que conta com recursos 2 Ver: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/paraisopolis/historia/index.php?p=4385 5858 econômicos e culturais limitados, e cujo cotidiano é permeado por diversos problemas sociais que a sua condição engendra. O Colégio Visconde de Porto Seguro é uma das instituições que atuam junto à comunidade de Paraisópolis. Trata-se de uma instituição de ensino tradicional da cidade de São Paulo, foi fundada em 1878, como Deutsche Schule, única escola alemã da cidade, e situou-se primeiramente no centro da capital. Atualmente conta com três unidades, sendo a principal delas localizada no bairro do Morumbi. O Porto Seguro é reconhecido como uma das maiores escolas voltadas para o atendimento da elite paulistana e compõe o grupo de colégios com as mensalidades mais caras da cidade. Entretanto, apesar dessa identidade de “instituição escolar de elite”, há cerca de 40 anos a Fundação Visconde de Porto Seguro, mantenedora do Colégio, criou o projeto Escola da Comunidade, que atende do ensino fundamental ao ensino médio crianças e adolescentes da favela de Paraisópolis, oferecendolhes bolsas de estudos. Atualmente o Colégio se divide em três unidades fundamentais: Morumbi (Unidade I), Valinhos (Unidade II) e Panamby (Unidade III). Cada uma delas conta com uma unidade de Educação Infantil, denominada “Portinho”, que formam as unidades IV, V e VI. A Escola da Comunidade situa-se no Morumbi (Unidade I), o que não significa que os alunos bolsistas estudem junto com os demais alunos. Segundo informações cedidas pela própria escola, existe um prédio para os alunos bolsistas da comunidade, e outro prédio para os alunos regulares – eles não interagem de forma direta diariamente, apenas em festividades, possíveis viagens ou eventos organizados pela escola. Além disso, o Porto Seguro possui três currículos: o primeiro é o currículo brasileiro, que abarca a grande maioria dos alunos; o segundo é o currículo alemão, que dispõe de uma quantidade reduzida de estudantes (todas as aulas são ministradas na língua alemã); e, finalmente, o terceiro, que é o currículo da Escola da Comunidade, que possui adaptações, como a substituição das aulas de alemão por aulas de informática, por exemplo. A questão a ser investigada neste ponto é de que maneira estes currículos são pensados e efetivados pela escola cotidianamente, e quais os resultados obtidos para cada “necessidade” diferenciada de cada grupo de alunos. A escola da comunidade conta atualmente com cerca de 850 alunos, abrindo 30 vagas anualmente para novos estudantes. Os materiais pedagógicos e de apoio são pagos pelo 5859 Colégio, e o quadro docente é o mesmo que o dos outros currículos, de acordo com informações cedidas pela administração da escola. É precisamente no encontro dessas duas “realidades” que nosso objeto de pesquisa é delineado: as relações entre uma escola de elite, que se propõe a educar gratuitamente crianças e jovens de uma favela – desenvolvendo para isso um currículo específico –, e as famílias de Paraisópolis, cujos recursos materiais e culturais são bastante limitados. Interessanos também apreender os efeitos da passagem por essa escola sobre os projetos de futuro constituídos pelos alunos bolsistas. A hipótese principal é que, diferentemente do que acontece com as famílias que podem pagar uma escola privada e, portanto, escolhem a instituição escolar dos seus filhos, de acordo com seus recursos financeiros e também pela afinidade com a proposta pedagógica da instituição (PEROSA, 2009), as famílias de Paraisópolis têm suas vidas “atravessadas” pelo projeto do Colégio Porto Seguro, que se apresenta e é percebido como uma importante oportunidade de acesso à “educação de qualidade”, que, na opinião das famílias de Paraisópolis, não poderia ser alcançada na escola pública. Dito de forma sumária, acreditamos que, neste contexto, a probabilidade de família e escola exacerbarem seus conflitos aumenta consideravelmente. Poderíamos desdobrar essas considerações em várias outras questões: diante da distribuição desigual tanto de bens materiais como simbólicos, tão marcante na sociedade brasileira, qual seria o papel assumido por essa escola, que parece querer dar conta do que a família não é “capaz” de oferecer aos seus filhos? E qual seria o papel da própria família diante de uma instituição escolar que se apresenta como algo tão distante da experiência de escolarização dos próprios pais? Quais seriam os efeitos dessas duas instâncias sobre a constituição de projetos de futuro desses jovens? Como esses jovens conseguem mediar as influências da escola e da família? Como concebem seu futuro em função de terem usufruído de uma escolarização diferente daquela tida como “comum” na sua comunidade, ou seja, a oferecida pela rede pública de ensino? Que tipos de expectativas quanto ao futuro são construídas e legitimadas pela participação nesse projeto – tanto por parte dos alunos, quanto das famílias e da escola? Poderíamos dizer, assim, que, as trajetórias estudadas nesta pesquisa possuem uma característica comum principal: terem sido cruzadas por uma “instituição salvadora”, percebida como uma “opção” já dada e ratificada de qualidade e como materialização de uma possibilidade de mobilidade social ascendente. 