Os traços multiculturais e as práticas cotidianas dos espaços urbanos
desenvolvidos no Vale do Paraíba fazem a diversidade deste livro que
apresenta uma visão abrangente da História, da Geografia, da Economia
e da Arquitetura das principais cidades e muniçipios dessa região. Promove
uma reflexão multidisciplinar sobre as expressões socioeconômicas e seus
principais personagens, as histórias de mulheres e diferenças de gênero na
evolução e na formação da comunidade do Vale do Paraíba.
Destaca ainda o rico acervo de seu patrimônio histórico e cultural, seu atual
estado deervação e as medidas cabíveis para a sua preservação.
Apoio
Neusa Fernandes
Olinio Gomes P. Coelho
Aqui estão a História e a Geografia em sua
união fecunda e renovada. A Arqueologia, a
Literatura, a Pintura e a Arquitetura se fazem
igualmente presentes na composição da
história e da paisagem do Vale. Os temas
clássicos do café e da escravidão no século
XIX não poderiam faltar. Os escravos, suas
culturas e sua resistência, além de seu suor e
sangue, descortinam uma história do Vale
onde ainda há muito por ser feito. Sem eles,
nada se sabe sobre a região. Quase tudo está
por fazer em relação à história das populações
indígenas. As mulheres, como tema e como
agentes da história do Vale, marcam sua
presença. As cidades imperiais e, entre elas,
Vassouras são revisitadas. A geografia, os
caminhos, as estradas compõem ainda mais o
amplo painel que o leitor tem a oportunidade
de apreciar. Painel que não se detém na
história, mas avança para interpelar temas do
presente e do futuro: o patrimônio, a
memória, a cultura popular, o meio ambiente,
a água, o turismo, as políticas administrativas,
o desenvolvimento regional e muito mais.
HISTÓRIA E GEOGRAFIA
DO VALE DO PARAÍBA
Por tudo isso, é extremamente feliz a
iniciativa desse Congresso em prestar
homenagem, no aniversário de dez anos de
sua morte, a Milton Santos, geógrafo que
pensou as mazelas e os desafios do
desenvolvimento do capitalismo global e de
sua inserção e impacto no território, na
região. Ele foi também um grande intelectual
no sentido pleno da palavra, de homem de
seu tempo, engajado com as questões de seu
país e da humanidade. Sua presença nas
páginas deste livro está não apenas nos
artigos que lhe são diretamente dedicados,
mas como uma espécie de inspiração
multidisciplinar que permeia o conjunto dos
trabalhos apresentados e ora publicados.
HISTÓRIA E GEOGRAFIA
DO VALE DO PARAÍBA
Neusa Fernandes
Olinio Gomes P. Coelho
Organizadores
Ao longo dos últimos dois séculos, o Vale do
Paraíba ocupou uma posição de destaque na
história brasileira. No século XIX, com o café
e a escravidão, esteve na base da formação e
da consolidação do Estado nacional. No
século XX, depois de uma certa decadência
das primeiras décadas, que se seguiu ao fim da
escravidão, ao esgotamento das terras e à
queda do regime monárquico, o Vale, com a
Usina de Aço de Volta Redonda, alavancou a
industrialização dos anos de 1950 em diante.
Essa industrialização transformou a região
em um imenso, complexo e múltiplo corredor
a ligar as grandes metrópoles de São Paulo e
Rio de Janeiro. Tudo conectado, tal como já
havia ocorrido no século XIX, com a
expansão do mercado mundial capitalista.
É longa e rica a tradição de estudos sobre a
história e a geografia do Vale. Ela passa por
Eloy de Andrade, Mattoso Maia Forte,
Ignácio Raposo, Leoni Iório, Alberto Lamego
e muitos outros, sem esquecermos o trabalho
seminal do brasilianista avant la lettre, Stanley
Stein. Essa tradição se mantém e se amplia nos
dias de hoje. A iniciativa do IHGV de realizar
o I Congresso Nacional de História e
Geografia do Vale do Paraíba e publicar
este livro traz um novo alento a esta tradição e
vem em boa hora!
Ricardo Salles
Realização
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE VASSOURAS
IHGV
A interseção entre História e Geografia
sempre rendeu bons frutos no campo do
conhecimento. É esta interseção que está na
raiz da proposta do Instituto Histórico e
Geográfico de Vassouras e de seu I
Congresso Nacional de História e
Geografia do Vale do Paraíba, realizado em
Vassouras, entre os dias 18 e 21 de maio de
2011, cujos anais o leitor tem agora em mãos.
A interseção entre Geografia e História
permite ampliar os horizontes de cada uma
dessas disciplinas do saber tomadas
isoladamente e, além disso, abre perspectivas
para estudos multidisciplinares que avancem
no conhecimento de um território. No caso
de Vassouras e do Vale do Paraíba,
especialmente do Vale fluminense, não se
trata de um território qualquer, ainda que
nenhum o seja, todos tendo seu valor
intrínseco, com sua geografia, sua história, seu
ecossistema, sua vida, suas vocações,
impasses, dilemas e potencialidades.
Vassouras e o Vale têm tudo isso e muito mais.
VASSOURAS
2013
Se o País se fez assim, em grande medida,
sobre o Vale, isso teve um preço elevado.
Como se pode imaginar, o impacto desta
história sobre a vida de seus homens e
mulheres e sobre seu ecossistema foi
gigantesco. Suas cidades reproduzem e
convivem com todos os problemas das
grandes metrópoles contemporâneas. O rio
Paraíba do Sul, que distribui a vida através do
estado do Rio de Janeiro, luta para sobreviver
diante do despejo de toda sorte de detritos,
de lixo urbano e industrial, e dos
assoreamentos que sofre. A Mata Atlântica
foi devastada. Espécies de animais
encontram-se ameaçadas. Todos esses
problemas constituem-se em um imenso e
inadiável desafio. O presente e o futuro do
desenvolvimento brasileiro no século XXI
têm no Vale do Paraíba uma de suas arenas
principais de luta.
História e Geografia do Vale do Paraíba
1
História e Geografia do Vale do Paraíba
Organização
Neusa Fernandes e Olinio Gomes P. Coelho
Diagramação
Gustavo Leoni
Capa
Joacir Esteves
Ilustração da capa
Mapa de parte das capitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo [ca. 176-].
Revisão
Sandra Pássaro
Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras
Presidente: Olinio Gomes P. Coelho
Vice-Presidente: Sebastião Deister
Primeiro Secretário: Marco Aurélio Martins Santos
Segundo Secretário: Jeronimo de Paula da Silva
Primeira Tesoureira: Roselene de Cássia Coelho Martins
Segunda Tesoureira: Magaly Oberlaender
Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado do Rio de Janeiro – CREA-RJ
Presidente: Agostinho Guerreiro
Prefeitura de Vassouras
Prefeito: Renan Vinicius Santos de Oliveira
Comissão Executiva do I Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba
Neusa Fernandes, Presidente | Elizabeth Soriano Pletsch | Jeronimo de Paula da Silva | Marco Aurélio
Martins Santos | Maria Clara Amado Martins | Roselene de Cássia Coelho Martins
Ficha Catalográfica
H673
História e Geografia do Vale do Paraíba / organizado por Neusa Fernandes, Olinio Gomes P. Coelho. – Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico de Vassouras, CREA-RJ, Prefeitura de Vassouras, 2013.
312 p.
Inclui bibliografia
ISBN: XXX-XX-XXX-XXX-X
Artigos apresentados no I Congresso de História e
Geografia do Paraíba, realizado no Instituto Histórico e
Geográfico de Vassouras, de 18 a 21 de maio de 2011.
1. Brasil – História – Congressos. 2. Brasil – Geografia –
História – Congresso. I. Fernandes, Neusa. II. Coelho, Olinio
Gomes P.
CDD 981.53
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Ana Cristina Monteiro Mesquita - CRB-7 4848
Os artigos publicados não refletem necessariamente a opinião ou a concordância dos organizadores, seno o conteúdo e
a veracidade dos mesmos de inteira e exclusiva responsabilidade de seus autores, inclusive quanto aos direitos autorais de
terceiros sobre textos e imagens.
2
História e Geografia do Vale do Paraíba
Sumário
Memória e Patrimônio ........................................................ 7
Renan Vinicius Santos de Oliveira
Prefeito de Vassouras
Abertura.............................................................................. 9
Olinio Gomes P. Coelho
Presidente do IHGV
Um Vale de Tesouros Arquitetônicos e Culturais................ 11
Agostinho Guerreiro
Presidente do CREA-RJ
Quando o Dever se Transforma em Prazer.......................... 13
Flora de Paoli Faria
Decana do Centro de Letras e Artes/UFRJ
Apresentação....................................................................... 17
Os Organizadores
Parte I – Conferências.......................................................... 19
Conferência Inaugural......................................................... 21
Singelos, poesias de um cego...há cem anos em Vassouras................................ 23
Cybelle de Ipanema
Conferências........................................................................ 35
Arqueologia do Vale do Paraíba.......................................................................... 37
Ondemar Ferreira Dias Júnior
Matrizes Africanas do Território Brasileiro......................................................... 45
Rafael Sânzio Araujo dos Anjos
O Vale do Café no Imaginário da Literatura Brasileira...................................... 59
Ivo Barbiéri
Parte II – Homenagem a Milton Santos................................ 69
Milton Santos, pensador do aço humano............................................................ 71
João Henrique dos Santos
Meu Mestre Milton Santos.................................................................................. 75
Eliane Alves da Silva
3
Parte III – Capítulos............................................................. 79
Capítulo I – No Rastro da História do Vale do Paraíba........ 79
Índios do Vale do Paraíba.................................................................................... 81
Jeronimo de Paula da Silva
Vassouras: os primórdios da evolução urbana..................................................... 87
Francisco Salvador Veríssimo
A História da Estrada de Mangaratiba, Atual RJ 139................................................. 89
Cláudia Braga Gaspar
Cidades Imperiais:
Os Processos das Mercês de São Luís do Paraitinga e Bananal......................... 99
Rogéria Moreira de Ipanema
A Escravidão Brasileira no século XIX:
As Estratégias de Resistência dos Escravos........................................................ 107
Marcelo Serra Martins
A Ferida incurável: zoonose na implantação e expansão da cultura cafeeira –
Vassouras, 1821-1850..................................................................................................... 115
Magno Fonseca Borges
Guilherme Pinheiro Fursawa
Pedro Eduardo de Mesquita Marinho
“Depois do escravo, a terra!”:
O Abolicionismo e a Elite Fluminense no final do Império.......................................... 123
Roselene de Cássia Coelho Martins
Capítulo 2 – O Vale do Paraíba:
Problemas e Tranformações................................................. 131
O Médio Paraíba, suas Transformações Econômicas e seus Impactos............. 133
Flavio Gomes de Almeida e Maurício Silva Santos
Os Atlas do IBGE................................................................................................ 137
Roberto Schmidt
Projeto de Mapeamento de Ecotrilhas do Parque Nacional de Itatiaia,
Município de Itatiaia / Município de Resende.................................................. 145
Eliane Alves da Silva
A Problemática da Escassez de Água Face ao COMPERJ................................. 153
Flávio Gomes de Almeida
4
História e Geografia do Vale do Paraíba
“Regiões de Governo”.................................................................................................. 161
Maurício Silva Santos
Capítulo 3 – A Riqueza Imperial do Vale............................. 171
Abolição e Decadência Fluminense............................................................................ 173
Alex Nicolaeff
O Rei do Café....................................................................................................... 179
Rosimeiri Fonseca de Mello
Capítulo 4 – Gênero e Grupos Sociais................................. 185
Uma Mulher Inatual............................................................................................ 187
Neusa Fernandes
Parentela, Riqueza e Poder; Três Gerações de Mulheres................................... 199
Miridan B. Britto Falci
Narcisa Amália:
Uma Trajetória Feminina do Sul Fluminense do Século XIX............................ 209
Gisele Oliveira Ayres Barbosa
A Busca de uma Mulher em Vassouras na Ficção do Alentejano
Diogo Ribero Flores................................................................................................. 215
Celeste Varella
Capítulo 5 – O Patrimônio Cultural no Vale do Paraíba...... 219
Vassouras: Patrimônio Nacional......................................................................... 221
Olinio Gomes P. Coelho
Museus-Casas: Relicários Arquitetônicos e Lugares de Memória..................... 229
Fabíola do Valle Zonno
Fazenda Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz: Origens,
Glória e Decadência na Serra do Tinguá............................................................ 239
Sebastião Deister
Fazenda Três Poços do Café à Universidade...................................................... 249
Roberto Guião de Souza Lima
Observações acerca da Pintura no Solar do Barão de Itambé, em Vassouras....... 253
Sérgio Guimarães Lima
5
O Significado da Talha na Catedral de Valença e na
Matriz de Paty do Alferes..................................................................................... 261
Magaly Oberlaender
Acervo de Imagens Digitais do Patrimônio Edificado Aplicado na Educação
para Preservação do Patrimônio Histórico......................................................... 269
Luiz Neves
A Documentação de Vassouras e do Vale do Paraíba
no Acervo da Presidência da Província – Século XIX......................................... 273
Paulo Knauss
Capítulo 6 – Educação, Cultura e Lazer............................... 281
Instrução Pública em Vassouras no Segundo Reinado....................................... 283
Gabriela Maria Costa da Silva
Brandão, o Popularíssimo e as Companhias Teatrais Mambembes no
Vale do Paraíba, no século XIX: Uma Viagem Pitoresca.................................... 289
Marco Martins Santos
A Crítica como Condição à Preservação da Arte Popular:
a Escola de Samba e o Boi-Bumbá........................................................................................299
Raphael David dos Santos Filho
O Correio da Lavoura: Múltiplos Olhares de uma Região:
Sociedade, Poder e Cultura. Nova Iguaçu (1917-2000)........................................ 307
Ivonete Cristina Campos Lima
6
História e Geografia do Vale do Paraíba
Memória e Patrimônio
Com grande honra presenciamos hoje um momento histórico para nossa região.
Vassouras, assim como todos os municípios que integram a região do Vale do Ciclo do
Café, é detentora de um patrimônio histórico, material e imaterial, que retrata um período
que muito contribuiu para o desenvolvimento econômico e cultural do Brasil.
Nosso Patrimônio Material, com os suntuosos palacetes, casarões e fazendas que pertenceram aos barões do café, além de outras construções imponentes de época, destacam a
riqueza daquele período e retratam a importância econômica da região para o Brasil, ao
passo que representam a arquitetura histórica da região. É fundamental a luta constante
pela preservação!
Já nosso Patrimônio Imaterial, intangível sim, mas fortemente presente e vivo em cada
militante da Cultura, em cada estudante da rede pública de ensino, em cada visitante, enfim,
em cada um de nós, expressa nossa maior riqueza e, quando valorizado, eleva à máxima
potência o ideal de preservação de nossa história. Da música à dança, da culinária às crenças
populares, ou em outras expressões, temos um rico e variado legado, digno de ser estudado
e cada vez mais enaltecido.
Logo, nossos patrimônios material e imaterial, juntos, mantêm viva nossa maior essência:
a Cultura!
Este Congresso é um presente para Vassouras. Sendo assim, em nome da população vassourense registro especial agradecimento ao Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras,
na pessoa de seu presidente Doutor Olinio Gomes Paschoal Coelho, e a todos que apoiaram a realização, na pessoa do presidente do CREA-RJ Agostinho Guerreiro.
A Prefeitura de Vassouras, cuja atribuição é zelar pela preservação da história de nosso
Município, se apresenta como parceira do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras,
e registra aqui o agradecimento especial a todos os militantes da Cultura, que lutam pela
preservação de nossa memória e contribuem sobremaneira com o nosso desenvolvimento.
Que Deus abençoe a todos! Renan Vinicius Santos de Oliveira
Prefeito de Vassouras
7
8
História e Geografia do Vale do Paraíba
Abertura
Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras
I Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba
Sessão Solene de Abertura
Vassouras, 18 de maio de 2011
Excelentíssimo senhor doutor Renan Vinicius Santos de Oliveira,
prefeito do Município de Vassouras
Excelentíssima senhora doutora Cybelle de Ipanema,
presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro
Excelentíssimo senhor doutor Arciley Pinheiro,
Representante do Presidente do CREA-RJ doutor Agostinho Guerreiro
Excelentíssima senhora Flora de Paoli Faria,
decana do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Excelentíssimos senhores secretários municipais de Vassouras
Senhoras e Senhores
Meus Confrades e Confreiras do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras
É com enorme prazer que abrimos este I Congresso de História e Geografia do Vale
do Paraíba, realizado em nossa administração, que contou com o inestimável apoio da
Prefeitura Municipal de Vassouras, do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura
e Agronomia do Rio de Janeiro – CREA-RJ e do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O Estado do Rio de Janeiro realizou, até agora, três congressos envolvendo sua História
e Geografia: o primeiro, em 1963, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico de
Petrópolis; o segundo, em 1967, organizado pela Universidade Federal Fluminense; e o terceiro, em 2007, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. E, em
2011, quando o Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras completa dez anos de sua
fundação, temos a oportunidade de realizar este I Congresso, de âmbito nacional, abrangendo a História e Geografia de todo o Vale do Rio Paraíba do Sul. Com isso, professores
e estudiosos destas disciplinas poderão ampliar seus conhecimentos, a partir desta reunião,
que envolve, além de historiadores e geógrafos, também arquitetos, engenheiros, sociólogos, antropólogos, economistas, ambientalistas e demais pesquisadores e interessados na
atualização dos estudos sobre essa importante região fluminense.
9
Ao empreender todos os esforços para realizar este congresso, aqui, nesta cidade, com o
apoio da prefeitura, do jornal Tribuna do Interior, dos nossos patrocinadores, e especialmente
com o envolvimento dos sócios do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, tínhamos
por objetivos:
•
•
•
•
•
Promover o intercâmbio entre os diversos institutos históricos e geográficos, centros de documentação, conselhos de cultura e de educação, instituições de ensino
superior e demais entidades culturais da região;
Comemorar os 10 anos de fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras;
Prestar homenagem ao geógrafo Milton Almeida dos Santos, um dos maiores nomes da Geografia no Brasil, pela passagem do 10º aniversário de seu falecimento;
Produzir subsídios aos governos do Estado do Rio de Janeiro e das prefeituras municipais de Vassouras e dos municípios do Vale do Paraíba, no sentido de enriquecimento do planejamento administrativo, econômico, estratégico e cultural para a
efetivação de ações públicas, frente a projetos sociais, econômicos, culturais e de
outras naturezas, que visem a melhoria da qualidade de vida dessas populações;
Contribuir para o desenvolvimento social, econômico e cultural dos municípios fluminenses envolvidos e incentivar a criação de outros institutos históricos e geográficos municipais.
Para isso, contamos com a significativa participação da Comissão Organizadora do Congresso, presidida pela incansável professora pós-doutora Neusa Fernandes, integrada pelos
consócios Elizabeth Soriano Pletsch, Jeronimo de Paula da Silva, Marco Aurélio Martins
Santos, Maria Clara Amado Martins e Roselene de Cássia Coelho Martins, todos envolvidos
pela chama do ideal que gerou e trouxe à luz este Congresso.
O Instituto agradece profundamente a todos os que colaboraram de alguma forma para a
realização deste evento.
A partir de amanhã, até sábado, mais de 40 mesas farão comunicações sobre aspectos diversos da História do Vale do Paraíba e desde já podemos antecipar o sucesso desta empreitada.
Especialmente, agradecemos ao Excelentíssimo Senhor prefeito de Vassouras, doutor Renan
Vinicius Santos de Oliveira, pelo apoio ao evento e pela produção de nosso terceiro Informativo, à Excelentíssima senhora decana do Centro de Letras e Artes da UFRJ, doutora Flora
de Paoli Faria e ao Excelentíssimo senhor diretor da Escola de Belas Artes, doutor Carlos
Gonçalves Terra, pela apresentação que vamos amanhã ter do Grupo Teatral Centro de Teatro dessa Escola, e ao doutor Agostinho Guerreiro, presidente do CREA-RJ pelo patrocínio
concedido a este congresso e especialmente pela apresentação do Coral desse Conselho que
congrega engenheiros, arquitetos, agrônomos, meteorologistas, geólogos e geógrafos.
A todos, o nosso sincero
Muito obrigado.
Olinio Gomes P. Coelho
Presidente do IHGV
10
História e Geografia do Vale do Paraíba
Um Vale de Tesouros Arquitetônicos e Culturais
As terras do Vale do Paraíba estão localizadas no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, compreendidas entre os primeiros trechos do Rio Paraíba do Sul e as encostas das Serras do Mar
e da Mantiqueira.
A história da região está intimamente ligada a ciclos econômicos de caráter agrário, principalmente ao do café, período iniciado no século XIX e que teve seu declínio detonado pela
crise na Bolsa de Nova York, em 1929.
O Ciclo do Café foi uma época de grande opulência, que modificou a estrutura social e deu
prestígio e poder político ao Vale do Paraíba. A riqueza produzida pelos grãos do café propiciou também a construção de um importante acervo histórico e cultural. Monumentos
arquitetônicos muito significativos, como fazendas, igrejas, sobrados, estações ferroviárias,
e pontes destacam-se pelas boas condições de conservação e preservação.
Além dos bens materiais, o Vale guarda, ainda, uma cultura rica em tradições, com usos e
costumes antigos das comunidades, constituída de conhecimentos e práticas resultantes de
fonte oral, de hábitos ou de recordações reveladoras da sabedoria popular. Assim, as festas
religiosas, o variado artesanato e a culinária regional também representam o relevante legado histórico do Vale do Paraíba.
Enfim, a modernização das cidades do Vale do Paraíba não representou a morte das tradições. Pelo contrário, a modernidade mistura-se ao passado, fomentando o turismo que
quer ver de perto a antiga arquitetura dos tempos do café e, também, desfrutar das belezas
naturais da região.
Sob esta perspectiva, o CREA-RJ não poderia deixar de apoiar a produção deste documento, elaborado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, tendo em vista a
relevância do seu conteúdo para o aprofundamento dos conhecimentos não só sobre o
município, mas para a construção da História de toda a Região. Assim, o Conselho reafirma
seu compromisso de apoiar ações que vão além da técnica, que valorizam o fazer humano,
suas causas e suas consequências.
Agostinho Guerreiro
Presidente do CREA-RJ
11
12
História e Geografia do Vale do Paraíba
Quando o Dever se Transforma em Prazer
Flora de Paoli Faria*
Em uma belíssima tarde/noite de maio de 2011, na qualidade de Decana do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro participei dos trabalhos de abertura
do I Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba.
O evento foi realizado no período de 18 a 21 de maio de 2011, na cidade de Vassouras,
coração fluminense desse vale fértil. Organizado sob a égide do IHGV- Instituto Histórico
e Geográfico de Vassouras, entidade considerada por muitos como uma das mais ativas do
país, principalmente pelo trabalho desenvolvido na recuperação e divulgação da importante
arquitetura das fazendas de café que marcaram a história da região.
O IHGV conta em seu quadro de associados com nomes de destaque da UFRJ. Na impossibilidade de citar todos, me atenho especificamente aos docentes que colaboraram
efetivamente na organização do Congresso. Nesse caso, reportamo-nos a Olinio Gomes
P. Coelho, Professor Titular de nossa Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, que embora
aposentado, continua sendo um dos motores principais de eventos e atividades correlacionadas com sua extensa área de conhecimento, que objetiva, principalmente, a preservação
de nossos bens culturais.
Recordo também a Professora Doutora Maria Clara Amado Martins, destacada docente da
FAU/UFRJ, responsável pela Coordenação das atividades de extensão do Centro de Letras
e Artes e do Professor Jerônimo de Paula da Silva, agora aposentado, e que durante mais
de trinta anos exerceu as mais distintas funções na nossa Faculdade de Arquitetura, responsáveis ainda pelo convite encaminhado a mim e à decana substituta do Centro de Letras e
Artes, a arquiteta Cristina Grafanassi Tranjan, que atua na Escola de Belas Artes.
Nesse momento, é oportuno lembrar que o Centro de Letras e Artes é constituído pelas Faculdades de Letras e Arquitetura e Urbanismo e pelas Escolas de Belas Artes e Música, perfazendo
uma importante área de conhecimento no seio da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dessa forma, a própria constituição de nosso Centro e a leitura e o conhecimento dos objetivos do evento confirmam sua abrangência para os pesquisadores das áreas envolvidas,
além de aguçar a minha curiosidade de estudiosa das Letras Italianas, por conhecer melhor
as histórias e os espaços da terra dos Barões do Café, que nesse ano de 2011, festejavam os
dez anos de fundação de seu Instituto Histórico e Geográfico, além do décimo aniversário
de falecimento do Geógrafo Milton de Almeida Santos.
É indispensável dizer do orgulho e emoção que nos acomete em momentos como esses,
quando vemos brilhar a prata da casa, transformando nosso dever de representar uma Instituição Pública de Ensino, no caso, a UFRJ em prazer de seguir e acompanhar os vários
trabalhos que recuperam a formação do povo e a ocupação do solo brasileiro, dando vida
a uma cidade encruzilhada por onde passaram e continuam a passar distintas estradas que
contribuem para a interiorização do saber e a preservação da cultura.
Decana do Centro de Letras e Artes da UFRJ. Professora Titular do Setor de Letras Italianas do Departamento de Letras
Neolatinas da UFJ.
*
13
Sem dúvida, histórica e geograficamente Vassouras simboliza de forma magistral os intrincados caminhos que conduzem à formação da multiforme identidade brasileira, nesse caso,
espelhada de forma clara nos diversos temas que constituem o objeto de estudos do evento,
que partindo do exame da aristocracia vassourense, passa pela escravidão e suas marcas
sociais, favorecendo assim o exame das etnias que constituem o Vale do Paraíba.
É esse olhar ampliado da história e do próprio espaço que transcende o físico até alcançar
o espaço único da memória que nos leva a identificar a cidade de Vassouras como uma
verdadeira encruzilhada de estradas, capaz de abrir até hoje novos caminhos, conforme nos
assegura a sua própria história.
E é exatamente através da memória que nos aproximamos desse Congresso de história e
geografia através da lembrança de colegas da UFRJ que deixaram seus nomes inscritos nos
caminhos do saber trilhados em Vassouras, me refiro ao saudoso colega Afonso Carlos
Marques dos Santos, Titular de História da UFRJ, que muitas vezes esteve nessa cidade
para dar cursos, e que nos ensina em seu livro “A Invenção do Brasil” que é necessário estar
atento para as delicadas relações de arquitetura urbana, da política e da história, para que essas relações não se transformem em barbárie, quando um interesse se sobrepõem ao outro
(como aconteceu, por exemplo, com a abertura do túnel “Dois Irmãos no Rio de Janeiro)
quando o governador carioca Chagas Freitas resolve rasgar ao meio o conjunto habitacional do Parque Proletário da Gávea, projetado por Afonso Eduardo Reidy, para proteger o
terreno ocupado pela PUC e pelo condomínio de luxo- Jardim Pernambuco, situação em
que o poder político, da primeira e o poder econômico, do segundo se sobrepõe ao valor
arquitetônico e histórico do prédio projetado por Reidy.
Na esteira dos docentes da UFRJ que contribuíram de forma efetiva para a revitalização
da vida acadêmica da cidade de Vassouras, me permito lembrar as colegas Telenia Hill e
Dalma Braune Portugal do Nascimento. Essas professoras foram companhia frequente
do cearense Severino Sombra de Albuquerque, em suas andanças pelos meandros acadêmicos do Rio de Janeiro, em busca de pessoal qualificado para atuar na hoje Universidade
Severino Sombra.
A presença em Vassouras dessas professoras e suas lições de Teoria Literária nos trazem à
mente o livro do escritor português Miguel Sousa Tavares Rio das Flores – hoje mais um
dos municípios fluminenses, que nos conta a saga da família Ribera Flores – num espaço
temporal que vai de 1915 até 1945, passando pelo Alentejo, pela Espanha e finalmente pelo
Brasil ao retratar exatamente o Vale do Paraíba.
Seguir pelas trilhas da literatura e da memória nos conduz obrigatoriamente à figura vanguardista de Eufrásia Teixeira Leite, seu romance com Joaquim Nabuco e os mistérios que
envolvem a vida dessa grande benemérita de Vassouras e de sua mágica Chácara da Hera.
É ainda nessa trilha que queremos seguir ao recordar o belíssimo artigo de Inácio de Loyola Brandão, intitulado “Tarde de tango entre montanhas”, publicado no Jornal Estado de
São Paulo de 27 de outubro de 2010, quando ele nos narra uma fantástica visita à Fazenda
Cachoeira Grande – de propriedade de Nubia Caffareli e que no passado serviu de cenário
para Eufrásia Teixeira Leite oferecer para a Princesa Isabel e seu marido Conde D’Eu, uma
14
História e Geografia do Vale do Paraíba
ceia, cujo requinte e iguarias detiveram os convivas à mesa por mais de cinco horas.
É nesse ambiente de luxo e refinamento que o escritor conhece a tia de Nubia, Magadalena
Manso Vieira, refinada dama da sociedade, que segundo informações obtidas por Loyola
junto a uma amiga comum, foi um dos grandes amores de Juscelino Kubitschek:
“A atmosfera da tarde que caía, a garoa (ou chuvisco), a luz esmaecida da sala, o retrato sobre a lareira, me levaram ao filme Rebeca, Mulher Inesquecível, de Hitchcock. A visita terminou, as imagens daquela tarde me acompanharam, quando voltei a
São Paulo liguei para Heleninha, sólida amizade que me resta do tempo de colégio.
Contei o episódio, ela ficou arrepiada. ‘Encontrou Dalena? Onde está? Que mundo
pequeno, que coisa bonita.’ Foi a minha vez de espantar. ‘Dalena?’ E Heleninha: ‘Um
dia, acompanhei papai e tio Hélio a uma festa e fui apresentada a JK. Conversava
com o presidente, quando ele olhou sobre meus ombros, abriu um sorriso, esqueceu
tudo, com quem falava, o que dizia, e correu para Magdalena que acabara de entrar:
‘Dalena, Dalena!’ Assim ouvi, assim ele a tratava. Aquele encontro nunca me saiu
da memória. Ela sempre foi mulher deslumbrante.’ E continua deslumbrante, disse
eu. Dalena, Magdalena, Madá me pareceu feliz, sem idade, embalada por memórias
aquecedoras. Vassouras. Eufrásia, Dalena, o retrato sobre a lareira, o cheiro do café
coado, do pão de queijo saído do forno, o perfume de Núbia, a garoa umedecendo
a atmosfera. Onde estou, em que ano, em que lugar? Os tangos ainda ecoam nas
montanhas que foram cobertas por cafeeiros.”
O clima de sonho e nostalgia que marcam a crônica de Loyola Brandão em certos momentos parece invadir toda a cidade, nos transportando para um tempo que existe apenas
na nossa imaginação, porém os testemunhos arquitetônicos, espalhados por toda a parte,
mostram-se tão vivos que fica impossível não se deixar levar por essa enxurrada de lembranças, que trazem consigo o desejado gosto do prazer.
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16
História e Geografia do Vale do Paraíba
Apresentação
O Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, com o apoio do Conselho Regional
de Arquitetura-RJ, apresenta este volume intitulado História e Geografia do Vale do
Paraíba, composto das comunicações apresentadas no 1º Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba, realizado de 18 a 21 de maio, no Parque Hotel
Santa Amália, em Vassouras.
Os objetivos do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras centram-se em pesquisar,
estudar e difundir a História e a Geografia do Município de Vassouras e do Vale do Paraíba Fluminense; defender e promover o patrimônio natural e cultural do Município e da
Região, além de buscar o domínio das informações relativas à região do Vale do Paraíba
Fluminense, através da geração e permanente atualização de um banco de dados.
Considerando as principais preocupações do IHGV e a obrigatoriedade de sua presença
nas discussões que envolvem questões étnicas, democracia, igualdade de direitos sociais e
civis e de oportunidades para os cidadãos, o acesso à terra, à educação, à saúde e à cultura,
resolveu o Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras promover o 1º Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba.
A presente publicação permite acesso aos diversos temas desenvolvidos e discutidos pelos
comunicadores que, nesse congresso, estiveram reunidos a fim de apontar soluções para os
múltiplos problemas que cercam o Vale do Paraíba.
A organização deste livro, em três partes, I, II e III, contendo seis capítulos, seguiu as temáticas apresentadas no 1º Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba.
A Parte I, denominada Conferências, englobou três: a conferência de abertura, intitulada
Singelos, poesias de um cego...há cem anos em Vassouras, pronunciada pela professora
doutora Cybelle de Ipanema, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de
Janeiro e secretária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; a conferência feita pelo
professor doutor Ondemar Ferreira Dias Júnior, denominada A Arqueologia no Vale do
Paraíba; e a conferência O Vale do Café no Imaginário da Literatura Brasileira, proferida
pelo professor doutor Ivo Barbiéri.
A Parte II, intitulada Homenagem a Milton Santos, abriu o 1º Congresso Nacional de
História e Geografia do Vale do Paraíba, lembrando os dez anos do desaparecimento do
geógrafo. Abordando sua carreira profissional como homem de ciência e professor, a Mesa
tratou da visão política e social de Milton Santos e discutiu a importância das suas ideias
para a construção e a compreensão da nação brasileira.
A Parte III é composta dos seguintes Capítulos:
No Rastro da História do Vale do Paraíba é o tema do primeiro capítulo que englobou o
reconhecimento da primitiva região, seus primeiros habitantes, o surgimento das principais
estradas e cidades, bem como seu processo civilizatório.
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O segundo capítulo preocupa-se com a Geografia do Vale do Paraíba, abordando os atlas
brasileiros, os mapeamentos e em especial o Rio Paraíba do Sul.
O café é o temário do terceiro capítulo que fez um panorama da história da cultura cafeeira
no Vale do Paraíba, refletindo sobre o auge e analisando as causas da decadência da plantation
que determinou a história de várias cidades da região.
O quarto capítulo apresenta histórias de mulheres e diferenças de gênero na evolução e na
formação da comunidade do Vale do Paraíba.
O capítulo quinto trata do patrimônio cultural, das políticas de preservação do acervo
dos bens tombados, ressaltando os monumentos das cidades de Vassouras, Paty do
Alferes e Miguel Pereira.
Uma análise comparativa dos instrumentos fundamentais para a preservação da documentação da história do Vale do Paraíba, em âmbitos federal estadual, municipal e regional é o
objetivo do sexto capítulo.
Para finalizar a Parte III, é o capítulo sexto dedicado à cultura, educação e lazer, contemplando o teatro, as instituições educacionais e as festas populares, no Brasil imperial e nas
principais cidades do Vale do Paraíba.
Os Organizadores
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Parte I – Conferências
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Conferência Inaugural
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Singelos, poesias de um cego...há cem anos em Vassouras
Cybelle de Ipanema*
Prepara-se, o Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, para em quatro dias
trazer aos estudiosos, realidades da cidade e de seu entorno, no âmbito de território
fluminense marcado pela presença do rio Paraíba do Sul e de uma pujante cultura do
segundo Reinado, o café.
Honra-nos apresentar a fala de Abertura, em nome do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, aliás sob cuja égide nasceu este Instituto, aos influxos do
I Colóquio dos Institutos Históricos Municipais do Estado do Rio de Janeiro, no
ano 2000, realizado na capital do Estado com a participação múltipla de entidades
de história e memória, por seus operadores e guardiãs. Honra que agradecemos ao
Instituto anfitrião, nas pessoas de seu presidente, dr. Olinio Gomes Coelho, e da dra.
Neusa Fernandes, mentora, sócia benemérita e ex-presidente, símbolos representativos da entidade que, com o presente Congresso de História e Geografia, alarga o
conhecimento da região.
É valiosíssima a documentação do Vale do Paraíba, sobretudo pelo papel desempenhado
na economia do Brasil Imperial e por ser o Vale, elo de ligação entre as duas, a partir de
certo tempo, maiores cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo.
O Vale fluminense comporta 23 municípios. Dos 92 do Estado, correspondem a 25% ou 4ª parte.
Recordemos algumas iniciativas visando ao seu estudo, de interesse local ou amplo, nacional.
Em 1978, o IV Simpósio de História do Vale do Paraíba, do Instituto de Estudos Valeparaibanos-IEV, realizado nesta cidade de Vassouras.
Posteriormente, o XI Simpósio, de nossa coordenação, em 1992, na cidade de Paraíba do
Sul, ligada muito diretamente a Tiradentes, pois no ano do bicentenário de sua execução.
Ainda do IEV, com centralização na Sociedade Ipanema de Educação e Cultura.
Depois de um largo interregno – não se efetivava desde 1967 –, planejamos, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, o III Congresso Fluminense de História e
Geografia, cuja coordenação solicitamos à professora Neusa Fernandes, com equipe, integrada pelo professor Olinio Gomes Coelho, membros do IHGRJ, ela, vice-presidente. Do
Congresso, resultou a edição do livro História e Geografia Fluminense, da organização de
ambos, com numerosos trabalhos sobre o Vale.
Felicitações, pois, ao atual I Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do Paraíba,
do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, na certeza de novas e ricas contribuições!
*
Livre docente e doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro – IHG-RJ,
primeira secretária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB e Sócia do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras.
23
A busca de um tema que definisse a Abertura a nós propiciada procuraria, naturalmente
,se enquadrar nos limites das especialidades que configuram os estudos a que nos temos
dado, ao longo de nossa vida profissional e acadêmica, em caráter genérico, a imprensa, a
comunicação, a editoração, desdobradas em congressos, seminários e afins, em palestras
e debates, em produção bibliográfica. Ultimamente, a 2a edição de A tipografia na Bahia:
documentos sobre suas origens e o empresário Silva Serva, pela Universidade Federal da Bahia
(2010). Tão próximo, esse, com o bicentenário do primeiro jornal baiano e segundo do
país, a Idade d´Ouro do Brazil, de 14 de maio de 1811, comemorado há poucos dias.
A pesquisa para sua escolha – dizia historiador amigo – às vezes nos acena com algo de
que, até, Deus duvida... Quase lhe damos razão, pois nos colocou às mãos uma edição de
Vassouras... de 1911, cem anos!
Vassouras, desde antes, já figurava no cenário editorial, com empresas locais e autores aí nascidos.
O que nos espicaçou foi, precisamente, sentir e tentar descrever a circularidade das ideias
que perpassavam a sociedade vassourense de há um século atrás.
Há que recuar, sem dúvida, a tempos e territórios ainda não conquistados e reconhecidos
como o seriam depois, no contexto fluminense.
Após mais de 300 anos sem prelos (descontadas pequenas iniciativas, imaginadas ou realizadas, nos séculos XVII, XVIII e XIX), o país só conhecerá tipografia e jornal com a
chegada de d. João, em 1808, de bicentenário tão comemorado e lembrado, são passados
apenas três anos.
A Gazeta do Rio de Janeiro, quatro meses depois, decorrência natural da criação da Impressão
Régia, em 13 de maio de 1808, aniversário do regente, abre a imprensa no Brasil que não
chegaria tão cedo a Vassouras.
A expansão nas próprias províncias brasileiras não foi de uma só vez. Abstraindo a Bahia,
em 1811, e Pernambuco em 1816, a instalação vai sendo de maneira progressiva: nove
províncias, hoje estados, entre 1820 e 1830, e seis, mediando os anos de 1830 e 40. Espírito
Santo, Amazonas e Paraná foram as mais tardias.
Depois de implantada nos municípios fluminenses, alargando-se da Corte, o Rio de Janeiro, para Campos (jornal manuscrito, O Espelho Campista, 1826), Niterói (O Eco na Vila Real
da Praia Grande, 1829), Resende (O Gênio Brasileiro, 1830), balizando apenas o início, antes
mesmo do Ato Adicional, de 1834, que separou o Município Neutro (onde se localizava a
Corte), da província do Rio de Janeiro, com sede em Niterói, a partir de 1835, Vassouras só
desfrutaria do melhoramento – capaz de gerar discórdias, segundo os próprios habitantes
da cidade –, na segunda metade dos anos de 1800, precisamente na altura do terceiro quartel do século, em 1873.
No Brasil, como dito, não foi tão rápida a expansão dos veículos, embora o florescimento
que se marcava por grandes responsáveis pela formação e informação de que todos neces-
24
História e Geografia do Vale do Paraíba
sitavam e ansiavam desde os tempos coloniais. O Diário de Pernamnbuco (1825-...) e o Jornal do
Commercio, do Rio (1827-...) são exemplos singulares, pois ainda circulam – 186 e 184 anos,
respectivamente, em 2011!
Vassouras, se esperou algum tanto, encampou a atividade, desde o aparecimento de O Município,
daquele ano de 1873. De seu artigo-programa:
O nosso jornal propõe-se a agitar todas as questões que entendem com a prosperidade do município de Vassouras, /.../ O município de Vassouras compreende uma
população culta e adiantada, digna certamente de prender-se à vida nacional pelas
nobres manifestações da imprensa. (PINTO, 1935, pp. 202-203).
Tinha a direção dos drs. Lucindo Filho – nome carismático da imprensa local –, Rodolfo
Leite, Alberto Brandão e Herculano de Figueiredo.
O Município faz dupla, na imprensa pioneira de Vassouras, com O Vassourense, onde muito
colaborou o prestante cidadão da cidade, embora natural de São João del Rei, o visconde de
Araxá, Domiciano Leite Ribeiro que, com pseudônimo de “Macedônio”, anagrama de seu
nome (mais corretamente, se “Domeciano”), firmou páginas em ambos os jornais.
Poesia era vertente sua, forte, como literato, de onde também, o pseudônimo “Poeta Vassourense”.
Não se concretizou o plano de Lucindo Filho, encarregado da organização de sua obra
Reminiscências e fantasias,1 de dedicar volume autônomo às poesias e só duas peças dessa
natureza, então nela figuram. Uma, recordando Vassouras, cuja titulação nos soa bem estranha, de “O lansquenê”, um jogo de cartas (no original francês, lansquenet, terminando
em et). Outra, “O júri”, diz respeito a Paraíba do Sul.
O visconde de Araxá e suas Reminiscências e fantasias remetem-nos de um salto, a
dois dos títulos clássicos da bibliografia local: Fastos vassourenses, de Jorge Pinto, de
1935, e História de Vassouras, de Inácio Raposo. A 2 a edição deste, em 1978, representou um benemérito serviço às letras fluminenses, através da Secretaria Estadual
de Educação e Cultura (governo Faria Lima), no IV Simpósio de História do Vale
do Paraíba, aqui realizado.
Não para naqueles clássicos a safra bibliográfica de Vassouras que procura acompanhar a
trajetória da cidade: pequena, num crescendo, atingindo seu clímax como potência econômica, mercê do café, posterior declínio, pela queda mesma, do produto-chave da economia
brasileira na XIX centúria, e renascimento, no século passado, onde a marca é o viés cultural. Aqui se alinham, por exemplo, Vassouras: história, fatos, gente, de Greenhalgh Faria
Braga, e a moderna produção, orientada nos Cursos de Formação e além deles, do centro
universitário e dos grêmios associativos, como este Instituto, em que se tornou a cidade,
congregando os estudos embasados por sérias pesquisas.
Não quis Vassouras viver, apenas, da glória – e era bastante – do fausto de seu emblema:
“cidade dos barões”. Os barões do café, as famílias nobilitadas (exemplo, este 17 de maio –
1
ARAXÁ, Visconde de. Reminiscências e fantasias. Vassouras: Tip. do Vasssourense, 2 vol., 1883-1884.
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ontem – de 1871, ornando Francisco José Teixeira Leite, como barão de Vassouras, há 140
anos), e a ascenção no mapa fluminense.
É a cidade que não quer viver somente da glória da moradora ilustre da Chácara da Hera,
mais do que justificada por sua benemerência, Eufrásia Teixeira Leite, mas chãos que se
querem marcar, por também, outros indicativos. Por exemplo, o que trazemos.
Vamos partilhar com os congressistas e o público o pensamento de um vassourense, vazado em livro de cerca de 100 páginas, de poesia, de características originais, a que deu o
modesto título de Singelos.
É Casimiro Cunha, nascido em 1880 e falecido em 1914, de um total de apenas 34 anos,
estigmatizado pela orfandade aos 7, pobre, só de estudos primários e cego.
