O impacto do MELD para o carcinoma hepatocelular na
realidade do Brasil
M aurício F. S ilva 1
Introdução
O carcinoma hepatocelular (CHC) é um importante problema
de saúde pública, causando mais de 1 milhão de óbitos
anualmente ao redor do mundo1. Está associado à cirrose
hepática em até 95% dos casos, sendo este o seu principal
fator de risco, fundamentalmente quando secundária à
infecção crônica pelos vírus das hepatites B e C, ao uso
abusivo de álcool e à hemocromatose hereditária2.
Antes da década de 90, o transplante ortotópico de fígado
(TOF) em pacientes com CHC apresentava resultados
insatisfatórios devido à elevada probabilidade de recidiva
tumoral, bem como à modesta sobrevida em longo prazo3,4.
Diante desse contexto, esforços foram estabelecidos no
intuito de identificar o subgrupo de pacientes que, a despeito
de apresentar essa neoplasia, a sobrevida seria similar àquela
encontrada em pacientes submetidos ao TOF devido a outras
indicações. Em 1996, Mazzaferro et al. demonstraram que tal
grupo de pacientes seria aquele com nódulos únicos com
até 5 cm ou com até 3 nódulos de até 3 cm no seu maior
diâmetro, sem evidência de invasão vascular ou metástases
à distância5. Estas características ficaram conhecidas como
Critérios de Milão e foram posteriormente endossadas pelos
guidelines da American Association for Study of the Liver
Diseases e European Association for the Study of the Liver6,7.
Atualmente, o TOF é uma alternativa terapêutica bem definida
para pacientes cirróticos que apresentam CHC.
Critérios para alocação
O desequilíbrio entre o número de pacientes que necessitam
TOF e aqueles que efetivamente são submetidos a esse
procedimento representa um importante desafio. Consequentemente, a necessidade de um critério objetivo no sentido de
priorizar pacientes para TOF se faz oportuna. Nesse contexto,
o Escore Moldel for End-Stage Liver Disease (MELD) merece
considerações adicionais. Inicialmente descrito como um
instrumento capaz de predizer a mortalidade em pacientes
com hemorragia digestiva contemplados para o tratamento
com Transjugular Intrahepatic Portosystemic Shunt8,o MELD
posteriormente demonstrou ser eficaz também em predizer
a mortalidade em três meses entre pacientes cirróticos de
acordo com o grau de disfunção hepatocelular9. Através
de uma fórmula matemática complexa que contempla os
valores séricos de bilirrubina total, índice de normatização
internacional e creatinina, os pacientes recebem pontuação
que se relaciona de modo diretamente proporcional com o
grau de disfunção hepática e, consequentemente, menor
sobrevida a curto prazo. Desse modo, a partir de fevereiro de
2002, os pacientes com MELD mais elevados passaram a ser
priorizados para realizar TOF nos Estados Unidos da América,
seguindo legislação estabelecida pela United Network for
Organ Sharing (UNOS). Entretanto, os pacientes com CHC
apresentam um risco de serem excluídos de lista de espera
(LE) para o TOF não apenas por óbito relacionado a graus
avançados de disfunção hepática.
Tais doentes possuem um risco de progressão tumoral que
ultrapassa os critérios estabelecidos para o procedimento.
Com objetivo de tornar equiparável a probabilidade de um
paciente com CHC ser submetido ao TOF em relação a um
paciente sem essa neoplasia, foi estipulado que pacientes
com CHC com nódulo único de até 2 cm (T1) receberiam
24 pontos, e pacientes com nódulo único entre 2 cm e 5 cm
ou com até 3 nódulos, sendo o maior medindo até 3 cm (T2)
receberiam 29 pontos10. Esse cálculo se baseava em uma
estimativa de exclusão de LE de 15% e 30% em três meses,
respectivamente. No ano de 2004, Sharma et al. publicaram
os efeitos dessa modificação nos critérios de alocação de
órgãos através de dados da UNOS11. Foi demonstrado que
os pacientes com CHC apresentavam uma probabilidade de
serem excluídos de LE nos primeiros cinco meses de 16,5%
na era pré-MELD, contrastado com uma probabilidade de
8,5% após a implementação do escore MELD (p < 0,001).