5860 Sendo assim, podemos dizer que essa pesquisa se insere em um debate mais amplo que gira em torno da atual crise do papel educativo tanto da escola quanto da família e, por outro lado, da “disputa” existente entre essas duas instituições no que tange à definição do papel de cada uma no processo de socialização de crianças e jovens (de todos os extratos sociais), bem como da possibilidade e/ou limite dessas duas instituições continuarem a protagonizar o processo de socialização das novas gerações. Acreditamos que o entendimento dos processos educativos desenvolvidos pela família e pela escola só é possível se esses forem concebidos como parte do processo de socialização como um todo, no qual precisamos considerar também a existência e importância de outras instâncias socializadoras, tais como a igreja, espaços associativos, vizinhança, grupos de pares, mídias etc. (SETTON, 2005) Na pesquisa, o processo de socialização é entendido como a aprendizagem e interiorização de códigos e normas da sociedade, processo este necessário para que um indivíduo possa vir a fazer parte desta, de fato. (BERGER & BERGER, 2006). Neste contexto, é bastante relevante a discussão suscitada por Norbert Elias (1994), na qual o processo de socialização não se limita à interação entre um “dentro” e um “fora” originalmente distintos, mas constitui uma função e um precipitado de relações, só podendo ser entendido – como a imagem do fio numa trama - a partir da totalidade da rede. Sendo assim, podemos considerar que a socialização é um processo fundamentalmente ativo, que se desdobra durante toda a vida dos indivíduos por meio de novas experiências, o que não ocorre exclusivamente através da escola e da família, mas estas são, sem dúvida, basilares neste processo. Esta pesquisa se debruça, sobretudo, sobre essas duas instâncias, analisando suas relações, sem, no entanto, desconsiderar a importância de outras instâncias de socialização. O problema geracional, a aquisição de capital cultural e a desigualdade social no Brasil Vivemos hoje num país permeado por desigualdades sociais que persistem no tempo, portanto, é de fundamental importância compreender os mecanismos que permitem a reprodução destas desigualdades. Este tema tem sido de grande tradição no âmbito dos estudos das Ciências Sociais e da Educação, e ainda suscita importantes investigações sociológicas por sua atualidade e suas múltiplas facetas (ZAGO, 2007). A contribuição desta pesquisa para essa discussão se situa na análise dos processos de distribuição de riquezas não 5861 somente materiais, mas também simbólicas, que permite ou não que parcelas da população consigam superar, de uma geração a outra, uma determinada condição social. E, neste sentido, a experiência da Escola da Comunidade pode ser tida como uma tentativa de superação do “déficit cultural” das crianças de Paraisópolis, tendo em vista potencializar suas chances de uma bem sucedida inserção na estrutura sócio-ocupacional. A posse de capital cultural, de acordo com Bourdieu, é determinante na constituição de uma trajetória escolar bem sucedida e, conseqüentemente, no destino dos indivíduos. Podemos entender como capital cultural um conjunto de elementos relacionados à cultura tida como legítima ou dominante. Ele pode existir sob três diferentes estados: o estado incorporado (tendo como principais elementos constitutivos os gostos, o domínio maior ou menor da língua culta e as informações sobre o mundo escolar), o estado objetivado (sob a forma de bens culturais, tais como esculturas, pinturas, livros etc.) e o estado institucionalizado (materializado por meio dos diplomas escolares, por exemplo). (BOURDIEU, 1998). Na obra de Bourdieu, a noção de capital cultural está ligada a uma problematização da dominação, pois o espaço social é considerado um espaço de lutas, o que ressalta a importância das estruturas simbólicas como exercício de legitimação de um grupo sobre os outros. Mais do que compreender o fracasso escolar de camadas populares, o autor procura compreender de que maneira este pior desempenho nas escolas serve à estrutura de dominação, que ele define como a hegemonia de um sistema simbólico sobre o(s) outro(s). (ALMEIDA, 2007). Aquele que possui capital cultural “beneficia-se de uma série de vantagens sociais” (NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2006, p. 35), principalmente no ambiente escolar e no mercado de trabalho. O conceito de capital cultural é uma ferramenta para se apreender a dimensão simbólica da luta entre os diferentes grupos sociais, para descrevê-la, para definir diferenciais de poder. Pensando na analogia com a noção marxista de capital, permite que seja contabilizado um outro tipo de patrimônio, simbólico, que, a partir daí, pode ser pensado como recurso possível de ser investido na obtenção de outros recursos.