Em 1911 – o nosso emblemático centenário –, está em 3a edição, sendo a 1a, de 1904, sinal evidente de aceitação, em tão curto espaço de tempo. Os que somos autores sabem do que falamos.
A 1a edição é da Tipografia de O Município, de C. Faria de Queirós, e a seguinte, da Tip. da
Empresa I. em Vassouras, ambas da cidade.
São versos espíritas, temática abrangente de toda a sua obra.
A apresentação – Ao leitor –, firma-a, do Rio de Janeiro, em 1904, M. Quintão – aliás, Manuel Justiniano de Freitas Quintão – a quem também é dedicado um dos sonetos do livro,
“Resignação”: “Livro de um cego, este, mas de um cego que fechou os olhos às misérias da
terra para melhor entrever as belezas do ceu”. (QUINTÃO, 1904, p. III).
Do prefácio da 2a edição, responsabilizou-se Ernesto Sampaio, a pedido do amigo Ernesto Penteado.
Aos leitores é a exposição pessoal do autor, também com data de 1904, da 1a edição, que
parece remeter a uma inspiração de literato da cidade do Rio de Janeiro, do século XIX,
conhecido de muitos: “Quem...”
Lembremos Francisco Otaviano, nas Ilusões da vida:
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.
Agora, o vassourense Casimiro Cunha:
Quem dos anos na aurora, nesta esfera,
Sem pai se viu, da vida entre os escolhos,
Quem sofreu do destino a mão severa,
Vendo a infância passar por entre abrolhos;
Quem na mais deslumbrante primavera
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Da existência perdeu a luz dos olhos,
E jamais pôde, numa escola austera,
As luzes do saber, ganhar aos molhos;
Há de por força errar... embora tente
Dar um livro perfeito ao mundo, embora
Busque enchê-lo de luz, de arte potente.
Não pode, pois não tem a grande aurora
Do talento, que o estudo cede à mente...
Perdoai-me, pois, minha alma vos implora!
(CUNHA, 1904, pp. XI-XII).
A maioria das composições são sonetos, encerrados graficamente por um pequeno elemento decorativo. Às vezes trazem uma epígrafe, em geral, de cunho moral ou religioso:
Sem caridade, não há salvação
Segundo o Espiritismo
Fora da Igreja, não há salvação
Segundo o Catolicismo
Praticamente, cada poesia é dedicada a alguém – homem ou mulher ou aos progenitores (a
dedicatória do livro é “À minha mãe”) ou à irmã. Eram pessoas, certamente da cidade, de
sua amizade de que, é possível, que descendentes se encontrem aqui, quem sabe? e reconheçam a destinação.
Do total de 37 produções, lembram pessoas, quase 65%, ou em número de 24. Devia ser o
autor, bem relacionado, espalhando versos e homenagens naquela Vassouras, hoje centenária.
Não é difícil recuperá-los todos, mas não nos abalancearíamos a lê-los, evidentemente...
Selecionamos algumas famílias, quiçá de interesse. Escolhidos ao acaso, Oliveira, Lima,
Tavolara (duas irmãs?), Moreira, Cunha, Monteiro, Fonseca, Lage e Gonçalves.
Para o apresentador, M. Quintão, declarar os versos “espontâneos e absolutamente sinceros” é convite à leitura, sem embargo de que os reconheça com “falhas artísticas, de harmonia, talvez, talvez de estética”.
Muitos de nós teremos tido um livro de amigo para prefaciar, ficando-se no meio-termo,
entre elogios e consciência crítica. Não será novidade o Quintão, de 1904, nem o apresentador da 2a edição, como não fugiremos, nós neste século XXI, da relação prefaciador-autor.
Casimiro não devia ser poeta de menor valia, pois está examinado, na Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho,2 e em, pelo menos quatro antologias.
A cidade também não seria infensa à temática e versejada. Uma das antologias espíritas
registra outro poeta natural de Vassouras, Luís Goulart, nascido em 1920, igualmente registrado em Afrânio Coutinho.3
Encontraria a mesma aceitação de Casimiro Cunha e daria largas a seu proselitismo?
2
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação/
Fundação de Assistência ao Estudante, 1990, vol. 1, p. 496.
3
COUTINHO, Afrânio. op. cit., vol., 1, p. 678.
27
O que nos estimula, como vasculhadores do passado das localidades, no caso, Vassouras, é a certeza da “leitura” de seu ambiente cultural, reunindo interessados, em poesia
e em espiritismo, trocando ideias, dialogando com o cego-poeta. Criar-se-ia uma rede
de sociabilidades – nomenclatura moderna –, em que interageria a sociedade local.
Espaços privilegiados: a Praça Barão de Campo Belo, seus jardins, os casarões ex-dos
nobilitados pelo café?
Da cidade natal não se esqueceu, ao traçar a saudade de um conterrâneo:
Franklink Dodsworth
Vassouras, triste, em lágrimas desfeita
Debalde chama pelo vosso nome:
Pois, a saudade o seio lhe consome
E atroz pesar no coração lhe deita.
Vossos amigos todos se debruçam,
Tristonhos, ante a fria realidade!
Os pobres gemem; chora a mocidade;
Soluçam corações, almas soluçam.
/.../
E hoje em vão, triste, em lágrimas banhada,
Vassouras vos reclama ao Onipotente:
Pois só consegue divisar em mente
A vossa imagem pelo céu beijada. (CUNHA, 1904, p. 46).
/.../
Lembrado está também outro município fluminense, por um acidente geográfico remarcável, de onde o soneto “Cascata do Sumidouro”. São as duas referências especificamente do
estado do Rio de Janeiro, detectadas.
Aprofundamento de pesquisas trariam até, imaginamos, opositores de Casimiro Cunha,
detratores, quem sabe? debates em salões e praças da cidade. O caminho está aberto.
Sua produção, arrolada na última página do livro que examinamos, com preços, indica
obras, entre 1904 e 1911, esgotadas algumas, outras em edições sucessivas, o que confirma
nossa assertiva de sua aceitação. Admitimos, pelo menos, que uma parte da sociedade local
consumia os produtos editoriais, levando a novas edições, e aceitava as dedicatórias.
Inicia-se a produção com o Singelos, de 1904, felizmente recuperado em 1911, fechando
centenário, seguindo-se Violetas – versos espíritas (1906 e 1910), Efêmeros, Aves implumes (Musa espírita e Musa profana), Pétalas – versos espíritas, e Perispíritos – que Antônio
Houaiss registra como “invólucro fluído que serve de ligação entre o corpo e o espírito”. 4
4
HOUAISS , Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2191.
28
História e Geografia do Vale do Paraíba
O marketing fecha as informações da edição de 1911:
Todos os pedidos podem ser endereçados ao Autor – Vassouras – E. do Rio, à Federação Espírita Brasileira – Rua do Rosário, 133, sobrado ou à Redação da Tribuna
Espírita, Rua da Alfândega, 181, devendo ser acompanhados da importância e mais
500 réis para o registro.
A Federação Espírita Brasileira, cuja sede era, no anúncio de Casimiro, no centro do Rio de
Janeiro, à Rua do Rosário, 133 (com certeza, provisória), logo em 1910, lança a pedra fundamental da sede própria, à Avenida Passos (antiga Rua do Sacramento), 28-30, dando-se a
inauguração em 10 de dezembro de 1911, quando a presidia Leopoldo Cirne, conforme o
seguro historiador do Rio de Janeiro, Roberto Macedo.5
É reconhecida a “Casa Mater do Espiritismo no Brasil”.
Trata-se de um bonito prédio, protegido pelo Corredor Cultural, estratégia de proteção da
Cidade do Rio de Janeiro, que prescreve regras rígidas, no caso de pretendidas intervenções
estruturais. Não é tombado em nenhuma instância.
Localiza-se entre a Igreja do Sacramento, em restauração de agressivas pixações, e o Teatro
João Caetano, liberado recentemente da mesma praga do Rio de Janeiro.
Edita a Federação o jornal Reformador, iniciado em 1883, dado como um dos mais antigos
em circulação, no país. Contou com Casimiro Cunha entre seus colaboradores. Por outro
lado, registrar que quatro livros do medium Chico Xavier, na Biblioteca Nacional, são ditos
psicografados por Casimiro Cunha.
O livro de Casimiro Cunha foi leitmotif para três desdobramentos: o do início do século XX,
em 1911, com nossa “trazida”, o encontro recente de documentação do Museu Histórico
Nacional, revelando correspondência e participação de intelectuais ilustres, a partir de meados do século XIX, confessando-se adeptos da doutrina de Allan Kardec e promovendo
sua difusão, e a constatação e acompanhamento, em nossos dias, da explosão na mídia, de
manifestações ligadas ao espiritismo.
A documentação do Museu Histórico Nacional incide em Manuel de Araújo Porto-Alegre,
figura ímpar nos terrenos da arte e da literatura: pintor, caricaturista, historiador, diretor da
Academia Imperial das Belas Artes, multifacetado cuja atuação, no praticar e disseminar os
dogmas espíritas, tocava os temas do abolicionismo.
Dessa documentação se extraem duas informações capitais: a edição recente do livro Barão de Santo Ângelo, o espírita da corte,6 e a de que há no Brasil cerca de “30 milhões de
adeptos da doutrina espírita, sendo o país com o maior número de espíritas no mundo”,
asserções avalizadas em publicação.7
Rendem essas revelações as de que, já antes de 1859, se realizavam reuniões de magnetismo a
que compareciam pessoas de prol da sociedade fluminense de então: políticos, nobres e outros.
MACEDO, Roberto. Efemérides cariocas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 326, jan./mar.1990.
VIOLA, Paulo Ribeiro. Barão de Santo Ângelo, o espírita da Corte. Rio de Janeiro: Editora Lorenz, 2009.
7
PINTO, Raphael de Assis Carvalho. Os espíritas do Império. Um olhar sobre a Coleção Manuel José de Araújo Porto-Alegre.
Anais do Museu Histórico Nacional. v. 42, p. 127, 2010.
5
6
29
Compareceriam os de Vassouras?
A especulação não será despropositada. A nobreza assentada na cidade, no século XIX,
com trânsito à Corte, por força dos negócios do café, não descartaria, certamente, o alinhamento com figuras importantes, chegadas ao imperador, D. Pedro II, caso de Porto-Alegre.
Seu círculo cultural e social devia recomendar-se como influência positiva.
A prática corrente era a do emparelhar-se à modernidade vinda dos centros refinados da
Europa – o luxo, na importação, para rechear as construções erguidas na província, no Vale
fluminense do café: louças, cristais, móveis, tecidos, joias. A seu lado, modos de vida: letras
e arte, músicas e teatro, canto e piano... Por que não, choque nas mentes? Por que não, ver,
frequentar e transportar para Vassouras novas crenças religiosas?
Isso poderia ter estimulado aquela aceitação do início dos anos 1900, agora corporificada
em um poeta engajado, exemplificado em Casimiro Cunha?
Partir-se de meados dos novecentos ao início do século XX, confraternizando com Casimiro Cunha, é um passo a que o historiador se permite, colocando a hipótese na mira de
fontes documentais que possam confirmá-la ou negá-la.
O Rio de Janeiro, centro de ressonância, ex-capital do vice-reino, do Reino e do Império,
agora, da República, em março de 1907 consigna a fundação da Sociedade Espírita Beneficente Santo Antônio de Lisboa, na Rua 28 de Agosto, em Ipanema.8
O movimento crescia, sendo avassalador no século XXI, cabendo ao observador atento,
que faz História, no mínimo, registrá-lo.
Na atualidade, no século de nossa vivência, em 2010, três filmes com a bandeira do espiritismo foram bem correspondidos pelos indicativos de bilheteria/número de espectadores,
em cobertura de todo o Brasil.
“Chico Xavier”, o primeiro, sobre a figura de Minas Gerais (Francisco Cândido Xavier),
“arrebatou” (é o verbo empregado) 3 milhões e 400 mil pagantes!
O segundo, “Nosso lar”, de obra do mesmo Chico Xavier, também sucesso, e o terceiro,
dedicado a personagem do século XIX, médico e político na Corte, o dr. Adolfo Bezerra
de Meneses Cavalcanti, o chamado “Allan Kardec brasileiro”, mais conhecido pelo nome
de guerra, como é intitulado no filme, “Bezerra de Meneses”.
Um dos sonetos de Casimiro Cunha, nos Singelos, intitula-se “Bezerra de Meneses” e traz
como epígrafe, de A. V. de C. e Sousa, “Feliz quem segue da virtude os passos” e fecha com
os dois versos: “Feliz aquele que te segue os passos! / Feliz daquele que te segue o exemplo!”.
Contemporaneíssimo, ainda, não perder de vista, em Niterói, neste 2011, a Escola de Samba “Unidos do Viradouro” destinou um carro, no final do desfile, na Marquês de Sapucaí,
no Sambódromo, ao espiritismo. Chico Xavier apareceria, conforme divulgado, representado por uma escultura, psicografando, cercado por 60 componentes, alguns praticantes,
realizando uma performance de mediunidade.
8
MACEDO, Roberto. Op. cit. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 283, p. 101, abr./jun.1969.
30
História e Geografia do Vale do Paraíba
A estética do filme “Nosso lar”, também teria sido aproveitada na decoração do carro.
E não para aí: acrescer, em 2011, o novo filme, “As mães de Chico Xavier”, além de um
planejado documentário sobre Allan Kardec (que, diga-se, era pseudônimo de Hippolyte
Léon Denizart Rivail).
No cenário internacional, Hollywood, que já deu “Além da vida”, de Clint Eastwood, e
“Ghost – do outro lado da vida”, com uma música dessas que “perseguem”, vai chegar a
Robert de Niro, com “Red lights”.
Se ainda coubesse uma digressão em torno de Casimiro Cunha e da cegueira que o marcou,
poder-se-ia lembrar, em março de 1854, a morte do cego carioca, José Alves Azevedo, aos
19 anos, o primeiro que, em nosso país, professou o sistema de instruir e tornar úteis os
cegos. “Educado na Institution Impériale des Jeunes Aveugles, retornara de Paris no ano
anterior e aqui lecionara a menina Adélia, filha do médico do Paço, José Francisco Sigaud.”
Não esquecer também o carinho e a proteção de D. Pedro II ao Imperial Instituto de Meninos Cegos, que criou, na Avenida Pasteur, na Urca.
Não muitos dias nos separam da alarmante, e felizmente desmentida pelo Ministério da
Educação, afirmação, divulgada pela imprensa, de que este – hoje, Instituto Benjamin Constant – IBC –, e o Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES seriam desativados.
De uma possível participação de vassourenses, em meados do XIX, no Rio de Janeiro ligada a movimento com a presença de Manuel de Araújo Porto-Alegre e demais personagens
de relevo, a outra (muito provável?), aqui na cidade de Vassouras, nos albores do século XX
com fulcro em Casimiro Cunha, órfão, cego e pobre, realmente reconheçamos, os roteiros
da pesquisa nos levam a caminhos inusitados!
Pessoas a quem são oferecidos os sonetos e outras composições integrantes do Singelos
A.C.T. Gonçalves
A. França
Alexandrina Tavolara
Alípio de Oliveira
Anselmo Martins
Antônio Lima
Arlindo Moreira
C. Leite
Carvalho e Melo
Estevão Moreira
Evaristo Lage
Inésia Nunes
J. Brasil
M. Quintão
31
Mario Nunes
Paulino Matoso
Raul Fonseca
Rodrigues da Cunha
Terezina Tavolara
Viriato Moreira
Walfrido Silva
Pessoas que intitulam algumas das composições
Alírio
Antônio Saião
Bezerra de Meneses
Bittencourt Sampaio
Clorinda
Dario
Franklin Dodsworth
Leinokes Monsoros
Martinho Nóbrega
Sinésio Brasil
Referências Bibliográficas
ARAXÁ, Visconde de. Reminiscências e fantasias. Vassouras: Tip. do Vassourense. 2
vol., 1883-1884.
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação/Fundação de Assistência ao Estudante, 1990, I vol.
HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
MACEDO, Roberto. Efemérides cariocas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 283,
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PINTO, Raphael de Assis Carvalho. Os espíritas do Império.Um olhar sobre a Coleção
Manuel José de Araújo Porto-Alegre. Anais do Museu Histórico Nacional. v. 42, pp. 127-140, 2010.
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RAPOSO, Inácio. História de Vassouras. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Estadual de
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VIOLA, Paulo Ribeiro. Barão de Santo Ângelo, o espírita da Corte. Rio de Janeiro: Editora
Lorenz, 2009.
32
História e Geografia do Vale do Paraíba
Folha de rosto de Singelos
Casimiro Cunha
33
34
História e Geografia do Vale do Paraíba
Conferências
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36
História e Geografia do Vale do Paraíba
Arqueologia do Vale do Rio Paraíba
Ondemar Dias*
Jandira Neto**
I - Introdução
O Instituto de Arqueologia Brasileira, logo após a sua fundação, no ano de 1961, começou
a efetuar pesquisas arqueológicas na extensa bacia do rio Paraíba do Sul e seus tributários
em ambas as margens. A ênfase recaiu nos seus afluentes fluminenses da margem direita,
em especial no seu médio curso serrano até o seu baixo curso nas planícies campistas.
Foi, no entanto, a partir do segundo ano de pesquisas do PRONAPA1, em 1966 que tais
pesquisas foram incrementadas, em especial nos cursos dos rios Grande e Preto. Elas foram expandidas para o norte, atingindo os rio Ururaí e o Muriaé, penetrando também nos
afluentes mineiros, sobretudo no rio Pomba. As ilhas do baixo curso do Paraíba foram
pesquisadas na mesma década.
Ao longo dos anos seguintes, em diferentes oportunidades, integrando Programas de pesquisas próprios do IAB, como o “Paraíba Mineiro”, o “Serras Fluminenses” e a “Baixada
Campista” toda uma extensa área daquela bacia foi abrangida, prospeccionada e muitos dos
sítios então localizados, salvos ou submetidos a resgate2.
A metodologia proposta pelo PRONAPA, adotada pelo IAB e empregada em todos os
programas posteriores, se inicia pelo levantamento da potencialidade arqueológica de uma
área definida; prossegue pela prospecção extensiva, atinge o ponto máximo na escavação
dos sítios e se conclui pelas análises e interpretação dos dados a respeito dos acervos recolhidos e sua posterior divulgação. O objeto principal dos trabalhos, que parte do conhecimento extensivo para o intensivo, ultrapassa a abordagem de sítios isolados, tendo
por principal meta s os conjuntos de sítios que identificam unidades culturais pequenas
(expressões locais), médias (fases) ou grandes (tradições). Pretende-se sempre reconhecer
os padrões de ocupação de áreas ecológicas definidas, efetivados por populações humanas
ao longo do tempo, situadas no espaço e caracterizadas pelo material cultural produzido.
Parte-se do princípio que a cultura é o processo evolutivo característico do ser humano, a
partir da interpretação do ambiente no qual sua sociedade se encaixa e que tem por meta
dinamizar um dos sentidos naturais do ser humano. Situam-se em níveis diferenciados de
manifestações, desde aquelas destinadas às satisfações econômicas de base, à organização
social de coesão entre os indivíduos de mesmo grupo e de grupos diferenciados, até os padrões mentais ou de conhecimento que conformam todos os arcabouços biopsicossociais
e espirituais de quaisquer sociedades.
Ondemar Dias – Arqueólogo e Professor Titular (aposentado) da UFRJ. Diretor Presidente do Instituto de Arqueologia
Brasileira, Sócio do Efetivo do IHGB e do IHRJ.
**
Jandira Neto – Arqueóloga e Educadora Patrimonial. Gerente de Projetos e Diretora do Instituto de Arqueologia
Brasileira. Psicóloga e Psicodramatista Didata FEBRAP.
1
PRONAPA, Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, durou de 1965 a 1973, coordenados pelos arqueólogos dr.
Clifford Evans e dra. Betty Meggers da Smithsonian Institution de Washington. O Coordenador brasileiro foi o dr. Mario
Simões do Museu Goeldi, representando o CNPq. Sob responsabilidade de um de nós (Ondemar Dias) em nome da Divisão
de Patrimônio Histórico e Artístico da Guanabara e Instituto de Arqueologia Brasileira, correram as pesquisas nos Estados
do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
2
O salvamento é efetuado em sítios que não correm riscos imediatos de destruição, ao contrário do resgate que é praticado
naqueles sob impacto direto de qualquer obra, mesmo a médio prazo. Ambos se referem a trabalhos intensivos de escavações
e constituem a abordagem mais profunda prevista na metodologia arqueológica.
*
37
II – Resultados
Esta soma de atividades dirigidas e coordenadas durante quase meio século resultou em
um nível de conhecimento já bastante satisfatório, ainda que muitos trechos da bacia fluminense do Paraíba restem por pesquisar e inúmeros espaços cronológicos permaneçam
em aberto. Tal fato se dá pela inexistência de pesquisas até mesmo no seu nível inicial de
avaliação de potencial. Desta forma, estamos ainda longe do dia em que os dados disponíveis, representados por acervos metodologicamente recolhidos, devidamente analisados
e divulgados nos permitam construir quadros conclusivos sobre a pré-história da bacia
fluminense do rio Paraíba do Sul.
Mesmo assim, no entanto, pode-se esboçar um quadro geral, com áreas e períodos melhor
esclarecidos ao lado de outras em que nosso conhecimento se encontra ainda em branco.
Esta periodização preliminar pode ser assim abordada;
A – Período anterior à Conquista europeia
1 – Horizonte Pré-cerâmico
Muito pouco se conhece a respeito do horizonte mais antigo da ocupação humana na bacia hidrográfica que nos interessa apresentar. Em grande parte pelo fato de que o curso do
Paraíba corre por vales serranos e só se aproxima do litoral no trecho final. E é no litoral
fluminense que se concentra a maior parte do nosso conhecimento. Alguns sambaquis muito
destruídos, dos quais somente sobraram resquícios, foram localizados na planície campista,
para os quais, no entanto, faltam datações. Pela tipologia variada pode-se supor representem
ocupações que acompanharam a variação do nível do mar ao longo dos milênios e a formação dos cordões de restinga característicos da região. O horizonte cronológico pode atingir o
Holoceno antigo. A existência de lagunas represadas facilitava a coleta de mariscos e a caça,
mas não se possui ainda uma clara descrição dos padrões culturais peculiares que possam
distingui-los (ou agrupá-los) naqueles melhor conhecidos da região dos lagos, por exemplo.
No interior, em especial na bacia do Muriaé, já foram detectadas pontas de projéteis de quartzo hialino. No sítio do Tesouro, em Purilândia, pesquisados por nós na década de oitenta, tanto lâminas deste material quanto pontas apedunculadas de pequenas dimensões apontam para
a existência de grupos de caçadores do interior. Pontas maiores, pedunculadas, de factura por
microlascamentos, denunciam por seu lado, comunidades provavelmente mais antigas. Não
se tem, no entanto, descrições de sítios escavados sistematicamente em que estes materiais
tenham sido encontrados em contexto cultural.
Também não se conhece para a região do baixo curso do Paraíba sítios vinculados à Tradição
Itaipu, relacionados a quaisquer das suas duas fases. Seja aquela que denuncia a existência de
grupos de coletores generalizados e horticultores iniciais (Cabo Frio e São Pedro d’Aldeia);
seja aquela de pescadores oceânicos habitantes de dunas, como na praia de Itaipu3.
Os habitantes dos sítios Itaipu distinguem-se dos sambaquianos por diferentes traços. Material cultural peculiar (em especial efetuados sobre valvas de conchas), artefatos líticos com variadas funções numa mesma peça e padrões de sepultamento
peculiares. Demonstra este fato o número muito superior de indivíduos num mesmo sítio (no sítio do Corondó, por exemplo,
foram recolhidos mais de cem sepultamentos em 4 metros quadrados até dois metros de profundidade) e, sobretudo, desgastes dentários peculiares que comprovam alto consumo de carboidratos. É importante ressaltar que não se trata de variações
sambaquianas, como propõem alguns, mas de outras gentes habitantes do litoral.
3
38
História e Geografia do Vale do Paraíba
2 – Horizonte Cerâmico
As datas mais antigas para comunidades ceramistas estão relacionadas ao que denominamos Tradição Una4. Suas origens estão ligadas a sociedades do interior mineiro, agrupadas
na mesma Tradição e que ali foram detectadas ocupando sítios desde 3.500 anos passados.
Grupos humanos de duas fases desta tradição ocuparam a região paraibana. No seu médio
curso serrano foram localizadas cavernas e abrigos com ocupação, com material típico e
sepultamentos (Fase Mucuri) e datações que a situam após o ano mil da era corrente até
um passado recente. A fase Ururaí engloba os sítios da região de Campos, em especial o
extenso e importante sítio do Caju, alvo de uma série de pesquisas sistematizadas, onde a
ocupação retrocede ao século sétimo depois de Cristo.
Nos sítios cobertos (cavernas e abrigos) foi preservado rico acervo material, constituído,
além da cerâmica, por peças tecidas, artefatos de madeira, e adornos variados confeccionados em osso, sementes, conchas, etc.
Esta Tradição tem como peculiaridade a variação nos padrões de sepultamento, desde
aqueles primários, sejam constituídos pela deposição do corpo em cavernas, com ou sem
acompanhamento, ou enterrados no solo geralmente com rico ajuar funerário, até os secundários. Neste caso podem se reduzir ao simples depósito de feixes de ossos amarrados
com cipó “imbé” em prateleiras de cavernas até ricos sepultamentos em urnas sejam elas
colocadas também em grutas, sejam diretamente no solo. Povos horticultores que herdaram conhecimentos dos Una cultivavam tubérculos, em especial o aipim e batata-doce
(cará, inhame e outras raízes podem ter sido também cultivadas).
Os povos remanescentes desta Tradição dominavam a região de Campos na época da conquista e ficaram conhecidos como “Goitacaz”. Seus descendentes seriam os “Puri”, “Coroados”, etc., que habitaram a serra até o século XIX.
Ainda que existam divergências tanto quanto a data quanto às origens, o fato é que pelo
menos desde o século VI da nossa Era os povos da Tradição Una sofreram a invasão de
grupos belicosos e conquistadores denominados Tupis. Provavelmente oriundos do sul,
podem ter chegado à área descendo o curso do Paraíba, ou por via marítima pelo litoral.
Mais numerosos do que os predecessores, deslocavam-se em grupos densos e ocupavam
terrenos propícios ao cultivo da mandioca. Provavelmente introduziram o milho na região.
Sua cerâmica é característica e, apesar das variáveis no tempo e no espaço, é facilmente
identificada pelos padrões morfológicos, tecnologia de fabrico e, sobretudo, pelos padrões
decorativos, plásticos e pintados.
Na região do Paraíba foram identificadas duas fases desta Tradição, denominadas de “Ipuca” e “Itaocara”. A segunda é mais antiga, mais típica, enquanto que a primeira apresenta
Um único caco com cerca de 3.500 anos de antiguidade foi localizado nas escavações do sítio Corondó, da Tradição Itaipu.
Simples, de mediana espessura, boa resistência mecânica, com queima redutora e com tratamento de superfície alisado apresenta a peculiaridade de ter sido a peça temperada com conchas moídas. Esta característica a aproxima do mais antigo padrão
de confecção do norte do país, a fase Mina. Mas como se trata de um caco isolado nada mais pode ser adiantado.
4
39
significativos traços de aculturação com a Tradição Una. Ambas ocupam a região limítrofe
com a área de Campos, a Itaocara mais rio acima e a Ipuca na área de São Fidélis e pelo Muriaé acima. Ambas apresentam sepultamentos secundários em urnas, decoração reduzida
percentualmente e morfologia de vasilhame peculiar, com a dominância de vasos ou tigelas
de boca elipsóide e contorno simples ou complexo. Sua situação cronológica gira em torno
dos séculos XIV ao XVI/XVII.
B – Período posterior à Conquista europeia
O território fluminense, apesar de ter sido conhecido pelos europeus ao iniciar-se o século
XVI, somente na sua segunda metade seria de fato colonizado.
Pode-se sucintamente visualizar os horizontes arqueológicos históricos em três Tradições
que se inter-relacionam:
1 – Período Inicial de Contato – Dos primeiros momentos desta ocupação restaram,
além da documentação histórica, escrita, artefatos arqueológicos que comprovam, desde
cedo, a miscigenação que caracterizaria a sociedade fluminense desde seus primórdios. O
primeiro, ainda que não registrado na bacia do rio Paraíba do Sul, espelha os primeiros momentos de contato entre europeus e indígenas. Em outros locais, no entanto, principalmente no litoral carioca e no recôncavo da baía de Guanabara, restam traços destas populações
indígenas submetidas, expressos em cerâmica pintada com seus motivos tradicionais sobre
peças de fatura e morfologia europeia. É possível que tal fato também ocorra nos sítios
pesquisados entre a foz do Paraíba e do Itabapoana (Vila da Rainha, restos dos engenhos
de Pero de Góis, etc.), mas os dados não se encontram disponíveis. Assim sendo, não se
pode, aqui, confirmar sua existência.
2 – Período de Miscigenação intensa – Outro produto, algo mais recente, é constituído
pela cerâmica neobrasileira, quando às duas tradições culturais (indígena e europeia) se juntou a cultura africana. Criou-se, assim, o primeiro produto genuinamente brasileiro, onde
se expressam – no uso cotidiano – elementos das três raízes formadoras do nosso povo.
Esta cerâmica, como não podia deixar de ser, varia no tempo e no espaço em função da
maior ou menor influência de cada uma das “raízes”. Caracteriza-a o fato de ser produzida
segundo técnicas pré-coloniais, domesticamente, em vasilhame de caráter utilitário, com
queima redutora (enegrecida), asa (simples, digitadas ou ponteadas) e preponderantemente
de pequenas dimensões5.
Material desta categoria ocorre em diversos locais ao longo do vale paraibano, sem que se
tenha constituída alguma fase a ela relacionada. Material muito ocorrente nos sítios do alto
curso do rio Piraí, na região da serra do Piloto e nos formadores dos rios Grande e Preto
(Bom Jardim, Sumidouro, etc.).
3 – Período Histórico propriamente dito – Ainda que nos dois horizontes anteriores
coexistam com a cerâmica arqueológica outros elementos culturais, como artefatos de
Em pesquisas recentes tem-se constatado que a cerâmica neobrasileira variou ao longo do tempo e chega à atualidade em
diversos locais produtores de “cerâmica popular”. Sítios dos séculos XVII, XVIII e até XIX, preservam peças da mesma
morfologia e decoração, porém produzidas em torno. Em algumas até mesmo o vidrado de galena (de baixa temperatura) foi
também empregado. E, finalmente, tem se concluído ter sido a mesma fabricada também em olaria e em grandes proporções,
para venda comercial.
5
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História e Geografia do Vale do Paraíba
ferro, vidro, louça, etc., é neste horizonte que tal acervo se torna comum, espelhando
a definitiva fixação colonial. A miscigenação persiste, até mesmo com a chegada cada
vez maior de contributos africanos e alguns poucos outros de outras origens. Os sítios
pesquisados se espalham por todo o território fluminense, em especial na caracterização de antigos centros produtores de açúcar e aguardente, fazendas de criação de gado,
fábricas de farinha, centros de produção de anil, entre outros. As pesquisas, neste caso,
se entrelaçam com a documentação histórica e criam imagens da vida cotidiana, quase
nunca preservadas nos documentos escritos. E, com elas, chegamos ao fim deste resumo,
destacando que inúmeros trabalhos vêm sendo feitos em pontos diversos da bacia do
Paraíba do Sul. Destacamos a “ressurreição” da cidade de São João Marcos no alto curso
do rio Piraí, que apesar de tão próxima do litoral mesmo assim se enquadra na bacia do
Paraíba, enriquecendo sua história.
III – Conclusão
A arqueologia no vale do Paraíba do Sul frente à importância que esta via fluvial
possui tanto para a pré-história quanto para a história da ocupação humana da região Sudeste se encontra ainda muito longe de esgotar as possibilidades de novas
e até inesperadas descobertas. Muitos problemas e questões instigantes dependem
de pesquisas mais intensas do que aquelas até agora desenvolvidas, no que diz
respeito, em especial, quanto ao seu papel como rota de difusão de ideias e de conhecimentos, tanto no sentido Leste-Oeste, ao longo do litoral, quanto no sentido
inverso, interior/costa atlântica.
O aumento de instituições de pesquisas e de oportunidades, sobretudo aquelas geradas
pela arqueologia contratual, sem dúvida colaborarão para a formulação de novos projetos,
melhores aportes financeiros e para o despertar de novos interesses. Todo este conjunto
de fatores certamente mudará o quadro relativamente restrito da atualidade, de forma que
esperamos, sem muitas delongas, em breve possamos contar com tais resultados para a
formulação de textos mais ricos.
Mapa de localização dos sítios da Fase Itaocara. Acervo IAB.
41
Sitio do Eliseu. Itaocara, RJ. Acervo IAB.
Vasilhame da Fase Itaocara. Acervo IAB.
Mapa de localização dos sitios da Fase Ipuca. Acervo IAB.
42
História e Geografia do Vale do Paraíba
Sitio Alma Pura. São João da Barra , RJ. Acervo IAB.
Sitio Sacarrão. Macaé, RJ. Acervo IAB.
Mapa da Fase Mucuri no litoral. Acervo IAB.
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Mapa de localização dos sítios da Fase Itaocara. Acervo IAB.
44
História e Geografia do Vale do Paraíba
Matrizes Africanas do Território Brasileiro
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos*
Introdução
A África é o continente mais importante no suporte e na manutenção da estruturação
do mundo nos últimos cinco séculos, particularmente na formação do Novo Mundo, a
América. O Brasil, por sua vez, é a unidade política contemporânea que registra as maiores
estatísticas de importação forçada de contingentes populacionais africanos ao longo dos
séculos XVI a XIX. Dessa forma, o território africano é um componente fundamental
para uma compreensão mais apurada das questões que envolvem o papel da população de
ascendência africana na sociedade brasileira. Por isso, o Brasil continental, plurirracial, multicultural e com uma historicidade em processo de reconstrução e uma diversidade étnica
com conflitos, tem ainda, o desafio de assumir decisivamente a nação multiétnica resultante
destes séculos de “conivência” com a África. Estes são pontos estruturais que preconizam
a busca de equilíbrio na sociedade brasileira e no seu território e, sobretudo um tratamento
ético. Por isso mesmo, se fazem necessário, interpretações mais consistentes das origens
das suas populações nos primórdios da suas formações; de um melhor entendimento e
representação da dinâmica desta diáspora no espaço e uma melhor configuração da sua
identidade territorial ancestral.
Apesar dessa referência histórica da matriz africana presente no país, a incorporação verdadeira, o respeito e o espaço da cultura africana no Brasil, continua sendo uma das questões
estrutrais do país, que ainda merece investigação, conhecimento e ação. Nesse sentido, as demandas para compreensão das complexidades da dinâmica da nossa sociedade são grandes e
existem poucas disciplinas mais bem colocadas do que a geografia e a cartografia para auxiliar
na representação e interpretação das inúmeras indagações desse momento histórico.
A geografia é a ciência do território e este componente fundamental, a terra, o terreiro num
sentido amplo, continua sendo o melhor instrumento de observação do que aconteceu,
porque apresenta as marcas da historicidade espacial; do que está acontecendo, isto é, tem
registrado os agentes que atuam na configuração geográfica atual e o que pode acontecer,
ou seja, é possível capturar as linhas de forças da dinâmica territorial e apontar as possibilidades da estrutura do espaço no futuro próximo. O território é na sua essência um fato
físico, político, social, categorizável, possível de dimensionamento, onde geralmente, o Estado está presente e estão gravadas as referências culturais e simbólicas da população. Não
podemos perder de vista que a geografia é a área do conhecimento que tem o compromisso
de tornar o mundo e suas dinâmicas compreensíveis para a sociedade, de dar explicações
para as transformações territoriais e de apontar soluções para uma melhor organização do
espaço. A geografia é, portanto, uma disciplina fundamental na formação da cidadania do
povo brasileiro, que apresenta uma heterogeneidade singular na sua composição étnica,
socioeconômica e na distribuição espacial.
Geógrafo, Dr. em Informações Espaciais (EPUSP-BR/IRD-FR) / Pós-Doutorado em Cartografia Étnica no Museu
Real da África Central (MRAC-Tervuren-BE), Prof. Associado do Depto. de Geografia e Diretor do Centro de Cartografia
Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília.
*
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Os mapas, por sua vez, são as representações gráficas do mundo real, se firmam como
ferramentas eficazes de interpretação e leitura do território, possibilitando revelar a territorialidade das construções sociais e feições naturais do espaço e, justamente por isso,
mostram os fatos geográficos e os seus conflitos. Estes possibilitam revelar graficamente o
que acontece na dinâmica do espaço e tornam-se cada vez mais imprescindíveis, por constituírem, uma ponte entre os níveis de observação da realidade e a simplificação, a redução,
a explicação e de pistas para a tomada de decisões e soluções dos problemas. Não podemos
perder de vista que um mapa não é o território, mas que nos produtos da cartografia estão
as melhores possibilidades de representação e leitura da história do território.
Neste paper buscamos auxiliar na ampliação das informações sobre as referências territoriais dos deslocamentos seculares África-América-Brasil e os aspectos historiográficos da
distribuição da população de matriz africana e seu rebatimento na formação do território
brasileiro. Este trabalho faz parte de uma das etapas operacionalizadas no Projeto Geografia Afro-Brasileira: Educação & Planejamento do Território, em desenvolvimento no
Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica (CIGA) do Departamento de
Geografia da Universidade de Brasília e na Fundação Brasil Africano.
Com essas referências buscamos contribuir efetivamente para a ampliação do conhecimento e a continuidade das discussões, onde a questão étnico-racial no Brasil seja tratada
com mais seriedade.
1 – A Espaço Geográfico da Diáspora Africana e o Brasil –
Uma Síntese
O movimento histórico das grandes navegações deve ser entendido como uma consequência
direta do processo geográfico de dominação territorial desenvolvido, amadurecido e implementado pelo continente europeu. O horizonte geográfico das terras emersas vai ser ampliado de forma signgificativa pelos novos encontros de culturas, identidades e territorialidades.
Como resultado, o mapa do mundo vai ser profundamente modificado nos séculos XV, XVI,
XVII, XVIII e XIX, sobretudo pelos novos territórios a ele incorporado e as “novas” fronteiras constituídas e impostas. Este período da história dos seres humanos vai se caracterizar
por uma nova fase de relações entre estes e a natureza. Os trópicos eram vistos pelo europeu
como um mundo que poderia lhe oferecer um conjunto de produtos que não existiam no seu
continente e esta estratégia representava um estímulo à política mercantilista, ao desenvolvimento do capitalismo comercial e ao fortalecimento do Estado.
Não eram somente as riquezas da África que interessavam a Europa Moderna, os seres
humanos, também eram necessários aos colonizadores para o cultivo e a esploração das
minas. Instaura-se assim um novo período de escravidão humana, associada à acumulação de capitais, estruturado num sistema político, jurídico e econômico que vai permitir
o desenvolvimento de uma gigantesca empresa comercial, possibilitando a expansão do
capitalismo. O tráfico demográfico forçado do continente africano para a América foi,
durante quase quatro séculos, uma das maiores e mais rentosas atividades dos negociantes
europeus, a tal ponto de se tornar impossível precisar o número de africanos retirados de
46
História e Geografia do Vale do Paraíba
seu hábitat, com sua bagagem cultural, a fim de serem, injustamente, incorporados às tarefas básicas para formação de uma nova realidade. Entre 12 e 13 milhões de seres humanos
africanos transportados é uma referência, apesar das pesquisas divergirem, ainda atualmente, sobre os registros quantitativos nessa diáspora africana. Entretanto, é consenso na
comunidade científica que a dinâmica do tráfico trouxe problemas de despovoamento em
numerosas áreas do continente.
É importante lembrar que o conceito geográfico de diáspora tem haver com a referência
de dispersão de uma população e das suas matrizes culturais e tecnológicas. Ao longo da
história podemos identificar a construção de territórios pela mobilidades das migrações,
tanto de forma voluntária quanto das migrações forçadas. Na África, podemos caracterizar
alguns destes grandes movimentos demográficos, a começar pela primeira diáspora, que
corresponde ao processo espacial milenar de povoamento e ocupação do próprio continente e, posteriormente, para outras terras emersas do mundo. O fenômeno espacial que
abordamos nesta oportunidade está ligado aos séculos de deslocamentos, geralmente, denominado, “tráfico negreiro” para a América (Novo Mundo), fruto de longos períodos de
migração forçada do continente africano, contexto propulsor do sistema escravista e base
fundamental do capitalismo primitivo.
Devemos ressaltar que foram as regiões geográficas do Brasil de interesse econômico europeu que detiveram os maiores fluxos de populações africanas escravizadas. Os mapas temáticos mostram as representações gráficas das referências territoriais de origem na África
nos quatro séculos do tráfico de populações e desestruturação de sociedades e Estados. No
século XVI, a referência espacial principal são as regiões caracterizadas como Alta e Baixa
Guiné. Esses foram trazidos principalmente para as regiões açucareiras de Pernambuco e
Bahia, mas também, foram levados para o Maranhão e para o Grão-Pará. Os territórios
africanos atingidos pelo tráfico nesse período atualmente correspondem aos limites internacionais dos seguintes países: Serra Leoa, Senegal, Guiné, Guiné-Bissau, Nigéria, Benin,
Burquina Faso, Gana, Costa do Marfin, Libéria, Mali e Gâmbia.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
No século XVII o tráfico vai ser dinamizado na Costa de Angola, transportando povos
africanos para a Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo e regiões do
centro-sul do Brasil, e na Costa da Mina, com fluxos para as províncias do Grão-Pará,
Maranhão e o território atual do Rio Grande do Norte. A antiga Costa da Mina compreende atualmente os territórios dos seguintes países: Costa do Marfin, Libéria, Burquina
Fase, Mali, Niger, Congo, Gana, Togo, Benin, Nigéria e Camarões. A conhecida Costa de
Angola corresponde atualmente aos seguintes países: Angola, Gabão, República Democrática do Congo e Guiné Equatorial. Nos séculos XVII e XVIII, vão se constituir as mais
importantes e duradouras extensões territoriais das rotas do tráfico negreiro: as Costas da
Mina e de Angola. É nesse período que vão ocorrer os maiores volumes de povos africanos transportados para o território brasileiro.
A primeira metade do século XIX caracterizou-se pelos vários tratados visando
abolir o tráfico negreiro, o que no Brasil só ocorreu efetivamente em 1850. Pelo
quadro de ilegalidade e clandestinidade, os dados estatísticos dos movimentos demográficos são bem imprecisos. Os espaços geográficos da África atingidos por
esse último ciclo têm correspondência, na atualida de, aos territórios dos seguintes
países: Gana, Togo, Benin, Nigéria, Gabão, Congo, Angola, República Democrática
do Congo, Moçambique e Madagascar. Esse é o período em que são desfeitas as
ligações bilaterais entre os continentes africano e americano, sendo destruídas as
rotas do tráfico triangular entre a América, a África e a Europa. Entretanto, o Brasil,
por 66 anos, e os Estados Unidos, por mais 90 anos, continuaram escravistas depois
da independência.
A manutenção dessa estruturação política, econômica e territorial por quase quatro séculos no território brasileiro e a quantidade de africanos importados até 1850, não devidamente quantificada, mostra como a consolidação da sociedade escravagista conseguiu estabilizar-se e desenvolver-se mesmo com os conflitos políticos e contradições econômicas
e sociais. No “Brasil Colônia”, o quilombo era uma reconstrução e elaboração concreta de
um tipo de organização territorial existente na África Meridional, que apresenta variadas
significações, e uma delas é um estado permanente de guerra. A palavra aportuguesada
quilombo tem sua origem na estrutura da língua bantu (kilombo) e pode ser entendida
ainda, como acampamento guerreiro na floresta, o nome de uma região Administrativa
de Angola, habitação no território do antigo Reino do Congo; lugar para estar com Deus
na Região Central da Bacia do rio Congo e, significa, ainda, na Região Centro-Norte de
Angola filho de preto que não é preto.