Adicionalmente, o tempo médio em LE em pacientes com CHC
reduziu de 27 meses para sete meses após o escore MELD
ser implementado (p < 0,001). A partir dessa análise inicial,
ficou claro que os pacientes com CHC estavam recebendo
uma pontuação extra que os privilegiava no sentido de ser
efetivamente transplantados em relação aos pacientes que
não apresentavam essa neoplasia. Diante dessa constatação,
uma série de três modificações na pontuação extra para
1. Equipe de Transplante Hepático e Cirurgia Hepatobiliopancreática da Santa Casa de Porto Alegre
GED gastroenterol. endosc.dig. 2011: 30(Supl.3):10-72
61
O
pacientes com CHC foi realizada, sendo que, desde 2005,
pacientes com tumores T1 não recebem pontuação adicional
e tumores T2 recebem 22 pontos no momento da inclusão
em LE, e um acréscimo trimestral de uma pontuação que
confira probabilidade de exclusão de LE de 10%. Mesmo
considerando esta diminuição na pontuação MELD nos
casos de CHC, há evidências de que os pacientes sem essa
neoplasia permanecem em desvantagem no que se refere
à probabilidade de serem transplantados12. Freeman et al.,
demonstraram em 2008 que, uma vez incluídos em LE para o
TOF, os pacientes com CHC apresentaram uma probabilidade
de 53% de serem submetidos ao procedimento nos primeiros
três meses. Esse dado foi comparável apenas ao grupo de
pacientes sem CHC que apresentavam MELD maior que
30 no mesmo período (48%). Os casos com MELD entre
10 e 20 no momento de inclusão em LE apresentaram uma
probabilidade de receberem TOF de 35% no mesmo período
e, finalmente, 6% entre os pacientes sem CHC e com MELD
menor que 10.
62
Adicionalmente, a probabilidade de exclusão de LE no mesmo
período foi menor nos casos com CHC (5%), em relação
aos casos sem CHC, mesmo quando comparada ao grupo
de pacientes com MELD similar (13%). Em consequência
desses achados, há evidências de que, mesmo no sistema
atual de priorização, os casos de CHC permanecem sendo
privilegiados, e é plausível que novos ajustes para esse
desequilíbrio venham a ser instituídos em futuro breve.
Com o intuito de ilustrar as incertezas relacionadas ao
tema, a Figura 1 ilustra as recomendações de conceituados
centros transplantadores e instituições norteadoras. Pode ser
observada a ampla variação no sistema de pontual extra ao
MELD nos diversos centros. Tal achado fortalece a falta de
subsídio consistente sobre o assunto.
Critérios para alocação no Brasil
Antes do ano de 2006, o sistema para alocação de fígado
cadavérico no Brasil se baseava fundamentalmente no critério
cronológico. Entretanto, devido às inúmeras evidências que
este critério para alocação de órgãos apresentava diversas
limitações, a Portaria número 1.160 do Ministério da Saúde,
publicada no Diário Oficial da União no dia 29 de Maio de
2006, alterou tal sistema de priorização.
Os pacientes passaram a ser alocados para TOF obedecendo
ao escore MELD e este representa o sistema vigente. Além
disso, os pacientes portadores de CHC dentro dos CM
recebiam 20 pontos no momento de inclusão em LE, e,
impacto do
MELD
para o carcinoma hepatocelular na realidade do
B rasil
após três e seis meses, 24 e 29 pontos, respectivamente.
Desde a sua implementação, não foi encontrado em revisão
feita no Pubmed, bem como através de pesquisa manual
de tradicionais periódicos brasileiros, estudo que avaliou
especificamente o impacto do referido sistema de pontuação
extra para pacientes portadores de CHC em relação àqueles
sem essa neoplasia. Após averiguação junto ao Sistema
Estadual de Transplantes do Estado de São Paulo, houve
a possibilidade de se realizar uma análise parcial com este
objetivo específico.
Figura 1
Hospital Paul-Brousse
T1: zero; T2: tornar transplante
factível em 6 meses
Hospital Clínic y Provincial
1 nódulo ≥ 3cm; 2-3 nódulos ou
AFP > 200: 20 pontos + 10%
risco de óbito a cada 3 meses 3/3
meses
Royal Free Hospital
T1: zero; T2: UKELD, mínimo 49
pontos
Toronto General Hospital
Proposta da UNOS
Província de Quebec
T1: zero; T2: variação complexa
entre 16 e 25 pontos
T1: zero; T2: 18 pontos + 1 ponto a
cada 3 meses
UNOS 2005
T1: zero; T2: 22 + 10% risco de
óbito a cada 3 meses
AASLD guideline 2010
Sem recomendação específica
EASL guideline 2001
Sem recomendação específica
TSANZ guideline 2010
T1: zero; T2: 22 pontos + 2 pontos
a cada 3 meses
Hospital La Fe
T1: zero; T2: 16 pontos + 1 ponto
a cada mês
Hospital Vall d`Hebron
T1: zero; T2: 18 pontos + 1 ponto a
cada 3 meses
Recomendações para sistema de pontuação extra no escore MELD
para pacientes com CHC em diferentes instituições. Abreviações:
AFP, alfa fetoproteína; UNOS, United Network for Organ Sharing;
AASLD, American Association for the Study of the Liver Diseases;
EASL, European association for the Study of the Liver.