(ALMEIDA, 2007, p. 47) Interrogar o sistema de ensino é importante para precisar os elementos definidores da cultura que ele contribui para legitimar (ALMEIDA, 2007, p. 55). Desta maneira, investiga-se aqui como a Escola da Comunidade lida com esta questão. Há algum tipo de resgate e/ou 5862 valorização da trajetória e dos recursos culturais familiares? Ou a escola se empenha em constituir um distanciamento entre a cultura escolar e a cultura familiar? De que maneira estes adolescentes identificam estas diferenças e lidam com elas no seu dia-a-dia e nas suas relações com o colégio e o próprio bairro? Levando em conta as diferenças entre estas duas instâncias de socialização (família e escola), há estudantes para os quais a cultura escolar é a cultura de seu próprio grupo social (onde estão desde que nasceram) e há aqueles para os quais esta cultura é estrangeira ou quase (ALMEIDA, 2007); como espera-se que ambos apresentem igual domínio dos conteúdos, um deles, evidentemente, será mais exigido. O estudo da relação dos jovens sujeitos deste estudo com suas respectivas famílias é fundamental na tentativa de responder às questões suscitadas por essa pesquisa. O contexto familiar é parte fundamental do processo de formação do indivíduo, e compreender como se dão estas relações é essencial para chegar aos objetivos deste estudo. A diferença entre as trajetórias escolares e as histórias de vida entre pais e filhos pode provocar conflitos significativos no que tange ao desenvolvimento de uma identidade e de um projeto de vida (PRESTA & ALMEIDA, 2008). Observar a interpretação destas diferenças tanto da parte dos filhos quanto dos pais é muito importante. Para tanto, têm-se reconstituído (por meio de entrevistas) as trajetórias destas famílias, com vistas a compreender melhor os caminhos percorridos e as expectativas quanto ao futuro destes jovens em relação a si mesmos. As diferenças entre pais e filhos suscitam discussões no que tange à transmissão intergeracional de conhecimentos, valores e princípios entre os mesmos. Os filhos enxergam a herança simbólica recebida de seus pais como ainda válida, ou seria já ultrapassada, diante da quantidade de informação fornecida a estes no ambiente escolar e com a apropriação que fazem destas informações? Como pais e filhos encaram as diferenças e as conseqüências destas diferenças nos processos de formação e na trajetória a ser percorrida por eles? De acordo com Bourdieu, a perpetuação da posição social do pai pode significar diferenciar-se dele e ultrapassá-lo, processo que não é vivido sem conflito por parte tanto de pais, como de filhos (BOURDIEU, 2003). No caso de pais que viveram suas vidas em uma posição social dominada ou subalterna é possível que os filhos entendam suas próprias vitórias como fracassos, visto que essas negariam a trajetória do próprio pai. Esses pais, por sua vez, poderiam desenvolver um olhar ambíguo em relação à vitória de seus filhos: por um lado vivem o desejo de que o filho supere a situação na qual ele se sente preso, por outro lado, 5863 à medida que o filho o ultrapassa, se afasta dele mesmo, de sua história familiar e de seu grupo de origem (BOURDIEU, 1983). Esta discussão perpassa o conceito de geração, que considera duas noções fundamentais: a contemporaneidade e a igualdade de idade. A todo o momento, coexistem, no interior das sociedades, “contemporâneos” que pertencem a diferentes gerações, grupos que partilham o mesmo tempo vital, o mesmo “hoje”, mas que são capazes de entender esse tempo e seus acontecimentos com diferentes “tonalidades”, que são constituídas em função de sua idade. Entretanto, o pertencimento a uma faixa etária não é suficiente para estabelecer uma relação de geração: é necessário que exista também uma comunidade espacial e, mais do que isso, uma “comunidade de destino” (TOMIZAKI, 2006, p. 159). Não há dúvida de que o ritmo biológico está relacionado com o fenômeno geracional, mas o fato de as pessoas possuírem a mesma idade não é suficiente para a formação de uma geração. Um dos elementos importantes na formação de um grupo geracional é a similaridade das experiências vivenciadas pelos seus membros. Mannheim foi o sociólogo que deu maior contribuição teórica para o debate a respeito de geração como categoria sociológica. Para o autor, é preciso