A grande extensão dos povoados “livres”, com uma forma de organização territorial de
matriz africana, que vão se desenvolver nas margens brasileiras do Oceano Atlântico, têm
em comum a referência de um espaço seguro e protegido, não necessariamente isolado,
com igualdade de condições na maioria das relações comunitárias, de liberdade de acesso
à terra e de uma base possível de ter confrontos e guerras pela manutenção do espaço
“livre”. Neste sentido o quilombo africano e o quilombo americano apresentam semelhanças fundamentais.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
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Algumas considerações em torno das referências etnográficas da África Subsaariana com
registros no Brasil e expressão espacial da população afro-brasileira contemporânea são
temas tratadas no item a seguir.
2 – A Representação Cartográfica da População Afro-Brasileira –
Uma Introdução
O processo de pulverização das distintas matrizes africanas nas extensões do território colonial tinha, também, como estratégia dificultar a organização, extinguir a
língua de origem e impossibilitar a continuidade das culturas, ou seja, foram criados
dispositivos reais para que as populações oriundas da África perdessem as suas referências identitárias e, por conseguinte, houvesse uma diluição da identidade étnica
africana no Brasil. São “trazidos” para constituir a formação, a expansão e a ocupação efetiva do território brasileiro seres humanos: Minas, Congos, Ombundos,
Bacongos, Ovibundos, Monjolos, Balundos, Jejes, Angolas, Anjicos, Lundas, Quetos,
Hauças, Fulas, Ijexás, Jalofos, Mandingas, Anagôs, Fons, Ardas, dentre muitos outros, que possibilitaram o que podemos simplesmente denominar afro-brasileiros,
brasileiros de matriz africana ou população de ascendência africana. Por exemplo,
as populações de matriz Bantu, com origem na África Central e os Iorubás, também
denominados Nagôs, oriundos da África Ocidental, apresentam registros e características relevantes no cotidiano do “Brasil Real”.
O país sabe com clareza que, no período entre 1871 e 1920, 3.390.000 imigrantes europeus
chegaram ao país, dos quais: 1.373.000 eram italianos; 901.000, portugueses e 500.000,
espanhóis. Muitos europeus no Brasil vão ocupar territórios onde já estavam estabelecidas
populações africanas ou de seus descendentes, como, por exemplo, a ocupação de imigrantes italianos (1880) no sítio de Sapucaí, na região do grande Quilombo do Campo Grande,
na antiga Província de Minas Gerais. É importante notar que esse número se aproxima dos
quase 4.000.000 africanos que foram retirados de seu hábitat natural e trazidos para o Brasil
oficialmente entre 1520 e 1850.
Esse é mais um fator geográfico que colabora para a falta de uma referência ancestral de
origem da população brasileira de referência africana, com interferências profundas na sua
cidadania e no sentimento de pertencimento territorial. Afirmar para esse contingente que
os seus antepassados foram “trazidos” do continente africano é vago, sem consistência,
desrespeitoso, quando se trata de uma extensão com mais de 30.000.000 km2, com contextos territoriais de centenas de antigos reinos, impérios e grupos étnicos desconhecidos da
historiografia oficial do país. Essa demanda secular, que possibilitaria uma ligação espacial
mais referenciada e mais precisa na África, continua sem resposta satisfatória e nem perspectiva de solução institucional.
É importante destacar que as populações africanas subsaariana não foram responsáveis
somente pela ocupação efetiva do território brasileiro e pela mão de obra, eles marcaram
e marcam, de forma irreversível, a nossa formação social, tecnológica, demográfica e
cultural que, ao longo desses séculos, foi preservada e recriada, mesmo com as políticas
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História e Geografia do Vale do Paraíba
contrárias do sistema. Vários setores da população brasileira contemporânea são vítimas
de discriminação e preconceitos de toda a ordem. Entre os tipos de discriminação, a
étnica, que atinge particularmente o contingente de ascendência africana no país, é sem
dúvida a de maior extensão social e territorial, devido à grande expressão demográfica.
Os problemas se revelam já quando se quer saber qual o número real de “negros” ou
da população de ascestralidade na África. É importante lembrar que a palavra “negro”
tem historicamente um significado pejorativo, de algo ruim, que não é humano, mas
associado a animal. Esse é um ponto de esclarecimento e correção histórica necessária
e que requer uma ação política e educacional consequente, até porque, está incorporado
de forma secular no pensamento social brasileiro. Se não fossem os negreiros e seus navios, comerciantes de seres humanos escravizados no continente africano, não existiria o
“negro” e a “negra”, tratados como mercadoria. Daí vem a “invenção” e promoção do
engano secular denominado “raça negra”.
A questão demográfica do “Brasil africano” tem ficado historicamente sem resposta adequada, isto porque os critérios de aferição racial oficiais levam à subestimação do numero
real de cidadãos de matriz afro-brasileira que integram o país. O Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) tem agrupado os indivíduos em brancos, pretos, amarelos e pardos, considerando brancos, pretos ou amarelos os que assim se declararem e os
“outros” ficam classificados como pardos. A representaçao cartográfica da população
recenseada como “preta” no Censo Demográfico realizado em 2000 pelo IBGE, nos
revela a presença expressiva dessa população no país, destacando, principalmente que o
Brasil urbano, periurbano e rural é significativamente afro-brasileiro. Existem evidências
de que o contingente populacional brasileiro de matriz africana não é minoria e essa é
mais uma estratégia do sistema de classificar os grupos discriminados de minorias, fazendo supor que estes atingem um número de pessoas menor que o de fato, utilizando-se de
artifícios numéricos.
Se fizermos uma simulação e juntarmos as populações recenseadas pelo IBGE como
“preta” e “parda” do Brasil no ano 2000, teremos 69.649.861 habitantes (47% do contingente nacional). Não podemos perder de vista o que nos lembra o ditado popular:
“de noite todos os gatos são pardos”. Ou seja, associado ao “pardo” está a indefinição
da sua identidade, do seu lugar na sociedade, da sua referência ancestral, em síntese, da
sua territorialidade. São milhares de homens, mulheres, crianças e idosos que sentem
internamente que não existe, ainda, um lugar definido na estrutura social do país. Por
ser um contingente populacional oriundo de um processo secular de “mistura” étnica, as
relações de valor que foram associados, sistematicamente, aos povos europeus, como o
“modelo” de referência e aceito pelo sistema dominante, imprimem vários desajustes nas
formas de pensar, de se inserir e de se enquadrar na sociedade brasileira. Se assumirmos
que a população considerada como “parda” nesse Censo é de fato uma população mestiça que tem graus diferenciados de ascendência africana, ficará evidente que a população
do Brasil com referência no continente africano não é minoria.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
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A cartografia da população contemporânea de matriz africana, mostra a expansão e a consolidação do “Brasil Africanizado” em toda a sua extensão continental. A predominância
da matriz Bantu, expressão que significa “as pessoas” ou “seres humanos”, revela a sua
importância na nossa formação cultural e identitária. Ao longo do século XX vai ficar mais
evidenciado os registros das distintas línguas africanas no país, constituindo o fato mais
importante da transformação da língua portuguesa, sobretudo as marcas significativas das
sociedades oriundas da grande bacia do rio Congo e das regiões do extenso Golfo da Guiné, com influência expressiva no nosso linguajar cotidiano. Algumas expressões de origem
Bantu, por exemplo, continuam bem integradas e presentes no nosso cotidiano como:
carimbo, quitanda, corcunda, caçula, cachaça, cachimbo, canjica, capanga, dendê, dengo,
fubá, ginga, macaco, gangorra, macumba, maculêlê, minhoca, molque, quiabo, dentre outras, constituem uma pequena mostra do português afro-brasileiro (Castro, 2001).
As estatísticas apontam o Brasil como a segunda maior nação negra do planeta e é com relação a essa população que são computadas as estatísticas mais discriminatórias e de depreciação socioeconômica. Nos piores lugares da sociedade e do território, com algumas exceções,
estão as populações afro-brasileiras. Não é possível mais esconder que temos diferenças sociais, econômicas, territoriais seculares e estruturais, para as quais os ”remédios” ainda estão
chegando e os assuntos são empurrados para um outro dia, para a próxima semana, no mês
que vem, no próximo ano, que nunca chega. E os séculos estão passando!
Dessa maneira, ser descendente do continente africano no Brasil, secularmente continua sendo um fator de risco, um desafio para manutenção da sobrevivência humana, um esforço adicional para ter visibilidade no sistema dominante e, sobretudo, colocar uma energia adicional
para ser – estar inserido. É uma luta secular contra a exclusão territorial, social e econômica.
3 – Conclusões e Recomendações
Considerando-se que as construções analíticas e as especulações não se esgotaram, concluímos e recomendamos o seguinte:
• A questão do desconhecimento da população brasileira no que se refere ao continente
africano é um entrave para uma perspectiva real de democracia racial no país. Não
podemos perder de vista que entre os principais obstáculos criados pelo sistema a
inserção da população de matriz africana na sociedade brasileira, está a inferiorização
desta no ensino. Esse contexto somente poderá mudar com uma política educacional
mais agressiva e com o foco direcionado para desmistificar o continente africano para
a população do Brasil. O brasileiro não pode mais ficar achando que a África é um
país; nem tão pouco achar que somente existem doenças; seres humanos e culturas
primitivas; espaços para safári e animais exóticos, etc. O dano principal dessa informação errônea é auxiliar na manutenção de uma população preconceituosa às referências
africanas e ser feita uma associação imediata aos afro-brasileiros e afro-brasileiras. Este
é um ponto estrutural para um processo de mudança, onde o ser humano brasileiro
de ascendência africana seja, de fato, mais respeitado no sistema. Uma parte grande do
problema, continua sendo, a desinformação, ou seja, a posição da África, geralmente
um dos últimos continentes nos compêndios escolares e oficiais, precisa ser alterado;
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História e Geografia do Vale do Paraíba
• Outro ponto estrutural, ainda dirigido ao setor decisório do país, se refere à criação
das condições necessárias para a realização de um censo demográfico mais realista e
que retrate melhor a diversidade étnica brasileira. Este tema é complexo, porque significa mudar os métodos de aferição da população e, por conseguinte, a possibilidade de registro oficial de um “Brasil Africano”até então sem evidência. Acreditamos,
caso exista prioridade política, que ainda é possível uma revisão dos procedimentos
metodológicos dos Censos Demográficos oficiais, que poderia incorporar os avanços já conquistados nas centenas de experiências de Censos Étnicos Escolares já realizados por professores e diretores de escolas da nação. Um componente estrutural
neste processo são os programas educacionais de conscientização e esclarecimento
das matrizes étnicas de formação e sustentação do Brasil.
• É importante não perder de vista que vivemos o momento histórico de redefinição
de uma identidade no país para os afro-brasileiros. Este processo de inclusão social
constitui um desafio para as duas partes: um Brasil “maquiado de Europa” que está
sendo pressionado para mudar, para incluir, para reconhecer cidadanias e direitos
históricos de outras matrizes culturais e étnicas e, do outro lado, a “África brasileira”, secularmente excluída, aflorando os seus conflitos internos, buscando formas
eficazes de diálogo com o sistema e com o desafio de minorar o “medo” do “Brasil
europeu” de que não vamos lhe tomar o Brasil. Podemos conviver com menos hipocrisia, mais respeito pelas diferenças e equilíbrio socioeconômico!
• Acreditamos no processo educacional como um elemento de transformação e
de reconstrução dos conteúdos e informações errôneas, assim como a visibilidade na sociedade civil, como ferramentas para ampliação do conhecimento
e minorar o preconceito. Neste sentido, algumas atividades itinerantes, como
as Exposições Geográfica-Cartográfica: A África, o Brasil e os Territórios dos Quilombos e, mais recentemente, a mostra O Brasil Africano:
Diáspora-Quilombos-Território-População, assim como, as Oficinas Temáticas: Matrizes Africanas do Território Brasileiro e A África, o Brasil
e os Quilombos: Heranças Geográficas, são eventos educacionais que têm
buscado uma maior visibilidade espacial e junto aos educadores e estudantes,
para essas questões geográficas estruturais da formação étnica do país. Outro
segmento importante são as publicações com toda a documentação cartográfica
e historiográfica das comunidades quilombolas, onde destacamos: Quilombos:
Geografia Africana-Cartografia Étnica-Territórios Tradicionais (2009) e
Territorialidade Quilombols: Fotos & Mapas (2011) e os materiais didáticos
da Coleção África-Brasil: Cartografia para o Ensino-Aprendizagem (2005
e 2007), que constituem em conjuntos vários mapas temáticos para auxiliar o
professor a transmitir informações sobre a Geografia da África e a Geografia
Afro-Brasileira. Outras informações do Projeto Geografia Afro-Brasileira:
Educação & Planejamento do Território e desses produtos podem ser acessadas no site www.unb.br/ih/ciga e www.rafaelsanziodosanjos.com.br
• Tomamos como premissa que as informações por si só não significam conhecimento. Entretanto, elas nos revelam que, com o auxílio da ciência e da tecnologia, temos condições de colaborar na modificação das políticas pontuais e
superficiais a fim de subsidiar a adoção de medidas concretas para alteração, de
forma estrutural, das situações das populações do “Brasil Africano”.
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NOTA. Este artigo é parte do material produzido para a Conferência: Matrizes Africanas do
Território Brasileiro, proferida no 1º. Congresso Nacional de História e Geografia do Vale do
Paraíba promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras (IHGV) em maio/2011.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
O Vale do Paraíba no Imaginário da Literatura Brasileira
Ivo Barbiéri*
“O modernismo é um diagrama da alta do café,
da quebra e da revolução brasileira.”
Oswald de Andrade
“A valorização do café foi uma operação imperialista.
A poesia Pau-Brasil também . Isto tinha que ruir com
as cornetas da crise.”
Oswald de Andrade
O título deste trabalho tem o propósito de pôr em pauta o tema das relações entre história
e ficção. Como estudioso da literatura brasileira, devo dizer que me situo do ponto de vista
do leitor crítico de textos literários. Com isto quero dizer que para mim a obra literária é
muito mais do que um documento a serviço da história, da sociologia, da antropologia, da
psicologia da filosofia ou do que quer que seja. Fundado nesse pressuposto, é que posso
afirmar que qualquer tentativa de interpretação do poema, do conto, do romance, da peça
de teatro como mera expressão histórica, sociológica, psicológica, antropológica ou filosófica, reflete uma concepção menor, empobrecedora da polivalência da linguagem literária
e redutora do alcance de significação da ficcionalidade. Pois, assim como a arte em geral, a
literatura cria um espaço aberto a múltiplas perspectivas cujo horizonte não pode ser confinado aos limites específicos de nenhuma disciplina.
Não obstante o fato de que a teoria tenha avançado muito na segunda metade do século
passado, seria ainda temerário tentar definir ou demarcar com precisão o lugar ocupado
pela poética na territorialidade dos discursos à semelhança, por exemplo, do que ocorre no
domínio das ciências. Mesmo os traços distintivos da literaridade diversamente acentuados
pelas diferentes teorias suscitam controvérsias no seio das próprias teorias que os formulam e daquelas que as contestam. O certo é que estamos diante de um problema complexo
que, a partir da linguagem, abre-se para o mundo dos valores simbólicos. Fenômeno antropológico por excelência, a necessidade do simbólico é inalienável da história bem como da
vida cotidiana e integra todas as culturas e civilizações.
Por isso, a indagação a respeito das relações da história com a poesia é uma questão que nos
persegue desde Platão e Aristóteles. Mas, tanto a resposta platônica que desqualifica a imagem poética por reproduzir mimeticamente arquétipos transcendentais, falseando, assim, a
verdade quanto a posição aristotélica, que define a história pelo critério da veracidade, ao
passo que o poeta elabora seus textos segundo o critério da verossimilhança, como sabemos, provocaram discussões intermináveis, sem jamais chegar a respostas cabais ou, sequer,
plenamente satisfatórias. Para começar, a separação dos discursos em campos conceituais
distintos é já em si questionável, uma vez que os diferentes discursos, às vezes, se interpenetram e estão em permanente diálogo entre si. Bastante conhecida e repetida é a frase de
Borges: “A METAFÍSICA É UM RAMO DA LITERATURA FANTÁSTICA. Num misto
de ironia e desdém pela especulação filosófica e teológica – modalidades de pensamento
totalizador entranhadas na cultura ocidental – a proposição de Borges quer diluir se não
apagar as fronteiras entre razão e imaginação, ciência e ficção. Hoje é a Cosmologia que,
*
Doutor em Literatura Brasileira. Livre-Docente - UFF. Professor Titular - UERJ. Ex-Reitor da UERJ. Escritor.
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objetivando desvendar os mistérios do universo, se autodenomina a ciência da totalidade.
Como opera com quantidades incomensuráveis – milhões de anos luz e milhões de galáxias
que nem mesmo a imaginação consegue abarcar – podemos, parafraseando Borges, dizer
que a Cosmologia, mais do que um ramo, é agora, não apenas um ramo, mas o tronco ou
a raiz da literatura fantástica. Parece lícito, então, concluir que o imaginário construído pela
ficção científica está sendo ultrapassado pelo imaginário científico, se já não tinha sido pela
Física Quântica e pela Teoria da Relatividade de Einstein. Por outra, se a ficcionalidade foi
alçada a uma posição de centralidade na investigação científica contemporânea, como afirma Pregogine, que dizer da interação, do diálogo intertextual dos discursos separados em
campos disciplinares distintos? Ninguém melhor do que o mestre Machado de Assis soube
sintetizar o paradoxo numa frase lapidar como esta: “Há nos mais graves acontecimentos,
muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.” (Machado do Assis: 1961, 63)
Feito este preâmbulo, passemos agora diretamente ao nosso tema: O vale no imaginário
da literatura brasileira. Como sabemos, o Vale do Paraíba torna-se histórica e economicamente importante com a expansão e progresso das grandes lavouras do café no decurso do
século XIX. Nas décadas de sessenta e setenta, o centro da produção cafeeira estava aqui,
e o Vale, símbolo da grandeza, prosperidade e sustentáculo da economia do Império, foi
consagrado com a famosa expressão: “o Brasil é o vale.” (Canabrava: 1985, 90)
Já em 1850, Vassouras ostentava o título de capital do café. Mas na década de oitenta as
lavouras declinam rapidamente, e, nos últimos anos do império, a crise se agrava, e os
sinais da decadência e abandono ficam estampados nas paisagens desoladas do campo e
da cidade, que Monteiro Lobato expressou muito bem com o título de Cidades Mortas.
Miscelânea de crônica e conto, o livro de Lobato capta com força dramática a realidade
fantasmática das ruas centrais com casarões apalaçados em ruínas, casas sem janelas, armazéns fechados. Na cidade exangue, pedreiros e carapinas feitos remendões resumem-se à tarefa de escorar paredes rachadas, remendá-las mal ou então demoli-las. No campo
a mesma desolação: léguas e léguas inóspitas, infestadas de sapé e samambaia. “Por
elas passou o Café como um Átila”, diz Lobato. Toda a seiva foi bebida, ensacada e
mandada para fora. Fazendas entristecedoras: o dono ausente, senzalas vazias, agregados
dispersos e cafezais extintos. (Lobato: 2007, 23) As chagas da decadência se leem igualmente no capítulo: Entre ruínas de contrastes e confrontos, onde se descreve a situação
miserável do caipira desfibrado que vive às bordas do Paraíba, “sem o desempeno dos
titãs bronzeados que lhe formam a linha obscura e heroica”, deixando os visitantes que
ali chegam de improviso impressionados, como se vissem uma ruína maior por cima
daquela enorme ruinaria da terra.” (Cunha: 1933, 213)
Embora Oswald de Andrade, em mais uma de suas famosas tiradas, afirme categórico: “O
modernismo é um diagrama da alta do café, da quebra e da revolução brasileira” (Oswald de
Andrade: 1972, 95), inútil investigar no périplo do café uma sequência de criações literárias
que representassem ficcionalmente o ciclo como faz José Lins do Rego, ao recriar em seus
romances o mundo dos engenhos, domínio do patriarca da casa-grande, servido pelos escravos do eito, as mucamas da cozinha e o espaço da bagaceira onde se misturam os meninos da
casa e os moleques da senzala. Igualmente vã seria a tentativa de identificar séries análogas às
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História e Geografia do Vale do Paraíba
produzidas por Jorge Amado em relação ao ciclo do cacau com as disputas, os conflitos e a
violência dos coronéis pela posse e exploração das Terras do sem-fim. Nem pensar em textos
que fizessem vislumbre à rica e diversificada saga do boi, abundantemente reproduzida na
ficção brasileira, desde Alencar até Guimarães Rosa, acervo literário que difundiu e perpetuou
motivos e mitos do imaginário sertanejo. Tampouco encontraremos no Vale uma epopeia
equivalente à do Tempo e o vento, de Érico Veríssimo, que recriou, a seu modo, as peripécias
heroicas dos Cambará e dos Terra, resgatando a memória das lutas de conquista, povoamento
e vicissitudes históricas dos gaúchos. Se, longe de se poder equiparar o imaginário do Vale difundido pela literatura ao do Sertão nordestino ou ao dos pampas riograndenses, qual a pauta
e o registro que o compõem? Qual o lugar dos barões do café, das paisagens típicas das fazendas senhoriais, com seus salões, alcovas, mobiliário, espelhos de moldura dourada, lustres
de cristal, serviços de porcelana e camas francesas, aquele refinamento do trato e as maneiras
aristocráticas que ostentavam o poderio e o esplendor do patriciado cafeeiro? Ou então a
crise, o declínio da produtividade dos cafezais, a decadência das lavouras e o esgotamento das
terras do Vale? Mais ainda, como identificar os reflexos da economia do café na sociedade da
corte fluminense, que prosperava e se afidalgava graças à riqueza então produzida, e da qual
se apropriavam meia dúzia de famílias privilegiadas? Sem dúvida, serão outros os caminhos
que nos conduzirão ao imaginário do ciclo cafeeiro em nossa literatura. Ainda que fartamente
registrado em textos de épocas e autores de vários períodos, este se apresenta fragmentado
e descontínuo, disseminado através de alusões, analogias, referências ora diretas, mais vezes,
porém, de modo indireto. Tomando esse caminho, topamos de saída com o próprio Oswald
que, no fragmento prosperidade da série São Martinho de Pau Brasil, exalta o momento com
imagens grandiosas: “O café é o ouro silencioso/de que a geada orvalhada arma torrefações
ao sol.” Na paisagem “O cafezal é um mar alinhavado/ Na aflição humorística dos passarinhos/ Nuvens constroem cidades nos horizontes dos carreadores/ E o fazendeiro olha os
seus 800.000 pés de café”. (Oswald de Andrade: 1966, 90.) Incisivo e contundente, o poeta
projeta, em meia dúzia de versos, um mundo de prosperidade, riqueza e deslumbramento. Já
em senhor feudal, substitui a exaltação grandiloquente pelo deboche do poema piada: “Se
Pedro Segundo/ Vier aqui/ Com história/ Eu boto ele na cadeia” (ib, 87), ironizando na voz
fictícia do fazendeiro a arrogância de quem se considera senhor absoluto em sua propriedade.
A poesia Pau Brasil (1924) sumariza o vanguardismo radical de 22, a chamada fase heroica
do modernismo, que se inaugura com Paulicéia desvairada (1922), de Mário de Andrade. Ali,
no primeiro fragmento da Paisagem Nº 4, repercute ruidosamente a dinâmica da riqueza
gerada no auge da prosperidade. Ouçam estes versos: “Os caminhões rodando, as carroças
rodando,/ rápidas as ruas se desenrolando,/ rumor surdo e rouco, estrépidos, estalidos.../
E o largo coro de ouro das sacas de café!...”( Mário de Andrade: 1955, 67). Nessa sinfonia
estridente, orquestrada à base de ásperas aliterações e imagens trepidantes, o poeta evoca
a euforia dos anos do progresso, que antecedem a crise e a quebra do final da década. Dez
anos depois, o mesmo Mário descortina a paisagem contrastante de outro tempo no texto
mais diretamente representativo da crise da economia cafeeira com o poema operístico
intitulado: Café – Tragédia secular. Ali, Mário de Andrade focaliza a quebra da virada da
terceira para a quarta década do século passado. Já, na página de abertura da composição
– Coral do queixume –, o poeta dá o tom da peça: “Minha terra perdeu seu porte de grandeza.../ O café que alevanta os homens apodrece [...] O café ilustre, o grão perfumado/
Que jamais recusou a sua recompensa,/ Nada mais vale, nada mais...” Em continuidade,
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passa pelo êxodo dos colonos, que “Na estaçãozinha do trem de ferro”, atraídos pelos
apelos da cidade, chegam esperançosos. Depois, atravessa a revolução de trinta e termina
com o Hino da fonte da vida, final apoteótico que, enaltecendo a vida – fruto da união e da
justiça, concedidas àqueles que provam “deste vinho/sanguíneo das multidões” (ib, 463). E
sempre renascerá com a força do amor, do trabalho e da paz. Escrita entre 1933 e 1942, a
concepção melodramática reflete a temperatura emocional da época: melancolia, desolação
sem anular a utopia.
Mas, certamente é A moratória, peça de Jorge Andrade, que representa com mais força e
impacto dramático a crise de 29. Figura exponencial da moderna dramaturgia brasileira,
nascido numa fazenda e tendo passado a maior parte de sua vida no interior, o autor põe
em cena a crise social que atinge diretamente o fazendeiro e sua família e assinala a decadência irreversível da aristocracia rural. Evocando o fim melancólico desse processo, a ação
põe em cena situações de esperança e desespero, alternando virtudes e fraquezas de uma
classe que oscila entre o sentimento de exaltação da dignidade individual, da honestidade e
solidariedade familiar, assim como preconceitos de casta: orgulho e ambição desmesurados,
teimosia obsessiva e ânsia de domínio, assim como a incapacidade de percebe e aceitar a
realidade dos novos tempos e as mudanças das condições de existência. A história montada
em dois planos – o passado e o presente – possibilita aproximar e contrapor fatos e episódios separados no tempo e acentuar contrastes e contradições pela força da enunciação
dramática. Mas A moratória não se compraz apenas em consignar os estertores da crise de
1929 motivada pelo aviltamento do preço do café, dramatiza também o empenho do fazendeiro em reverter o processo de falência e evitar a perda da fazenda numa desesperada
tentativa de sobrevivência – vã esperança destinada ao fracasso que se consuma em 1932.
Concluo citando Sábato Magaldi: “1932 encerra em definitivo uma fase da vida nacional e
A moratória sela, na literatura, o processo de decomposição [...]: decadência, derrota, corte
de um mundo fadado a desaparecer.” (Magaldi: s/d, 212)
Do historiador Evaldo Cabral de Mello: “Assim como a realidade do engenho de açúcar só
nasce para a literatura quando este praticamente já não existia, [...] o senhor de engenho só
passou a ser personagem histórico quando se achava reduzido ao papel de mero banguezeiro ou fornecedor de cana. Dessa nostalgia senhorial deriva o romance de Zé Lins: Fogo
morto.” (Mello Neto: 1997, 386). Será que a afirmação seria válida se aplicada ao ciclo do
café no Vale do Paraíba? Só com o que mostrei acima, não dá ainda para dizer sim ou não.
Entretanto, a leitura atenta da ficção de Machado de Assis é que nos vai fornecer todos os
elementos para responder objetivamente à questão, visto que, especialmente os cinco últimos romances machadianos cobrem todo o período – expansão, apogeu, declínio e fim do
ciclo. Brás Cubas (1880) tem a ação datada entre os anos de 1805/69; Quincas Borba (188691) vai de 1867-71; Dom Casmurro (1899) de 1857-71; Esaú e Jacó (1904) de 1871-94; e Memorial de Aires (1908) de 1888-89. Entretanto, é preciso dizer que a ficção machadiana não
descreve nem focaliza diretamente os fatos. A mordacidade crítica da prosa do mestre, elaborada com humor e ironia cortantes, insinua-se sutil através de alusões, indícios e detalhes
à primeira vista secundários e periféricos à ação principal, mas que ganham extraordinário
relevo se devidamente contextualizados. Para dar um exemplo, lembro o conto O espelho,
cujo subtítulo: “uma nova teoria da alma humana” tem direcionado os estudos. O foco da
narrativa oscila entre a observação realista e a projeção fantástica. Os estudos sobre o texto
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História e Geografia do Vale do Paraíba
detiveram-se geralmente no aspecto ensaístico, no registro parodístico e zombeteiro do
cientificismo da época especialmente aplicado à filosofia e à psiquiatria. Assim a teoria das
duas almas – uma exterior e a outra exterior – expostas por Jacobina, o personagem narrador, tem chamado sempre as atenções da crítica para o tema da crise de identidade. Embora
o texto não registre nenhuma data nem explicite localização precisa, são bem visíveis nele
as marcas do tempo e as sinalizações que o contextualizam. O fato de um moço pobre, de
25 anos, ser promovido a alferes da Guarda Nacional é bastante significativo. O nome da
instituição e a promoção social conferida pelo título de alferes são suficientes para ancorar a
ficção no contexto crítico do Segundo Reinando. O espelho, objeto ricamente simbólico, e
que ocupa lugar especial no desenrolar da trama, desempenhando função decisiva nas vicissitudes que o personagem atravessa, é uma imagem palpável da decadência de um passado
glorioso. “O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se ainda o ouro comido em
parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites
de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom ...” (Machado de Assis:
1882, 227). A poeira da estrada e o capinzal do morro, o sítio da roça abandonada pelos escravos à noite são outros tantos indícios que subsidiam a leitura. Se acrescentarmos ainda,
que o sítio da tia Marcolina ficava a léguas da vila (i. e, do Rio), teremos esboçado o cenário
da paisagem regional do Vale que, em franca decadência, guarda vestígios da fase do fausto.
Quincas Borba inicialmente editado aos capítulos na revista quinzenal A estação a partir de
1886 e lançado em livro em 1891, isto é, depois de cinco anos de longa e minuciosa elaboração, é o livro de Machado que ressalta com mais precisão os efeitos sociopolíticos e
econômicos da alta do café no fausto da Corte. O tempo da narrativa, historicamente datado de 1867 a 71, período coincidente com o apogeu da prosperidade do café no Vale do
Paraíba. A escalada vertiginosa de Cristiano de Almeida Palha ilustra alegoricamente essa
relação. Nos encontros e jantares requintados na casa de Santa Teresa, que reúne a fina flora
da sociedade fluminense, Cristiano e Sofia expõem ao olhar agudamente crítico de Machado cenas de ostentação hipócrita, de vaidades e futilidades pequeno-burguesas – comédia
encenada por um punhado de novos ricos com aspirações aristocratizantes, representantes
exemplares daquelas famílias privilegiadas que, se apropriando da riqueza gerada pelo café
do Vale, lisonjeiam os poderosos e sonham em se apossar do poder. A escalada econômica e social dos Palha, materializada na construção do palacete em Botafogo e associada à
espoliação da fortuna de Rubião, assim como o refinamento dos hábitos e a sofisticação
dos sentimentos indiciam a complexidade espúria desse jogo de ascensão ostensiva. Com
menos sutilezas e mais explicitamente, o capítulo XXI fornece a pista verdadeira para a
compreensão histórica desse fenômeno. A cena se passa dentro do trem que, parado na
estação de Vassouras, mostra o embarque de Cristiano e Sofia aproximando-se de Rubião,
passageiro procedente de Barbacena com destino ao Rio de Janeiro. O encontro dos três
personagens propicia o diálogo extremamente revelador daquele momento político do Império. Tanto o trem, ícone do progresso, quanto a questão servil mencionada na fala do
trono expressam bem aquela conjuntura. A indignação de Palha maldizendo o governo,
ele que, residente na Corte, não é lavrador nem proprietário de escravos, não só indicia a
posição conservadora do escravocrata quanto alude ao alcance do problema que afeta os
negócios do campo e da cidade. Quanto ao comentário de Rubião a respeito da estrada de
ferro que, apesar de cansativa e sem graça, não se podia negar “que era um progresso”,
além de expressar o ponto de vista de um ingênuo provinciano, acostumado a andar em
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lombo de burro, remete para a importância da ferrovia na história da expansão e prosperidade da lavoura cafeeira. Os historiadores, que conhecem bem esta história, sabem que
“Não se pode pensar na origem da Estrada de Ferro de D. Pedro II [hoje Central do Brasil],
sem que, ao espírito acuda, como ideia, a cidade de Vassouras.” (Taunay: 1985, 401) Pois foi
a luta dos homens ilustrados e das família ilustres desta cidade que determinou a mudança
do primitivo traçado para atender à demanda do Vale, levando a estrada à Barra do Piraí,
Três Rios, Porto Novo do Cunha até Barbacena, de onde procede Rubião com destino ao
Rio de Janeiro. Assinalada a referência histórica, importa dizer que a cena do trem ata os
fios fundamentais da trama romanesca de Quincas Borba. Na apresentação dos personagens
centrais, caracteriza-se a ingenuidade de Rubião, o oportunismo político e financeiro de
Palha e a vaidade matreira de Sofia – ingredientes que direcionam o sentido e temperam o
sabor da narrativa. Por tudo isto, a leitura atenta do capítulo XIX suscita questões cruciais
para o estudo do romance.
Ao passar agora para o Memorial de Aires (1908), último romance de Machado, estaremos
dando um salto no tempo de aproximadamente vinte anos em relação ao período contextualizado em Quincas Borba. Apresentados sob a forma fragmentária de diário, os apontamentos
do Conselheiro Aires, diplomata aposentado, começam a 9 de janeiro de 1888 e terminam em
30 de agosto de 1889, registrando os estertores do Segundo Reinado. Interrompido antes de
15 de novembro, o 13 de maio fica sendo o fato político-histórico central da narrativa – data
que o Memorial aproveita para condenar veementemente a instituição escravagista à perpétua execração. Se dermos razão a José Paulo Paes, que considera a Abolição “um divisor de
águas histórico, a separar o Brasil imperial do Brasil republicano, o mundo dos patriarcas do
mundo dos bacharéis, os tempos velhos dos tempos novos” (Paes: 1985, 35) – então nos
sentiremos instigados a investigar no romance o verdadeiro sentido da história da Abolição.
É o que veremos nos episódios da Fazenda do Barão de Santa Pia – parte importante da narrativa, aparentemente descolada do enredo principal do romance que se desenrola em volta
do casal Aguiar, que vive na Corte a velhice sossegada e serena de seu casamento longevo e
feliz. Para compensar a frustração de não terem tido filhos, adotam como tais Tristão, filho
de uma amiga de d. Carmo, casada com um comerciante de café, e Fidélia, filha do Barão de
Santa Pia e viúva do filho de um fazendeiro inimigo do Barão. Tristão e Fidélia se enamoram
e, casados, tornam-se filhos postiços do casal Aguiar. Como se vê, o enredo ambientado na
Corte tem elos fortes com a fazenda do Barão localizada em Paraíba do Sul. O significado
simbólico dos nomes é bem patente: Tristão remete à ópera de Wagner enquanto Fidélia à de
Beethoven. Ora, tanto a sinopse de Tristão e Isolda quanto à de Fidélio associam o tema da
paixão amorosa aos motivos da fidelidade e da liberdade – tema e motivos reincidentes no
diário do Conselheiro Aires. Fiel à memória do marido, Fidélia visita-lhe com assiduidade o
túmulo que, no dia de finados, ornamenta com coroas e flores (perpétuas, rosas e papoulas).
O diário do Conselheiro traça-lhe o perfil complexo e ambiguo: “Tudo poderia existir na
mesma pessoa sem hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa.”(Machado de
Assis: 1923, 213) É a viúva Noronha que mais consistentemente articula os dois planos: o
histórico e o fictício. Filha de um fazendeiro escravocrata, ela é abolicionista e defende a libertação dos escravos que o Barão acaba libertando antes do 13 de maio, não por generosidade
ou por concessão à convicção libertária da filha, mas pura desfeita, quer prevenir a decisão
do monarca, a seu ver, uma intromissão indébita no domínio exclusivo do proprietário sobre
sua propriedade de que os escravos são parte. Por isso, antecipa-se à abolição para que esse
direito não lhe seja usurpado.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
“– Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação,
por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário,
e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.” (ib., 54)
Não é difícil imaginar o tamanho da perda acarretada pelo ato do Barão, um fazendeiro
tradicional e escravocrata do Vale do Paraíba do Sul – área que dependia muitíssimo do
trabalho escravo. Mais importante, porém, é ressaltar o significado do seu gesto de altiva,
soberba e inabalável convicção. Por isso, não surpreende que, depois da Abolição, tal personagem toma a decisão de vender a fazenda, então em franca decadência, morrendo, porém,
antes de consumar o planejado negócio. Ao herdar a fazenda, Fidélia defronta-se com uma
situação problemática: “a lavoura decai”, mas os “libertos estão bem no trabalho”. Retornando ao Paraíba alguns meses depois, parece-lhe que “os libertos vão ficar tristes” ao saberem que ela vai passar a fazenda para outro proprietário, suplicam-lhe que não a venda e
fique com eles. A herdeira, entretanto, mantém a sua decisão até dois meses depois, quando
vem a saber que “os libertos, apesar da amizade que têm ou dizem ter, começam a deixar
o trabalho”. No dia 15 de abril: “Já se não vende Santa Pia, não por falta de compradores,
ao contrário; em cinco dias apareceram logo [...] dous.” Seguindo o conselho insinuado por
Tristão, agora seu marido, Fidélia decide doar a fazenda aos libertos, seus antigos cativos.
28 de Abril
Lá se foi Santa Pia para os libertos, que provavelmente a receberão com
danças e com lágrimas; mas também pode ser que esta responsabilidade
nova ou primeira...
Reticente, o Conselheiro suspende a frase e nada acrescenta. Já no apontamento do dia
15, aplaudindo a mudança do plano de vender a fazenda e, depois de dizer que “melhor é
dá-la aos libertos”, deixa no ar a inquietante questão: “Poderão estes fazer a obra comum
e corresponder à boa vontade da sinhá-moça?” Esta pergunta, que Aires não responde,
acerta no alvo da questão importante e nela podemos identificar a argúcia crítica do texto
de Machado. O Conselheiro, obviamente, considera louvável a dádiva e não põe em dúvida
a generosidade de Fidélia. Mas o verdadeiro autor do texto, que delegou ao pseudoautor do diário a tarefa de registrar e comentar os fatos textualizados, não necessariamente
deve endossar as opiniões emitidas do ponto de vista do narrador fictício. Efetivamente,
aquela pergunta: “será que os ex-escravos poderão dirigir a fazenda; será que a doação realmente os beneficiará?”, Machado a dirige implicitamente ao leitor, e cabe a nós procurar
respondê-la. Hoje, passado mais de um século da promulgação da Lei Áurea, podemos afirmar com segurança que os ex-escravos não tinham preparo administrativo nem condições
materiais para assumir as responsabilidades da doação e dirigir a fazenda. E esta resposta
alveja o cerne da questão acerca das benesses concedidas pela Abolição aos escravos e seus
descendentes. Os historiadores certamente conhecem a frase de Emília Viotti da Costa, que
resumiu tudo nestas sábias palavras: “A abolição libertou os brancos do fardo da escravidão, e abandonou os negros à sua própria sorte.” (Costa: 1966, 226) Podemos agora concordar com a interpretação de Gledson: “o romance [Memorial de Aires] mostra a verdadeira
história da Abolição, [...] e não revela uma exceção à história geral.” (Gledson: 1956, 224)
Assim como o desmantelo da Fazenda de Santa Pia e a libertação dos escravos por decisão
soberana do Barão podem ser vistos como representação alegórica do colapso do café
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no Vale do Paraíba e a vantagem da substituição do trabalho servil pelo assalariado, assim
também a dádiva de Fidélia pode ser interpretada como uma maneira de compensação da
dívida jacente em relação aos serviços não contabilizados dos ex-escravos que redundaram
de maneira incalculável em benefício do patrimônio por ela herdado. A dádiva revestida de
abnegada generosidade tira-lhe dos ombros esse fardo.
Relembremos aqui que a crise dos últimos anos do Império, que atinge toda a Zona do Vale
do Paraíba, agrava-se profundamente na década de 1880, dada a devastação dos solos, o declínio da produtividade dos cafezais e do valor das terras, concentrando-se a riqueza no estoque
de escravos que tendem a se reduzir e esfumar com a Abolição. (Fausto: 1975, 196) Compreende-se assim a indignação do fazendeiro diante da iminência de ocorrer, antecipando-se ao
fato consumado ao libertar a todos que lhe pertencem.
Para concluir este tour literário pelo vale do café, seria necessária uma parada mais demorada para apreciar do ponto mais elevado da paisagem vislumbrada pela ficção brasileira – o
romance A menina morta, de Cornélio Penna. Dar o salto de quase meio século do Memorial
à Menina é bem mais fácil do que tentar abarcar em poucas linhas a abrangência ampla,
complexa, inquietante alcançada pela prosa inventiva, densa, estarrecedora, criada por este
extraordinário e ainda pouco conhecido romancista fluminense que, graças à audácia investigativa e a competência crítica de alguns estudiosos, dentre os quais merece referência
especial Luiz Costa Lima, nenhum leitor esclarecido pode hoje por em dúvida a refinada
qualidade dos quatro romances de Cornélio Penna lançados a partir de 1936 e culminando
em 1954 com a publicação de A menina morta, sem dúvida, a sua obra-prima. Ao exaltar
a posição singular desta obra dentre todas as demais que, no quadro geral da literatura
brasileira, abordam questões pertinentes à realidade do Vale do Paraíba, não devemos imaginar que se trate de um romance histórico no sentido estrito do termo. Não! Nele não
temos nada de regional, pitoresco, ou folclórico, nenhuma das minudências que lembrem
a imitação servil da crônica ou das fantasias da história romanceada. Se o olhar literário
de Cornélio Penna penetra “fundo e contundente até ao fundo denegado e inconfessável da nação”, se “melhor do que qualquer outra obra consegue representar a psicologia
complexa e terrível da violência interna à casa-grande, enquanto núcleo essencial e não
propriamente mitologizável da ordem escravocrática”, se a história trágica duma família
senhoril “simboliza a ruína dum modelo inteiro de produção de riquezas” e, por isso, “A
menina morta é daqueles romances imprescindíveis para o conhecimento do Brasil”, como
pensa Roberto Vecchi: (2006, 553) – tais méritos devem-se todos à linguagem do texto
literariamente elaborada pelo autor. Mais do que as referências explícitas ao rio e ao vale
do Paraíba, nome recorrente à maneira dum leitmotif, mais do que indicações alusivas ao
contexto espaço-temporal da trama romanesca, como, por exemplo, à estação do trem em
Entre Rios (hoje, Três Rios) inaugurada em 1867, ao Porto Novo do Cunha (1871), à raiz
da serra da Estrada de Ferro Mauá (1856), ao fato de Carlota alforriar os escravos por conta
própria, isto é, antes de 1888, fica evidente que a ação se passa no Vale, entre 1867 e 1871
(Costa Lima: 2005, 102-3), isto é, no período áureo do café, embora o texto não registre
nenhuma data. Entretanto, a história completa do fastígio e da ruína da lavoura cafeeira no
Vale do Paraíba pulsa dramática no âmago da ficcionalidade do texto. O poder absoluto, a
prosperidade e o fausto do fazendeiro estão compactados neste parágrafo: “A fazenda era
enorme e rústico palácio, fortaleza sertaneja de senhor feudal sul-americano, e tudo ali era
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História e Geografia do Vale do Paraíba
grande e austero, de luxo sóbrio e magnífico, mas era preciso viver naquelas salas amplas,
de tetos muito altos, e mobiliadas com móveis que pareciam destinados a criaturas gigantescas, sem contar com coisa alguma de certo nem no presente nem no passado.” (Cap.XXV,
127) A expansão latifundiária da monocultura está aqui: “Começaram depois a surgir os
cafezais intermináveis em suas ruas regulares que vinham ter até na estrada, e dela partiam
em retas para o horizonte dos dois lados, e mostravam a estrada límpida batida, ora pequenos caminhos cercados de relva a lembrar imensos jardins, monótonos e ameaçadores
em sua grandeza.” (XXXI, 154) O regime escravocrata, em pleno vigor, mostra o universo
partido entre a vida aprisionada na casa-grande com sua ostentação de poder, luxo, riqueza
e a efervescência promíscua da senzala habitada pelos negros de diversas nações, assim
escolhidos “para que não formassem grupos à parte” e não pudessem se comunicar através
da “linguagem secreta de uma só algaravia”. Além do trabalho desumano brutalmente controlado pelos feitores e a repressão impiedosamente comandada por um diretor submisso
às ordens emanadas de cima, a violência dos castigos é denunciada com veemência na cena
monstruosa de escravos torturados, presenciada por Carlota que, atraída pelo lamento profundo e sombrio ouvido de fora, penetrou na sala atijolada onde viu “corpos contorcidos
pela posição de seus braços e pernas, presos no tronco, e cujo odor de feras enjauladas lhe
subia estonteante às narinas.” (CIX, 463) Enquanto o poderoso fazendeiro isolado em sua
soberba tirania cultiva o enigma da menina morta cujo enterro ordena que seja secreto e
proíbe a cerimônia coletiva proposta pelos negros e, 30 dias depois, manda reprimir violentamente a procissão noturna das negras que “dentro da mata ainda escura, caminhavam
mudas, muito unidas, formando um só bloco esbranquiçado que se movia pesadamente nas
trevas”. A romaria que, feito “um dragão fabuloso [...] se agitava seguro e muito rápido em
marcha espectral” rumo à sepultura da sinhazinha que veneram, de repente fica imobilizada
pela voz ameaçadora do feitor que, seguido de dois capangas, ordena que parem e voltem
já e já!”. (CVI, 76) A repressão que de imediato desperta sentimentos de raiva e revolta,
reaviva o conflito latente que lavra surdo e ameaçador contra a prepotência da casa-grande.