Resultados Parciais
Desde a introdução do sistema MELD no Brasil (maio de
2006) até agosto de 2010, 5254 pacientes foram listados para
TOF. Após a exclusão de casos com idade inferior a 18 anos ou
superior a 70 anos (n=791), insuficiência hepática fulminante
(n=67), outras situações de pontuação extra (n=65), dados
incompletos (n=94), re-TOF (n=29), etiologia da doença
GED gastroenterol. endosc.dig. 2011: 30(Supl.3):10-72
M. F. S ilva
O objetivo deste levantamento foi identificar o impacto
do sistema atual de priorização para TOF no Brasil. Mais
especificamente, ambicionou-se: (1) comparar probabilidade
de casos com e sem CHC serem efetivamente submetidos
à TOF; (2) comparar a probabilidade de os casos com e
sem CHC serem excluídos de LE; e (3) comparar as curvas
de sobrevida dos casos com e sem CHC de acordo com a
análise de intenção de tratamento.
Entre os 1000 pacientes analisados, 143 apresentavam CHC.
Após um seguimento de três anos, a probabilidade de os
pacientes com CHC serem submetido à TOF era maior do que
os casos sem CHC (73% versus 22%, p < 0,001 – Figura 2).
após um seguimento de cinco anos, a sobrevida de acordo
com a análise de intenção de tratamento identificou-se que
os pacientes com CHC apresentaram sobrevida similar aos
casos sem CHC (58% versus 42%, p = 0,827 – figura 4).
Figura 3
0,6
CHC
Probabilidade de Exclusão de Lista de Espera
hepática não definida (n=443), CHC expandindo o CM
(n=30), transplante com doador vivo (n=68), transferência
para outro estado (n=27), desistência por parte do paciente
(n=11) e CHC fibrolamelar (n=1), 3628 pacientes foram
selecionados para análise. Destes, avaliaram-se os primeiros
1000 casos incluídos em LE.
p = 0,019
0,5
0,4
sem CHC
0,3
0,2
63
0,0
Figura 2
0
6
12
18
24
30
36
Meses
Probabilidade de ser transplantado
1,0
p < 0,001
0,8
Probabilidade de um paciente após ser incluído em lista de
espera para o transplante hepático ser excluído devido à
progressão tumoral ou óbito. Abreviações: CHC, carcinoma
hepatocelular. Dados fornecidos pelo Sistema Estadual de
Transplantes de São Paulo.
CHC
Probabilidade
Figura 4
0,6
Probabilidade de ser transplantado
1,0
p = 0,827
0,4
0,8
0,2
CHC
0,0
0
6
12
18
24
30
36
Meses
Probabilidade de um paciente após ser incluído em lista
de espera para o transplante hepático ser efetivamente
transplantado. Abreviações: CHC, carcinoma hepatocelular. Dados fornecidos pelo Sistema Estadual de Transplantes de São Paulo.
Sobrevida (%)
sem CHC
0,6
sem CHC
0,4
0,2
0,0
0
Em relação à probabilidade de os pacientes com CHC serem
excluídos de LE por óbito ou progressão tumoral no mesmo
período, observou-se que esta era maior do que os casos sem
CHC (58% versus 42%, p < 0,001 – Figura 3). Finalmente,
12
24
36
48
60
Meses
Sobrevida de acordo com a análise de Intenção de Tratamento.
Abreviações: CHC, carcinoma hepatocelular. Dados fornecidos
pelo Sistema Estadual de Transplantes de São Paulo.
GED gastroenterol. endosc.dig. 2011: 30(Supl.3):10-72
O
No que se refere ao tempo médio em LE, os pacientes
portadores de CHC aguardaram o procedimento durante
sete meses, contrastando com 27 meses entre os pacientes
sem CHC (p < 0,001).
Conclusões
64
Referências
2.
3.
4.
Independentemente da pontuação extra no MELD que
pacientes portadores de CHC devem receber, as seguintes
considerações podem ser tecidas:
• O sistema vigente para alocar pacientes com indicação
de transplante hepático cadavérico “privilegia” os casos
com o diagnóstico de carcinoma hepatocelular.
• Não há consenso (ou subsídio científico consistente)
relacionado à qual sistema de pontuação seria o ideal
para ser adotado.
• O sistema ideal seria aquele que contemplasse de modo
equivalente a probabilidade de exclusão durante lista de
espera, possibilidade de ser efetivamente transplantado,
e similar sobrevida após o transplante.
• Independentemente do sistema a ser adotado em
nosso país, é fundamental que exista, na prática, um
instrumento capaz de identificar os efeitos e resultados
desde o momento em que o paciente for inserido em
lista de espera.
1.
impacto do
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
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