ter nascido na mesma comunidade de vida social e histórica para que seja possível a criação de um modo de comportamento, uma maneira de sentir e de pensar próprios a um grupo. Assim, só podemos falar em uma situação de geração na medida em que os indivíduos que entram simultaneamente na vida participem de acontecimentos e experiências capazes de criar laços entre eles (TOMIZAKI, 2010). A partir da abordagem geracional, a pesquisa procura compreender como se dá a relação entre pais e filhos, com o objetivo de apreender como esta influencia o processo de formação dos jovens moradores da favela de Paraisópolis que foram bolsistas do projeto Escola da Comunidade. Considera-se aqui que uma geração só existe em relação à outra(s), assim como o que podemos chamar de juventude. Existe consenso entre os pesquisadores contemporâneos no reconhecimento de que a juventude é uma categoria diversificada, heterogênea, que assume esta diversidade segundo condições sociais e históricas específicas, e, sendo assim, o termo juventude seria melhor empregado no plural, falando-se de juventudes e culturas juvenis. Catani e Gilioli (2008) comentam a existência de diversos critérios que podem ser utilizados para delimitar a juventude e que podem combinar-se uns com os outros: a faixa etária, a determinação de maturidade e imaturidade, critérios socioeconômicos e estado de espírito, 5864 estilo de vida ou setor da cultura (CATANI & GILIOLI, 2008, p. 13). Estes critérios se aplicam também aos jovens sujeitos deste estudo, moradores de uma mesma comunidade (a favela de Paraisópolis), que compartilham muitos deles. Bourdieu também problematiza a conceituação de juventude, classificando-a como uma construção social, passível constantemente de manipulação: “o fato de se falar dos jovens como uma unidade social, como um grupo dotado de interesses comuns e de se referirem a estes interesses a uma faixa de idades constitui, já de si, uma evidente manipulação” (BOURDIEU, 1983, p. 145). De acordo com o autor, a existência de um grupo denominado juventude depende do olhar do pesquisador, e não tanto da realidade objetiva, já que existe uma ampla variedade de características dos grupos juvenis que são comprometidas ao serem classificadas dentro de um mesmo conceito. O conceito de juventude que também permeia esta pesquisa não descarta as noções biológicas de fase de vida, e tem sempre em conta que a delimitação de idade é uma construção social, atentando especialmente para a idéia de juventude em toda a pluralidade que o termo abarca, e à existência de culturas juvenis, diversificadas entre si, de acordo com a posição socioeconômica e com o capital cultural adquirido de acordo com as condições materiais e simbólicas do meio em que se está inserido (CATANI & GILIOLI, 2008). Analisa-se, aqui, a categoria de forma a perceber algumas maneiras em que a condição de ser jovem atualmente pode ser vivida, adquirindo sentidos em si mesma e não apenas como preparação para a vida adulta (ABRAMO, 2005, p. 44). Além desta perspectiva, procura-se compreender com rigor científico os modos de interação da juventude com o aparato escolar a sua disposição, e como esta sociabilidade desenvolvida através da escola permeia as relações familiares, sociais e de trabalho. Considerações Finais Através de entrevistas realizadas com ex-alunos já foi possível traçar direcionamentos para a conclusão da pesquisa. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os jovens, onde foi possível colher informações relevantes para o entendimento do funcionamento da Escola da Comunidade e da imagem e noção de pertencimento que eles possuem com relação ao colégio. Muitos deles relatam dificuldades sofridas durante suas trajetórias escolares e um envolvimento pleno das famílias neste processo educacional. Confirma-se aqui a hipótese de que as relações entre escola e família são intensas, não necessariamente conflituosas em 5865 essência, pois o objetivo máximo destes pais é o sucesso escolar dos filhos diante de uma “oportunidade sem igual”, de acordo com a fala dos próprios ex-alunos. A pesquisa encontrase na metade de seu percurso, portanto estas questões ainda serão melhor exploradas no futuro, além das relações intergeracionais entre pais e filhos e suas características na convivência familiar e nas concepções de sucesso destes jovens no que tange às suas posições sócio-ocupacionais. REFERÊNCIAS ABRAMO, H. Retratos da Juventude Brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/Fundação Perseu Abramo, 2005. ALMEIDA, A. M. F. A noção de capital cultural é útil para se pensar o Brasil? In: PAIXÃO, L.P. ; ZAGO, N. (Org.). Sociologia da educação: pesquisa e realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ALMEIDA, R. e D’ANDREA, T. 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