O ambiente do Grotão, que representa o mundo contraditório do Vale, torna-se então mais
e mais carregado e se agrava ainda mais com a postura imperial do Comendador patriarca,
e com o porte de rainha da Condessa, permanentemente trancada em seu aposento, “como
um ídolo se fechava longe de todos, fora da vida” (158) que se agita à sua volta. Mas toda
esta aparência aristocrática, confinada dentro da casa-grande, vive em estado de alerta permanente contra o bulício ameaçador que fervilha lá fora e sob a iminência da desgraça. Pois
as incertezas do futuro prenunciam a ruína da fazenda que, desfeita em pedaços, pode se
esvair em fumaça e cair no abismo como sabe Dona Virgínia pelas “confidências ocasionais
obtidas aqui e ali das companheiras de infortúnio”. (99) Os sinais da fatalidade pressagiados
desde o início com a morte misteriosa da menina, cujo enigma aterrador está presente ao
longo de toda a narrativa. E quando Carlota, a filha mais velha, é retirada do colégio para,
de volta à fazenda, suprir a ausência da sinhazinha, e chega “como o sopro novo e poderoso da vida naquela casa, para suspender a rápida agonia da fazenda. Cada qual sentia no
íntimo, ter o Grotão se fendido do alto a baixo, na iminência de ruir, e algum mal estranho
corroía suas entranhas...” (LIX, 262) Efetivamente, é chegada a hora da desgraça anunciada: “Uma grande mola parecia ter sido quebrada e todo aquele enorme organismo” entra
em colapso. Ao constatar a ruptura provocada por Carlota, Vecchi lembra o tema da culpa
trágica, a culpa inocente que ela mesma assume estarrecida diante do quadro dos escravos
no tronco da tortura: “agora via o que realmente se passava, quais as consequências das
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ordens dadas por seu pai e como aqueles homens velhos, os feitores de longas barbas e de
modos paternais, que a tratavam com enternecido carinho, cumpriam e ultrapassavam as
penas a serem aplicadas. Sabia agora o que representava o preço dos pedidos da menina
morta” [...] – conclusão a que chegou, depois de lembrar-se das “histórias contadas de que
a menina morta ia “pedir negro”... (463) Daí à confissão murmurada no último capítulo é
apenas um passo. “– Eu é que sou a verdadeira menina morta... eu é que sou essa que pesa
agora dentro de mim com sua inocência perante Deus... Aquela que morreu e se afastou,
arrancando do meu ser o seu sangue para desaparecer na noite, não sei mais quem é... e
a mim me foi dada a liberdade, com a sua angústia, que será a minha força! (CXXV, 527)
A perspectiva aberta ao trágico instiga a leitura na chave da interpretação alegórica. Sonhada por Libânia como “nhanhãzinha de volta”, Carlota “não passa duma duplicação, duma
repetição da menina morta imposta como meio para a manutenção autoritária da ordem.
E ao transgredir a lei da família, aparentando assumir um vínculo de solidariedade com os
excluídos, revela a inutilidade da tentativa, pois impossível resgatar com o seu sacrifício
os fracassados da história. (Vecchi, 545.) Denegado o mito da cordialidade entre senhor e
escravo no regime escravocrata brasileiro, retornamos à raiz significante da ficcionalidade
que, para além da gratuidade do jogo poético, penetra nos desvãos dos acontecimentos
histórico-políticos, não apenas para suprir pormenores perdidos, mas, sobretudo, para desdobrar e radicalizar os seus significados. (Costa Lima: 1984, 260)
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II, vol. 4. (História geral da civilização brasileira. Direção de Sérgio Buarque de Hollanda).
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VECCHI, Roberto. Posfácio em A menina morta. (2006, pp. 531-53)
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Parte II – Homenagem a Milton Santos
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Milton Santos, Pensador do Espaço Humano
João Henrique dos Santos*
Resumo
A presente comunicação visa a apresentar algumas reflexões sobre os temas desenvolvidos pelo geógrafo Milton Santos em sua obra relacionados à ocupação do espaço urbano,
pensando-o sempre como um espaço humano, a partir de sua perspectiva integradora dos
saberes. Neste sentido, a obra de Milton Santos transcende os limites da Geografia, sendo
um fecundo campo de reflexão para arquitetos, sociólogos, historiadores e cientistas sociais, constituindo-se em veículo dialógico entre as diferentes Ciências Humanas, nas quais
a Arquitetura insere-se de forma perfeita.
Apresentação
Um primeiro título pensado para esta comunicação foi “Milton Santos – um pensador além
do marxismo”, pois focava naquilo que julgo um dos mais expressivos pontos do pensamento do geógrafo baiano Milton de Almeida Santos: ter-se valido do marxismo como
uma ferramenta de reflexão geográfica e sociológica sem por ele se deixar escravizar. Efetivamente, entre os de sua geração foram poucos os acadêmicos e intelectuais que não se
deixaram seduzir pelo dogmatismo totalizante, quase religioso que o pensamento marxista
oferecia e representava.
O pensamento questionador e libertário de Milton Santos não se poderia aprisionar por
ideologias, por mais sedutoras que estas fossem. Ademais, o título originalmente pensado
não traduziria a essência do que se deseja aqui apresentar: as reflexões de Milton Santos
sobre o espaço humano. Não se pretenderia, por óbvio, tentar aprofundar uma análise
sobre o vasto e fértil pensamento de Milton Santos neste curto espaço de tempo que são
destinados, e por isso o foco está na percepção desse intelectual sobre o espaço humano.
Espaço humano x Espaço do homem
Ainda que possa parecer meramente semântica, esta distinção soa-me como ponto de partida para uma interpretação do pensamento de Milton Santos. Para ele, o homem está no
centro de suas reflexões e, desta forma, todo o espaço, em tese e a priori, seria “espaço do
homem”, seja este natural ou construído. Frisa o autor em Pensando o Espaço do Homem: “A
paisagem nada tem de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade passa por um processo
de mudança, a economia, as relações sociais e políticas também mudam, em ritmos e intensidades variados A mesma coisa acontece em relação ao espaço e à paisagem que se
transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade” (SANTOS, 1982, p. 54).
Assim, o que buscarei apresentar nesta breve comunicação será a percepção de Milton
Santos sobre os fenômenos que fizeram com que o espaço do homem fosse tornando-se, cada vez mais, um espaço menos humano, no qual a plena realização humana fosse
sendo tornada infactível.
*
Professor do Departamento de História e Teoria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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A globalização, da qual Santos, assim como Noam Chomsky, foi duro crítico, fez, segundo sua análise, com que o espaço humano fosse ficando com suas fronteiras mais
fluídas do ponto de vista da construção da consciência, esta, entendida claramente sob a
perspectiva marxista de iniciadora de transformações estruturais, como se depreende da
entrevista dada por ele ao programa Roda Viva, da TV Cultura (SP): “Gostaria de dizer
que a classe média já começa a conhecer a experiência da escassez. E isso pode ser bom.
Como a classe média, na sua formação, tem uma capacidade de codificação maior, isso
vai nos levar a uma precipitação do movimento social, da produção da consciência, ainda
que seja de uma maneira incompleta.”
A fluidez mencionada acima refere-se à alteração do paradigma marxista de que a classe
operária seria a motriz da revolução socialista a partir do ganho da consciência de si e da
exploração. Para Milton Santos, o espaço do homem continuava sendo o da mais-valia, da
oposição entre capital e trabalho, como ele tão bem demonstra em A urbanização desigual,
no qual (pp. 26-30) critica parâmetros ditos “canônicos” de variáveis para a categorização
de urbanização e renda (SANTOS, 1980).
Neste sentido, o espaço globalizado do homem revela-se a antítese da possibilidade das realizações do humano mas, paradoxalmente, é nele que o humano tem que se realizar.
Mas quem são os atores principais desse processo de realização? Para Milton Santos, são os
pobres, aqueles que, em um conceito sartreano recuperado por ele, são os que têm a “sabedoria da escassez”. Não se trata da teológica “opção preferencial pelos pobres”, mas sim da avaliação marxista de que os pobres – e neste conceito ele incluía a classe média, que até próximo
ao ano da sua morte (2001), passava por um processo de empobrecimento – são os portadores principais dos instrumentos ideológicos que permitem o avanço das classes oprimidas.
Onde estão os paralelos e os meridianos?
Permito-me perguntar, após a leitura dos mais de 40 livros escritos por Milton Santos, “onde
estão os paralelos e os meridianos?”, tão comuns aos ensaios geográficos.
Não estão. Simplesmente não estão, pois para Milton Santos o espaço humano transcendia
longitudes e latitudes, sendo definido por um ser-no-mundo, com suas condicionantes e determinantes. É o que já propunha em sua obra de seminal perspectiva revolucionária, Por uma
Geografia Nova, de 1978, na qual apontava os rumos que seguiria, rompendo com uma visão
ortodoxa e, a seu ver, acrítica, que até então vinha sendo hegemônica entre os geógrafos.
A interdisciplinaridade, proposta por ele no capítulo 9, no início da Segunda Parte desse
livro, permite a que os não geógrafos criem pontes dialógicas com estes no intuito de
investigar o espaço humano e a plena realização do homem. Desta forma, Milton Santos
traz a Geografia para o plenário mais amplo das ciências humanas e sociais e faculta aos
acadêmicos dessas áreas o acesso à Geografia de modo que os saberes da Geografia Humana e da Geografia Econômica sejam trabalhados e interpretados pela Academia de forma
mais ampla, sem que se atenham a paralelos e meridianos quer da geografia quer de seus
próprios saberes acadêmicos específicos.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Cintando Luis Lopes Diniz Filho em Fundamentos epistemológicos da geografia, “a obra de Milton Santos é inovadora e grandiosa ao abordar o conceito de espaço. De território onde
todos se encontram, o espaço, com as novas tecnologias, adquiriu novas características para
se tornar um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações” (DINIZ
FILHO, 2009, p. 198).
Conclusão? Não, não há
Não se propõe aqui uma conclusão de qualquer natureza, pois a obra de Milton Santos
deve ser lida como uma obra aberta, um permanente por-fazer, que, ao tempo em que responde a algumas perguntas, induz o leitor a formular dezenas de novos questionamentos.
Sirva esta comunicação como uma modesta homenagem ao prof. dr. Milton de Almeida
Santos, brasileiro, negro, advogado por graduação, geógrafo por pós-graduação, humanista
por opção; doutor honoris causa por treze universidades brasileiras e estrangeiras; detentor
do que se convencionou denominar “o Prêmio Nobel da Geografia”, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, que lhe foi concedido em 1994; no tempo intermédio entre
a celebração de seu 85º aniversário de nascimento e 10º aniversário de sua morte.
Referências Bibliográficas
SANTOS, Milton. A cidade nos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira
S.A., 1965.
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São Paulo: AGB, 1977, pp. 81- 99.
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___. Pobreza urbana. São Paulo/Recife: Hucitec/UFPE/CNPV, 1978.
___. Economia espacial: críticas e alternativas. São Paulo: Hucitec, 1979.
___. Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.
___. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1979 (Coleção Ciências Sociais).
___. A urbanização desigual. Petrópolis: Vozes, 1980.
___. Manual de Geografia urbana. São Paulo: Hucitec, 1981.
___. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982.
___. Ensaios sobre a urbanização latino-americana. SP: Hucitec, 1982.
___. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.
___. O meio técnico-científico e a redefinição da urbanização brasileira. Projeto de pesquisa apresentado ao CNPq, 1986 (datilografado).
___. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.
___. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.
___. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
___. Por uma economia política da cidade. São Paulo: Hucitec /Educ, 1994.
___. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.
___ e SOUZA, Maria Adélia A.(org.). A construção do espaço. São Paulo: Nobel, 1986.
73
___. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora
Record, 2000.
Outras bibliografias citadas e consultadas
DINIZ FILHO, Luiz Lopes. Fundamentos epistemológicos da Geografia. S. Paulo: Ibpex, 2009.
GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. S. Paulo: Edusp, 2010.
74
História e Geografia do Vale do Paraíba
Meu Mestre Milton Santos
Eliane Alves da Silva*
Introdução
É uma honra participar deste evento do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras,
cujo presidente é o professor da UFRJ Arquiteto e Urbanista Olinio Gomes Paschoal Coelho, companheiro de glórias e embates ao tempo em que éramos Conselheiros no CREA-RJ, do qual chegou a ser vice-presidente e eu Coordenadora da Câmara Especializada de
Engenharia de Agrimensura pelo Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro em 2005 e
2007. Foram dois livros organizados por Olinio: História e Geografia Fluminense (2008) e 75
Anos do CREA-RJ: A Invenção de Um Novo Tempo (2009), dos quais participei. Nesta segunda obra Milton Santos recebeu uma justa homenagem, como o maior e mais conhecido
geógrafo urbano que o Brasil já teve na página 115. Estudou com profundidade a forma, o
processo e o conteúdo da Urbanização Brasileira.
O professor Milton Santos foi meu mestre no Programa de Pós-Graduação em Geografia
da UFRJ, na Disciplina Teoria da Geografia, no início dos anos 80, logo depois de retornar
do exílio. Era uma figura carismática, muito simpático, com aqueles olhinhos brilhantes,
com um sorriso largo. Aquele jeito alegre do baiano. Sempre rodeado de alunos, ouvia a
todos com atenção e tinha uma resposta adequada para cada um. Almocei e lanchei muitas vezes com ele no restaurante do Instituto de Geociências. Geralmente trajava camisas
africanas, sandálias e bolsa de couro a tiracolo e como todo professor tinha sempre papéis
e livros nas mãos.
Aqui no Rio de Janeiro, Milton Santos teve o apoio incondicional da profa. Emérita da
UFRJ Geógrafa dra. Maria do Carmo Corrêa Galvão – chefe do PPGG e da profa. Emérita da UFRJ geógrafa dra. Bertha Koifmann Becker, que haviam lecionado para mim Geografia do Brasil I e II e Geografia Regional I e II respectivamente, na Graduação em
Geografia. Mais tarde Milton Santos que havia sido professor da UFBA, retornou a USP,
por concurso em 1984, onde era prof. Emérito.
Milton Santos afirmava que eu era um “caso perdido para a ciência”, porque meu Projeto
de Dissertação de Mestrado era em alta tecnologia – Sensoriamento Remoto com análise
digital de dados de imagens de satélites para os canaviais do Norte Fluminense, na planície
deltaica do Rio Paraíba e não em Geografia Marxista. Já era quase uma Engenheira Cartógrafa, graduanda da UERJ, e aquelas novidades do Instituto de Pesquisas Espaciais – INPE
me fascinavam, embora tenha lido O Capital de Marx numa versão em espanhol. Vale lembrar que o Rio Paraíba do Sul nasce bem próximo ao INPE em São José dos Campos/SP.
A minha tese foi defendida em 5 de dezembro de 1985 sob o título : “Aplicações do Sensoriamento Remoto – O Estudo da Microrregião Açucareira de Campos”, sob a orientação
do eng. Civil e prof. de Sensoriamento Remoto da UERJ Placidino Machado Fagundes.
Também estudei Cálculo I e II nos livros do Piskonov, comprados no CCMN – Centro de
Ciências Matemáticas e da Natureza/Instituto de Matemática dirigido na época pelo prof.
Radwal da Silva Alves Pereira , recentemente falecido, que havia sido meu professor no
Colégio Estadual Pedro Álvares Cabral em Copacabana. A versão em português era bem
*
Engenheira Cartógrafa. Geógrafa. Mestre em Geografia – UERJ.
75
mais cara. Milton Santos achava interessante como eu convivia bem com a dialética da
geografia e o pragmatismo da das ciências exatas, segundo ele o importante era fazer
uma Dissertação que me fizesse feliz. Radwall era oficial da Marinha e foi nomeado pelo
presidente da República Ernesto Geisel, vemos que a COPPE/UFRJ naquela época vivia
uma efervescência, assim como a Geografia.
Milton Santos dizia que assim que eu tivesse possibilidade que viajasse, pelo Brasil,
fosse pelo mundo para ver de perto as espacialidades e tirar minhas próprias conclusões. Para ele a observação do espaço sempre era enriquecedora para a visão do
geógrafo. Mal sabia ele que iria no meu primeiro giro europeu, à França em 1986, com
minha Dissertação de Mestrado – Aplicações do Sensoriamento Remoto – O Estudo
da Microrregião Açucareira de Campos, em inglês, no Seminário EURO CARTO V ,
no IGN, que surpreendeu e encantou aquela seleta plateia de pesquisadores, eles não
sabiam que o governo brasileiro estava investindo em Cartografia e Sensoriamento Remoto, para monitorar os canaviais e produzir álcool combustível, publicada no Bulletin
du Comité Français de Cartographie e percorreria de trem – Suíça, Itália, Espanha, Mônaco,
e Portugal. Andei até de TGV... Então me lembrava das conversas de Milton Santos, ao
observar aquelas paisagens. Assim teve início realmente minha carreira internacional.
No ano de 1987 com passagem aérea da CAPES pela UFF, onde lecionava pelo Departamento de Cartografia, participaria com dois trabalhos, do EURO CARTO VI, na Tchecoslováquia, sob dominação soviética. Procedente de Roma – Centro de Sensoriamento
Remoto da FAO, onde visitei o eng. Michel Rose amigo de meu padrinho no IBGE gen.
Aristides Barreto. Aqui a FAO tinha um escritório no prédio da Secretaria de Estado
de Agricultura e Abastecimento, onde estagiei nos anos 70. Já em Praga e em Brno
observei vários Migs, caças de fabricação soviética estacionados e em Frankfurt muitas
fortalezas voadoras da USAF, então percebi que as coisas eram bem complexas no plano
político. Esta viagem teve o apoio logístico da Embaixada do Brasil em Praga. Vendi
umas ações da GERDAU para custear a parte terrestre.
Neste mesmo ano com a família, fizemos uma longa jornada de ônibus pelo Nordeste,
onde não faltaram Vitória da Conquista e Salvador. Também fui ao I Encontro de Cartografia do Nordeste – MIRAD/SUDENE, no Recife, com alguns trabalhos. Muito tempo
depois viria a ser pela UFF, Membro do Conselho Editorial de História e Sociedade do
Depto de História da UESB, em Vitória da Conquista. No ano de 1995, no XVIICBC/
SBC, em Salvador, apresentaria “As Alternativas Cartográficas na Amazônia e Processo
de Fragmentação Municipal do Estado do Paraná”. Antes, em 1992 iria a Washington na
27th International Geographical Conference da UGI/ISPRS Congress – com trabalho
sobre Amazônia – “Zonas Críticas do Meio Ambiente a Nível Global”; lá me perguntaram sobre o Mestre Milton Santos. Já havia apresentado um trabalho semelhante no
XVCBC/SBC/USP em 1991. O Mundo mudou e, após a Revolução de Veludo a República Tcheca antes no Pacto de Varsóvia, agora pertence a OTAN. Hoje eu conheço
quase todos os Estados do nosso Brasil.
O tempo passou e reencontrei o prof Milton Santos já com apoio de uma elegante bengala no
hall dos elevadores do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, depois do almoço,
76
História e Geografia do Vale do Paraíba
em junho de 2000, no Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional, onde proferiu uma brilhante conferência sobre a Globalização e Geografia. Ele me reconheceu e me
deu um longo abraço. Queria saber das novidades e ao tomar a palavra disse que todo mundo,
além do endereço do trabalho e do residencial, tinha agora um e-mail, um correio eletrônico,
sem isso as pessoas não estavam conectadas à rede mundial de computadores, pela internet, já
fazia parte da existência que ele chamou de espaço eletrônico da globalização!!!!! No intervalo
tirei uma foto antológica com ele.
Milton Santos foi homenageado como Homem de Ideias do Ano pelo Jornal do Brasil e ganhou
um documentário do cineasta Silvio Tendler, o premiadíssimo Encontro com Milton Santos.
Milton Santos lecionou:
– na França: Sorbonne em Paris, na Universidade de Bordeaux, publicou na Revista
Internacional de Ciências Sociais da UNESCO;
– nos Estados Unidos, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts – MIT, na Universidade de Columbia, foi colunista da renomada Revista Antipode;
– na Universidade de Toronto, no Canadá. Esteve também na Costa do Marfim, na
Tanzânia, na África. Foi Consultor da Organização das Nações Unidas - ONU e da
OIT – Organização Internacional do Trabalho.
Sua Aula Inaugural da Faculdade de Filosofia , Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo em 10 de março de 1992: “Globalização e Redescoberta da Natureza”, foi
publicada na Revista do Instituto de Estudos Avançados – IEA-USP.
Milton Santos escreveu os seguintes livros, editados pela USP:
1 – A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção;
2 – Por uma Geografia Nova: Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica;
3 – Economia Espacial: Críticas e Alternativas;
4 – O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos;
5 – Pensando o Espaço do Homem;
6 – A Urbanização Brasileira;
7 – Da Totalidade ao Lugar;
8 – O Espaço do Cidadão;
9 – Manual de Geografia Urbana;
10 – Metamorfoses do Espaço Habitado;
11 – Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico – Científico Informacional;
12 – Espaço e Método;
13 – O Centro da Cidade do Salvador: Estudo de Geografia Urbana;
14 – Por uma Economia Política da Cidade: O Caso de São Paulo e
15 – O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo.
Milton Santos foi amigo do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso e do sociólogo Florestan Fernandes nos antigos tempos da USP. Foi homenageado com o seu nome
o Auditório do Instituto de Geociências da Universidade Federal Fluminense – UFF, onde
77
lecionei por 22 anos e a última edição do Atlas Nacional do Brasil lançado pelo IBGE, em
2010, chama-se Atlas Milton Santos. A Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional – ANPUR instituiu o Prêmio Milton Santos. Com o passamento de Milton Santos em 2001, não viu, mas é bem possível que teria ficado muito feliz
com a criação do Ministério das Cidades, na gestão Luiz Inácio Lula da Silva, pois, segundo
o nosso IBGE, mais de 82% da população brasileira reside nas grandes cidades, bem como
com o Estatuto das Cidades.
“O homem se torna fator geológico, geomorfológico, climático e a grande mudança vem do fato de
que os cataclismos naturais são um incidente, um momento, enquanto hoje a ação antrópica tem
efeitos continuados, e cumulativos, graças ao modelo de vida adotado pela Humanidade. Daí vêm
os graves problemas de relacionamento entre a atual civilização material e a natureza. Assim, o
problema do espaço ganha, nos dias de hoje, uma dimensão que ele não havia atingido jamais
antes. Em todos os tempos, a problemática da base territorial da vida humana sempre preocupou
a sociedade. Mas nesta fase atual da história tais preocupações redobraram, porque os problemas
também se acumularam.”
Milton Santos
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Parte III – Capítulos
Capítulo 1
No Rastro da História do Vale do Paraíba
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80
História e Geografia do Vale do Paraíba
A Presença do Índio no Vale do Paraíba: Os Índios Puris
Jeronimo de Paula da Silva*
“Os povos indígenas despertam todas as fantasias possíveis e imagináveis: passam a
ser encarados com romantismo, receios infundados, exotismo, folclore ... raramente
como seres humanos capazes de realizar, de escolher livremente, de tecer a sua vida,
de fazer a sua história e até de errar.” Fabiana Lima.
1 – Os Índios no Brasil
Antes de abordarmos a presença dos índios Puris no Vale do Paraíba, achamos necessário expor a presença do índio no território brasileiro.
Há registros históricos que antes dos exploradores europeus chegarem às terras da América, a população indígena era, aproximadamente, cem milhões em todo o continente.
Em terras brasileiras era cerca de cinco milhões de índios distribuídos em tribos, de
acordo com o tronco linguístico ao qual cada grupo se identificava, ou seja, tupi-guaranis
(no litoral), macrojê ou tapuias (no Planalto Central), aruaques (na Amazônia) e caraíbas
(também na Amazônia).
Atualmente, estima-se em apenas quatrocentos mil indios no território brasileiro, congregando cerca de duzentas etnias indígenas e cento e setenta línguas, embora muitas delas
já não apresentam sua identidade cultural como antes da chegada dos colonizadores.
No ano de 1500, quando aqui chegaram os portugueses e estabeleceu-se o primeiro
contato com os nativos, houve um certo contraste entre as duas culturas muito diferentes. Através dos relatos de Pero Vaz de Caminha, escrivão da expedição de Cabral, e de
documentos legados pelos jesuítas, pudemos conhecer como viviam esses índios à época
do descobrimento e o choque cultural com o homem branco.
Os nativos brasileiros de então sobreviviam da caça, da pesca e da agricultura. Plantavam e colhiam o milho, o amendoim, o feijão, a abóbora, a batata-doce e a mandioca.
Era uma agricultura bastante simplória e rudimentar, uma vez que se utilizavam da
técnica da coivara, ou seja, derrubada da vegetação nativa preexistente, queimando
as árvores a fim de livrar a superfície do solo para o plantio. No que diz respeito aos
animais, domesticavam os de pequeno porte como o porco do mato e a capivara. Não
conheciam o cavalo, o boi e a galinha.
Essas tribos indígenas tinham entre si relações calcadas em regras sociais, religiosas e políticas, cujos contatos entre tribos diferentes estabeleciam-se em momentos marcantes como
guerras, casamentos, cerimônias fúnebres de sepultamento, além de alianças bélicas contra
um inimigo comum.
A cultura material produzida pelos índios brasileiros era baseada em matérias-primas encontradas na natureza, com um respeito bastante acurado à preservação do meio-ambiente.
*
Arquiteto e urbanista. Mestre em Arquitetura/UFRJ. Sócio Efetivo do IHGV.
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Assim sendo, construiam suas armas, arcos e flechas, suas habitações e canoas com o material colhido na Natureza. A cerâmica era utilizada na confecção de utensílios domésticos.
Penas e peles de animais eram utilizados na confecção de roupas e ornamentos cerimoniais.
Relativamente à organização social dos indígenas brasileiros podemos afirmar que existe
uma sensível diferença em relação à sociedade do homem branco, ou seja, não existe entre
eles classes sociais distintas. Todos são iguais, com direitos e tratamentos igualitários. A
terra pertence a todos, somente os instrumentos de trabalho são de uso pessoal. Todos têm
suas atividades perfeitamente distribuídas: as mulheres são responsáveis pela alimentação;
as crianças pelo plantio e pela colheita; e os homens se responsabilizam pela caça, pela pesca, pela derrubada das árvores, enfim, por todo o serviço mais pesado.
Nessa composição social de igualdade entre todos, duas figuras de importância para o grupo
se destacam: o pajé, sacerdote da tribo, curandeiro e mensageiro das divindades da floresta e
dos ancestrais; e o cacique, o chefe tribal e o grande orientador dos membros da tribo.
2 – As Nações Indígenas no Vale do Paraíba
Como visto acima, o litoral brasileiro abrigou os tupi-guaranis, dos quais duas importantes nações vieram povoar o Vale do Paraíba: os Tuppin Inba ou Tupinambás, considerados por diversos historiadores como “o povo tupi por excelência”; e os Tuppin
Ikin ou Tupiniquins, vizinhos dos Tupinambás.
O termo tupinambá, segundo alguns autores, provavelmente, significa “o mais antigo”
ou “o primeiro”, referindo-se a uma grande nação indígena composta por diversas
tribos de índios, como os Tamoios, os Temiminós, os Potiguaras, os Tabajaras, além de
muitos outros, como os Puris, objeto do presente trabalho.
Os Tupinambás dominavam toda a região costeira do Cabo de São Tomé, no
norte do Estado do Rio de Janeiro, até a Cananéia, sul do Estado de São Paulo, à
época do descobrimento do Brasil, com uma maior concentração de tribos entre
Cabo Frio e Ubatuba.
Do outro lado da Serra do Mar, na região de Piratininga, atual cidade de São Paulo e no
Vale do Paraíba, habitavam os Tupiniquins, vizinhos dos Tupinambás. Entre os meses
de maio a agosto, os Tupiniquins desciam a serra, em diversos locais, em direção a Parati, à procura de peixes e mariscos para salgar ou defumar, garantindo assim parte de
sua subsistência. A trilha no local mais baixo da Serra do Mar, trilha esta aberta pelos
tupiniquins, era conhecida pelos portugueses como “Serra do Facão”, que, futuramente, seria utilizada para escoamento do ouro das “Minas Gerais” e, posteriormente, do
café do Vale do Paraíba. Os indígenas referiam-se a esta Serra como “Serra de Bocaina” que, na língua tupi, significa “caminho para o alto” ou “caminho no mato”, ou,
ainda, “Paranapiacaba”, que traduzido significa “mar à vista”.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
3 – Os Primeiros Habitantes do Vale do Paraíba: Os Puris
Os índios Puris constituem-se como um grupo indígena das grandes nações acima citadas, atualmente considerado extinto, que habitava originalmente o litoral do Espírito
Santo e do Rio de Janeiro, também chamados de Coroados, eram hábeis pescadores,
uma das principais atividades econômicas por eles desenvolvida. A partir do ano de
1500, face a chegada dos colonizadores portugueses, viram-se necessitados a se adaptarem às regiões serranas, fugindo da escravidão imposta pelos dominadores estrangeiros. Foram obrigados, então, a se internarem nas regiões montanhosas, concentrando-se principalmente entre as Serras do Mar e da Mantiqueira, sediando-se em grande
parte do Vale do Paraíba.
Nessa fuga para o interior, os Puris chegaram à Serra do Brigadeiro, um dos últimos
locais em que se refugiaram, primitivamente chamada de Serra dos Arrepiados. Encurralados pelos portugueses dominadores e por algumas tribos bastante selvagens como os
Boruns, mais conhecidos como Botocudos ou Aymorés, senhores absolutos do Vale do
Rio Doce, não restou aos Puris, senão, embrenharem-se nas matas fechadas e resistirem
ao frio intenso da Serra dos Arrepiados, nome este dado em referência a eles.
Em 1562 já existiam parcos registros da presença dos índios Puris próximo às margens
do rio Paraíba do Sul. Porém, notas mais seguras mostram que por volta do ano de
1587, os Puris entraram em contato com o homem branco na expedição explorativa
do Vale, comandada por Domingos Luis Grou. Em 1591 fica confirmada a presença
dos índios no Vale do Paraíba através de relatos da Câmara de São Paulo. A confirmação definitiva surge em 1680 quando o capitão Antônio Raposo de Barretos em uma
de suas “Bandeiras” de caça aos índios refere-se a “quarenta puris que seu filho teria
trazido da Serra da Mantiqueira”.
A abertura do Caminho Novo intensificou a movimentação no Vale do Paraíba, permitindo que os colonizadores e exploradores brancos se embrenhassem pelas matas fechadas, confrontando-se com os índios Puris que, dominados, foram empregados nas
explorações da nova terra. Vários relatos sobre os indígenas, feitos por viajantes e escritores da época, definiram o perfil desses habitantes do Vale do Paraíba. Fica clara, então,
a presença dos índios Puris na região.
3.1 – Localização dos Puris no Vale do Paraíba
Os índios Puris ocuparam uma grande parte do Vale do Paraíba, conforme podemos
constatar a partir da afirmação de diversos autores, localizando-se em São José dos Campos, Caçapava, Taubaté, Guaratinguetá, Lorena, Canas, Cachoeira Paulista, Bananal, estendendo-se até Minas Gerais e no Rio de Janeiro, em Angra dos Reis.
Os grupamentos indígenas dos Puris distribuíram-se a partir do rio Paraíba do Sul até o
Espírito Santo, adentrando pelo lado oriental de Minas Gerais e os Goyatkás entre o Baixo Paraíba e Macahe. A área habitada por este grupo indígena constituía-se como regiões
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atravessadas pelo Caminho Velho, iniciado em Parati e pelo Caminho Novo criado em
1725, abrindo picadas na mata, expulsando os índios da região.
No início do século XIX, os índios Puris que vagavam pselas margens dos rios Paraíba
do Sul e Preto, viram-se direcionados e levados para a aldeia de Nossa Senhora da Glória, atual cidade de Valença, onde foram trabalhar em diversas fazendas da região. Com
a abertura da estrada Werneck e a estrada da Polícia, foi propiciada a comunicação com
as terras de Minas Gerais na margem do rio Preto, fato este que permitiu a expansão da
presença dos índios na região serrana.
3.2 – Cultura, costumes e hábitos dos Puris
O significado do termo Purí, em tupi-guarani, é: “gentinha” ou “povo miúdo” ou
“comedor de carne humana”. Esta última definição não se aplica, entretanto, pelo fato
de nunca ter sido constatado o costume antropofágico entre os Puris, assim como em
relatos de viajantes que descrevem estes índios como traiçoeiros e desumanos para
com os brancos. Na realidade, se alguma vez se mostraram como tal, foi como reação
às agressões e conquistas dos colonizadores em defesa de seu território, de sua família
e de sua tribo. Pelo contrário, vamos encontrar inúmeras descrições a respeito de tais
indígenas no Vale do Paraíba: calmos, covardes, medrosos e ingênuos, mansos e tímidos. A personalidade do índio Puri é confirmada como dócil e suscetível ao trabalho a
ele imposto pelo colonizador.
No ano de 1801, o Padre Francisco Chagas Lima, fundador de Queluz, um dos mais autênticos observadores dos índios Puris do Campo Alegre, emite a seguinte opinião sobre
a ferocidade e a antropofagia dos Puris:
“... Não se conhecia fato algum de um puri que haja matado um branco. Quando
os brancos embrenhavam-se na mata para colher a planta medicinal poaia, ao encontrarem os puris estes se punham a correr, arriscando-se furtivamente a apanharem para seus usos as ferramentas dos brancos. O próprio nome puri significava
na língua deles gente mansa ou tímida.”
A partir desta constatação vivida pelo citado religioso, não procede a afirmação de ferocidade, periculosidade e canibalismo dos Puris, acusações essas infundadas que objetivavam, simplesmente, justificar o extermínio dos mesmos.
Quanto ao significado anteriormente descrito, “gentinha” ou “povo miúdo”, refere-se ao
seu biotipo: descendentes dos Coropós e Coroados, eram baixos ou de estatura mediana,
robustos, de compleição larga, atarracados, pescoço curto e grosso, formas arredondadas, pés largos com dedos compridos, pele macia de cor parda-escura, cabelo comprido
liso de cor negra, desprovidos de pelos no corpo, rosto largo, testa estreita, nariz curto,
olhos pequenos, boca pequena e dentes claros.
Relativamente aos hábitos e costumes apresentavam-se como um povo desprovido de ambições materiais, almejando, sim, a harmonia com a terra em que viviam como garantia da
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História e Geografia do Vale do Paraíba
sua sobrevivência. Constituíam-se como uma sociedade estruturada com a figura de um
chefe, de um pajé e formada por homens e mulheres com funções distintas e definidas. O
chefe era mais um conselheiro do que propriamente aquela figura de mandatário do poder.
O pajé era responsável pelas tarefas religiosas e rituais de cura. Os homens tinham a responsabilidade da fabricação de armas, da caça, da pesca e da guerra, enquanto as mulheres
cuidavam da colheita, juntamente com as crianças, da preparação dos alimentos e do cuidado com as vasilhas e utensílios usados pela tribo.
Entretanto, compunham uma sociedade nômade, retirando da Natureza tudo que era necessário para sua subsistência, não praticando a agricultura como atividade de
sedimentação. Relativamente à religião, eram politeístas,
adoradores dos fenômenos da Natureza aos quais atribuíam poderes divinizados.
Uma das atividades culturais dos índios Puris que hoje
lembra sua origem é a Dança do Caboclo, dança esta
hoje praticada sob a forma de apresentação artística pelo
grupo Folguedo dos Arrepiados. A dança do caboclo fica bem explicada na descrição
feita por Johan Moritz em sua obra “Viagem Pitoresca através do Brasil”, a saber:
“ DANÇA DOS PURIS
Após uma boa caça, ou um combate feliz, ou
mesmo quando os índios se preparam para uma
expedição desse gênero, em todas as circunstâncias enfim que os reúnem em grande número,
verifica-se entre eles algo semelhante a uma festa.
Os convivas são convocados ao som de um instrumento feito com a cauda de um tatu canastra ou
com um chifre de boi, e logo o embriagante licor
da chica inspira-lhes uma espécie de excitação
sombria, que se manifesta por cantos e danças;
mas esses cantos e essas danças são muito grosseiros e monótonos. Os índios colocam-se em fila
circular, uns atrás dos outros; primeiramente os homens, a seguir, as mulheres, cada uma com suas crianças
atrás de si, passando a mais velha destas os braços em torno da mãe e a segurando bem forte, fazendo a
segunda o mesmo em relação à primeira e assim as outras. É nesta ordem que se movem lentamente, em
torno de uma fogueira, dando um passo para a frente e um passo menor para trás, de modo a avançar muito
lentamente. Quando percorreram, assim, um curto trajeto, correm precipitadamente a pôr-se de novo no lugar de onde partiram e recomeçam, em seguida, os mesmos passos. Ao mesmo tempo, executam, com a parte
superior do corpo, com as ancas e com as mãos que juntam diante da parte inferior do torso, movimentos
uniformes para ambos os lados. Acompanha esse gênero de dança, se é que se pode chamar dança, um canto
monótono que mais parece um uivo, pois repetem sem cessar as mesmas palavras e exclamações. O sentido dessas
palavras varia de acordo com os motivos da festa. Assim os parecis, depois de um combate com os botocudos,
celebraram uma durante a qual repetiam sem parar:’ho, ho bugure ita najy!’ o que quer dizer: ho, ho, o
botocudo foi vencido. Tais festas, principalmente quando celebradas à noite, o que ocorre quase sempre, pro-
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vocam no europeu uma impressão que nada tem
de agradável, e a maneira pela qual os homens
exprimem sua alegria tem algo horroroso. Quanto mais esquentados pela chica, mais os seus uivos
se fazem confusos e sonoros e mais as danças e os
movimentos do corpo se aceleram. Quando uma
dessas festas precede uma expedição guerreira, os
chefes aproveitam a oportunidade para excitar o
ardor de seus companheiros com alocuções apropriadas às circunstâncias.”
4 – Conclusão
Embora no início da presente comunicação tenha-se referido aos Puris como uma sociedade
extinta, tem-se notícias recentes da existência de inúmeros descendentes de tal grupamento
indígena que preservam a língua, a história, os costumes e a cultura dos Puris, marcando sua
presença nas manifestações folclóricas e no imaginário religioso.
Desta forma, pelo acima abordado, podemos concluir que a presença do índio no Vale do Paraíba, através dos índios Puris ou Coroados, tão puco conhecidos pela nossa cultura hodierna,
é fato indiscutível.
Referências Bibliográficas
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REIS, Paulo Pereira. O indígena no Vale do Paraíba. São Paulo: Governo do Estado de São
Paulo, 1979.
RUGENDAS, Johan Moritz. Viagem Pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo:
EDUSP, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil, 3ª série, v. 8)
SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. Memória Histórica e Documentada das Aldeias de Índios
da Província do Rio de Janeiro. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
86
História e Geografia do Vale do Paraíba
Vassouras: Os Primórdios da Evolução Urbana
Francisco Salvador Veríssimo*
O foco do trabalho tem como objetivo analisar a evolução da cidade de Vassouras desde a
sua formação inicial até o do ciclo do café.
A origem da cidade de Vassouras está ligada ao ciclo do ouro na região das Minas.
A localidade onde surgiu a cidade de Vassouras foi edificada à margem de um dos
muitos caminhos que foram feitos a partir das primeiras décadas do setecentos para
o escoamento das riquezas das regiões auríferas. “Com a descoberta do ouro na
região das Gerais nos fins do século XVII, o crescimento urbano se intensificou. Populações inteiras deslocaram-se para as áreas de mineração, na esperança de riqueza
rápida, criando arraiais instantâneos junto às extrações...” (VERÍSSIMO, BITTAR e
ALVAREZ, 2001: 175)
O garimpo do ouro foi atividade predominante nas Gerais, logo, a necessidade de abastecimento de víveres para as áreas mineiras densamente povoadas teria de vir de São Paulo
ou do Rio de Janeiro.
A sofreguidão que balizou estes primeiros achados fez com que a ocupação fosse
predatória para o ambiente quanto improvisada em termos de produção de alimentos ... Frequentemente eram encontrados cadáveres de pessoas que haviam morrido
de fome, sem uma espiga de milho no alforje abarrotado de pepitas de ouro, numa
versão moderna de Midas. (VERÍSSIMO, BITTAR e ALVAREZ, 2001:176)
Aproveitando-se desta demanda de alimentos, estes pequenos ranchos à beira dos caminhos das Gerais tornaram-se fazendas produtoras de gêneros alimentícios para serem vendidos em Minas, no decorrer do século XVIII.
John Luccock viajou para Minas passando pela Estrada Normal da Serra da Estrela.
No ano seguinte, pela mesma estrada passou Pohl, que detalhou minuciosamente os
pousos a partir do Córrego Seco, no alto da serra, relatando: “O caminho da floresta,
que então descíamos, era ruim, (...) me surpreendeu a vista de uma seara de trigo na
fazenda Samambaia. (SILVA TELLES, 2006: 20)
Com a exaustão do ouro no início do século XIX, estas localidades à beira dos caminhos
para as minas trocam a cultura de gêneros alimentícios pela monocultura do café. Pouco
a pouco o plantio do café, empreendimento malsucedido nas terras da Corte, espalhou-se
pelas margens do Vale do Paraíba do Sul, transformando o sertão fluminense antes ocupado por modestos povoados, homens rudes cansados de rasgar a terra em busca do ouro,
cada vez mais escasso. Foram esses homens com suas casas simples de taipa, frente de rua,
surgidas da imediata necessidade de habitar, que ergueram a Vila de Vassouras.
“Em relatos de viagem para Minas, em 1829, Robert Walsh utilizou-se da Estrada
da Polícia e passou por um lugarejo que denominou de Bassura. Já em 1835 Charles
Bambury encontra o local da vila de Vassouras”. (SILVA TELLES, 2006: 22)
*
Arquiteto e Urbanista. Professor Adjunto 4/UFRJ. Sócio Efetivo do IHGV.
87
Fig. 1 – Reconstituição Vista aérea da Vila de Vassouras em 1836, reconstituição feita a partir do mapa
anexo à “Carta Chorographica da Província do Rio de
Janeiro, levantada pelo Capitão Car.o.. de Campos
A cidade de Vassouras surgiu ao lado da Estrada da Polícia, aberta nos ano de 1820, onde foi
edificada uma capela, cuja padroeira era Nossa Senhora da Conceição, origem da cidade. “Um
dos mais importantes requisitos para que uma povoação passasse a ostentar o título de vila era
ter uma igreja sagrada pelas autoridades eclesiásticas e seu território em volta ser denominado de
freguesia (filii eclesiae – filhos da assembleia)”. (VERÍSSIMO, BITTAR e ALVAREZ, 2001: 172)
Em 1823, João Teixeira Gomes e sua mulher Ana Maria do Espírito Santo, que filha
de Luís Gomes de Azevedo, doam trezentas e sessenta braças de terra da sua fazenda
denominada Vassouras a “Nossa Senhora da Conceição da Freguezia de Sacra-Família
para ahi fazer a sua igreja Matriz e seu Patrimônio. (SILVA TELLES, 1975:127)
O fator primordial para o seu desenvolvimento foi a localização do sítio ao sopé da Serra do
Mar no início do Vale do Paraíba, ponto ideal para o descanso das tropas de mulas que faziam
o trajeto entre a região das Minas e a Cidade do Rio de Janeiro, conforme croqui abaixo.
Figura 2. – Croqui esquemático, sem escala, da Serra do Mar, Recôncavo Guanabarino e
Vale do Paraíba.
Referências Bibliográficas
BITTAR, William, VERISSIMO, Francisco e ALVAREZ, J. Maurício. Vida Urbana. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001.
SILVA TELLES, Augusto C. . O Vale do Paraíba e a Arquitetura o Café. Rio de Janeiro: Capivara, 2006.
___. Vassouras – Estudo da Construção Residencial Urbana. Revista do Patrimônio Histórico e
Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 16: 9 -135, 1968.
Ilustrações
Figura 1. Desenho de Chico Veríssimo.
Figura 2. Desenho de Chico Veríssimo.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
A História da Estrada de Mangaratiba, atual RJ 139
Cláudia Braga Gaspar*
Antecedentes históricos
As principais estradas por onde o café produzido no vale do Paraíba, a partir do final do
século XVIII, era transportado, tinham seu ponto inicial em portos movimentados do
litoral do Rio de Janeiro. Os de maior destaque, sem levar em conta o do Rio de Janeiro, o
maior de todos, eram os de Paraty, Mambucaba, Jurumirim, Angra dos Reis e Mangaratiba.
Angra dos Reis já no século XIX era o segundo maior centro exportador do café, e seu
porto, significativo na comercialização do produto vindo do vale do Paraíba paulista e fluminense, que, descendo a serra do Mar por Lídice, atingiam Angra dos Reis.
Mangaratiba também será um porto expressivo no período áureo do café, atendendo principalmente o escoamento do produto que, descendo a serra de S. João Marcos (Príncipe,
após 1811), ali era embarcado.
A cartografia brasileira do século XVIII já assinala a presença de S. João Marcos, que desde
1739 já possuía uma capela e em 1755 se tornava freguesia. A área, desde 1733, constava
em mapas como passagem do caminho de S. Paulo, caminho esse que ligava a Capitania de
S. Paulo com a do Rio de Janeiro, atravessando em território paulista, Areias, Bananal e, em
território fluminense, S. João Marcos, Itaguaí (Fazenda de Sta. Cruz), até atingir a cidade do
Rio de Janeiro, onde terminava.
Mapa Corográfico da Capitania de S. Paulo de 1791/1792, constando S. João Marcos.
* Licenciada em História. Sócia Correspondente do IHGV.
89
Segundo Alberto Lamego, em seu livro intitulado O homem e a Serra, S. João Marcos
movimentar-se-ia apenas enquanto os morros dos seus arredores fossem agitados
pela faina temporária do café, e o Caminho de Terra, fosse a rota essencial entre o
Rio de Janeiro e S. Paulo.
Como passagem do Caminho de Terra, S. João emergiria como área produtora de café.
Consta que por volta de 1792 o produto já era plantado nas margens do Ribeirão das Lages
e do rio Piraí. A fertilidade do solo, altitude e umidade teriam contribuído no sucesso da
cultura cafeeira, comercializada através do porto de Mangaratiba. Inicialmente, esse escoamento era feito por uma estrada de terra estreita e sinuosa não passando de uma estrada
que apenas servia para o transporte de animais de carga e, mesmo para estes, nas estações
chuvosas, alguns trechos se tornavam intransitáveis, com inúmeros atoleiros no seu leito,
não poupando os animais que neles caíam.
Com a expansão da lavoura cafeeira após 1830, melhoramentos foram realizados no seu
percurso, quase sempre arcados pelos proprietários locais, e, algumas vezes, com alguns
recursos provinciais.
Somente após 1855, quando uma nova estrada foi idealizada, através da compra de ações da
empresa construtora, é que agricultores, comerciantes e moradores puderam sonhar com o
progresso que a nova Estrada de Rodagem trairia para a região.
Esta, organizada em 1855, com a denominação de Cia. Industrial da Estrada de Mangaratiba, fora criada para fazer uma nova estrada ligando o Porto de Mangaratiba à Barra Mansa.
No entanto, somente 30 quilômetros, relativos à primeira sessão da estrada, foram construídos. Ligava S. João Marcos (Príncipe) à Mangaratiba. Sua construção se fez com uma
mão de obra escrava e assalariada grandiosa, num total de mais de 1.355 trabalhadores,
no primeiro ano de sua construção e, para além de 2.900, no segundo ano.
A rapidez em concluir este trecho da estrada, levou seus administradores a contratar uma
grande quantidade de trabalhadores a fim de concluir em tempo mínimo este percurso
da estrada de forma a abrir ao público o seu trânsito e angariar verbas para os trechos
seguintes, cujo ponto final seria Barra Mansa. No dia 15 do mês de maio de 1857, a 1°
sessão da estrada era aberta ao público, começando a trabalhar carros da Cia. na condução dos gêneros entre S. João Marcos e Mangaratiba.
Segundo Taunay, em seu livro Pequena História do Café, pág. 100,
Tornou-se o porto de Mangaratiba sobremodo importante com a facilitação dos transportes, graças aos trabalhos da Cia. Industrial da Estrada de Mangaratiba. Organizada em
1855, construiu ela com grande dispêndio de capitais cerca de trinta quilômetros de estrada
entre Mangaratiba e S. João Marcos, vencendo a serra marítima, primeira verdadeira estrada de rodagem feita no Brasil, no conceito dos técnicos. Por ela transitaram dois milhões
de arrobas de café, dos quais nove décimos, de procedência fluminense e o resto do extremo
norte de S. Paulo, ou Bananal, e do sul de Minas, da região de Baependi.
90
História e Geografia do Vale do Paraíba
Fatores diversos levaram à falência da Cia. Industrial Estrada de Mangaratiba, dentre os
quais, a falta de interesse da Presidência da Província do Rio de Janeiro, que mais voltada
para outros empreendimentos que se consolidavam na Província do Rio de Janeiro como:
malha ferroviária, estrada União Indústria e etc., deixou de dar atenção e conceder financiamento para que a estrada de Mangaratiba pudesse finalizar seu traçado até Barra Mansa.
O grande dispêndio alcançado no trecho inicial da estrada também teria contribuído para
afastar novos empréstimos e gerar insegurança quanto ao pagamento das dívidas quando
da finalização da mesma. E, finalmente, a má gestão do capital disponibilizado na realização
da estrada por seus administradores, terceirizando parte da obra, teria sido a gota d’água
para que fosse decretada a sua falência. Processo descrito por Sebastião Ferreira Soares em
trabalho escrito sobre a estrada no ano de 1861, quando o mesmo foi encarregado como
perito para examinar a escrituração da Companhia. Deste trabalho, nasceu a obra Histórico
da Cia. Industrial da Estrada de Mangaratiba e Análise Crítica e Econômica dos Negócios desta Cia,
que pode ser lida por interessados no site: http://memoria.nemesis.org.br/.
Hoje, esta estrada pode ser percorrida até Passa Três e Rio Claro.
É uma estrada com dimensões espetaculares, principalmente se pensarmos que sua construção se fez em 1855/57, larga, bem traçada e que atravessa o recém-criado Parque Estadual Cunhambebe. É a atual RJ 149, que subindo a serra do Piloto leva o viajante a outras
estradas vicinais de agradável percurso com destaque para a RJ 139, RJ 155 e RJ 145.
São rodovias que possibilitam ao rodoviário uma viagem ao passado histórico do ciclo do
café. Ruínas, igrejas e monumentos arquitetônicos podem ser vislumbrados no seu percurso, permitindo uma volta ao século XIX. Destaque para as ruínas da cidade de S. João
Marcos submersa quando da construção da Represa de Ribeirão das Lages pela Light and
Power e que se transformaram em Parque Arqueológico e Ambiental em 2008.
Esta cidade que despontou com o café, tornou-se uma das mais importantes da província
no século XIX. Concentrava em suas terras, o poder da família Breves, tida como uma das
mais poderosas do Brasil neste período. Graças a sua importância histórica, foi tombada pelo
Patrimônio Nacional logo após a criação deste, em 1938, e destombada por Getúlio Vargas
que cedeu à pressão e ameaças da Light e entregou a cidade, desconsiderando a decisão do
SPHAN e as reivindicações da população, para submergir sob as águas de Ribeirão das Lages.
Foi o primeiro caso de “destombamento” no Brasil. O Decreto-lei nº 2.269 autorizou a
desapropriação de terrenos, prédios e quaisquer benfeitorias que viessem a ser inundadas. No contexto autoritário do Estado Novo, a população não teve outra saída que se
submeter. A Ponte Bela é outra atração da estrada e demonstra como a construção da
estrada foi grandiosa. É um colossal trabalho de engenharia que já contou com diversos
ornamentos em bronze como o corrimão que servia de acabamento e decoração para
a mureta de proteção da ponte. Possuía, segundo antigos moradores, lanternas nas suas
extremidades sendo um monumento tombado pelo Inepac.
Quem se interessar em conhecer outras cidades da região poderá visitar o que restou da sede
e da Capela da Fazenda da Grama, presentes em uma das estradas vicinais. Denota a grandeza
e poder da família Breves no vale do Paraíba fluminense na segunda metade do século XIX.
91
O comendador Breves, além de grande cafeicultor, foi proprietário de inúmeras fazendas
e muitos escravos. Escoava sua produção pelo porto de Mangaratiba, onde tinha grandes
propriedades e trapiches. Na ilha de Marambaia (ponta final da restinga da Marambaia) ficava seu entreposto de escravo. Ali desembarcavam vindos das diferentes partes da África,
negros para o trabalho na lavoura cafeeira, comercializados mesmo depois dos tratados de
proibição do tráfico negreiro. A fazenda da Grama, relíquia histórica, hoje descaracterizada,
abriga um condomínio. No passado, foi descrita por vários viajantes como uma das grandes
fazendas da Província Fluminense, mas hoje, restam apenas ruínas, a ala direita do palácio e,
perdida no meio de um matagal, o que restou da grandiosa Capela da fazenda onde o maior
de todos os Breves esta enterrado.
Rio Claro, Passa Três, Piraí são outras atrações do percurso e merecem uma parada.
Outras estradas ligavam o litoral sul do Rio de Janeiro ao vale do Paraíba Fluminense e
Paulista e tiveram expressão no ciclo do café. Ficará para uma próxima oportunidade o levantamento de seus percursos e o legado histórico/arquitetônico: Mambucaba, Angra dos
Reis e Jurumirim são alguma delas.
Abaixo, descrevo um pequeno histórico das cidades presentes no trajeto da atual RJ149,
ligando Mangaratiba a Rio Claro e Passa Três.
Vilas presentes no percurso – Mangaratiba e S. João Marcos:
Mangaratiba – Sebastião Ferreira Soares em seu trabalho sobre a Cia. Industrial da Estrada
de Mangaratiba, escrito em 1861, descreve a baía de Mangaratiba como sendo bastante
ampla e com profundidade suficiente para a ancoragem de navios de cabotagem: “Abrigada
de ventos, permite que durante o ano inteiro se faça sem risco a carga e descarga de navios
que nela penetrem, pois que, o mar ali sempre se conserva calmo.”
Quanto à vila, foi edificada sobre as bordas dessa baía, ficando próxima a uma serra.
Sua população acerca de 1855 era de aproximadamente 1.500 habitantes, população esta
considerada estável, sendo que, o principal comércio de Mangaratiba não se achava estabelecido na Vila, mas sim no “Saco”, povoação esta que dista dela meia légua e conta
com aproximadamente 500 habitantes, dentre moradores e comerciantes. Alí ficavam
localizados os armazéns e casas comerciais onde eram feitas as cargas e descargas dos
gêneros de importação e exportação.
Era um importante centro comercial onde anualmente eram importados mais de 1.000.000
arrobas de café e que, com a conclusão da estrada, se transformaram em mais de 2.000.000
arrobas. Também eram ali comercializados os demais gêneros alimentícios consumidos nos
diferentes municípios que por ali faziam suas transações comerciais.
Da primazia adquirida pelo “Sacco” em detrimento da “Villa” rivalidades surgiram e de
certa maneira atingiram a Cia. Estrada de Mangaratiba.
A Villa de S. João do Príncipe distante de Mangaratiba 4 ½ km era um dos mais ricos da
Província do Rio de Janeiro, embarcando toda a sua produção através deste porto.
92
História e Geografia do Vale do Paraíba
Com a finalização da 1a sessão da nova estrada ligando os dois centros o comércio do
café ganhou peso, pois, antes da construção da nova rodovia, era o trajeto entre uma e
outra povoação muito difícil e essas dificuldades se tornaram quase que insuperáveis nas
estações das águas. Com a abertura da nova estrada que atravessava as rochas graníticas
se fez uma bela estrada de rodagem sem par no Brasil, facilitando sobremaneira o intercâmbio entre as duas cidades.
S. João Marcos – No caminho que levava a São João Marcos, hoje apenas ruínas, se observa
o calçamento em pé de moleque e os muros de arrimo, construídos em pedra. O que restou da cidade encontra-se num vale na confluência dos antigos rios Araras e Panelas. Em
um ponto mais elevado, está a escadaria que levava ao adro da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e ao cemitério que existia ao seu lado. As ruínas da igreja, que foi dinamitada, estão
encobertas pela vegetação.
Diante dessas ruínas, vê-se o caminho que levava ao antigo centro histórico, calçado com
pedras aparelhadas, cuja ponte, sobre o rio Panelas, está caída em seu leito.
No antigo centro, encontram-se ainda vários vestígios de muros em cantaria e de prédios
dinamitados, bem como alguns trechos que ainda conservam o calçamento original.
S. João Marcos, depois S. João Príncipe, tem um passado histórico antigo no vale do Paraíba. Rota do caminho de terra ou estrada Geral, ligando S. Paulo ao Rio de Janeiro, nasceu
esse povoado que, inicialmente, abastecia com gêneros os tropeiros que por ali passavam
indo em direção ao Rio de Janeiro ou S. Paulo. Aos poucos, o café foi sendo plantado e
transformando a região numa das pioneiras do cultivo, juntamente com Resende.
Já ao final do século XVIII o café se espalhava e ganhava importância. O século XIX fará
o registro histórico desta região como uma das mais importantes na história fluminense do
ciclo do café. Muito embora seu panorama não fosse nada demais, com exceção da igreja,
de bom gosto ornamental. O resto era constituído de um casario baixo e enfileirado em
torno de vasta praça, muito embora fosse segunda vila serrana, há mais de um decênio já
cabeça de comarca. Foi tombada pelo seu peso histórico no ciclo cafeeiro e destombada
logo a seguir para submergir para sempre nas águas da Represa de Ribeirão das Lages.
Rio Claro – Seu povoamento se fez de paulistas e angrenses que, subindo a serra do Mar,
ali se estabeleceram. Atendendo aos tropeiros que pela Estrada Geral (RJ/SP) se dirigiam
para S. Paulo e Rio de Janeiro. Logo, o café despontaria levando as demais lavouras ao desaparecimento. Uma estrada ligando a localidade à Angra dos Reis faria do local uma área
de intenso tráfego de mercadorias cujo escoamento seria o porto de Angra dos Reis. Essa
forte economia rural e o seu sistema de transporte, independente de S. João Marcos, foram
marcantes para a sua autonomia administrativa. O arraial elevado a curato em 27 de janeiro
de 1830, tornava-se freguesia em 1839 e em 1848, Vila sob a designação de Nossa Senhora
da Piedade de Rio Claro, centralizando um novo município ao qual se anexava a freguesia de Sto. Antonio de Capivary (atual Lídice) que data de 1842. Aos poucos, Rio Claro
sobrepõe-se a S. João Marcos, sendo o Município de S. João Marcos anexado ao Município
de Rio Claro (Itaverá), ficando Rio Claro como sede do novo município criado.
93
Histórico da Cia. Industrial da Estrada de Mangaratiba
A Estrada de Mangaratiba foi idealizada com o intuito de fazer a interligação do litoral com
o interior de forma a facilitar o escoamento da produção de café e outros produtos cultivados na área do vale do Paraíba fluminense. Estender-se-ia do litoral de Mangaratiba até
Barra Mansa. Seu traçado, no entanto, ficou apenas restrito aos 30 quilômetros concretizados, ligando o porto de Mangaratiba a S. João Marcos. Deveria ter sido, juntamente com a
ferrovia, o grande desencadeador do crescimento da Província bem como o incentivador à
entrada de imigrantes para o trabalho na lavoura no vasto Império Brasileiro, pois, “Todos
aqueles que têm percorrido o vasto território do grande Império americano, ficam admirados da fertilidade com que a suprema mão de Deus dotou este abençoado País com milhões
de meios para constituírem o mais colossal Estado do mundo. Rios, que se assemelham a
mares, e que tendo as suas origens no centro do país se ramificam em várias direções, e
depois de percorrerem centenas de léguas se lançam no oceano” ..... (pág. 10, do Histórico da
Cia. Industrial Estrada de Mangaratiba de Sebastião Ferreira Soares). Sua construção contou
com a participação de acionistas que entusiasmados com sua construção compraram cotas
do idealizador da mesma: o Desembargador Joaquim José Pacheco.
O contrato foi lavrado no dia 26/02/1855 ficando estabelecido que a estrada a ser construída, deveria ligar o porto de Mangaratiba a Rio Claro e dali até Barra Mansa e que o
gasto efetuado na sua construção seria compensado pelo usufruto de 30 anos da renda que
produzisse com fretes de carga e passagem de viajantes.
Foi então contratado para dar início aos trabalhos o engenheiro inglês Mr. Webb. Mil trezentos e cinquenta e cinco trabalhadores foram contratados, dentre escravos e homens livres;
sendo que 650 contratados diretamente pelo Mr. Webb. E os demais por empresas contratadas para fazer sessões da estrada. Já em 1857 a soma de empregados na sua construção
chegava à vultosa soma de 2.900 operários que teriam a função de acelerar a concretização do
primeiro trecho da estrada, ligando Mangaratiba a S. João Príncipe e, assim, abrir ao público
este trecho e angariar recursos que seriam reutilizados nas demais sessões do traçado da estrada (seriam três sessões).
Este primeiro trecho foi aberto em 1857, na administração do Barão S. Gonçalo, quando, a
empresa já atravessando período de turbulência, contraiu novos empréstimos que deveriam
ser pagos sob hipoteca.
Alterações no seu traçado foram feitas, bem como a diminuição da largura da estrada de
forma a conter gastos, extremamente vultoso na primeira sessão, cujo traçado feito em
rocha e num trecho bastante inclinado, já estava concluído. Mesmo assim, aumentava a
dificuldade em conseguir capital para a conclusão das demais sessões da rodovia. As ferrovias começavam a ser idealizadas atraindo interesse de grandes cafeicultores que preferiam
investir ali seu capital. Dessa feita, ficou a Cia. Industrial Estrada de Mangaratiba sem
capital para finalizar a obra.
Endividada, teve que parar suas atividades e pedir falência, decretada em outubro de 1860.
No entanto, antes de 1857, sem a conclusão da primeira sessão da estrada, quem se aventurasse a subir a serra em direção a S. João Marcos saindo de Mangaratiba tinha que esperar
o período de estiagem quando a estrada possibilitava uma melhor circulação.
94
História e Geografia do Vale do Paraíba
Sua manutenção no período que antecede a 1833, era feita pelos moradores e agricultores
da serra e, após esta data com recursos da Província, constando em relatórios ministeriais o
dispêndio de somas na dita estrada em melhoramentos, reparos e conservação.
Após 1855, a estrada passou a receber melhorias realizadas por Bernardino José de Almeida
até ser entregue aos cuidados da Cia. Industrial Estrada de Mangaratiba cujo objetivo era
criar uma verdadeira estrada de rodagem, a primeira do país em grandeza, ligando grandes
centros produtores do vale do Paraíba com o porto de Mangaratiba. Conseguiu apenas
concretizar o primeiro trecho desta empreitada, ainda hoje presente, em trecho de terra, da
RJ 149, que liga Mangaratiba a Rio Claro.
Quem percorrer esta estrada de terra vislumbrará uma rodovia com um traçado grandioso
de uma joia da construção civil: rodovia larga, bem executada e com uma paisagem deslumbrante que integra o Parque Estadual Cunhambebe.
Parque Estadual Cunhambebe
Com cerca de 38.500 hectares, criado em 13/6/2008 por Decreto Estadual n° 41.358, o
Parque Estadual Cunhambebe abrange as serras presentes na região da Bocaína a Itaguaí e
os Municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Rio Claro e Itaguaí protegendo uma ampla
área de mata atlântica nativa, com sítios históricos e áreas com grande potencial turístico.
Começa na terra indígena de Bracuhy, em Angra, e na extensão do parque Nacional da
Bocaína, na divisa com S. Paulo, indo até o Reservatório de Ribeirão das Lages, da Light.
Possui 38 mil hectares de área e um perímetro de quase 920 quilômetros sendo o 3° maior
parque do Estado do Rio de Janeiro.
O município de Mangaratiba é o que concentra maior área do parque, com mais de 15.800
hectares, correspondendo a 41% do total área. Rio Claro é outro Município bastante contemplado possuindo cerca de 40% da área total, ficando o restante com Angra dos Reis e Itaguaí.
Possui uma diversidade de montanhas de grande interesse para alpinistas e andarilhos, sendo
as de maior impacto o Pico das Três Orelhas (Mangaratiba com 1.100 metros de altitude),
Pedra da Conquista, Pedra Chata e o Pico do Sinfrônio (1.500 metros de altitude).
Quase a totalidade do parque é constituído de floresta bem preservada com árvores de grande
porte. Dentre as mais importantes estão: o jequitibá, o cedro, o angico e o guapuruvu.
Na área do parque estão presentes parcialmente 13 bacias hidrográficas, entre as quais algumas importantes para o abastecimento de água da população do Estado, como a Bacia da
Represa de Ribeirão das Lages.
Trilhas, cachoeiras e paredões são as principais atrações do parque, principalmente para os
adeptos de esportes de aventura.
Em seu percurso, a antiga estrada de Mangaratiba, atual RJ 149, atravessa o parque demonstrando a solidez da engenharia do século XIX (construída em 1855/57). Uma verdadeira
viagem ao passado da região e ao ciclo do café no Vale do Paraíba fluminense.
95
O parque recebeu o nome do cacique Cunhambebe, líder da confederação dos Tamoios,
formada no séc. XVI. Seguindo à orientação do Sistema Nacional de Conservação (SNUC),
que recomenda a utilização de nomes indígenas para o batismo de novas áreas protegidas
escolheu-se o nome desse chefe indígena que nasceu aos pés do parque na localidade de
Ariró, em Angra dos Reis. Seu combate às forças portuguesas em defesa de seu povo e
território é mais do que apropriado para batizar essa nova Unidade de Conservação do
Estado do Rio de Janeiro.
Aos interessados em trilhas e aventuras que o Parque possibilita basta acessar o site: www.
clubedosaventureiros.com.
Cronologia Histórica da Estrada de Mangaratiba
– 1618 – Mangaratiba surge como aldeamento Tupiniquim.
– 1733 – Construção da Estrada Geral ligando S. Paulo ao Rio de Janeiro. Iniciava na fazenda de Santa Cruz, atravessando Itaguaí, S, João Marcos, Rio Claro, Bananal, S. José do
Barreiro e Areia.
– 1739 – Construção da Capela em S. João Marcos dedicado a S. João Marcos.
– 1746 – Nossa Senhora da Conceição de Monte Alegre da Paraíba Nova – Atual Resende.
– 1755 – Criada a Freguesia de S. João Marcos.
– 1764 – Criada a Freguesia de Mangaratiba.
– 1795 – O café é introduzido na região nas margens do Ribeirão das Lages e do rio Piraí,
nas fazendas de Mato Dentro, do Machado, da Itaora, do Capivari e de Passa Três.
– 1801 – Resende é elevada a Vila, sendo a primeira da região.
– 1801 – Inaugurada a Matriz de S. João Marcos.
– 1811 – S. João Marcos é elevada a Vila com a denominação de S. João do Príncipe – Foi
a segunda Villa da serra (após Resende).
– 1818 – Por despacho de 6 de fevereiro Pedro Dias Paes Leme torna-se Barão de S. João
Marcos (dando início a era dos barões do vale do Paraíba).
– 1823 – Mangaratiba é elevada a Vila.
– 1830 – O arraial de Rio Claro é elevado a Curato em 27 de janeiro.
– 1839 – Rio Claro torna-se Freguesia.
– 1849 – Criada a Vila de Rio Claro e Município logo em seguida (1850).
– 1854 – Inaugurado o trecho da Ferrovia ligando Raiz da Serra/ Mauá.
– 1855/60 – Construção da Estrada de Mangaratiba, que deveria ligar Mangaratiba à Barra
Mansa, mas o trajeto concluído só foi até S. João Marcos.
– 1857 – Inaugurada a primeira sessão da estrada de Mangaratiba a S. João Príncipe (Marcos).
– 1861 – Trabalho escrito por Sebastião Ferreira Soares sobre a estrada, quando o mesmo
foi encarregado como perito para examinar a escrituração da Companhia. Deste trabalho,
nasceu a obra “Histórico da Cia. Industrial Estrada de Mangaratiba” que pode ser lida por interessados no site: http://memoria.nemesis.org.br/.
– 1870 – Conclusão da Estrada de Ferro D. Pedro II.
– 1890 – S. João Marcos torna-se cidade.
– 1907 – Início da construção da represa de Ribeirão das Lages.
– 1938 – S. João Marcos é incorporada ao Município de Rio Claro.
– 1939 – S. João Marcos é tombada como Patrimônio Nacional.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
– 1940 – S. João Marcos deixa de ser monumento nacional.
– 1940 – S. João Marcos é inundada pela represa de Ribeirão das Lages.
– 1943 – Rio Claro passa a ser denominada Itevará.
– 1956 – Itaverá volta a ser denominada Rio Claro.
– 2008 – Criado o Parque Estadual Cunhambebe que abrange os municípios de Itaguaí,
Rio Claro, Mangaratiba e Angra dos Reis.
Referências Bibliográficas
Dean, Warren. A Ferro e Fogo; a história da devastação da Mata Atlântica Brasileira. S. Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
Lamego, Alberto Ribeiro. O Homem e a Serra. 2ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1963.
O Café no Segundo Centenário de sua Introdução no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento
Nacional do Café, 1934.
Soares, Sebastião Ferreira. Histórico da Cia. Industrial da Estrada de Mangaratiba e Análise Crítica e Econômica dos Negócios desta Cia. Rio de Janeiro:Tipografia Nacional, 1861.
Taunay, Afonso de Escragnolle. Pequena História do Café. Rio de Janeiro: Departamento
Nacional do Café, 1945.
Zaluar, Augusto Emilio. Peregrinação pela Província de S. Paulo (1860/61). S. Paulo: Itatiaia, Ed.
USP, 1975.
97
98
História e Geografia do Vale do Paraíba
Cidades Imperiais: Os Processos das Mercês de São Luís do
Paraitinga e Bananal
Rogéria Moreira de Ipanema*
O trabalho apresentado é um recorte específico, que dá continuidade às pesquisas que
desenvolvo sobre os Títulos de Imperial, no sentido da compreensão dos significados
do Título, como instrumento de entrada no universo da distinção, como mecanismo
de ascensão social, econômica, política e cultural, assim como a localização destes territórios nos espaços do poder, uma vez que eram demarcados com auxílio institucional
do Império do Brasil.
As diversas origens, não só geográficas, uma vez que no conjunto dos processos, verifica-se o registro de entrada por 17 das 19 províncias do Império, mas da diversidade de interesses e argumentos das súplicas, notadamente para o comércio, indústria,
prestação de serviços e profissionais liberais. Para além do campo estrito das formas
econômicas, existem também os requerimentos representantes da produção dos bens
simbólicos, assim são os estabelecimentos de impressão com seus periódicos, veículos
de circulação das ideias; as associações culturais: tipográficas, literárias e musicais; as
instituições de ensino: colégios, institutos de arte; irmandades e outros.
Todos os requerentes enxergavam no Título, uma força combatente e um degrau acima
na concorrência, e não por acaso, é que as razões sociais estrangeiras, recém-instituídas
na corte, logo recorriam ao instrumento, para se associarem aos desígnios do Império,
identificadas assim por uma produção coroada. E dentro destas relações de força, de
dimensões, hierárquica e de representação de poder, surgem os singulares processos da
cidade de São Luís do Paraitinga e da cidade do Bananal,1 com os quais procuro pensar
e avançar sobre as diferentes direções e demanda que o Título promovia, e com o qual
a munificente mercê de sua majestade imperial atendia.
Processo de São Luís de Paraitinga
Requerimento da Câmara de Vereadores
Senhor
Os vereadores da Câmara Municipal de São Luís de Paraithÿnga na Província de São Paulo, abaixo
assinados intérpretes fiéis do acrisolado amor de seus concidadãos por V. M. Imperial e de sua fidelidade às instituições que nos regem, vem aos pés de V. M. Imperial implorar a graça de conceder à
cidade de São Luiz, que os suplicantes representam, o título de imperial, satisfazendo assim as justas
aspirações de nossos concidadãos e confiados na bondade de V. M. I.
P. P. benigno deferimento
* Doutora em História/UFF, Primeira Secretária do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.
1
Arquivo Nacional, código de fundo NP, seção de guarda 809.
99
E. R. M.
Antonio Lourenço de Freitas
Luis Pereira de Campos
José Domingos Pereira da Costa
Antonio Pedreira Bulcão
José Francisco de Toledo
Anacleto Lopes Figueira
Cláudio Justiniano Ferreira
João Pereira de Souza Arouca
O Secretário da Câmara Municipal
Felicio José do Nascimento
São Luiz, 31 de março de 1873
Processo da Cidade do Bananal
Requerimento da Câmara dos Vereadores
Senhor
A Câmara Municipal da Cidade do Bananal, província de S. Paulo resolveu em Sessão de hoje, vir perante
V. M. I. solicitar o título de Imperial para a dita cidade.
A Câmara Municipal assim deliberando, espera da munificência de V. M. I. ser atendida.
É certo que o município do Bananal é o primeiro em riqueza agrícola do norte da província. Seus habitantes
têm sempre se distinguido pelo seu espírito de ordem, amor às instituições juradas, e sua dedicação a pessoa
de V. M. I. e sua augusta família.
Em todas as vicissitudes porque tem passado o país, o Bananal tem sempre mostrado por fatos o seu elevado patriotismo; aí está na memória de todos quanto o Bananal concorreu para a desafronta nacional na
Guerra do Paraguai. A cidade conta edifícios nobres tanto públicos como particulares.
Ultimamente trata-se de uma casa para escolas públicas, para cuja edificação dois titulares importantes,
barão de Joatinga e visconde de Ariró concorreram o primeiro com a quantia de reis 10:000$000 e o
segundo com a de reis 5:000$.
Para socorro das vítimas da seca das províncias do Norte, os habitantes do Bananal foram dos primeiros
a concorrer com quantias não pequenas.
A Câmara Municipal tendo promovido o embelezamento da cidade e melhoramento das águas potáveis,
trata de promover uma exposição agrícola e industrial, no futuro ano, para o qual a Câmara espera que
V. M. I. honre com a sua presença.
Pede, pois, a Câmara Municipal a v. M. I. que conceda o título de imperial Cidade do Bananal, no que
ela dá uma prova inequívoca de seu amor a Monarquia, e ficará esse ato de V. M. I. com um padrão da
glória para os habitantes do município.
Paço da Câmara Municipal
da Cidade de Bananal, 28 de novembro de 1877
Antonio Pinto Coelho de Barros
Presidente interino
100
História e Geografia do Vale do Paraíba
............ Joaquim(?) da Silva
Joaquim Gabriel Guimarães
Luciano José de Almeida Vallim
José Joaquim dos Santos
Cunha dos Cunhas de .....
Explicando os documentos
Para compreender a lógica do Título de Imperial é necessário compor a metodológica administrativa do Estado. A concessão do Título era impetrada ao imperador e tramitava no
Ministério do Império, cuja seção cabia a competência da entrada dos papéis das mercês,
contudo, o circuito transitório processual dos requerimentos não se limitava apenas à Secretaria. Os processos instituídos fora da Corte, por exemplo, acionavam outras instâncias
políticas do Executivo, como os presidentes das províncias do município de origem do
pedido, que emitia parecer avaliador do conteúdo da súplica, e legitimando ou não o seu
rogo respondia em ofício do palácio do governo, ao aviso do ministro.
O Ministério do Império foi sobrevivência da secretaria primaz da Coroa portuguesa, a
Secretaria dos Negócios Interiores do Reino, reorganizada em 1736, por d. João V, para
tempos depois, em 1807, a indicação do titular da pasta vir acompanhada de ministro e
secretário. No Brasil, para o primeiro corpo ministerial de d. Pedro I, foi criada em 1822, a
pasta do Reino e Estrangeiros, com a nomeação em 16 de janeiro, de José Bonifácio de Andrada e Silva. Esta logo seria ultrapassada, ainda no mesmo ano, para a pasta do Império e
Estrangeiros, para finalmente, em 13 de novembro de 1823, ser autonomizada, na exclusiva
Secretaria dos Negócios do Império.
O ministro, em grande número das vezes, um titular do Império, assumia, além da chefia
de sua pasta, um lugar no Conselho de Estado e no Conselho de Ministros, podendo ainda
exercer o cargo de presidente do mesmo, além de ocupar na legislatura, uma cadeira na
Câmara dos Deputados ou uma cadeira perpétua no Senado. Exemplo foi o do multipolítico, senador Pedro de Araújo Lima2, o marquês de Olinda, que três vezes foi presidente do
Conselho, enquanto respondia pela Secretaria de Estado dos Negócios do Império3, o que
ocorreu nos 13º, 18º e 21º gabinetes4, correspondendo respectivamente, aos anos de 1857,
1862 e 1865. E levando em conta que já em 1849, antes do marquesado, enquanto visconde
de Olinda, na pasta dos Estrangeiros, perfez então, um total de quatro representações na
presidência do Conselho de Ministros.
Para “dar ao Ministério uma organização mais adaptada às condições do sistema representativo” d. Pedro II criou a figura do primeiro-ministro, instituindo por Decreto de 1847, o
importante cargo de presidente do Conselho dos Ministros. Para se pensar na referência
2
Pedro de Araújo Lima, visconde e depois marquês de Olinda (1793-1870). Pernambucano, foi figura solar na paisagem
política brasileira, desde o período da Regência Una de 18 de setembro de 1837 a 22 de julho de 1840, depois da abdicação
de padre Feijó, e atuação ampla e permanente nos poderes Executivo e Legislativo.
3
Mais sobre o Ministério do Império e suas relações e o Conselho de Ministros pertencentes à Secretaria, ver: IPANEMA,
Rogéria Moreira de. Distinção do Poder: Título de Imperial, as razões pelas quais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 170, n. 442, pp. 249-266, jan./mar. 2009.
4
13º Gabinete de 12 de maio de 1865; 18º Gabinete de 30 de maio de 1862 e 21º Gabinete de 12 de maio de 1865.
101
primordial do papel no Ministério dos Negócios do Império, ex-Reino, e de raízes quinhentistas portuguesas, o seu valor direto de relação do Estado com o governo permaneceu durante o segundo reinado. Dos 36 gabinetes constituídos, com as pastas do Império, Justiça,
Estrangeiros, Marinha, Guerra, Fazenda e o da Agricultura, Comércio e Obras Públicas por
quase, primeiros 20 anos de governo posterior ao decreto, a pasta do Império levou por 9
(nove) vezes, a sua representação à presidência do Conselho de Ministros, incluindo o seu
primeiro presidente, o conselheiro de Estado Manuel Alves Branco, 2º visconde de Caravelas, e como último representante, em 1865, o senador Pedro de Araújo Lima, o marquês
de Olinda. Foram sendo substituídos por representantes da Guerra, relativo ao período da
Guerra do Paraguai, da Fazenda, da Justiça.
No Ministério do Império, abaixo do ministro, de acordo com o regulamento vigente no
período de 1842 a 1844, vinha a figura do oficial maior. Depois desta data, este oficial, já
em uma Direção Central, gere o ampliado quadro de uma secretaria de 6 seções. A partir
de 1859, o órgão já contava com 9 seções, compostas por um consultor em primeiro, seguido da Seção Central assumida por um secretário-geral, e o corpo de 8 seções, quando
em 1861, a nomeação de secretário geral foi substituída para o de diretor geral, à frente da
mesma Seção Central, seguido dos seus 7 chefes de seção. Por Decreto nº 4.151, de 13 de
abril de 1868, a secretaria é enxugada para 5 seções, “Alterando o quadro dos seus servidores sem diminuir-lhes os vencimentos”, e sob a nova designação para as antigas chefias, os
agora, primeiro-oficiais são subsumidos ao diretor-geral, cargo este, que, posteriormente,
não mais constará do quadro ministerial. Dos anos correspondentes às duas últimas atualizações regulamentares da secretaria, de 1874 e 1881, até o fim do Império, o número de
divisões se estabilizaria em 3 diretorias.
Dentro do Ministério do Império, o que absolutamente não era pouco, a diversidade de
competências e atribuições a que cada seção ou diretoria competia, a rubrica específica de
Títulos estava confiada às 1ª, 2ª ou 3ª Seção ou ainda à 3ª Diretoria. Estas subcompetências
tratavam, por exemplo, dos atos da corte, negócios da Corte, casa imperial, mercês, títulos,
honras, ordens, pecuniárias, naturalização. Em relação ao Título de Imperial, este responde
por uma classe de qualidade e validade próprias, não se tratando do campo dos títulos nobiliárquicos, do campo dos privilégios, da esfera da Mordomia-mor da Casa Imperial, por
sua secretaria de Expediente e Filhamentos, ou das nomeações dos oficiais-mecânicos da
casa ou de seus fornecedores.
Os pareceres das diretorias da Secretaria do Império, em sua maioria, obtiveram aprovação às
súplicas requeridas do título de Imperial, e os despachos chegavam ao ministro, a última instância dentro do órgão, segundo a inscrição do “subam-se os papéis”. Estes pareceres eram
fundamentados no conteúdo advindo dos pareceres dos chefes de Polícia, que se baseavam
por sua vez, nos pareceres dos subdelegados distritais, que se constituíam nas autoridades
mais diretas dentro do circuito burocrático-administrativo, entre a pessoa física e a pessoa
jurídica e o Estado. Para o suplicante, recaía o juízo de sua conduta moral na sociedade, tanto
como pai de família, como a relação entre seus pares do comércio. Sobre seu estabelecimento,
era realizada uma aferição da edificação, das instalações, higiene e condição de trabalho e de
produção. Este era o mesmo modus operandi para os requerimentos das províncias, contudo,
as exigências ministeriais debitavam aos próprios presidentes, a responsabilidade de serem os
últimos pareceristas dos processos dos municípios que administravam.
102
História e Geografia do Vale do Paraíba
Interpretando os processos
Traduzindo o amplo espectro que o Título constituía em poder e distinção, é neste universo
institucionalizado, governista, nobiliárquico, parlamentar, de dimensões econômicas, com
uma imensa representação política, que duas importantíssimas cidades da Província de São
Paulo, a cidade de São Luís do Paraitinga e a cidade do Bananal, entenderam de agregarem
aos seus nomes, o alto valor da designação de “Imperial”, constituindo-se nos únicos exemplos desta categoria em toda a documentação.
O processo de São Luís do Paraitinga teve despacho redigido em folha separada, pelo chefe
da 2ª Seção do Ministério do Império, sob o nº 27, que não explica os argumentos da súplica, como era de praxe, porque a própria redação dos vereadores é também, muito sumária,
nada além do “interpretes fiéis do acrisolado amor de seus concidadãos por v. m. imperial,
e de sua fidelidade às instituições que nos regem,” e continuam “vem [...], implorar a graça
de conceder à cidade [...] o título de imperial, satisfazendo assim as justas aspirações de
nossos concidadãos” finaliza com o E. R. M., do “e receberá mercê”. Na documentação,
apenas duas páginas, uma do requerimento e a outra do despacho contendo, na margem
superior, as inscrições: “Sim” e a data de 11 de junho de 1873. Desta data, tornou-se então,
na Imperial Cidade de São Luís do Paraitinga, fato de grande significação para os anais da
história da cidade, sempre lembrada e citada em sua historiografia.
O processo da cidade do Bananal é mais complexo, quer pelos argumentos, quer pelas etapas administrativas por que passou, contemplados em 5 páginas.
O processo foi iniciado em 28 de novembro de 1877, assinado pelo presidente interino da Câmara, Antonio Pinto Coelho de Barros, com mais seis assinaturas, das quais, as duas primeiras
de baixíssima legibilidade e as quatro seguintes, de boa leitura: Joaquim Gabriel Guimarães,
Luciano José de Almeida Vallim, José Joaquim dos Santos e Cunha dos Cunhas (sic).
Nome a destacar deste conjunto é o de Luciano José de Almeida Valim, neto do riquíssimo
cafeicultor, proprietário da Fazenda Boa Vista, no município do Bananal, comendador Luciano José de Almeida, e filho de Domiciana Maria de Almeida e do não menos poderoso,
comendador Manuel de Aguiar Valim, proprietário de outras tantas grandes terras do café.5
Para além de sua representação na economia, o comendador faz sua inscrição na história da
cidade, em uma das artes de maior representação de poder, que é a arquitetura. É sua a imponente edificação residencial, de fim da década de 1850, no centro da cidade de Bananal,
o famoso Solar Aguiar Valim, de dois pavimentos, com 15 portas no primeiro, incluindo
as três centrais, mais altas em arcos envidraçados, e com 16 janelas no andar superior. Seu
interior conta com pinturas ornamentais do catalão José Maria Villaronga, mesmo artista
que contribuiu com a decoração dos salões de sua famosa fazenda Resgate.
O vereador Luciano José de Almeida Valim é representante de uma família de vários titulares do Império, ele, o barão Almeida Valim, um de seus irmãos, o barão Aguiar Valim,
homônimo do pai, assim como foi genro do visconde Aguiar Toledo6. Como mais um
As fazendas, Resgate, Três Barras, Independência, Bocaina. Mais, ver: HOLLANDA, Sérgio Buarque, MAIA, Tom. Vale do
Paraíba,Velhas Fazendas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
6
PIRES, Tasso Fragoso et al. Fazendas do Império. Rio de Janeiro: Fadel, 2010.
5
103
contributo ao poder rural, patriarcal e sobretudo econômico, dentro das relações de forças
políticas, regionais e nacionais7, pois o café nacional é vale-paraibano, e neste momento é
paulista, também era sobrinho do barão de Joatinga, titular referendado no abaixo-assinado da Câmara, relativo aos 10 contos de réis doados para a edificação de escolas para
instrução pública, somados ao valor de 5 contos, do visconde de Ariró. Esta seria a Escola
Normal da Rua da Boa Morte.
Estes nomes, envolvidos diretamente no processo e indiretamente no universo de famílias
e nobiliarquias tão poderosas, dão-nos conta de uma dimensão histórica do Vale do Paraíba
paulista, a partir da qual estão relacionados diretamente no conjunto de fatores legitimadores da causa imperial à sua cidade. Desejavam juntar-se à Imperial Cidade de Ouro Preto
(N. Sra. do Pilar da Vila Rica de Ouro Preto)8, e à Imperial Cidade de Niterói9.
É notório o lugar de Bananal, na economia nacional, na fase do café paulista. Em 1817,
antes da elevação a município, a região totalizava 886 escravos, para 84 lavradores. Cerca de
40 anos depois, em 1854, um único exemplo apresentava o impressionante o número de
812 escravos, na propriedade apenas do comendador Luciano José de Almeida, aquele avô
do vereador Almeida Valim, que assina o pedido de concessão do Título. A produtividade
econômica, com suas sólidas divisas cafeeiras configurava-se uma forte argumentação da
súplica, quando Bananal enfatiza ser “o primeiro em riqueza agrícola ao norte da província”. A região já demonstrava sua vocação e potencialidade para os insumos agrícolas, tal
ressaltara a atenção de botânico, Martius, a mencionar seus grandes milharais, assim como
para monsenhor Pizarro, que registrou ser “fértil também em café, em cujo gênero consiste
a principal agricultura dos habitantes”. (HOLLANDA, 1976, p.31)
O pedido de concessão passa pelo presidente da província de São Paulo, Sebastião Joaquim
Pereira, que se dirige ao conselheiro ministro e secretário de Estado, Antônio da Costa
Pinto e Silva, em ofício de 22 de dezembro de 1877, declarando que “a mesma cidade é
digna de graça que solicita” . O ministro por mais uma consulta, ainda solicita um parecer
do procurador da Coroa, Fazenda e Soberania Nacional, o conselheiro Sayão Lobato, que
entendeu que “a implorada mercê está na razão de ser concedida, se assim aprouver S. M. I,
o imperador. Rio, 11 de janeiro de 1878”. Por fim, viria o último parecer, do diretor da secretaria dirigido ao ministro. Notificava sobre todas as considerações expostas pela Câmara,
e além das já citadas, incluía: como “o Bananal tem sempre mostrado por fatos o seu elevado patriotismo”; de quanto o Bananal concorreu para “a desafronta nacional na Guerra do
Paraguai”; das altas contribuição dos titulares para a educação pública, com 10 contos, pelo
barão de Joatinga e 5 contos, pelo visconde Ariró; do embelezamento urbanístico e dos
melhoramentos “das águas potáveis, trato de fezes”; o empreendimento de uma exposição
agrícola e de indústria, entre outras. Ao final do parecer, o diretor J. R. Sarmento Jr. declara
“Nada tenho que acrescentar ao que informam o presidente da província e o conselheiro
procurador da Coroa. 3ª Diretoria da Secretaria do Império, em 22 de janeiro de 1878.”
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
Assim tornada por visita do príncipe regente d. Pedro em 1822. Coleção de ofícios que as câmaras e mais autoridades de
Minas Gerais têm dirigido a sua alteza real o príncipe regente do Brasil (com as providências que o mesmo augusto senhor
foi servido dar durante sua estada naquela província).
9
Tornou-se Imperial Cidade de Niterói por Decreto nº 9.322, de 22 de agosto de 1841, assinado por Cândido José de
Araújo Viana, marquês de Sapucaí.
7
8
104
História e Geografia do Vale do Paraíba
Portanto cerca de dois meses após, o documento saído do Paço da Câmara Municipal da
Cidade do Bananal, já havia passado pelo Palácio da Província, pela Procuradoria da Coroa,
pelo Ministério do Império, e recebido consenso favorável em todas as instâncias tramitadas. Dependeria agora somente da munificência do imperador.
Considerações
Pensar a distinção do Título, a partir do processo da cidade do Bananal, é pensar o peso
econômico-financeiro em que se inscrevia o município. Com a elevação do prestígio de
Imperial, era fundamentalmente de grande importância associar-se à Coroa, num exercício
de troca de valores simbólicos, com usufruto bilateral. Num processo de cima para baixo,
e de retorno de baixo para cima, e muitas vezes, não tão abaixo assim, falando da máquina
agroexportadora do café que o Vale alimentava, e Bananal é o exemplo nacional, territórios
separados conseguiam relacionar-se numa tentativa de equilibrar institucionalmente o peso
representacional de forças estritas e alianças latas. E este universo, por sua vez, já aponta
para outras questões, que condicionam novas classificações por parâmetros quantitativos e
qualitativos, o distintivo “ser imperial” durante o reinado de d. Pedro II, que muito ao contrário da compreensão de meras chancelas, fora em muitos casos, um verdadeiro exercício
de economia das trocas simbólicas.
O campo do Título de Imperial movimenta categorias que se
inscrevem no pensamento de Pierre Bourdieu de que me aproximo para subsidiar algumas novas reflexões que o objeto demanda. O teórico trata da legitimação da ordem por meio do
estabelecimento de distinções, identificada pelas hierarquias. O
autor define que “este efeito ideológico” é produzido pela cultura dominante, afirmando que a cultura que une é também a
cultura que separa, e que dentro do processo de legitimação das
distinções, a cultura dominante compele todas as outras culturas,
a se definirem pela distância em relação ao seu poder.
Referências Bliográficas
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
HOLLANDA, Sérgio Buarque, MAIA, Tom. Vale do Paraíba, velhas fazendas. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1976.
IPANEMA, Rogéria Moreira de. Distinção do Poder: Título de Imperial, as razões pelas
quais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 170, n. 441, pp.249266, jan./mar. 2009.
PIRES, Tasso Fragoso et al. Fazendas do Império. Rio de Janeiro: Edições Fadel, 2010.
RHEINGANTZ, Carlos G.. Titulares do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1960.
SOUSA, José Antônio Soares de. Da Vila Real da Praia Grande à Imperial Cidade de Niterói. 2ª ed.
Niterói: Fundação Niteroiense de Arte, 1993.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.
105
106
História e Geografia do Vale do Paraíba
A Escravidão Brasileira no Século XIX: As Estratégias de Resistência
dos Escravos
Marcelo Serra Martins*
Pensarmos as estratégias de resistência dos escravos no século XIX é tarefa da presente
proposta. Entender as relações entre escravos e senhores e principalmente entre os próprios cativos, é peça fundamental para compreendermos a readaptação do negro de acordo
com suas próprias vivências do cativeiro enfrentado aqui na América, e como o processo
de escravatura foi se desenvolvendo com a ativa participação dos escravos, dentro de seus
possíveis espaços de manobras. Assim, voltaremos nosso olhar para as diversas estratégias
de resistências escravas ao longo do século XIX, e poderemos constatar que em momentos
específicos dentro desse período, a resistência escrava foi ganhando diferentes contornos,
até a abolição em 1888.
Torna-se necessário visitar e comentar uma certa trajetória historiográfica dessa resistência. De
Gilberto Freyre, passando pela Escola Sociológica Paulista, e nos anos 80 com Sidney Chalhoub, notaremos a mudança interpretativa e a inserção do escravo no processo de abolição.
Finalizaremos com um exemplo específico da cidade de Vassouras, os Jongos, nos possibilitando fazer uma doce viagem nas fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba.
Atualmente é possível considerarmos que os escravos nunca foram apenas expectadores da
sociedade em que viviam. A suposta passividade escrava já está há muito superada pela historiografia. Nos últimos anos, a atenção sobre o estudo da resistência escrava esteve voltada
na percepção de mundo vivido pelos próprios escravos. Neste sentido o escravo passou
definitivamente a ser considerado pela historiografia como sujeito histórico.
Sem dúvida, significativos avanços aconteceram e inúmeros trabalhos procuraram retratar as
diversas formas de resistir dos escravos. Sejam pelas fugas ou rebeliões, pelos suicídios, ou pela
acumulação de pecúlio para compra de alforrias, e até mesmo no próprio espaço encontrado
e percebido pelos cativos na possibilidade de interferirem no seu próprio destino. “A liberdade pode ter representado para os escravos, em primeiro lugar, a esperança de autonomia, de
movimentação e de maior segurança na constituição das relações afetivas” ( CHALHOUB,
1990, p. 80 ). Por outro lado, alguns autores chamam de resistência-acomodação, em outras
palavras, a negociação do escravo com seu senhor. Nessa perspectiva historiográfica, apesar
da forma inicial de resistência, também embutia ao mesmo tempo uma acomodação diante
de um regime flexível o bastante para aparar as reivindicações dos escravos.
É muito comum imaginarmos que o ato de opor resistência de certa forma leva-nos a
pensar a ideia de emancipação. Digo isso para os autores mais resistentes à percepção de
que se defender está na capacidade de lutar por anseios, mesmo que mínimos, num espaço
com toda certeza limitado pela própria escravidão. Mais ainda, levando em consideração
que os escravos sempre foram grande maioria é comum nos perguntarmos por que eles não
agiram de forma a buscar a abolição definitiva. Um novo Haiti, tão temido pelos senhores,
nunca aconteceu no Brasil.
*
Graduado em História pela Universidade Veiga de Almeida. Especialização em História do Brasil pela Universidade Cândido Mendes.
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Assim, entendemos ser fundamental percebermos de antemão que os escravos trazidos
da África não eram um grupo homogêneo, pelo menos enquanto esteve intenso o tráfico
negreiro. A variedade étnica, linguística e cultural na África era bastante acentuada e o continente sempre foi rico em diversidade. Os escravos já traziam consigo suas próprias rivalidades, além do histórico de guerras anterior a sua chegada ao novo mundo da escravidão.
Com certeza, isso explica em parte a dificuldade em confiar no seu irmão de cor, uma vez
que eram de etnias diferentes. Laços até poderiam ser formados, mas o rompimento desses
também podia facilmente acontecer.
Dessa forma entendemos a necessidade de investigar a resistência escrava contextualizada,
isto é, dentro de momentos específicos, não esquecendo que o escravo sempre foi um sujeito histórico, e como tal fazia parte da sociedade em que vivia, interferindo no caminho
tomado dentro da realidade de seu tempo.
Concordamos com o relevante papel desempenhado pelos escravos, protagonistas de todo
processo que desencadeou a abolição. Entendemos, também, que devemos lançar um olhar
mais cuidadoso para as diversas formas de resistência escrava ao longo do século XIX. A
relevância do tema está no fato de compreendermos os diversos significados do que é ser
escravo, estando relacionado intrinsecamente ao modo de resistir. Ao se pensar nas estratégias de resistências no século XIX, é importante verificarmos as múltiplas especificidades
em seus principais momentos.
A melhor forma de esclarecer essas múltiplas especificidades é exemplificando e contextualizando momentos importantes de nossa história. Durante o período da independência,
verificamos que a possibilidade em se conseguir alforrias se alargaram e a discussão da
questão da cidadania, bastante em voga na época, pode ter contribuído para acalmar os
ânimos, principalmente dos escravos esperançosos de dias melhores. Passada a euforia da
independência e tendo o regime permanecido com toda força, pouca modificação ocorreu,
o direito de propriedade estava muito forte, a partir daí o tráfico negreiro, introduzindo
o estrangeiro nas senzalas, pode ter sido um fator de equilíbrio para o sistema escravista.
Estas singularidades servem para esclarecer as diferentes estratégias utilizadas pelos cativos em cada contexto histórico. Depois do término oficial do tráfico, após 1850 as possibilidades dos escravos gradualmente vão ganhando mais força. O Ser escravo em 1870
certamente foi bem diferente do que duas décadas anteriores. Por sua vez nos anos 80, o
abolicionismo ganhou fôlego e alargou cada vez mais as possibilidades, agora, pela emancipação dos escravos.
Dentro dessa perspectiva, podemos interpretar num primeiro momento que a busca da
liberdade dos escravos passava pela própria legitimação do sistema escravista. Será que defender a autocompra entre os negros, buscar incessantemente a alforria, por exemplo, nada
mais seria que legitimar o próprio regime? Entretanto, é preciso relativizar essa afirmação.
Caso o escravo conquistasse um pecúlio, e com isso o direito de comprar sua liberdade,
isso implicava dizer que a escravidão era fortemente alicerçada no direito de propriedade, a
grande legitimadora de todo sistema. Desta forma, os escravos não legitimavam o próprio
regime, eles buscavam dentro dele os espaços de manobras possíveis, a busca de alguma
“autonomia, de movimentação e de maior segurança na constituição das relações afetivas.”
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História e Geografia do Vale do Paraíba
(CHALHOUB, 1990, p. 80) Daí a importância da percepção desse mundo vivido pelos próprios cativos. Suas utilizações das leis, seus vários modos de resistências são fundamentais
para a discussão. Sidney Chalhoub já alertara aos seus leitores para que não se decepcionassem com as escolhas dos escravos que lutaram pela liberdade, já que segundo o autor
eles agiram com “lógicas ou racionalidades próprias.” (CHALHOUB, 1990, p. 252) Dessa
forma, entendemos que as resistências eram a capacidade de lutar por anseios, mesmo que
mínimos, num espaço com toda certeza limitado pela própria escravidão.
É necessário sempre observarmos os diversos momentos no decorrer do século XIX. No início
do século XIX, por exemplo, a luta pela busca de cidadania é uma questão relevante. Podemos
dizer que logo após a independência os anseios pela cidadania e por direitos civis eram lutas de
caráter extremamente desigual e a inclusão de um grupo passa pela exclusão de outro.
“Ser igual era estar no último degrau da escala social, e embaixo ninguém queria ficar, nem
que fosse em boa companhia. Daí que, para todos, a inclusão entre aqueles que tinham
direitos civis implicava a exclusão de um outro grupo”. (GRINBERG, 2002, p. 84)
Penso ser o tráfico atlântico um importante divisor para percebermos como se moldava e
vai se desenhando a escravidão e se direcionando rumo ao seu término. Na primeira metade do século XIX, inclusive com a intensificação do tráfico, estava em jogo a contínua
readaptação do cativo em seu novo mundo. Fator fundamental é a figura do estrangeiro,
tornando-se sempre necessário recriar as regras entre a própria população escrava. Além
disso as próprias hierarquias aí existentes, incluo tanto os escravos quanto os libertos, recriaram essas diversas Áfricas formadas com a diáspora negra para a América. Vale destacar
o quanto era marcante as características da sociedade de Antigo Regime. Nesta realidade
desigual, a luta era para não ficar no degrau social inferior.
O tráfico de escravos teve papel fundamental para o equilíbrio dessa efervescência que brotava no início do século. A figura do estrangeiro foi dessa forma um elemento apaziguador
nos ânimos e principalmente da paz nas senzalas. O tráfico negreiro atlântico injetava constantemente sua gente, fazendo com que o processo de acomodação cultural fosse sempre
interrompido. Neste tocante podemos perceber a importância da resistência cultural, sendo
readaptada da melhor forma possível aqui no Brasil.
A resistência escrava vai se moldando também através da experiência do próprio escravo dentro
da escravidão. Após 1850 o recrudescimento do tráfico interno foi determinante para pensarmos o encaminhamento da resistência escrava. O escravo crioulo aí inserido, já trazia consigo uma bagagem de práticas costumeiras. Desta forma, tinha concepções preestabelecidas de
castigo justo ou injusto, ritmos de trabalho aceitáveis ou não, das condições que deveriam dar
acesso ao pecúlio e à alforria. Essas condições apresentavam seus próprios padrões de acordo
com cada fazenda.1 Aparentemente, numa primeira análise, isso reforçava a legitimidade da dominação escravista. Apenas aparência, já que ao atribuírem nessa negociação o mau cativeiro e
o bom cativeiro, e condicionarem a esse último, a obediência ao senhor, formou-se uma espécie
de código geral de direito dos cativos, fazendo com que o que era antes apenas privilégio conce1
Hebe M.Mattos de Castro: Laços de família e direitos no final da escravidão. In: História da Vida Privada no Brasil 2. Luiz
Felipe de Alencastro (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.355 e 356.
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dido pelo senhor, agora passasse a ser um direito. Ora, se o que definia o escravo era a ausência
de prerrogativas e direitos, nesse sentido a legitimidade da escravidão perde sua força.2
Como não reforçamos a noção de que a escravidão possa estar legitimada na própria forma de
resistir do escravo e muito menos o escravo foi cúmplice do sistema. Lembramos que a escravidão é muito anterior ao século XVI. Entretanto, a escravidão praticada na África, naquele momento, estava muito longe daquela encontrada pelos negros africanos na América, esta última
voltada para a produção agrícola, exploração de metais preciosos e uma maior diversificação nos
centros urbanos, através de serviços e produções artesanais. Na África, “o escravo não estava
necessariamente ligado à produção, pode ser escravo particular de um senhor poderoso, de sua
própria etnia às vezes, sempre de sua mesma cor”. (Matoso, 2003, p. 98)
Por muito tempo a historiografia criou um estereótipo do negro escravo, que ao contrário do índio, hostil e tido como preguiçoso para o trabalho, o negro seria dócil, e já adaptado à condição
escrava. Mas a grande questão vivenciada pelos negros aprisionados e trazidos para a América
era a retirada do seu ambiente, chegando num mundo totalmente desconhecido para eles. Sua
própria sobrevivência dependeu da sua adaptação a esse novo mundo. Essa adaptação vai ser
vital para os escravos e vai acontecer, segundo Matoso, através de uma encenação de obediência,
humildade e fidelidade. A obediência era “uma forma eficaz e sutil da resistência do negro face a
uma sociedade que pretende despojá-lo de toda uma herança moral e cultural”. ( Matoso, 2003,
p.103.) Desta forma, a resistência escrava deve ser entendida num contexto histórico específico.
A ideia do escravo vivendo numa completa anomia, isto é, sem regras ou normas de organização entre eles próprios perdurou por muito tempo na nossa historiografia. Assim, os escravos
realmente poderiam ser considerados, de forma discutível, coisas, sem nenhuma personalidade.
Entretanto alertamos que essa visão já foi revista e combatida pela historiografia mais recente.3
Portanto, ao discutirmos as estratégias de resistência dos escravos no século XIX, percebemos a necessidade de reflexões sobre os momentos específicos destacados. Lembramos, ainda, que rebeldia aqui é sinônimo de ser obstinado, firme e relutante, e também aquela pessoa
que oferece resistência. Assim rebeldia não pode estar restrita a simples significação de luta
aberta contra o senhor, mas também de toda forma investida pelos cativos, seja qual for, e
que de certa forma mostrou a insatisfação contra o que se estava vivendo. Estamos convictos
que realmente os escravos, como sempre vinculou uma historiografia mais tradicional, foram
rebeldes sim, mas num significado amplo, principalmente no sentido de oferecer resistência
e essa se deu de várias formas.
A resistência escrava foi ganhando diferentes contornos até o fim da escravidão em 1888. O
papel do escravo foi sempre objeto de reflexão ao longo dos anos pela historiografia. Gilberto
Freyre, em seu clássico Casa-Grande Senzala, escrito nos anos 30, já debatia a relação entre senhores e escravos nos engenhos de açúcar do Nordeste. Para Freyre, a promiscuidade dos escravos
teria sido um fator que contribuiu para a miscigenação racial e a fusão das raças, e teria ocorrido
num ambiente harmônico, surgindo assim, o Mito da Democracia Racial, isto é, a ideia de um
escravismo com senhores paternais e escravos fiéis. Alguns anos depois, a Unesco financiou
Idem, Ibidem, p.356.
A coisificação dos escravos é amplamente discutida em Chalhoub, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas
da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
2
3
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pesquisas para se compreender o mito da democracia racial, aparecendo a chamada escola sociológica paulista. Nomes como Octávio Ianni, Florestam Fernandes e Fernando Henrique Cardoso ganharam destaque. Nessa perspectiva, retiram-se os traços de humanidade do escravo e
reforça a identidade de “coisa”. O negro era então brutalizado, coisificado, tratado como vítima
e sem qualquer ação inteligente. Enfatiza a questão da violência do cativeiro. A identidade real
dos escravos estaria somente nas revoltas e fugas.
Por sua vez trabalhos como o de Célia Maria de Azevedo, Onda negra, medo branco,
assinala a visão do escravo herói da abolição. Desta forma, traz a ideia de oposição
de que a escravidão aniquilaria a capacidade do escravo de reação contra o sistema
escravo. Assim é recuperado o papel das revoltas, das fugas, e também nas ações dos
próprios escravos em todo processo abolicionista. Ao pensarmos a escravidão e seus
modos de resistência nas últimas décadas do século XIX, Chalhoub, em Visões da
liberdade – é de grande relevância. Segundo o autor, não podemos pensar o escravo
inserido em duas pontas: passivos, ou rebeldes. Dessa forma, a ideia de liberdade
dos escravos para Chalhoub seria a “esperança de autonomia, de movimentação e de
maior segurança na constituição das relações afetivas”. (CHALHOUB, 1990, p.80)
Percebemos nessa perspectiva a ativa participação dos escravos dentro de seus possíveis espaços de manobra.
Podemos incluir aqui, principalmente na cidade de Vassouras, uma forma muito peculiar de mostrar a insatisfação do escravo dentro da sociedade em que vivia, e, além
disso, poder de certa forma, ir recriando sua cultura trazida consigo na bagagem.
Falo dos Jongos, não sem motivos, já que estamos num congresso de história na
cidade de Vassouras. Não teria como deixar de mencionar o jongo.
Os jongos são uma das mais importantes manifestações da cultura africana. Vindo
da região do Congo-Angola, portanto de origem bantu. Sua importância está no fato
de trazer em seus versos curtos e metafóricos, além da dança, a vivência dos escravos
nas fazendas cafeeiras do vale do Paraíba. O termo é referente à dança e também às
cantigas que a acompanham, conhecidas como pontos.
Gostaria de deixar registrado aqui, uma breve história. 4 Stanley Stein, historiador
norte-americano, brazilianista, por volta de 1940, veio ao Brasil e passou 18 meses
em Vassouras. Seu objetivo era examinar a sociedade cafeeira do Vale do Paraíba.
Durante sua pesquisa, entrevistou trabalhadores, sendo alguns ex-escravos. Fotografou e gravou canções e pontos de jongos, entoadas por seus entrevistados.
A gravação foi feita com um gravador de fio de arame e acabou esquecida pelo historiador. Stein ainda chegou a mencionar em seu livro Vassouras: um município brasileiro
de café – 1850-1900, no capítulo VIII, intitulado Religião e festividades na fazenda.
Gustavo Pacheco foi até os EUA em 2002, falar com Stein. Mas para sua decepção, a
gravação tinha se perdido. Inesperadamente, em 2003, a bobina chegou pelo correio.
Stein encontrara e enviara para Pacheco. Nesse contexto saiu a ideia do livro, que foi
lançado, trazendo um CD com essa rara gravação. Importante dizer que as gravações
são instrumentos raríssimos de tradição oral brasileira.
Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley Stein. Vassouras: 1949. / organização, Silvia Hunold Lara, Gustavo Pacheco. Rio de
Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.
4
111
É de fundamental importância percebermos como os jongos demonstram vários
aspectos da cultura africana e, mais ainda, a vivência escrava nas fazendas de café,
aqui do Vale do Paraíba.
Seus versos curtos, cantados em metáforas, sempre procurando passar algum tipo de
mensagem ou enigma para ser decifrado, o torna extremamente instigante.
Gustavo Pacheco foi bastante feliz ao falar que o jongo era usado pelos escravos como uma
“forma de crônica da vida no cativeiro”. (PACHECO, 2007, p. 26) Stein assinala a oportunidade que o cativo tinha de cultivar o comentário irônico, hábil e cínico sobre a sociedade
onde os escravos estavam inseridos.
Tava dormindo cangoma me
Chamou
Levanta povo que o cativeiro
Já acabou
Tava dormindo cangoma me chamou
Levanta povo que o cativeiro
Já acabou
Eu pisei na pedra a pedra balanceou
O mundo tava torto rainha
Endireitou
Pisei na pedra a pedra balanceou
Mundo tava torto rainha endireitou
Não me deu banco pra mim sentar
Dona Rainha me deu uma cama,
Não me deu banco pra me sentar
Um banco pra mim sentar
Dona Rainha me deu cama não me
Deu banco pra me sentar, ô iaiá
Ô ô, com tanto pau no mato
Embaúba é coroné
Com tanto pau no mato, ê ê
Com tanto pau no mato
Embaúba coroné5
Dessa forma penso ser o jongo um elemento que propiciava ao escravo, dentro do possível,
extravasar toda sua angústia, sua dor e seu sofrimento, pois somente quem enfrentou na
própria pele o cativeiro pode saber o quer era ser escravo no Brasil.
Alguns exemplos de Jongos retirados de Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley Stein. Vassouras 1949. / organização, Silvia Hunold Lara, Gustavo Pacheco. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.
Cangoma: tambor maior, de tronco escavado e de um couro só.
Embaúba: árvore inútil por ser podre por dentro.
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Referências Bibliográficas
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo:
Companhia das letras, 1990, 287p.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933.
FLORENTINO, Manolo e Góes, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro, c.1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, 256p.
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, 403p.
MATTOS, Hebe Maria: Laços de família e direitos no final da escravidão. In: História da vida privada
no Brasil 2, Luiz Felipe de Alencastro ( org. ). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.337-383.
___ . Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, 74p.
MATOSO, Kátia de Queirós. Tradução James Amado. Ser Escravo no Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 2003, 270p.
Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley Stein, Vassouras, 1949. / organização, Silvia
Hunold Lara, Gustavo Pacheco. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.
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A Ferida Incurável: Zoonose na Implantação e Expansão da
Cultura Cafeeira – Vassouras, 1821-1850.
Magno Fonseca Borges*
Guilherme Pinheiro Furusawa**
Pedro Eduardo de Mesquita Marinho***
A História da Ciência é um inesgotável campo de pesquisa e pode ser estudada sob diferentes perspectivas. O estudioso pode ater-se a transformações das teorias nas diferentes
áreas do conhecimento ou dedicar-se aos paradigmas que orientam a atividade científica,
relacionando-os às práxis do sistema social vigente (PRIMON et al. 2000). O artigo antecipa, resumidamente, algumas reflexões em construção pelos autores. Visa a recuperar a
literatura do conhecimento acerca de uma doença parasitária, de ampla distribuição mundial, que acomete, todos os anos, cerca de dois milhões de pessoas, espalhadas em 88 países
de quatro continentes, presente em todos os estados brasileiros, qual seja, a Leishmaniose.
Contudo, a partir da análise das técnicas agrícolas empregadas na formação e expansão da
cafeicultura no médio Vale do Paraíba Fluminense, entre os anos de 1821 e 1850, e da colação destas com as listagens de escravos existentes em 222 inventários post mortem referentes
à região de Vassouras, o artigo apresenta a possibilidade da ocorrência da Leishmaniose na
região, antes de sua identificação no início do século XX.
A Leishmaniose é uma zoonose provocada por parasitas unicelulares do gênero Leishmania (ROSS, 1903), pertencentes à Família Trypanosomatidae. Existem dois tipos de leishmaniose: a leishmaniose visceral, menos comum, que acomete os órgãos internos; e a leishmaniose tegumentar (LT), que acomete as mucosas e a pele, sendo esta o alvo do nosso
trabalho. A LT pode afetar o homem, animais silvestres e domésticos, manifestando-se de
diferentes formas clínicas. A forma cutaneolocalizada é caracterizada por úlceras leishmanióticas típicas na derme, que são lesões ulcerosas, únicas ou múltiplas, sendo comumente designadas vulgarmente como “ferida brava”, “ferida seca”, “bouba” ou simplesmente
“chaga”, podendo ainda, em alguns casos, evoluir para manifestações verrucosas. A forma
cutaneodifusa apresenta lesões nodulares não ulceradas; e a forma que acomete as mucosas
é chamada de cutaneomucosa, cujas lesões mais agressivas afetam as regiões nasofaríngeas
(nariz, boca, faringe e laringe). Inicialmente surge uma ou mais lesões avermelhadas, endurecidas, elevadas, que crescem formando crostas que caem, surgindo então as úlceras, com
bordas elevadas, profundas, geralmente contendo sangue e pus. Normalmente é uma ferida
indolor que não cicatriza.
A revisão da literatura aponta para o ano de 1884 como sendo a primeira referência da
doença no Sudeste brasileiro. Na Itália, o dermatologista Achille Breda descreveu uma
moléstia parasitária em 18 italianos provenientes de São Paulo. Em um primeiro momento, afirmou que se tratava da Bouba brasiliana e, mais tarde, de uma doença diferente da
sífilis, bouba, lúpus e demais parasitas conhecidos, concluindo ainda que a doença não era
* Magno Fonseca Borges é mestre em História pela USS onde realiza pesquisa no Centro de Documentação Histórica (CDH);
é membro do IHGV; é pesquisador do CNPq/MAST na modalidade PCI, sob a orientação de Pedro Eduardo Mesquita Marinho.
** Guilherme Pinheiro Furusawa é Biólogo com especialização em Educação Ambiental pela USS.
*** Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho é doutor em História pela UFF; é pesquisador do MAST e professor do
Programa de Pós-Graduação em História da UniRio.
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diretamente contagiosa. (PAMPLIONE, 1979.) Em 1885, estando há cinco anos à frente
da cadeira Clínica das Doenças Cutâneas e Sifilíticas da Faculdade de Medicina da Bahia,
o médico Alexandre Evangelista de Castro Cerqueira observou as lesões da LT na Bahia
(NEVES, 2004), entretanto não fez, em princípio, nenhuma correlação com o botão de
Biskra ou botão do oriente, nomes que definiam a manifestação clínica da LT em países
asiáticos (VALE & FURTADO, 2005). Somente após as observações do médico baiano
Juliano Moreira, apresentadas na sessão de 30 de dezembro de 1894 da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia sob o título “Existe na Bahia o botão de Biskra?, estudo clínico”
publicado na Gazeta Médica da Bahia em fevereiro do ano seguinte, realizou-se esta relação.
Neste trabalho, Moreira fez uma minuciosa descrição das formas clínicas encontradas, apelidadas de botão da Bahia e, por comparação, trouxe à tona pela primeira vez, a existência
brasileira do botão de Biskra, também conhecido por botão ou úlcera do oriente ou botão
endêmico dos países quentes, durante algum tempo negligenciado no Brasil em diagnósticos equivocados. Outro destaque em relação ao trabalho de Juliano Moreira foi o registro
da possibilidade de haver um inseto envolvido no ciclo da doença. Segundo ele: “A picada
de um inseto, o muruim, tem sido muitas vezes attribuída por alguns doentes como o inicio
da affecção”, sem, todavia, fazer nenhuma menção à natureza do parasita, encerrou seu
trabalho evidenciando a necessidade de se fazer realizar estudos mais abrangentes (JACOBINA & GELMAN, 2008).
O primeiro relato histórico do protozoário havia ocorrido em 1885 com o britânico David
Douglas Cunningham, na Índia (NEVES, 2004), descrevendo formas amastigotas do parasita em casos de calazar (leishmaniose visceral). Mas foi no início do séc. XX, em 1903, nos
Estados Unidos, que James Homer Wright observou formas do protozoário em amostras
retiradas de úlcera cutânea de uma criança da Armênia acometida pelo botão do oriente. Na
ocasião, propôs o nome de Welcozoma tropicum ao parasita que, mais tarde, foi renomeado Leishmania tropica (ALTAMIRANO-ENCISO, et al., 2003). Isto permitiu filiarem-se à
leishmaniose diversas dermatoses (VALE & FURTADO, op cit.).
Em 1908, durante a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, começaram a
afluir à Santa Casa de S. Paulo, numerosos doentes vindos destas áreas de desmatamento
(principalmente da cidade de Bauru), ficando a doença conhecida por Úlcera de Bauru.
Apenas em 1909, Adolfo Lindemberg noticiou a descoberta do parasita dessa doença em
trabalhadores oriundos de áreas de desmatamento para construção de rodovias no interior
de São Paulo, o assemelhando a Leishmania tropica, agente causal do Botão do Oriente.
Entretanto, foi o médico paraense Gaspar de Oliveira Vianna, em 1911, que identificou o
parasita como Leishmania brasiliensis (hoje L. braziliensis).
D’Utra e Silva (1915), após dois anos substituindo o prof. Eduardo Rabello como chefe do
laboratório do Instituto Oswaldo Cruz, vinculado à Santa Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro, afirmou que havia observado casos de LT provenientes de todos os estados brasileiros, com exceção dos estados do Sul, abaixo de São Paulo. Contudo, ele observou que
embora não tivesse conhecimento de casos assinalados nestes estados, era muito provável
que existissem no Paraná, tendo em vista o conhecimento de foco endêmico desta doença
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História e Geografia do Vale do Paraíba
no Paraguai. O mesmo autor registrou ainda ter recebido doentes das cidades do norte ao
sul do Estado do Rio de Janeiro, realizando, assim, a primeira referência a casos na região
Sul fluminense, área do estudo em tela. Calcula-se que em seis anos, entre 1913 a 1919,
cerca de 15 mil pessoas adoeceram de LT em São Paulo.
No ano de 1925, um importante artigo escrito por Eduardo Rabello foi publicado no
primeiro volume dos Annaes Brasileiros de Dermatologia e Syphilographia sob o título: Contribuições ao estudo da LT no Brasil e que se dividia em duas partes. Neste amplo estudo,
Rabello considerou a ocorrência desta doença nas regiões centro e sul do país ainda no
século XIX. Fundamentou sua tese em modelos encontrados no Museu da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, datados entre os anos de 1882 e 1884, que representavam
casos indubitáveis de LT, no já citado caso dos imigrantes italianos de São Paulo, que
retornaram a seu país portando a LT, descrito pelo médico italiano Breda em 1884, e,
ainda, nas reproduções em aquarela, datadas de 1879, de 7 casos em uma família (mãe
e seis filhos) de Uberaba-MG, de afecções ulcerosas do nariz apresentadas à Sociedade
Brasileira de Dermatologia, em 1912, pelo dr. Carneiro da Cunha. Além destes, há ainda
a análise e interpretação de um caso clinico publicado por Vidal no “Atlas de doenças
raras da pele” e reproduzido em peças de cera no Museu do Hospital São Luiz, de Paris.
Desta forma, ao final da primeira parte de seu trabalho, Rabello concluiu, em meados do
séc. XIX, a presença da leishmaniose cutâneo-mucosa grassando por diversas regiões do
país antes do que se imaginava, designada por expressões regionais como botão da Bahia,
buba ou denominações vagas como ferida brava, entre outras.
O trabalho em tela objetiva demonstrar a possibilidade da existência da LT no sudeste
brasileiro quando da implantação e expansão do complexo cafeeiro em Vassouras. Como
já apresentado por Stein (1990), Dean (1996), Borges (2005) e Salles (2008), a formação do
complexo cafeeiro na região foi organizada a partir da mão de obra escrava, da concentração fundiária e da derrubada da Mata Atlântica. A aceleração da produção cafeeira como
produto voltado ao mercado externo alinhava-se a uma série de fatores interdependentes.
Entre eles, aquele que transformou o café, de um produto de luxo, em um produto de
massa. Observe-se ainda que com o advento da revolução em Sant Domingues, evento que
tirou a ilha do mercado mundial, criou-se um vácuo que fez o preço do produto disparar.
Foi neste quadro que o Brasil entrou no mercado internacional do gênero.
O café foi introduzido no Estado do Grão-Pará e Maranhão na década de 1720. Por volta
da década de 1780, foi aclimatado também nas chácaras e quintais do Rio de Janeiro sem,
contudo, de sua aclimatação e plantio, se verificar incremento econômico. Até o fim do
século XVIII, seu cultivo era meramente doméstico e ornamental, com pouca representatividade comercial. A média de produção anual no instante de 1797 e 1811 foi de 400 t. Mas
a produção foi alargada com fôlego a partir de então. Entre 1812 e 1816, a média anual da
produção brasileira saltou para 1.500 t e para o período posterior, delimitado pelos anos de
1817 e 1821, esta média passou a 6.100 t. Com o início da década de 1820, a produção cafeeira continuou a ser dilatada. Saltou para 13.500 t a média entre 1822 e 1823, e daí explodiu
para 67.000 t em 1833. Deste momento em diante as cifras só fizeram crescer, chegando
a 150.000 t em 1843, 225.000 t em 1860 e 350.000 t em 1870 (MARQUESE e TOMICH,
2009). A elevação constante da produção está associada a uma tecnologia, aqui entendida
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como um processo social. Dito de outro modo, tecnologia é mais que um conjunto de
informações, instrumento ou lógica, mas parte fundamental do processo de desenvolvimento social, envolvendo a “preparação, mobilização e habituação de pessoas para novos
tipos de atividades produtivas, a reestruturação das instituições sociais e potencialmente a
redefinição das relações sociais” (NOBLE apud BRYAN, 1985, p. 51).
Em Administração e Escravidão, Rafael de Bivar Marquese (1999) realizou importante estudo
sobre a ideia contida nos escritos de padres, intelectuais e fazendeiros a respeito da agricultura
no Brasil. Para tal, fez reunir um conjunto substancial destes escritos, entre os séculos XVI
e XIX. No terceiro capítulo de sua obra, dedicou especial atenção à análise daqueles que tratavam das culturas do café e da cana no século XIX. Em todos os manuais que abordaram
a cafeicultura, estavam as recomendações da substituição das matas pelas fileiras (em sua
maioria verticais) das mudas do cafeeiro. Como verificamos acima, a derrubada das matas primárias é uma condição para a ocorrência de casos de LT, e Vassouras Mata Atlântica primária
foi abatida, cedendo lugar às lavouras de café. Tratava-se do processo de desenvolvimento
econômico, pautado no abastecimento do mercado externo e capaz de redefinir as relações
sociais, a exemplo da escravidão, que em declínio na maior parte do globo, experimentou no
Brasil e em Cuba seu momento de maior ascensão.
Publicado originalmente em 1837 e com segunda edição em 1839, o Manual do Agricultor Brasileiro de Carlos Augusto Taunay (MARQUESE, 1999, 172-3) era um manual que condensava
em volume único vários aspectos pertinentes à montagem e direção das unidades agrárias
operadas com mão de obra escrava. Na abertura do capítulo 16, que tinha por título “Flagelos que perseguem o agricultor”, Taunay afirma que o agricultor tem uma grande quantidade
de inimigos “cujos menores são muitas vezes os mais terríveis, pois que o lobo e a onça
contentam-se com levar um leve tributo sobre os rebanhos, a lagarta, a formiga, o gafanhoto
não raras vezes aniquilam a as esperanças de uma província”, referindo-se assim àqueles que
podiam causar prejuízos diretos às atividades econômicas do agricultor. Porquanto, ao final
deste capítulo, após apresentar aqueles inimigos que causavam prejuízos às diferentes culturas, mostrou aqueles de outra ordem, que causavam mal-estar, envenenamentos e incômodos
em geral (MARQUESE, 2001, 266-281).
Estes inimigos, já lembrados são os mais terríveis, mas não são os únicos. Basta apontar os quadrupedes selvagens, carnívoros e herbívoros, a detestável tribo dos ratos, os
morcegos que chupam sangue do gado vacum cavalar e lanígero (…) e sobretudo as
infernais raças dos insetos, quais mosquitos, maruins, borrachudos puins muriçocas,
tabões, e outros que tais, cuja inumeráveis legiões se saciam no sangue, e em certos
sítios peculiares incomodam a ponto de desesperar.
Em 1939/1940, Samuel Barnsley Pessoa descreveu a LT como “doença profissional da margem de mata” (MAGALHÃES, 1981). Magalhães observou ainda que a LT apresentava, então, estreita relação com as florestas, ou melhor, com derrubadas de matas nativas. Entre estes
inimigos acima descritos, certamente estavam o vetor da LT. A análise dos 222 inventários
post mortem da comarca de Vassouras, guardados e disponibilizados à pesquisa pela Universidade Severino Sombra através de seu Centro de Documentação Histórica (CDH), permitiu a confecção de um pequeno banco de dados com as informações sobre o tamanho da
propriedade, imóveis e, naturalmente, informações acerca dos escravos, como sexo, origem,
118
História e Geografia do Vale do Paraíba
cônjuges, idade, filhos, preço e as enfermidades aparentes. Dentre as enfermidades descritas
para o escravo, encontramos diversas que indicam afecções cutâneas e, entre estas, a grande
possibilidade da presença de LT.
Dos 8.055 escravos inventariados, encontramos 808 registros de acometimentos físicos,
como doenças e mutilações, assinaladas por seus inventariantes, ou seja, 10,03%. Destes, 68
apresentavam afecções cutâneas, ou seja, aproximadamente 8,4% dos casos. Destes últimos,
consideramos como possíveis ocorrências de Leishmaniose 14 casos apontados como: chaga
antiga, chaga crônica, chaga incurável, ferida crônica e úlcera crônica. Verificamos ainda mais
54 casos indicados como chagas e feridas, que podem indicar casos de leishmaniose.
A análise dos dados nos permitiu encontrar casos como os dos escravos Manoel Comprido e Romão, o primeiro de Benguela e o segundo de Cabinda, ambos de propriedade de
Luiza Ignacia da Conceição, e descritos num primeiro inventário em 1841 com a presença
de chagas crônicas, o primeiro com 28 anos e o segundo com 25 anos. O inventariante foi
José d’Azevedo Ramos. No ano de 1844, foi aberto novo inventário, cujo inventariante era
Claudio Gomes Ribeiro d’Avelar. Nele, novo registro relata a presença das chagas nestes
mesmos escravos, agora descritos como feridas crônicas. Manoel Comprido foi identificado neste segundo inventário com 30 anos e Romão teve sua idade ignorada pelo inventariante. Este caráter perene da ferida é um forte indício de leishmaniose.
O mesmo, talvez, se dê com um escravo de nome Thobias Cabinda, presente em dois inventários, o primeiro no ano de 1837, pertencente a Marianna das Neves Correa, na fazenda
Santo Antônio dos Correas, inventariada por Pedro Correa e Castro, e o segundo, no ano
de 1847, agora na Fazenda dos Encantos, pertencente a Joaquina Mathildes d’Assumpção,
cujo inventariante era Claudio Gomes Ribeiro d’Avelar. Uma diferença de dez anos separa
os dois registros e, para considerarmos como sendo o mesmo escravo presente nos dois
registros, temos apenas a coincidência do nome, procedência e relação entre a idade do cativo e o ano do registro. Se considerarmos como sendo, nos dois casos, o mesmo escravo,
demonstraríamos novamente o caráter perene, característico da leishmaniose.
Nos casos em que o inventariante aponta a região do corpo acometida, a maioria das feridas foram verificadas nos membros inferiores, 25 casos (36,7%). Entretanto, em 37 casos,
os inventariantes não apontam a região do corpo afetada (54,4%) e em três casos relatam
úlceras no rosto (Victória, o ano de 1833; Adriana, ano de 1840 e Joaquina, ano de 1850). O
único caso descrito nos membros superiores é o da escrava Maria. Outro caso que merece
consideração é do escravo Mathias, no ano de 1837, que foi apontado como portador de
um problema “no beiço”, possivelmente um caso de leishmaniose de mucosa.
Em se tratando das nacionalidades dos escravos acometidos por moléstias de pele, nos
primeiros trinta anos de trabalho escravo (1820-1850), 84% eram africanos, ou seja, 59 indivíduos (17 Benguela, 8 Congo, 8 Cabinda, 7 Nação, 5 Moçambique, 3 Angola, 2 Monjolo,
2 Rebolo, 2 Cassange, 2 Mofumbe, 1 Cabundá, 1 Inhambane e 1 Moange), 5 brasileiros e 6
tiveram a nacionalidade ignorada ou os documentos não permitiram a leitura.
119
Pelos diversos argumentos apresentados, parece-nos viável a possibilidade da existência de
LT no Rio de Janeiro, ainda no início do séc. XIX, observada em escravos, contrariando
diversos trabalhos que sugerem a chegada da LT no Rio de Janeiro apenas ao final do séc.
XIX ou começo do séc. XX.
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121
122
História e Geografia do Vale do Paraíba
“Depois do escravo, a terra!”:
O Abolicionismo e a Elite Fluminense no final do Império
Roselene de Cássia Coelho Martins*
O presente artigo tem por objetivo analisar as discussões que se fizeram através da
imprensa, no final do século XIX, na capital da província fluminense, no que tange à
propriedade de terra, mais especificamente o retalhamento da propriedade territorial,
o que na época era chamado de Democracia Rural.
A vontade de conhecer os referidos debates vem do fato de que o tema da propriedade
da terra é pouco enfatizado quando se estuda o abolicionismo no Brasil Imperial e suas
implicações por ocasião da transição da Monarquia para a República.
Quando se fala em Abolicionismo no final do Império destaca-se mais a campanha
em prol da libertação dos escravos, suas estratégias, propostas e, uma vez realizada a
Abolição, toma vulto a discussão sobre a pretendida indenização pelos fazendeiros de
café. O “desrespeito à propriedade” pelo governo imperial por ocasião das medidas
abolicionistas desde a Lei do Ventre livre, de 1871, foi um tema presente em discussões
parlamentares, reuniões de intelectuais, políticos e na classe senhorial.
Nosso foco de pesquisa, neste trabalho, volta-se para a capital Rio de Janeiro. É nossa
intenção investigar o que foi discutido entre os anos de 1880 a 1889, época marcada
pela ação do movimento abolicionista e, principalmente, pelas discussões sobre as propostas abolicionistas vigentes.
Para tanto, utilizaremos a imprensa de época por serem os periódicos veículos não
só de informação como também de discussões das ideias e propostas que permearam o panorama político do final do Império. Consideramos para este artigo alguns
jornais que circularam na capital da província fluminense. As escolhas dos jornais
que apresentaremos como palco de discussões não foram aleatórias. As indicações
foram obtidas através de referências bibliográficas e em “diálogos” entre os próprios
jornais de época analisados.
Stanley Stein, ao abordar a discussão sobre a indenização e a propriedade, se baseou
em jornais da capital, especialmente no jornal Novidades, para obter informações a respeito do assunto. (STEIN, 1985, p. 296) E fomos investigar nos mesmo periódico o
que se pensava em relação à propriedade da terra.
Um dos historiadores que também analisa a relação entre propriedade da terra e sua
importância na queda do Império é Richard Graham. (GRAHAM, 1979) Ele lança a
ideia de que os proprietários de terras estariam se opondo à monarquia não só pela
abolição da escravatura em si, mas também por acharem que a campanha abolicionista pudesse atingi-los novamente, pois preconizava novas reformas sociais como a
“democracia rural”. Baseando-nos em Graham, fomos analisar os jornais, buscando
investigar como o assunto era tratado na província do Rio de Janeiro.
* Mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra, Vassouras, RJ.
123
Faremos agora uma síntese do que foi encontrado nesta pesquisa obedecendo a um critério
cronológico. Nossa escolha por esta forma de apresentação do assunto se fez por acharmos
que assim poderíamos ter uma visão mais elucidativa de toda a discussão que permeou a
questão da propriedade de terras no final do Império.
Para analisarmos a discussão que se travou na Corte do Império separamos três periódicos diários que circularam principalmente na Corte do Rio de Janeiro: o Novidades, Jornal
do Commercio e Cidade do Rio. A escolha obedece à justificativa de ser o primeiro um jornal
francamente porta-voz do pensamento da elite econômica e política ligada à cafeicultura e,
principalmente, ao partido Conservador.
O Jornal do Commercio por ter sido um período de grande circulação no país, visto que escrevia não só para a província do Rio de Janeiro, podendo ser encontrado em variadas cidades
da região e do país. Distinguiu-se do periódico anterior por prevalecer em seu discurso uma
certa “neutralidade”, se é que isto é possível, interessando-se mais em divulgar informações
e menos em comentá-las.
O periódico Cidade do Rio foi selecionado por ser um jornal abolicionista e republicano,
sendo o seu proprietário José do Patrocínio, reconhecido por sua bandeira de luta em prol
da abolição da escravatura e também da implantação da República no Brasil.
O intento foi confrontar os diversos discursos e modos de apresentação dos mesmos à
população e daí extrair as análises necessárias para o estudo do quadro que se viveu na
transição da Monarquia para a República no Brasil, em face das transformações sociais
pelas quais passava o país.
1 – Jornal Novidades
Chegamos ao Novidades através da indicação de Stanley Stein, que o utilizou para conhecer
fatos e pensamentos a respeito do Vale do Paraíba, visto que é perfeitamente perceptível
que o referido jornal é um porta-voz dos fazendeiros de café do país, principalmente da
região do Vale do Paraíba.
Ao analisar o jornal de Alcindo Guanabara, verificamos que parecia ser a fala destinada a um
público determinado. Por vezes, “escreve” para o Imperador, para alguns membros da Família
Imperial, por vezes para os políticos da nação, sempre exaltando líderes do Partido Conservador, em especial “o grande chefe” Paulino de Souza e o Barão de Cotegipe.
Até o ano de 1887, nada encontramos referente à questão fundiária. A pauta era formada por
assuntos relativos aos problemas da cidade do Rio de Janeiro e quanto ao Império, os problemas
da lavoura, tais como a mão de obra e o crédito, tomavam as páginas principais.
Já no final de 1887 e princípio de 1888, o jornal debatia-se com a princesa Isabel e principalmente,
com o seu consorte Conde d’Eu. Durante as leituras realizadas, observamos constantes ataques
ao dois, enquanto o mesmo não se aplicava ao Imperador. E quando vinham as críticas a ele, eram
sempre mais “serenas”, observando-se uma escolha de cada palavra empregada no texto.
124
História e Geografia do Vale do Paraíba
O alvo maior do jornal, nestes dois citados anos analisados, se fazia contra o movimento
abolicionista, em especial a Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. Os jornais de Patrocínio
eram sempre citados pelo Novidades e em meio a um intenso e caloroso “debate”.
Dada a extensão da discussão no que tange ao movimento abolicionista, selecionamos
somente alguns dos momentos em que o mesmo se reporta à análise da questão fundiária.
Percebemos durante a leitura de variados números que este momento se dá entre os anos
de 1888 e 1889. Nos anos anteriores, o debate se concentra mais na transformação da mão
de obra, não aparecendo o tema fundiário como parte integrante do debate.
Percebemos que o debate ocorre na primeira página, em especial no Editorial. Constata-se,
portanto, o valor do tema para a redação do referido jornal.
A primeira alusão à ligação entre o abolicionismo e terra encontramos no artigo intitulado
“O Abolicionismo”:
“O abolicionismo persiste, pregando o ódio ao lavrador, e procurando convencer de que
a salvação do país está no roubo da propriedade territorial para distribuí-la pelos que nada
tem. O abolicionismo agiu no ânimo da Princesa Imperial, não é, portanto, justo e fundado
o receio que alimentamos vendo que essa identificação persista e que o alvo visado agora é
a propriedade de terra? A lavoura levanta-se, a lavoura protesta, a lavoura declara-se republicana. O trono constitui-se um perigo social. A aliança da Coroa com o abolicionismo só
pode dar um resultado: a pressa da sua queda.” (Novidades, 05/10/1888:1)
Tal discurso nos remete aos seguintes pontos de análise: primeiramente, nos dedicamos
ao momento em que evidencia a completa ligação entre o movimento abolicionista e a
democracia rural e é a primeira vez em que a discussão faz alusão ao receio da elite em ver
a transformação da propriedade territorial como um passo posterior à abolição, mencionando inclusive que esta transformação estaria ligada à pessoa da princesa Isabel, visto que
a mesma estava tomada pelo “ânimo” abolicionista. Não satisfeito, o artigo ainda “ameaça”
o Império mediante a possibilidade de tal acontecimento virar realidade. Ou seja, se o próximo passo da princesa regente seria em direção à transformação da estrutura fundiária,
que venha a República.
Vale adiantar que em nenhum jornal por nós analisado o assunto foi tratado de forma tão
clara quanto neste. Não houve receio de expor a temática, estando a mesma atrelada ao movimento abolicionista e principalmente à possível ação do governo imperial para a execução
desta transformação: primeiro o trabalho e depois a terra.
A confirmação do referido receio aparece novamente no artigo intitulado “A vontade da
Nação” (Novidades, 01/04/1889:1), onde o redator diz que “vê-se a propaganda mais desenfreada contra a grande propriedade” em determinados jornais e, referindo-se aos abolicionista, complementa que “toda esta gente nutre-se a campo, voz em grita, a pedir a
forca para a grande propriedade”. Acrescenta que alguns “limitam-se a exigir o imposto
territorial; ainda outros querem que o Estado se aposse de terras e distribua-as com que
bem lhe parecer.” E, para finalizar, comenta que “a permanência do atual ministério repre-
125
senta uma ameaça gravíssima para a lavoura: o risco de se ver de momento para outro
desapossada da terra que lhe custou dinheiro, como já se viu desapossado do escravo
que também lhe custou.”
Percebemos que a temática ainda se fazia presente nas discussões e irá se acalorar após a
Fala do Trono do Imperador em maio de 1889, na abertura dos trabalhos no Senado, como
era de praxe. Durante o seu discurso, o Imperador mencionou a proposta de regularizar a
propriedade territorial e “facilitar a aquisição e cultura de terras devolutas; conceder ao governo o direito de desapropriar por utilidade pública os terrenos marginais das estradas de
ferro que não são aproveitados pelos proprietários, e podem servir para núcleos coloniais.”
(Novidades, 03/05/ 1889:1)
O jornal trouxe na íntegra o discurso do Imperador, mas é no dia seguinte que encontramos os comentários a respeito da sua fala: “Depois do escravo, a terra! O governo entende
que lhe assiste o direito de atentar contra a propriedade territorial, de reparti-la, de decimá-la e distribuí-la a quem lhe parecer. Atuam-nos para um novo ataque à outra propriedade.”
(Novidades, 04/05/1889:1)
Escolhemos como parte do título de nosso artigo, a primeira frase do artigo intitulado “A
fala do trono” por considerarmos que ela demonstra justamente o que passava pela percepção dos conservadores, principalmente dos fazendeiros. O artigo acusa os fazendeiros
de terem sido “mansos” por ocasião da libertação dos escravos, o que resultou na possibilidade de o Governo Imperial iniciar depois o ataque a uma outra propriedade: a da terra.
De maio a novembro de 1889, o jornal continuou a falar esporadicamente da questão da
indenização, mas deteve-se mais na questão militar. Quando veio a queda da Monarquia,
percebemos que o tema propriedade foi novamente objeto de preocupação do jornal. E,
se já não havia mais a propriedade do escravo, a preocupação se fazia em torno da terra.
Assim foi quando o jornal comentou a proclamação da República que “Já ontem o Sr. General M. Deodoro da Fonseca dignou-se a ouvir nossa opinião, e fez manter pelo exército
a mais rigorosa ordem a respeito da propriedade.” (Novidades, 16/11/1889:1) Chama-nos a
atenção a declaração do jornal de que o Marechal Deodoro “dignou-se a ouvir a nossa opinião”. Não se fez comentários explicativos do significado desta frase. De qualquer forma,
está mais do que claro que acima da preocupação com a mudança dos rumos políticos do
Brasil, a preocupação maior do jornal naquele momento de crise se fazia com a permanência da estrutura fundiária.
No mesmo artigo ainda acrescenta que, em discurso, o Marechal Deodoro da Fonseca “por
todos os meios ao seu alcance promete e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e
estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos direitos individuais e políticos.”
2 – Jornal do Commercio
Ao analisarmos o Jornal do Commercio nos deparamos com um quadro diferente em relação
o que verificamos nos demais jornais. Estamos nos referindo a um jornal que apresenta
126
História e Geografia do Vale do Paraíba
colunas de abrangência nacional. Por ele podemos nos transportar facilmente para outras
regiões do país e até mesmo fora do Brasil, visto que as colunas, principalmente da primeira
página, têm este objetivo. Encontramos, por vezes, na primeira página, em extenso artigo,
detalhamento de fatos ocorridos na Europa e Argentina, por exemplo. Entretanto, o que
nos chamou a atenção é que por poucas vezes o editorial aborda as principais questões
políticas nacionais vigentes. Verificamos que o interesse maior se dá pelos assuntos de
ordem econômica. Nos momentos importantes das transformações políticas e sociais do
país, tais como a libertação dos escravos e o advento da República, não há artigos contendo
comentários, apenas informando os acontecimentos, até mesmo de forma detalhada, como
ocorreu com a notícia da proclamação da República.
Para conseguirmos extrair do referido jornal algumas considerações sobre a temática em
estudo, recorremos principalmente à coluna “Publicações a pedido”. Por ela, observamos
as discussões da nação. Notamos que, no ano de 1888, fazendeiros enviaram à publicação
cartas discutindo a questão da indenização pela perda dos escravos. Quase nada é publicado
“a pedido” com referência à questão fundiária. Uma das exceções encontramos no pedido
de publicação feito pela Câmara Municipal de Paraíba do Sul, representada pelo seu presidente Barão das Palmeiras. O artigo, cujo tema central era sobre o Barão de Cotegipe, fazia
uma análise da transformação do trabalho como um problema e dizia que
“A leveza no trato destes problemas é um perigo; e perigo tanto mais insidioso,
quando por outros dos mais melífluo abolicionismo está oculto o mais intransigente
e bilioso socialismo: o ódio contra a riqueza, a luta de raças, a guerra do proletariado
contra o proprietário.” (Jornal do Commercio, 02/01/1888:3)
Quando a questão era a possibilidade da perda da propriedade da terra por algum meio é
comum a leitura de referências ao socialismo, utilizando também termos que caracterizam o
discurso socialista, mostrando assim familiaridade com o tema e, principalmente, uma certa
preocupação. A preocupação é tanta que o leva a comentar quanto à transição da mão de
obra escrava, se o tema for tratado com leveza, pode ser um perigo. Analisando suas palavras,
observamos que também atrela o abolicionismo ao “socialismo”. Por trás de um, há o outro.
Um outro problema também rondava a cabeça dos proprietários: em caso de libertação dos
escravos, qual braço sustentará o trabalho na lavoura? É sabido que a discussão nacional se
fazia em torno da preferência pela introdução da mão de obra do imigrante, principalmente
o italiano e o alemão. Entretanto, observadas as dificuldades encontradas pelos fazendeiros
do oeste paulista pela manutenção do sistema de parceria, também se discutia como fixar
o ex-escravo à lavoura. Sugestões variadas tais como obrigação por determinado tempo a
fixar-se na fazenda ou na região também surgiram. Entretanto, foi publicada uma sugestão
que se distingue das demais por propor que “dê ao lavrador o tempo indispensável para
fazer o sítio e entregá-lo ao escravo que, já proprietário e cedendo à sua vocação sedentária,
não se assustará, quando emancipado, para outros lugares, ainda que mais vantagens lhe
ofereçam” (Jornal do Commercio, 15/04/1888:3)
O Jornal do Commercio não se furtou a publicar, na íntegra, a sessão do Senado, como sempre fazia, do dia 15 de maio de 1888. Analisando a situação do Brasil após a libertação dos
127
escravos, o Barão de Cotegipe teve por tema principal de seu discurso no Senado a propriedade, ou melhor, o que chama de ataque à mesma por obra do governo imperial. Entre
outras considerações, após citar o que ocorreu com a propriedade do escravo, disparou:
(...) daqui a pouco se pedirá a divisão de terras, do que há exemplo em diversas
nações, dessas latifundia, seja de graça ou por preço mínimo, e o Estado poderá decretar a expropriação sem indenização! (...) Esperem, o primeiro passo é o que mais
custa a dar; depois...” (Jornal do Commercio, 15/05/1888:1)
O discurso do Barão de Cotegipe não causa nenhuma estranheza quanto ao questionamento sobre a retirada da propriedade sobre o escravo. Este mesmo argumento contra o
governo imperial fazia parte do discurso que encontramos em muitos questionamentos de
fazendeiros, irritados com o fim da escravidão e porta de entrada para uma outra discussão:
a indenização pela perda de seu maior bem. Cotegipe, ao ver a propriedade do escravo ser
tomada sem nenhuma ação compensatória, torna-se porta-voz da bandeira de luta dos
fazendeiros. E na citação acima, já alerta para o fato de que a propriedade da terra poderia
ser o próximo bem a ser retirado da elite rural.
Verificamos que o Jornal do Commercio foi menos incisivo na discussão do tema propriedade
de terra se comparado ao Novidades. Entretanto, não deixou de tocar no assunto, mesmo
que de forma “indireta” pela coluna “Publicações a Pedido”.
3 – Cidade do Rio
Após termos analisado os jornais que se manifestaram, declarada ou indiretamente, sobre
a discussão do tema estrutura fundiária, decidimos analisar também um periódico declaradamente abolicionista. Saímos em busca do que discutia o jornal Cidade do Rio, jornal de
propriedade do abolicionista José do Patrocínio.
Também não fugiu à discussão sobre a propriedade de terra, tema que foi discutido em 11
artigos publicados em seu jornal, sempre na primeira página, em números do ano de 1888.
De modo geral, os mesmos se referem à pequena propriedade como sendo a melhor, criticando a grande propriedade e dando exemplos de experiências nacionais e internacionais,
no intuito de fazer “propaganda” da pequena propriedade.
José do Patrocínio atribuiu à propaganda abolicionista realizada a grande causadora do
“remorso” que teria se instalado entre os fazendeiros levando-os a abolirem seus escravos
antes mesmo do 13 de maio. Sua intenção ao discursar sobre a terra seria criar um outro
“remorso” nos fazendeiros: a de serem grandes proprietários. Segundo Patrocínio, “A escravidão era injusta, iníqua e imoral; o monopólio da terra também é injusto, iníquo e imoral.” (Cidade do Rio, 28/06/1888:1)
Suas ideias sobre a questão ficam mais claras quando cita o exemplo de uma fazendeira de
Paraíba do Sul, a Condessa do Rio Novo, em um dos seus artigos. Enaltece a tal senhora
destacando o seu feito:
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História e Geografia do Vale do Paraíba
“Essa mulher, santa e boa, descobriu com o coração, o que ainda não acharam os
emperdenidos cérebros de nossos deputados e senadores... Ela conseguiu a solução
do grande triângulo – ABOLIÇÃO, IMIGRAÇÃO E PROPRIEDADE TERRITORIAL. Libertara a todos os seus escravizados, mandou distribuir por eles as mais
belas terras desta vasta região e ordenou que os excedentes fossem destinados a
imigrantes.” (Cidade do Rio, 02/07/1888:1)
José do Patrocínio engrossava o coro de abolicionistas que se preocupavam em aliar abolição e terra, ao contrário daqueles considerados “imigrantistas”, por aliar a concessão de
terras somente a imigrantes europeus, não acreditando que os libertos pudessem desenvolvê-la ou mesmo fixar-se nelas. (MARTINS, 2008, p.119)
Entretanto, considero como ponto de importância para a nossa análise, o artigo intitulado “Republiquistas”. (Cidade do Rio, 20/06/1888). No mesmo, José do Patrocínio questiona o movimento republicano de “origem” duvidosa. Para ele, o movimento estaria sendo
infiltrado por republicanos que estariam aderindo à República não por ideologia e sim
para salvaguardar seus próprios interesses. E para identificar um verdadeiro republicano,
Patrocínio testa-os com referência à transformação da propriedade territorial, tanto pelo
cadastro como pelo imposto territorial. Em 1888, questiona a ideologia do movimento
republicano ao salientar que “Se a vossa república é de Liberdade, de Igualdade e de
Fraternidade, é preciso, é necessário, é indispensável que ele principie extinguindo o monopólio territorial; (...)” Para ele, a diferença entre uma república transformadora e uma
república continuísta das mesmas e velhas estruturas perpassaria pela transformação da
propriedade territorial.
No último artigo da série “Pequena Propriedade”, José do Patrocínio demonstra o descrédito com o andamento do movimento republicano que se configurava. Ao mesmo
tempo em que pregava uma república fiel à ideologia, manchada pelos “republicamos de
última hora” que mais se interessavam por ela para preservar a continuação de seus interesses, Patrocínio demonstra acreditar que uma verdadeira república ainda estava longe
de ser realidade. Ao finalizar sua “propaganda” da pequena propriedade, comenta que “A
Democracia Popular de Joaquim Nabuco é o ômega atual da salutar evolução monárquica, iniciada pelo Marquês de Pombal e tudo pressagia que ele será para Isabel I o que foi
o Maior dos Portugueses para D. José.” (Cidade do Rio, 12/07/1888:1)
Observamos na citação de Patrocínio uma contradição para quem se dizia republicano.
Além de se referir à Princesa Isabel como “a Redentora” em variados artigos, demonstra
que acreditava na ocorrência de um Terceiro Reinado de Isabel I e, não somente isso,
considerava a influência de Nabuco sobre o Terceiro Reinado uma “salutar evolução”.
Ou seja, uma monarquia “evoluída” seria o mesmo que uma monarquia imbuída dos
ideais abolicionistas e, portanto, aceitável para um republicano ideológico.
De acordo com o que pudemos observar pela análise das fontes, verificamos que as discussões relativas aos projetos abolicionistas se fizeram em sua totalidade, ou seja, não só
a questão da abolição foi discutida através dos citados periódicos, mas também a implantação do imposto territorial e da pequena propriedade.
129
Outra questão nos chamou a atenção: enquanto nos periódicos da Corte o assunto é abordado no final da década, destacadamente nos anos de 88 e 89, e toma fôlego a discussão
após a abolição da escravatura. Tal realidade não se aplica aos jornais do interior da província fluminense tais como em O Vassourense, de Vassouras, e O Tempo, de Valença, onde a
discussão se inicia nos primeiros anos da década de 1880. (MARTINS, 2008, pp. 134 -140)
Entretanto, observamos diferenças marcantes entre os periódicos analisados quanto ao
tratamento dado ao assunto: uns com maior ou menor profundidade ou com maior ou
menor visibilidade. Estava em jogo o interesse em discutir a relação “abolição e terra”. Ao
que nos parece, a importância dada ao tema ou não nas páginas do jornal era reflexo de
posicionamentos políticos que se queriam declarar ou silenciar. Enquanto uns periódicos
enfrentavam a discussão abertamente como meio de rebatê-las, outros se calavam como se
isto fosse evitar a ação propriamente dita. Neste ponto lembramos de Benstein ao alertar
que é preciso estar atento, pois as palavras “dizem mais que aquilo que significam corretamente, onde o não dito encobre ricos segundos planos, onde cada um compreende por
meias palavras porque conhece as chaves de interpretações.” (BERNSTEIN, 2009)
Esse temor de discutir a questão da terra por estar vinculada ao projeto abolicionista não
nos escapou nas leituras das linhas ou entrelinhas. Percebemos pela discussão apresentada
pelos jornais analisados que a rejeição ao governo imperial pelas elites agrárias vai além da
questão do não pagamento da indenização pretendida pelos fazendeiros. A retirada de seu
apoio ao governo imperial e a adesão à república – na última hora, logo após a perda da
propriedade do escravo – estaria relacionada à tentativa de se ver preservada a propriedade
da terra numa possível ordem republicana.
Fontes
Novidades – 1888 e 1889
Jornal do Commércio – 1888 e 1889
Cidade do Rio – 1888 e 1889
Referências Bibliográficas
BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In: Cultura política, memória e historiografia. AZEVEDO, Cecília (orgs) et al. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
CARVALHO, José Murilo de. Os partidos políticos imperiais: composição e ideologia. In:
A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
CONRAD. R. Os últimos anos da escravatura no Brasil. – 1850/1888. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979.
MARTINS, Roselene de Cássia C. Colonização e política: debates no final da escravidão. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2008.
SANTOS, Cláudia Regina A. dos. Abolicionismos e desigualdades sociais. In: MOURA, Ana Maria da Silva. Rio de Janeiro: tempo – espaço – trabalho. Rio de Janeiro: Ana Maria Moura, 2002.
SILVA, F. C. T. da. Terra e política no Rio de Janeiro na época da abolição. In: SILVA,
Jaime. Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro: UERJ, 1989.
STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850 – 1900. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
130
História e Geografia do Vale do Paraíba
Capítulo 2
O Vale do Paraíba: Problemas e Transformações
131
132
História e Geografia do Vale do Paraíba
O Médio Paraíba, suas Transformações Econômicas e seus Impactos
Flávio Gomes de Almeida*
Maurício Silva Santos**
Características Gerais e Localização
A região de Governo conhecida como Médio Paraíba do Sul consiste numa depressão do
médio vale do rio de mesmo nome. Está situada entre dois planaltos, estendendo-se pegando desde o reverso da serra do Mar até os primeiros contrafortes da Serra da Mantiqueira.
Compreende uma dúzia de municípios fluminenses (Barra do Piraí, Barra Mansa, Itatiaia,
Pinheiral, Piraí, Porto Real, Quatis, Resende, Rio Claro, Rio das Flores, Valença e Volta
Redonda), cuja história revela etapas pelas quais passaram.1
Inicialmente, era uma região revestida pelas diferentes faces da chamada “Mata Atlântica”,
desde a higrófila, mais na borda externa da Serra do Mar, até a semidecídua, desde o reverso
da Serra, por todo o vale do Paraíba, até os contrafortes da Mantiqueira.
Antes da ocupação agrária colonial, a região foi cortada no sentido sul-norte, por caminhos
que demandavam às “Minas Gerais”, favorecendo a descida do ouro para os portos exportadores, como Parati – via Serra da Bocaina ou “Caminho Velho”, ou ainda, outro, que finalizava no fundo da baía de Guanabara; foi assim que o ouro pôde escoar de maneira segura,
sem os descaminhos que ocorriam quando, antes da metade do século XVIII, destinava-se
à Bahia, por via terrestre.
Somente depois dos finais deste século é que conheceu a expansão cafeeira. Com ela, veio a
devastação da “Mata Atlântica” para a abertura das fazendas e um surto expressivo de povoamento com a demanda de mão de obra escrava. É o período de florescimento de algumas cidades centenárias como Vassouras, Rio das Flores e outras, hoje em processo de revitalização.
Esgotados os solos, a lavoura do café migrou em direção a São Paulo e Minas Gerais; os
espaços desmatados e bastante erodidos passaram a ser ocupados pela atividade pastoril
extensiva, aproveitando-se da vegetação de gramíneas e leguminosas que ali nasceram.
O renascimento do Médio Paraíba e sua evolução demográfica foram produzidos, em grande,
parte pela criação de importantes polos industriais em diversos setores da indústria pesada e de
equipamentos nos últimos 60 anos (siderúrgica, metalúrgica, metal-mecânica e automobilística).
No sentido geomorfológico, a Região pode ser identificada como “graben” do rio Paraíba
do Sul desde a localidades de Três Rios até Engenheiro Passos. Entre os rios Paraíba do
Sul e Preto, nota-se uma série de alinhamentos serranos escalonados, tais como as serras da
Concórdia, do rio Bonito, da Charneca e das Abóboras. Estas serras configuram-se como
contrafortes da escarpa da Mantiqueira, todos alinhados na direção estrutural WSW-ENE.
Essa região historicamente assume uma importância geoeconômica estratégica, a partir
da escolha do sítio para implantação da Usina Siderúrgica Nacional em Volta Redonda ter
* Geógrafo – UFRJ / Conselho Nacional de Geografia.
** Doutor em Geografia – UFF.
1
Veja Mapa 1.
133
sido na cidade de Volta Redonda e do polo metal-mecânico nas cidades de Resende e Porto
Real. Destaca-se, ainda, no caso de Porto Real, a opção para as indústrias que procuram
gerar um menor passivo ambiental, comparados aos deixados em Resende (mapa 1).
Mapa 1 – Localização do que se é considerado pelo GGE-RJ o que é a região de governo do Médio Paraíba. Fisiograficamente entende-se que
Mangaratiba, Angra dos Reis e Parati pertençam à baía da Ilha Grande, ou seja, a outro domínio geoambiental.
Histórico da Degradação Ambiental
Remonta, como se disse acima, ao século XIX com a derrubada da Mata Atlântica para
plantio do café que se expandiu a partir do Rio de Janeiro em direção ao planalto Paulista,
acompanhando o vale do Paraíba. A economia agroexportadora da aristocracia escravocrata daquele século, seguida da pecuária, exauriram as potencialidades naturais da região: devido ao dramático esgotamento dos solos por essa atividade, foram geradas consequências
como a acelerada erosão das vertentes, que pode hoje ser vista, atreladas ao desequilíbrio
da dinâmica climática e hidrológica regional. A introdução de um período de estiagem no
Médio Paraíba deve-se exclusivamente à retirada da cobertura florestal original e de seus
efeitos de regulação térmica e de umidade, provenientes do sombreamento e da evapotranspiração. O desastre ambiental praticado no Médio Paraíba é de tal magnitude que,
até os dias atuais, boa parte da região encontra-se estagnada, marcada por um cenário de
pastagens subaproveitadas.
Além disso, a construção da CSN no Vale do Paraíba, em Volta Redonda (inaugurada em
1946), atraiu para a região inúmeras plantas industriais novas, de padrões adequados à
134
História e Geografia do Vale do Paraíba
ISSO-14.000, tanto do setor metalúrgico quanto do setor de bens de consumo. A Via
Dutra é considerada a rodovia mais importante do Brasil, não só por ligar as duas
metrópoles nacionais, bem como por atravessar uma das regiões mais ricas do país, o
Vale do Paraíba e ser a principal ligação entre o Nordeste e o Sul do Brasil, favorecendo o desenvolvimento urbano-industrial experimentado pela região, o que promoveu
uma série de problemas ambientais decorrentes do desenvolvimento econômico. Um
deles, dentre os mais impactantes, destaca-se a contaminação das águas superficiais
por efluentes domésticos e industriais, principalmente no rio Paraíba do Sul. Esse tipo
de impacto é bastante preocupante, pois coloca em questão não somente o abastecimento de água de vários municípios situados no Médio Paraíba, como também o da
própria Região Metropolitana.
Sugestões para Recuperação Socioambiental
Hoje no Médio Paraíba ainda há vastas áreas utilizadas pela pecuária extensiva que,
de acordo com DANTAS, M.E et al. (2001), “permitem o uso compartilhado de atividades silvipastoris, com atividades agroflorestais, priorizando as atividades agrícolas
nos fundos de vales e baixas vertentes e recomposição florestal nas cabeceiras de
drenagem e divisores principais”.
Com isso seria proporcionado um aumento da evapotranspiração para estas áreas e
consequentes alterações microclimáticas.
Já em relação aos processos erosivos que acontecem no relevo colinoso da região,
consistem eles numa limitação relevante do aproveitamento das terras. Nos pontos
onde poderem se detectados os processos hidroerosivos, que podem ser originados
por condicionantes litoestruturais ou pela intervenção humana, deve-se buscar soluções para impedir a propagação das voçorocas a remontante e estabilizar a erosão.
A solução é desconcentrar o fluxo de água nestes pontos e respeitar os limites de
declividades vigentes na legislação para fins de uso, ou seja, encostas com declividades superiores a 45% devem ser preservadas a qualquer tipo de uso que não seja de
natureza agroecológica.
Devido às suas vertentes íngremes e alta suscetibilidade à erosão e de acordo com a
disposição geográfica dos alinhamentos serranos, esses terrenos devem ser destinados
à recomposição florestal, além de proteger as nascentes dos principais tributários dos
rios Paraíba do Sul e Preto, garantindo assim uma boa disponibilidade hídrica para a
região. As serras podem formar corredores de Mata Atlântica de grande importância
para manutenção e regeneração do ecossistema florestal.
Ainda como sugestão para melhoria da área, vale propor a implantação de centros de
formação profissional qualificada de trabalhadores para as indústrias e também para o
setor quaternário das atividades econômicas. Além de colégios agrícolas exportadores
de mão de obra para atividades voltadas aos agronegócios e ao meio ambiente bem
como a criação de uma Universidade Federal do Médio Paraíba do Sul direcionada
para a solução dos problemas dessa região.
135
Referências Bibliográficas
CIDE. Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro. Edição em CR-ROM. Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2007.
DANTAS, M.E.; Shinzato E.; MEDINA, A.I.M.; SILVA, C.R.; PIMENTEL, J.; LUMBRERAS, J.F.; CALDERANO, S.B. & CARVALHO FILHO, A. Diagnóstico Geoambiental do Estado do Rio de Janeiro. Brasília/CPRM. Mapa. CD-ROM. (Estudo Geoambiental do Estado
do Rio de Janeiro). 2001.
RUA, João. Urbanização em Áreas Rurais no Estado do Rio de Janeiro. In: Estudos de Geografia Fluminense. Livraria Editora Infobook Ltda., 2002, pp. 43-69.
136
História e Geografia do Vale do Paraíba
Os Atlas do IBGE
Roberto Schmidt de Almeida*
A necessidade de cartografação do território brasileiro para servir de base ao processo estatístico, tanto no que tangia ao planejamento e execução da coleta de dados quanto na sua
apresentação ao público via tabelas e mapas foi perfeitamente percebida desde o início dos
anos 30 por Mário Augusto Teixeira de Freitas, que a incluiu em seu projeto denominado
Algumas Novas Diretivas para o Desenvolvimento da Estatística Brasileira que deveria ser
apresentado na 1a Conferência Nacional de Estatística convocada para 12 de outubro de
1930 e que foi cancelada em virtude do golpe militar conhecido por Revolução de 1930,
que iniciou a primeira fase do governo de Getúlio Vargas.
Com a consolidação da estrutura administrativa do governo federal nos primeiros anos da
década de 30, as propostas de Teixeira de Freitas foram totalmente acolhidas, e com isso,
gradativamente formou-se um sistema estatístico / cartográfico / geográfico que começou
a ser montado em 1933 com a constituição da Comissão Interministerial encarregada da
elaboração desse sistema. O primeiro órgão a ser criado foi o Instituto Nacional de Estatística em 1934 e instalado em 29 de maio de 1936 (data em que se comemora o dia do estatístico e do geógrafo), em 24 de março de 1937 foi instituído o Conselho Brasileiro de Geografia, incorporado ao Instituto Nacional de Estatística e também autorizando sua adesão à
União Geográfica Internacional (UGI). Essas duas estruturas técnicas, em 26 de janeiro de
1938, passaram a ter a denominação única de Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
– IBGE, organizadas em dois conselhos distintos o de estatística e o de geografia.
A contratação, pelo IBGE, do matemático Arylio Hugueney de Mattos, então professor da
Universidade do Brasil, para coordenar os trabalhos de Geodésia e Cartografia do território
brasileiro foi o marco inicial no processo, que culminou na primeira estruturação cartográfica do país, em nível municipal, a partir da campanha das coordenadas geográficas de todas
as cidades brasileiras para fins de mapeamento visando a organização do Censo de 1940.
Uma das mais importantes medidas tomadas pela Assembleia Geral do Conselho Nacional
de Estatística reunida em 1937 foi uma solicitação ao seu recém-instituído coirmão CNG
para a organização de um Atlas Geográfico Brasileiro, aproveitando subsídios cartográficos gerados pela campanha censitária de 1940. No âmbito do próprio Conselho Nacional
de Geografia, também foram decididas resoluções de âmbito cartográfico que envolvia
a representação mais precisa do território brasileiro, como por exemplo, a que iniciava a
reatualização do conjunto de cartas na escala de 1:1.000.000 denominado “Carta Geográfica do Brasil ao Milionésimo”, determinação da União Geográfica Internacional aos seus
membros, datada do final do século XIX, trabalho que havia sido iniciado em 1922 pelo
Clube de Engenharia.
Os trabalhos de sistematização cartográfica com vistas à estruturação de vários tipos de
Atlas tiveram, além das atribuições normais do CNG, também demandas específicas originadas na Comissão Estatística Nacional (CEN) de 1938, que organizou o planejamento
*
Sócio Efetivo do IHGV.
137
do censo de 1940. A principal delas foi a solicitação de um Atlas Estatístico Corográfico
Municipal, fruto do material compilado dos mapas municipais enviados ao IBGE por força
do Decreto - Lei nº 311 de 02/03/1938, também conhecida por Lei Geográfica do Estado
Novo que determinava o mapeamento de todos os municípios do Brasil sob normas organizadas pelo IBGE, que teria a guarda de uma cópia desse mapa municipal e que aprovaria
tecnicamente a divisão em distritos, a separação entre área urbana e rural e acompanharia
a toponímia apresentada, cuidando para que não houvesse superposições de denominação
entre municípios e distritos.
Fase das Expedições de Reconhecimento do Território e da Apresentação dos Resultados das Pesquisas nas Tertúlias Geográficas
Os primeiros anos de consolidação do IBGE caracterizaram-se por uma intensa atividade de mapeamento do território e de estudos localizados de inúmeras áreas consideradas
como relevantes para a pesquisa geográfica. O fórum oficial de discussão dessas pesquisas
centrava-se nas Tertúlias Geográficas realizadas na sede do CNG.entre os anos de 1942 a
1947. As Tertúlias Geográficas eram reuniões técnicas semanais e seções públicas mensais
para abordar questões sobre os principais problemas geográficos levantados em expedições
de reconhecimento do território.
O objetivo dessas reuniões, além de servirem como um verdadeiro curso de conhecimento
geográfico para o público que comparecia às tertúlias era o de sistematizar dados para o
Atlas Corográfico definido pela Comissão Estatística Nacional (CEN). Os resultados das
reuniões eram publicados no Boletim Geográfico. Everardo Backheuser (1943) publicou
nesse periódico uma análise dessas tertúlias, explicando seus objetivos e resultados.
O mapeamento geralmente apresentado nestas reuniões era composto de cartas topográficas de detalhe, não havendo ainda por parte do IBGE uma política de divulgação cartográfica mais ampla. Projeto que só vai tomar consistência na segunda metade dos anos 40.
Fase da Publicação dos Atlas Especializados e dos Atlas Geográficos de
Abrangência Nacional
No contexto das publicações de atlas no IBGE, a segunda metade da década de 40 foi
marcada pela apresentação de atlas especializados, com ênfase nos de meteorologia
histórica, organizados pelo climatólogo Adalberto Serra (1946 e 1948). Esses atlas cobriram os anos entre 1873 a 1934 mapeando informações sobre temperatura, pressão
e precipitação pluviométrica.
Também nesse período, foram realizados trabalhos de campo objetivando a coleta de dados
para a organização de um Atlas Geral da Colonização do Brasil organizado por Leo Waibel.
A década de 50 foi o período de apresentação ao público brasileiro, dos resultados dos
estudos geográficos e cartográficos empreendidos durante a década anterior. Os exemplos mais significativos desses resultados podem ser apreciados na monumental coleção da
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (1958) e no Atlas do Brasil (1959) com mapas de
escala variada, com uma versão em forma de livro com 132p.
138
História e Geografia do Vale do Paraíba
Na década de 60 foi editado o Atlas Nacional do Brasil (1966), em folhas soltas que podiam
ser adquiridas individualmente ou toda a coleção, acrescida de capa dura com as folhas fixadas por parafusos. As escalas de apresentação variavam entre 1: 12.500.000 e 1: 32.000.000
e no verso de cada folha havia um texto explicativo relacionado ao tema. Esses temas eram
escritos pelos melhores pesquisadores do IBGE em suas especialidades e serviram de referência às diversas matérias do ensino superior nas melhores universidades brasileiras. Esse
projeto foi considerado uma referência em termos de divulgação cartográfica e garantiu ao
ensino superior de Geografia da década de 60, uma base de informações sobre o território
brasileiro de altíssima qualidade.
Na área de ensino básico e de segundo grau, a coleção Atlas Geográfico Escolar, resultante
de um longo convênio entre o Ministério da Educação (Fundação de Assistência ao Estudante FAE) e o IBGE, iniciado no final dos anos 60, foi editada por vários anos, sendo que
a última edição data de 2007 com uma edição multimídia.
No campo das relações internacionais, as pesquisas dos professores Delgado de Carvalho e
Therezinha de Castro sobre aspectos geográficos dos países do globo, que eram publicadas
em forma de separata na Revista Brasileira de Geografia foram reunidas no Atlas de Relações
Internacionais editado em 1960.
As informações relativas ao censo industrial de 1960, acrescidas de dados recolhidos a
partir de 1959, foram representadas cartograficamente no Atlas Censitário Industrial do
Brasil de 1960.
Fase dos Mapas Estaduais e Regionais
Entre a segunda metade da década de 60 e década de 80, convênios entre o IBGE e
alguns governos estaduais foram celebrados objetivando a organização de atlas estaduais. A maioria deles contemplando unidades federadas da região Norte e Nordeste
(Amapá, 1966), (Ceará e Rondônia, 1973), Roraima (1981) e (Maranhão, 1984), muito
embora em 1958, um relacionamento técnico entre o CNG representado pelo geógrafo
Carlos Augusto Figueiredo Monteiro e o governo de Santa Catarina tenha gerado um
Atlas Geográfico desse estado.
Em 1985 foi publicado o primeiro atlas regional do Nordeste brasileiro em convênio com a
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e que fazia parte da coleção
Atlas Nacional do Brasil. Seu título é Atlas Nacional do Brasil – Região Nordeste (1985). Foi um
projeto demorado em termos de publicação e que não gerou continuidade para as outras
regiões brasileiras.
A Década de 1990
A década de 1990 caracterizou-se pela transição tecnológica no que se refere a suportes de
apresentação (mídias), iniciando um gradativo processo de transferência da impressão em
papel para suportes magnético-óticos (disquetes, CD-ROM e DVD) além da possibilidade
de disponibilização na rede Internet.
139
Em 1992 foi editado o Atlas Nacional do Brasil com dados referentes às modificações ocorridas na década de 80. Em virtude da grande procura, foi feita uma reimpressão em 1996.
Alguns textos explicativos referentes a assuntos importantes tratados por este atlas foram
publicados em volume especial do Caderno de Geociências do IBGE. Em 2000 o ANB foi
editado em papel e em 2005 foi feita uma edição digital em DVD.
Foi, sem dúvida, o projeto mais bem elaborado por uma equipe de Geografia do IBGE.
Sua concepção teórica foi motivo de um artigo na Revista Brasileira de Geografia e seus autores
foram os que coordenaram toda execução do Atlas (Nimer, O’Neil e Correa 1988).
O final do século XX e início do XXI mostrou uma grande transformação na apresentação
das representações cartográficas, sendo projetados novos atlas em mídias digitais. Um de
abrangência nacional com ênfase em questões ambientais, levando-se em conta a experiência acumulada em projetos integrados de diagnósticos sócio-ambientais que foram demandados por várias instâncias governamentais. Planejou-se também uma modificação da
coleção de atlas escolares incorporando, na medida do possível, novos suportes magnético-óticos, além da inserção na rede Internet dessas informações para o público escolar.
O Final do Século XX e a Primeira Década do Século XXI
As transformações tecnológicas resultantes da informatização e o advento da Internet fizeram
com que os produtos cartográficos do IBGE acompanhassem essas alterações, oferecendo produtos de alta qualidade, com um amplo leque de conteúdos, e com uma relação custo-benefício
cada vez melhor. Iniciou-se com as apresentações em CD-ROM, evoluiu para o DVD e, atualmente, algumas das informações do IBGE (ex. base de informações municipais) já estão vinculadas ao sistema Google Earth.
Segue uma cronologia dos principais atlas do IBGE nos últimos anos do século XX e nos primeiros do século XXI.
Atlas de Roraima. 1981. 44 p., mapas color., il.
Contém mapas e textos explicativos, abordando os seguintes aspectos: divisão político-administrativa; recursos naturais; população; ocupação do território; atividades primárias e dos setores
industrial e comercial; projetos do governo; transporte e comunicação; educação; saúde e núcleos urbanos. Apresenta uma síntese estadual das informações. A publicação resulta de convênio
entre o IBGE e o governo do Estado de Roraima.
Atlas Geográfico Escolar. 1983. 113 p., mapas color., il.
Publicação resultante de convênio entre o IBGE e o Ministério da Educação, iniciado nos anos
60 e que continua até hoje. É orientado para a segunda fase do Primeiro Grau (quinta a oitava
séries) e ao segundo grau, cobrindo a cartografia brasileira e internacional.
Atlas do Maranhão. 1984. 104 p., mapas color., il.
Apresenta mapas e textos explicativos, abordando os seguintes aspectos: divisão político-administrativa; recursos naturais e suas potencialidades; clima; população; atividades primárias e dos
setores industrial e comercial; energia; transporte e comunicação; educação; saúde e organização
regional. A publicação resulta de convênio entre o IBGE e o governo do Estado do Maranhão.
140
História e Geografia do Vale do Paraíba
Atlas Nacional do Brasil – Região Nordeste. 1985. 1 v., mapas color., il.
Apresenta mapas e textos explicativos, abordando os seguintes aspectos: divisão político-administrativa; recursos naturais e suas potencialidades; população; atividades primárias e
dos setores industrial e comercial; energia e transporte; saúde; educação; organização regional, entre outros. A publicação resulta de convênio entre o IBGE e a Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste – Sudene.
Atlas Geográfico. 3ª ed. 1986. 114 p., mapas color., il.
Apresenta mapas do mundo, dos continentes, do Brasil e grandes regiões com informações
sobre o quadro físico e político, recursos naturais, clima, população, agricultura e indústria,
entre outras. Inclui ainda, relação de abreviaturas de termos genéricos e siglas, bem como a
relação dos nomes geográficos utilizados. A publicação resulta de convênio entre o IBGE
e a Fundação de Assistência ao Estudante-FAE.
Atlas Nacional do Brasil. 1992. 1v. (várias paginações), mapas color.
Foi o segundo grande projeto de divulgação de informações cartográficas (o primeiro foi
na década de 1960) visando o público de nível superior (estudantes universitários, pesquisadores e tomadores de decisões). Seu grande defeito foi não acompanhar o formato de
folhas soltas, com textos explicativos, que garantiu o sucesso da versão dos anos 60. O
grande tamanho e, consequentemente, o alto preço do produto, prejudicou sobremaneira
suas primeiras edições. Problema só resolvido quando a mídia passou a ser digital (2005).
Atlas Nacional do Brasil. 1996. 1v. (várias paginações), mapas color.
Atlas Nacional do Brasil. 3ª ed. 2000. 263 p., mapas color., il.
Reúne informações geográficas, cartográficas e estatísticas, em mais de 180 pranchas, abordando os seguintes temas: geopolítica mundial; configuração política do espaço brasileiro;
geografia ambiental; desmatamento e alterações do balanço hídrico da Bacia Amazônica;
dinâmica da população brasileira; mudanças no espaço econômico; reestruturação do espaço agrário; questão urbana; perfil da saúde e da educação e redes geográficas. Os mapas
e tabelas são acompanhados de textos, preparados por especialistas de cada área estudada,
que analisam as diversidades do País.
Atlas Geográfico Escolar. 2002. 200 p., il.
Dirigido aos estudantes do ensino fundamental e médio. Inclui bibliografia, glossário e índice.
Atlas do Censo Demográfico 2000. 2003. 127 p., mapas color., il.
Reúne um conjunto de mapas que ilustra, de forma sintética, a inserção do Brasil no mundo, a divisão político-administrativa do País, a dinâmica e mobilidade espacial da população,
o processo de urbanização, as condições habitacionais dos domicílios e o perfil cultural e
socioeconômico da população, ampliando a análise dos contrastes demográficos e das desigualdades sociais e regionais enfocadas nos volumes de resultados já divulgados do Censo
Demográfico 2000. Essas informações, articuladas em níveis geográficos diversos – unidade da federação, município, setor censitário e bacia hidrográfica – são enriquecidas com
textos analíticos, gráficos, tabelas e imagens, que evidenciam as especificidades regionais
observadas. A publicação inclui um glossário com a conceituação utilizada.
141
Atlas de Saneamento. 2003. 151 p. mapas color., il.
Reúne informações da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2000 e do Censo Demográfico 2000, ambas do IBGE, e de fontes provenientes de outras instituições, enfocando
a distribuição espacial, qualidade e eficiência das redes e dos serviços oferecidos no País,
como também a relação do saneamento básico com a preservação do meio ambiente e a
qualidade de vida das populações. Apresenta, ainda, o recorte por bacias hidrográficas, fundamental para o entendimento do impacto causado pelas formas de ocupação e uso do território sobre os recursos hídricos. Inclui textos analíticos, gráficos, tabelas e imagens, além
de um glossário com a conceituação utilizada. A publicação é acompanhada de CD-ROM.
Atlas Geográfico Escolar. 2004. 204 p., il.; color.
Destinado ao ensino fundamental e médio. Inclui bibliografia, glossário e índice.
Atlas Geográfico Escolar multimídia. 2004. CD-ROM
A disponibilização do AGE em CD-ROM abriu novas perspectivas na divulgação do conteúdo cartográfico para os alunos da segunda fase do primeiro grau e de todo o segundo,
ampliando o leque de opções didáticas para os professores de Geografia.
Atlas Nacional do Brasil digital. 2ª ed. 2005.
Este DVD representa de forma abrangente, interligada e em diversas escalas, a dinâmica
do espaço geográfico nacional, cuja configuração reflete o movimento da população e as
formas de apropriação e uso do território. Apresenta bases de dados, mapas, vídeos e gráficos que contemplam temas como meio ambiente, demografia, urbanização, atividades
econômicas, entre outros, e constituem um valioso acervo de informações para o entendimento da realidade brasileira. É a melhor relação custo-benefício em termos de acesso às
informações cartográficas sobre o território brasileiro.
Meu 1º Atlas. 2005. 144 p., mapas color., il.
Dirigido aos estudantes do Ensino Fundamental. Inclui bibliografia, glossário e índice geográfico. Acompanham 21 mapas referentes as Unidades da Federação.
Atlas Geográfico Escolar. 3ª ed. 2006. Escalas variam. 216 p., mapas color., il.
Reúne mapas do mundo, dos continentes, do Brasil e grandes regiões. Enfoca vários aspectos da realidade brasileira e de outras nações, como: diversidades ambiental e cultural,
características demográficas, espaço econômico, urbanização, espaço das redes, regionalização, desigualdades socioeconômicas, estrutura da população, recursos naturais, redes de
transportes e indicadores econômicos, ambientais e sociais. Contêm em um mesmo volume, informações geográficas, cartográficas e estatísticas, imprescindíveis para o estudo e a
análise das dimensões política, ambiental e econômica do Brasil de outros países. Inclui a
bibliografia consultada, um glossário com a conceituação utilizada e um índice geográfico
com os topônimos citados nos mapas.
Meu 1º Atlas. 2ª ed. 2006. 144 p., mapas color., il.
Dirigido principalmente aos estudantes da 1a a 4a série do Ensino Fundamental, este Atlas
inicia a criança na alfabetização cartográfica e possibilita o desenvolvimento de habilidades
centradas na localização, domínio espacial e representação em mapas. Como estratégia, uti-
142
História e Geografia do Vale do Paraíba
liza o trabalho com mapas mentais – recurso de registro dos espaços vividos através da memória – ampliando as possibilidades de aproximação com a realidade do aluno. Em companhia dos primos Júlia e Bebeto, a criança vai do desenho do trajeto da escola para casa
até o mapa-múndi e, nesse percurso, se familiariza com os conceitos, elementos e métodos
envolvidos na elaboração de um mapa, aprendendo o uso dos símbolos na representação
cartográfica, a importância das legendas, a percepção de escalas diferenciadas, a orientação
por pontos cardeais, a função de um aparelho de GPS, o que é aerofotogrametria, entre
outras informações. Os textos explicativos são fartamente ilustrados e em linguagem apropriada a essa faixa etária. Contém mapas políticos e físicos do Brasil e do mundo, mapas temáticos sobre a população e o meio ambiente brasileiros, além de sugestões de atividades e
dicas para professores. Inclui um glossário com a conceituação utilizada e índice geográfico
com os topônimos citados nos mapas. A publicação é acompanhada de um mapa político
do Brasil, um mapa estadual com os municípios para colorir, e uma Rosa dos Ventos. Atlas
das Representações Literárias de Regiões Brasileiras. 2006. 4 v.
Identifica e representa, através de mapas em diferentes escalas, fotos e imagens de satélite,
regiões brasileiras que constituíram elemento marcante da trama de algumas das grandes
obras da literatura nacional, construindo um mapeamento onde a identidade é o elemento
central para individualização dos diferentes segmentos territoriais que compõem o quadro
nacional. Já foi publicado o primeiro volume desta coleção, que compreende a Campanha
Gaúcha, Colônias, Vale do Itajaí e Norte do Paraná. Apresenta, inicialmente, por meio de
textos e mapas, cada uma dessas regiões em sua dimensão geográfica, com base na regionalização definida tanto pelo IBGE quanto por outras instituições, enfocando, a seguir, a
dimensão cultural dessas unidades territoriais com base na percepção da região pela Literatura. Essa abordagem é expressa em passagens selecionadas de Érico Veríssimo, Cyro
Martins, Simões Lopes Neto, entre outros romancistas, que dão visibilidade ao Brasil Meridional. Inclui mapas localizando a região que emerge dos romances, fotos ou imagens. Em
todos os textos estão destacados os termos regionais referentes ao território e seu processo
de apropriação, os quais integram um glossário, ao final da obra. Além das quatro regiões
brasileiras, a publicação dedica um capítulo exclusivo à área das Missões Jesuísticas no Rio
Grande do Sul, que constitui valiosa referência para a compreensão de boa parte dos costumes e tradições da Campanha Gaúcha.
Atlas Geográfico Escolar. 4ª ed. 2007. 216 p., mapas color., il.
Reúne mapas do mundo, dos continentes, do Brasil e grandes regiões. Enfoca vários aspectos
da realidade brasileira e de outras nações, como: diversidades ambiental e cultural, características demográficas, espaço econômico, urbanização, espaço das redes, regionalização, desigualdades socioeconômicas, estrutura da população, recursos naturais, redes de transportes e
indicadores econômicos, ambientais e sociais. Contém, em um mesmo volume, informações
geográficas, cartográficas e estatísticas, imprescindíveis para o estudo e a análise das dimensões política, ambiental e econômica do Brasil e de outros países. Inclui um glossário com a
conceituação utilizada e um índice geográfico com os topônimos citados nos mapas.
Atlas Geográfico Escolar multimídia. 2ª ed. 2007. CD-ROM
Este CD-ROM contém a versão multimídia do Atlas Geográfico Escolar do IBGE, com
ilustrações animadas sobre uma das teorias da criação do Universo e da formação dos
143
continentes, bem como conceitos e técnicas em Cartografia, entre outras informações. No
mapa político do Brasil, o usuário também pode acessar imagens de cidades brasileiras e
flashes de vídeo que retratam a população das capitais, ressaltando as principais características investigadas pelo Censo Demográfico 2000. Além das atualizações efetuadas nos dados
estatísticos, o aplicativo disponibilizado permite ao usuário utilizar as bases geográficas
contidas neste CD-ROM e carregar bases de outras fontes, a exemplo da edição anterior,
bem como imprimir mapas físico-políticos das unidades da federação.
A Fase Atual e o Futuro dos Atlas no IBGE
O desenvolvimento vertiginoso da tecnologia de informação (TI), com a proliferação das
redes sociais na Internet, a chegada e a popularização de mídias digitais em velocidades nunca
vistas estão forçando agências públicas, com o IBGE, a revisarem suas metas, visando à divulgação de informações cartográficas. O que era, anteriormente, uma prioridade voltada ao
estudante e ao pesquisador, atualmente passou a ser também orientada ao grande público. A
vinculação do sistema Google às bases de dados do IBGE já é uma realidade, quando se trata
de acessar informações georeferenciadas dos municípios brasileiros. Outras vinculações virão, sobretudo, as voltadas para o comércio e serviços (vide a opção “vista da rua” no Google),
que facilitarão a orientação das pessoas nas malhas urbanas e suburbanas. É importante frisar
que o acoplamento desses sistemas de informações às redes de telefonia celular é algo que
já vem ocorrendo em passo acelerado, dotando os novos celulares de “atlas de informações
geográficas” de grande capacidade de informações alfanuméricas e de imagens.
O IBGE terá de se preparar para atender a essas demandas de um futuro cada vez mais próximo.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Roberto Schmidt de. A Geografia e os Geógrafos do IBGE no Período 19381998. Tese de Doutorado, Instituto de Geociências, UFRJ, 712p. 2000.
BACKHEUSER, Everardo. Tertúlias Geográficas. Boletim Geográfico IBGE, Rio de Janeiro,
v. 1, n. 2, pp. 05-08, 1943.
NÍMER, Edmon; O’ NEIL, Maria Monica; CORREA, Roberto Lobato. Projeto Atlas
Nacional do Brasil: a concepção teórica. Revista Brasileira de Geografia 50(3), pp. 151-158,
jul./set., 1988.
144
História e Geografia do Vale do Paraíba
Projeto de Mapeamento de Ecotrilhas do Parque Nacional de
Itatiaia – Pni, Município de Itatiaia/Município de Resende
Eliane Alves da Silva*
Objetivo
O objetivo deste Projeto é o de apresentar uma proposta de Mapeamento das Ecotrilhas do
Parque Nacional de Itatiaia, a partir de cartas topográficas e técnicas de geodésia e topografia
com emprego do GPS, para fomentar o Ecoturismo, a Educação Ambiental a partir da ideia
de Conservação da Biodiversidade da Serra da Mantiqueira, aonde está situado nos Estados
do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, principalmente entre os jovens, e que deverá ter o apoio
do Ibama, Prefeitura Municipal de Resende, Prefeitura Municipal de Itatiaia, do CREA-RJ,
do CREA-MG e da Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN, além de incutir a mentalidade cartográfica nas pessoas, pois conhecerão o PIN, com um mapa na mão.
Introdução
Nos Estados Unidos da América do Norte existem cerca de 400 (quatrocentas) Unidades de Conservação, ao passo que no Brasil, existem 52 (cinquenta e dois) Parques
Nacionais, muitos em condições precárias e até sem demarcação e que se encontram
infelizmente fechados à visitação pública. Sabe-se que o Parque de Yellowstone, localizado nos Estados de Wyoming, Idaho e Montana é o mais antigo do mundo (1872),
no entanto o Parque de Yosemite, na Califórnia, foi o primeiro território a ser declarado de uso público e de proteção pelo Congresso Norte-Americano, no ano de 1864,
pelo então Exmo. Sr. Presidente Abraham Lincon.
O Parque Nacional de Itatiaia foi implantado em pleno regime do Estado Novo, pelo
Exmo. Sr. Presidente da República Getúlio Vargas, em 1937, que estende seus domínios
pelos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, na Serra da Mantiqueira, possuindo
terras nos Municípios de Resende e de Itatiaia e tendo como principais atrações o Pico
das Agulhas Negras com 2.787 (dois mil e setecentos e oitenta e sete), metros ponto culminante do Estado do Rio de Janeiro e a Cachoeira do Véu da Noiva, além de inúmeras
piscinas naturais formadas pela erosão regressiva das cachoeiras de sua hidrografia (Rio
Prêto – divisor de águas, Córrego das Agulhas Negras, Ribeirão da Água Branca, Ribeirão do Palmital, Córrego do Silveira, Rio Campo Belo, Córrego das Macieiras), que deságuam no Rio Paraíba do Sul.Próximo a este local tem-se a Academia Militar das Agulhas
Negras-AMAN, em Resende.
Para que as pessoas tenham melhores condições de explorar as belezas naturais desta reserva a pé ou de bicicletas é preciso que as ecotrilhas sejam mapeadas e que sejam fornecidos
prospectos das mesmas, que poderão ser vendidos, na entradado PNI, aos excursionistas
por preços acessíveis, a fim de que sejam devidamente exploradas. Ecoturismo é: investimento, cartografia, desenvolvimento, lazer e é sobretudo um aprendizado sobre os
elementos da paisagem (educação ambiental), seu arranjo espacial, isto é, a geografia do
*
Engenheira Cartógrafa e Geógrafa. Mestre em Geografia – UERJ.
145
lugar e sua preservação ambiental. Nada melhor do que desde cedo, manter as crianças e
jovens em contato com a natureza. Considerando-se as características desta Unidade de
Conservação Brasileira, eles devem estar acompanhados de seus pais e/ou responsáveis.
Afinal, de acordo com SILVA (1991): “Cartografia é ecologia”.
Localização
O Parque Nacional de Itatiaia pode ser visualizado na Folha Agulhas Negras, SF – 23 – Z
– A – I - 4 do IBGE, na escala de 1:50.000. Situado em plena Serra da Mantiqueira, subdividida em: Serra do Itatiaia, Serra das Prateleiras, Serra do Alambari, Serra do Palmital,
Serra Negra, Serra da Vargem Grande, compreendida nos Estados do Rio de Janeiro e
de Minas Gerais.
Justificativa deste Projeto de Mapeamento de Ecotrilhas do Pni
Atualmente, as pessoas sabem dos inúmeros benefícios das caminhadas ao ar livre e de
outras atividades esportivas aeróbicas, principalmente se forem em áreas de contato direto com a natureza (melhor condicionamento físico, controle da pressão arterial, coração,
bom humor, disposição física, esporte, lazer). Vamos então desfrutar dessas benesses,
mapeando e conhecendo as Ecotrilhas do PNI.
As caminhadas e passeios de bicicletas (há algum tempo pssado, o sítio eletrônico do
Instituto Geográfico Militar do Chile, www.igm.cl. por exemplo, trazia um jovem casal
de ciclistas consultando uma carta). Por ecotrilhas bem sinalizadas, acompanhadas de
documentos cartográficos são muito mais seguras do que fazer-se, por exemplo, um enduro de motocicletas ou mesmo de bicicletas de montanhistas. Todos e de todas as idades
podem participar. Segundo o jornalista Guilherme Werneck da Folha de S. Paulo (2003):
“Se você curte a natureza e esportes radicais, mas perdeu a chance de entrar em
ação durante este feriado, não se desespere. A oferta por aventuras no mato durante os finais de semana está cada vez maior e mais diversificada.”
A grande vedete do momento é a proliferação das corridas de aventura, que reúnem
mountain bike, rafting, rapel e trekking em uma só prova. Mas enduro a pé e trilhas de
bicicleta também são boas opções para quem procura combinar ar puro e adrenalina.
As corridas de aventura têm sua origem na Nova Zelândia. Em 1989, o francês
Gérard Fusil montou o Raid Gauloises. O esporte chegou ao Brasil pelas mãos do
brasileiro Alexandre Freitas, fundador da Sociedade Brasileira de Corridas de Aventura. Em 1998, ele montou a Expedição Mata Altântica – única etapa sul-americana
do campeonato mundial...
Outra modalidade praticada na natureza que vem ganhando adeptos jovens é o enduro a
pé, que tem provas durante os finais de semana. “Os iniciantes procuram mais as provas
de trekking”, explica o organizador do Campeonato Paulista de Enduro a Pé, Esdras
Martins, 46. Embora haja provas que contam para o campeonato durante o ano todo,
quem tiver interessado pode montar uma equipe e participar apenas de uma etapa.
146
História e Geografia do Vale do Paraíba
O enduro a pé funciona como um rally de carros. As equipes recebem um mapa e têm de
cumprir o caminho. “O que vale é a regularidade”, não a velocidade, e qualquer um tem
condições de participar. “Hoje, as crianças de nove anos fazem a prova e temos equipes só
de adolescentes”, diz.
Cabe lembrar alguns aspectos da Legislação Federal, transcritas de A MIRA Nº 141,
segundo o Novo Código Florestal, Lei nº 4.771 de 15 de setembro de 1985:
Art. 1 – As florestas existentes no território nacional e demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação
em geral e especialmente esta Lei estabelecem;
Art. 2 – Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e
demais formas de vegetação natural situadas:
a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde seu nível mais alto em faixa marginal
cuja largura mínima seja:
1 – de 30 (trinta) metros para os cursos d’água de menos de (dez) metros de largura;
2 – de 50 (cinquenta) metros para os cursos d’água que tenham 10 (dez) a 50 (cinquenta)
metros de largura;
3 – de 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham 50 (cinquenta) a 200 (duzentos)
metros de largura;
4 – de 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600
(seiscentos) metros de largura;
5 – de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600
(seiscentos) metros:
b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais;
c) nas nascentes, ainda que intermitentes e os chamados “olhos d’água”, qualquer que seja
a situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura;
d) no topo dos morros, montes, montanhas e serras;
e) nas encostas ou parte destas com declividade superior a 45º, equivalente a 100% na linha
de maior declividade;
h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação.
Art. 3 – Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando assim declaradas por
ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas:
a) atenuar a erosão das terras;
d) a auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades militares;
e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico;
f) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçadas de extinção;
147
Art. 5 – O Poder Público criará:
a) Parques Nacionais; Estaduais e Municipais e Reservas Biológicas, com a finalidade de resguardar atributos excepcionais da natureza, conciliando a proteção integral da floresta, de fauna e de belezas naturais, com a utilização para objetivos educacionais, recreativos e científicos;
b) Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais, com fins econômicos, técnicos ou sociais,
inclusive reservando áreas ainda não florestadas e destinadas a atingir aquele fim.
Parágrafo único – Ressalva a cobrança de ingressos a visitantes, cuja receita será destinada pelo menos 50% (cinquenta por cento) ao custeio da manutenção e fiscalização, bem
como de obras de melhoramento em cada unidade, é proibida qualquer forma de exploração dos recursos naturais nos parques e reservas biológicas criadas pelo poder público
na forma deste artigo.
Art. 26 – Constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão
simples ou multa de um a cem vezes o salário mínimo mensal do lugar e data da infração ou
ambas a penas cumulativamente:
a) destruir ou danificar a floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em
formação, ou utilizá-la com infringência das normas estabelecidas ou previstas nesta Lei;
b) cortar árvore em florestas de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente;
c) penetrar em florestas de preservação permanente, conduzindo armas, substâncias ou instrumentos próprios para a caça proibida ou para exploração de produtos ou subprodutos
florestais, sem estar munido de licença da autoridade competente;
d) causar danos aos Parques Nacionais, Estaduais ou Municipais, bem como à Reservas Biológicas;
e) fazer fogo, por qualquer modo, em florestas edemais formas de vegetação, sem tomar as
precauções adequadas;
Art. 27 – É proibido o usodo fogo nas florestas edemais formas de vegetação.
Art. 42 – Dois anos depois da promulgação desta Lei, nenhma autoridade poderá permitir a
adoção de livros escolares de leitura que não contenham textos de educação florestal, previamente aprovados pelo Conselho Federal de Educação, ouvido o órgão florestal competente.
–# 2º Nos mapas e cartas oficiais serão obrigatoriamente assinalados os Parques e
Florestas Públicas.
– # A União e os Estados promoverão a criação e o desenvolvimento de escolas para
o ensino florestal, em seus diferentes níveis.
148
História e Geografia do Vale do Paraíba
Art. 43 – Fica instituída a Semana Florestal em datas fixadas para as diversas regiões do
País, por Decreto Federal. Será a mesma comemorada, obrigatoriamente, nas escolas e
estabelecimentos públicos ou subconveniados, através de programas objetivos em que
se ressalte o valor das florestas, face aos seus produtos e utilidades, bem como sobre a
forma correta de conduzi-la e perpetuá-las.
Conforme a professora Mônica M. S. Decanini do Departamento de Cartografia da
UNESP de Presidente Prudente/SP, em seu trabalho SIG no Planejamento de Trilhas no
Parque Estadual de Campos do Jordão (2001), tem-se abaixo o critério para a realização
da análise de Oportunidade X Restrição na alocação de áreas para trilhas ecoturísticas:
Relevo:
De acordo com a Legislação Federal, entendemos que pela Resolução CONAMA nº 4, de
18 de setembro de 1985, publicada no Diário Oficial da União de 20 de janeiro de 1986, Inciso VI, da parte b, do Artigo 3.; as florestas e demais formas de vegetação natural situadas
nas encostas ou partes destas, com declividade acima de 100% ou 45º são consideradas área
de preservação permanente. Portanto, considerando essa restrição, não será permitido a
implantação de ecotrilhas em áreas com declividade acima desse valor. O seguinte intervalo
de classes de declividade foi proposto:
0 – 3% – Caminho fácil, sem nenhum manejo de erosão;
3 – 7% – Caminho de média dificuldade, com cuidados leves para manejo de erosão;
7 – 15% – Caminho difícil, com cuidados severos para manejo de erosão;
15 – 30% – Caminho muito difícil, com cuidados muito severos para manejo de erosão;
30 – 100% – Caminho severo, com cuidados fortemente severos para o manejo de erosão;
100 – 1000% – Alpinismo. Área de preservação permanente.
Observação:
Considerando-se as características do relevo da área do PNI, sabe-se que o alpinismo
é praticado no Pico das Agulhas Negras, aonde já chegou inclusive a nevar, como no
inverno no início dos anos 90.
Portanto, deve-se considerar que qualquer ecotrilha não deverá ser alocada:
– em um raio menor que 50 metros das nascentes e olhos d’água;
–e para o caso dos cursos d’água, as restrições de alocação deve-se considerar as
áreas de preservação especificadas pela legislação em função da largura dos canais.
Zoneamento
O Zoneamento do Parque Nacional de Itatiaia, NA IDENTIFICAÇÃO DAS E MAPEAMENTO DAS ECOTRILHAS, POR ATIVIDADES DE GEODÉSIA E TOPOGRAFIA, com placas de sinalização, para a definição das demandas da região
através de:
149
– Zona de uso intensivo,
–Zona de uso extensivo e
–Zona de silêncio, deverá ser feito a partir de pesquisas de campo para as atividades
cartográficas e da consulta às bases cartográficas, existentes pelas Folhas Topográficas, da Diretoria do Serviço Geográfico do Exército – DSG, na escala de 1:25.000:
–São José do Turvo, SF-23-Z-A-II-4-NE;
–Quatis, SF-23-Z-A-II-3-SE;
–Resende, SO SF-23-Z-A-II-3-SO;
–Falcão, SF-Z-A-II-3-NE;
–Pedra Selada, SF-23-Z-A-II-3-NO;
–Itatiaia, SE SF-23-Z-A-I-4-SE;
–Itatiaia, NE SF-23-Z-A-I-4-NE;
–Ribeirão de São Joaquim, SF-23-Z-A-II-4-NO;
–Volta Redonda, N SF 23-Z-A-II-4-SE e
–Vila Pombal, SF-23-Z-A-II-4-SO.
Entende-se por:
Zona de uso intensivo – constitui-se em área permitida sem qualquer restrição, para esse
tipo de uso, uma vez que já existe infraestrutura e vem sendo utilizada para recreação (com
pousadas, hotéis, alojamentos).
Zona de uso extensivo – constitui-se em área de uso restrito PARA A CONSTRUÇÃO
DAS ECOTRILHAS. Embora seja considerada uma área adequada para esse tipo de uso
“...por suas características e diversidade de paisagem se prestam para o desfrute da natureza
por meio de caminhadas...” (p.101, SEIBERT et al., 1975), exige um manejo de uso mais
severo (número de visitantes permitidos diariamente, malha de ecotrilhas menos densa,
etc.) para não causar impactos negativos na vegetação típica local.
Zona de silêncio – constitui-se em área onde não é permitido o desenvolvimento de atividades turísticas, sendo portanto proibida a implementação de ecotrilhas.
O Centro de Informações Topográficas – CIT, com os Engenheiros Cartógrafos Célio
Magalhães e Marco Antônio Portugal, foram convidados para elaborarem o orçmento e a
execução das atividades cartográficas. Rua: Venceslau, 328, Méier, Rio de Janeiro/RJ.
Referências Bibliográficas
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de1985. Criciúma. Revista A MIRA – Agrimensura e Cartografia.141(17):72-6.Dezembro.
CIDE (2001) Anuário estatístico do Estado do Rio de Janeiro. CD Rom.
CIDE (1997) Estado do Rio de Janeiro. Território. Rio de Janeiro. 80pp.
DECANINI, Mônica M.S. (2001) SIG no planejamento de trilhas no Parque Estadual de
Campos do Jordão. Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Cartografia. Sociedade Brasileira de
Cartografia. 55:97-110. Dezembro.
150
História e Geografia do Vale do Paraíba
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Vol.1:306-13. June.
LAUWE, Paul C. de (1956) La fotografía aérea aplicada al estudio de la geografía, arqueología, mapas, planos, etc. Barcelona. Tradución Luis Jordá, Ediciones Omega.134pp.
LOMBARDO, Magda A & PADOVESI, Fernanda (1997) The use of satellite imagery in
vegetation studies at humid tropical areas with great declivity. In: INTERNATIONAL
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KARIMZADEH, G.R. (1997) Topographic data processing. In: INTERNATIONAL
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In: INTERNATIONAL CARTOGRAPHIC CONFERENCE, 18, Stockholm, Proceedings ..., International Cartographic Association – ICA/ACI. Volm. 1: 35-42. June.
RODRIGUES, Edmilson; LIMA, Carlos; PASSOS, Davi; LEMOS, Araceli; ARÚJO, Luiz;
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Itatiaia – PNI. Rio de Janeiro. CD Rom do XVIII Congresso Brasileiro de Defesa do Meio
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STURMAN, V.I. (1997) The educational subject of the environmental mapping. In:
INTERNATIONAL CARTOGRAPHIC CONFERENCE, 18, Stockholm, Proceedings..., International Cartographic Association – ICA/ACI. Vol. 1: 106-05. June.
WERNECK, Guilherme (2003) Caçadores de aventuras. Adrenalina ao ar livre. Esportes
radicais no meio do mato seduzem jovens. São Paulo. Folha de S. Paulo – Folha Teen. 21 de
abril de 2003.
151
152
História e Geografia do Vale do Paraíba
A Problemática da Escassez de Água Face ao COMPERJ
Flávio Gomes de Almeida *
Introdução
Historicamente temos visto no Brasil que em nome do “desenvolvimento” a interferência humana nos ciclos hidrológicos, modificações de grande porte, como as tecnologias de construção de represas, implantação de complexos industriais, desvios de
rios, sistemas de irrigação e extração de águas subterrâneas, afetam imensamente o
funcionamento do sistema ambiental como um todo.
A escolha do tema justifica-se pelo fato do COMPERJ estar sendo instalado entre duas
bacias hidrográficas que se direcionam para a baía de Guanabara, ambas dentro da
APA de Guapimirim, ressaltando-se o risco ambiental, que, no caso de um vazamento
de óleo, poderá contaminar a água e os solos, agravando-se a problemática do que causaria um provável vazamento de óleo.
Itaboraí e São Gonçalo são municípios com problemas existentes no abastecimento de
água e de saneamento básico, que não são suficientes para a população local, quanto
mais para o acréscimo estimado de 1.200.000 habitantes nos próximos cinco anos, somente para os municípios de Itaboraí e São Gonçalo (Petrobras, 2007).
A ligação com o Médio Paraíba do Sul está na possibilidade de captação de água do rio
Paraíba como uma das alternativas apresentadas pela PETROBRAS.
Delimitação do Tema
O contexto em que se insere a presente pesquisa foi abordado dentro do enfoque da
Gestão dos Recursos Hídricos fundamentada na Lei nº 9.433 de janeiro de 2007 que
instituiu a Política Nacional dos Recursos Hídricos.
O marco teórico a ser perseguido encontra-se amplamente apoiado na visão sistêmica,
sendo o recorte espacial do presente projeto a área de influência direta do COMPERJ
(Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro), tendo como recorte temporal
2007 a 2015.
*
Professor Associado da UFF. Coordenador do GEMA/UFF/CNPq – Grupo de Estudos do Meio Ambiente.
153
Mapa 1 – Alternativas para o suprimento de água fornecidas pela Petrobras em 20 e 21 de setembro de 2007 no CREA-RJ.
Localização da Área de Estudo
Obs. Propostas Anteriores ao Rima
Represa de Lajes
Operada pela light, este reservatório é estratégico para o abastecimento da área metropolitana do Rio de Janeiro. Possui boa qualidade para o consumo humano.
Rio Guandu
Supre atualmente 50 m3/s para a ETA GUANDU, possui água baixa qualidade vinda do
Paraíba do Sul e requer o uso de produtos químicos para consumo humano.
Água de Retrolavagem de Filtros da Eta Guandu
Disponibilidade pode diminuir em função do aumento na eficiência no processo possuir água
de baixa qualidade e ter que ser tratada para consumo humano.
154
História e Geografia do Vale do Paraíba
Água Subterrânea
Necessita de estudos de longo prazo para definir a vazão ecológica.
Qualidade desconhecida, água subterrânea sempre foi vista como uma fonte inesgotável de abastecimento. Embora um recurso renovável, poucos aquíferos podem suportar
enormes e indefinidas taxas de extração, na maior parte do mundo. Para assegurar água
subterrânea para as gerações futuras, a filosofia do desenvolvimento sustentável preconiza que a extração de água de um aqüífero nunca deve exceder sua recarga. Vazão segura – volume de água que se pode extrair de um aquífero sem causar resultados
inconvenientes:
•
•
•
•
•
Excesso de rebaixamento nas captações;
Interferências com outros usuários;
Atração de águas de qualidade indesejáveis;
Depleção do manancial;
Alteração no meio ambiente.
As principais substâncias poluidoras das águas subterrâneas são:
•Nitratos – esgotos, fertilizantes, lixões e ar poluído;
•Bactérias e Vírus – esgotos e lixões, entre outros;
•Metais – rejeitos industriais, pesticidas, drenagens;
•Compostos Orgânicos – rejeitos industriais e agrícolas, esgotos urbanos, lixões,
vazamentos de tanques de combustível, ar poluído, etc.
Dessalinização
O exemplo da Usina em Ashkelon (sul de Israel) foi mencionado como alternativa em
2007 pela própria PETROBRAS.
•O maior e mais avançado projeto de dessalinização da água do mar por osmose
reversa, ao menor preço de venda (US$ 0.53/m3 em 2006), em Ashkelon, Israel.
•desde que começou a operar, em 2005, sua planta tem uma capacidade de produção de 300.000 m3/dia (3.47 m3/s) de água potável, de acordo com as normas
locais e recomendações da organização mundial de saúde (OMS).
•CAPACIDADE TOTAL DA PLANTA DE DESSALINIZAÇÃO: 330.000 M3/
DIA (110 MILHÕES DE M3/ANO);
•DIMENSÕES DE ÁREA CONSTRUÍDA DA PLANTA: 350 M X 200 M
•CONSUMO ELÉTRICO ESPECÍFICO MÁXIMO: < 4KWH/M3 (INCLUINDO BOMBEAMENTO DE ÁGUA BRUTA E DE ÁGUA PRODUZIDA)
•SALINIDADE DA ÁGUA BRUTA: 40.75 G/L
•SALINIDADE DA ÁGUA PRODUZIDA: < 0,2 G/L
•TEMPERATURA DA ÁGUA BRUTA: 15-30ºC
155
Reuso de Água Proveniente de Etes
•Complexidade do tratamento.
•Não adequada para produção de resinas com fins alimentícios/medicinais, baixa
qualidade com limitações legais ao consumo humano sem falar da pressão da sociedade para contra este uso.
Novas Represas
• Alto risco devido a problemas no licenciamento e oposição da sociedade, complexidade
ambiental e projeto de longo prazo.
Rio Paraíba do Sul
O mais caro, o mais distante, necessitando de um túnel de 50 km em rocha sã.
Represa de Juturnaíba
Este reservatório tem capacidade para suprir o dobro da necessidade do COMPERJ e população de entorno, boa qualidade de água que pode ser utilizada para consumo humano.
A Problemática
Em função do crescimento populacional já existente nos municípios onde está sendo
implantado o COMPERJ e da estimativa apresentada pela ANA (Agencia Nacional das
Águas/2009) sobre a demanda de água para os municípios diretamente influenciados e das
alternativas propostas pelo RIMA/PETROBRÁS, acredita-se que a escassez de água para
essa região será um complexo problema a ser resolvido.
Haverá ou não escassez de água a partir do aumento populacional?
As propostas apresentadas pelo RIMA atenderão à demanda de água que será exigida?
Haverá conflitos no uso social da água nos municípios do CONLESTE?
Em caso de escassez hídrica, quais as alternativas mitigadoras que poderão ser contempladas?
Hipóteses
Partimos na formulação de três cenários futuros para a área de influência direta do COMPERJ:
1º Cenário – Otimista: Não escassez de água, pelo fato dos mananciais fornecedores de
água para o sistema Imunana Laranjal serem suficiente para o abastecimento;
2º Cenário – Realista: Não haverá escassez de água, mas pelo menos três das alternativas
usadas apresentadas no RIMA terão que ser operacionalizadas simultaneamente;
156
História e Geografia do Vale do Paraíba
3º Cenário – Pessimista: Haverá escassez de água, independente das alternativas apresentadas, em função do elevadíssimo processo de urbanização que será submetida à região.
OBJETIVO GERAL:
Analisar e avaliar a problemática da escassez de abastecimento de água, como o provável
conflito do uso social da água que possa ocorrer em função das propostas apresentadas no
RIMA do COMPERJ.
Objetivos Específicos:
Expor o tema da “Escassez da Água“ na área de influência direta do COMPERJ, de maneira sistemática, apresentando medidas mitigadoras para a problemática em questão.
Diagnosticar o potencial atual e futuro de abastecimento de água para os municípios diretamente influenciados pelo COMPERJ. São eles: Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Tanguá, Rio
Bonito, Cachoeiras de Macacu e Guapimirim.
Analisar os resultados obtidos avaliando a viabilidade técnica e operacional de cada uma das
propostas apresentadas no RIMA. São elas:
– Águas do Rio Guandu;
– Captação no Reservatório de Ribeirão das Lajes;
– Reservatório de Juturnaíba;
– Reservatório do Rio Guapiaçu;
Metodologia
A metodologia utilizada foi sendo desenvolvida com base nos fundamentos e objetivos
da Lei nº 9.433 e de dados fornecidos pelos órgãos envolvidos (INEA, BNDS, CAIXA
ECONÔMICA, CONLESTE, DRM. PRO-LAGOS, CEDAE e prefeituras), desenvolvendo-se uma análise da situação atual e futura no fornecimento de água, chegando-se
finalmente ao diagnóstico da problemática em questão.
Resultados Preliminares
Na captação da água de retrolavagem dos filtros ETA de Guandu chegando à possibilidade de 1,5 m³/s através de um duto com aproximadamente 168 km de extensão.
Tem-se que avaliar a viabilidade operacional e destacar os cuidados necessários para
que haja uma zona de proteção. Preservando o duto do intenso processo de urbanização que deverá se estabelecer ao longo do arco rodoviário. Hoje a própria PETROBRAS já descartou esta alternativa.
Já na alternativa de captação no Reservatório de Ribeirão das Lajes, neste item apresentado no RIMA, temos a destacar a viabilidade técnica e operacional, pelo fato do mesmo
ser utilizado para parte da produção de energia e abastecimento de água para as cidades
da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (aproximadamente 11%) e de parte
do município do Rio de Janeiro (aproximadamente 17%).
157
De acordo com IBGE/ 2010, a área de influência direta do COMPERJ possui uma
população de 218.090 habitantes para Itaboraí e 960.631 habitantes para São Gonçalo, apresentando uma taxa de crescimento demográfico médio de 4,43%. Já na
área de influência indireta, ou seja, os municípios do CONLESTE como um todo o
crescimento demográfico encontra-se estimado em 5,9 %. Atualmente as populações
de todos os municípios do CONLESTE encontram-se de acordo com IBGE 2010,
em torno de 1.803.852 habitantes.
Partindo desta realidade atual, com o crescimento demográfico de 5,9% a estimativa
populacional para o ano de 2015 dos municípios do CONLESTE é de 1.910.279 habitantes, o que geraria uma demanda de consumo de água de aproximadamente 5,52m³/s.
Dados fornecidos no mesmo ano pela PETROBRAS, com a geração de 200 mil empregos diretos e indiretos, estimam a chegada de 1.200 000 (um milhão e duzentos
mil habitantes) nos próximos cinco anos para a mesoregião onde está sendo implantado o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ).
Através Do Acesso Ao Site: Ana/Atlas de Abastecimento Urbano de Água em
7/01/10 há um cenário de Demanda Urbana para 2015 de:
SÃO GONÇALO -
ITABORAÍ - NITERÓI -
TANGUÁ -
MAGÉ -
GUAPIMIRIM - TOTAL DA DEMANDA:
4,132 m3/s
0,875 m3/s
1,758 m3/s
0,083 m3/s
0,811 m3/s
0,137 m3/s
7,796 m3/s
Com a Implantação do Comperj:
OMS consumo de 250l/d, 1.200.000 habitantes esperados = 3,47 m3/s
Planta Industrial – 1,500 m3/s
TOTAL DA DEMANDA GERAL: 12,766 m3/s
Ofertas de Abastecimento de Acordo Com o Rima/Petrobrás
Sistema Imunana - 5,700 m3/s
1,500 m3/s (Já descartada p/ PETROBRAS)
Águas de Reuso de retro lavagem - Recuperação Margem Macacu/Guapiaçu -3,000 m3/s para 2016
10,200 m3/s
TOTAL DE OFERTA:
Déficit para 2015: 2.566 M3/S, não considerando ainda os municípios de Cachoeiras de
Macacu, Rio Bonito e o bairro de Paquetá.
Conclusão
158
História e Geografia do Vale do Paraíba
As prováveis alternativas para vencer a problemática da escassez de água face ao COMPERJ, após a presente análise preliminar são:
• A construção de um barramento proposto pelo projeto Macacu / UFF, entendendo-se que uma significativa área haveria que ser inundada.
• A implantação de um sistema de água de reuso para auxiliar a planta industrial e demandas humanas de fins menos nobres (irrigação, descarga,
lavagem de carros, etc.);
• A ligação do Sistema Imunana-Laranjal com o Sistema Águas de Juturnaíba,
deixando Maricá na interseção entre os dois e assim resolvendo o problema
também existente no município.
Referências Bibliográficas
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Município de Niterói: a questão do uso social da água. UFF. 2003.
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MAGRINI. A e SANTOS. M.A. Gestão ambiental de bacias hidrográficas Rio de Janeiro: UFRJ;
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PEREIRA, Paulo Afonso Soares. Rios Redes e Regiões – A sustentabilidade a partir de um enfoque
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159
Reflexões sobre a Atual Divisão do Estado do Rio de Janeiro em
160
História e Geografia do Vale do Paraíba
“Regiões de Governo”
Maurício Silva Santos*
“...
Assim, todas as atividades que o Estado é chamado a realizar, sobretudo as referentes à economia internacional, são atividades marcadas de contingência, quer dizer
que existe uma fluidez permanente na ação do Estado, obrigada a adaptar-se cada
dia às condições novas da vida internacional. Esta contingência da ação do Estado
tem repercussões sobre o espaço e sobre sua reformulação.”1
1 – Para que servem as divisões regionais?
A Geografia Regional é entendida como o estudo da porção do espaço terrestre que tem
certa unidade nos seus
“caracteres físicos, seu passado histórico, suas capacidades econômicas e eventualmente da vontade orgânica do Estado.”2.
Este espaço – seja ele representado por componentes da Natureza ou por determinantes
sociais ou políticos, – está sujeito a injunções que perpassam por questões ligadas aos conceitos de território, limites, transitoriedade em função do processo de ocupação e determinantes ou conjunturas políticas e administrativas.
Exemplifiquemos:
A Constituição Federal de 1946 determinou que o Estado Brasileiro devesse dar uma especial atenção às terras do Norte do país. Foi então criada uma Entidade para este fim: a
SPEVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia.
Para estabelecer o que seria “Amazônia” em termos de espaço territorial a ser beneficiado com incentivos, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão de assessoramento do Governo Federal, foi solicitado a promover uma pesquisa que definisse e delimitasse aquela região. Ela
consistiu num trabalho de campo e em pesquisas aerofotogramétricas, resumidas, posteriormente
na Revista Brasileira de Geografia sob os títulos “Delimitação da Amazônia para fins de planejamento
econômico”3 e “Limites meridionais e orientais da área de ocorrência da floresta amazônica em
território brasileiro”4, trabalhos gerenciados pelo geógrafo Lúcio de Castro Soares.
Verificou-se que o conceito de “região” foi apoiado no componente vegetação florestal.
Quando se consideram fatores para determinar os limites de um espaço geográfico que
contenha de modo expressivo a presença e atuação do homem, são os fatores econômicos,
históricos e políticos que vão predominar. E mais: vão determinar uma mudança de configuração na divisão regional, que passa a ter seus limites alterados, na medida em que as
*
1
2
3
4
Professor-Adjunto (apos.) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
SANTOS, Milton.1978 - pp.179-190
GEORGE, Pierre & VERGER, Fernand. 1996, p. 393.
RBG, Ano 10, nº2, 1948, .pp.163 - 210.
RBG, Ano 5, 1953, nº 1, pp. 3 - 122.
161
transformações na forma de organização dos espaços vão ocorrendo.
Ilustrando: nos anos que correspondem à “República Velha” (1889 - 1930), e até a II
Guerra Mundial (1945), a ordenação espacial do Brasil ainda retratava a economia do II
Reinado: as modificações estruturais trazidas pelo desenvolvimento da lavoura cafeeira
ainda eram tênues em São Paulo, enquanto que Minas Gerais e Rio de Janeiro apresentavam marcas do processo industrial mais relevantes do que as do Estado sulino;
por isso mesmo, a Divisão Regional do Brasil, em consonância com a situação daquele
momento era a seguinte:
– Região Norte (Acre, Amazonas e Pará);
– Região Nordeste Ocidental (Maranhão e Piauí);
– Região Nordeste Oriental (Ceará, Rio Grande do Norte etc., até Alagoas);
– Região Leste Setentrional (Sergipe e Bahia);
– Região Leste Meridional (Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal);
– Região Sul (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul);
– Centro-Oeste (Mato Grosso e Goiás).
Com a expansão cafeeira e o desenvolvimento industrial, o triângulo Minas – Rio – São
Paulo emprestou uma nova fácies ao espaço geoeconômico brasileiro, obrigando a Geografia e a Política proporem uma nova divisão regional.
Eis, então, que surge a denominação “Região Sudeste”.
A história segue:
– criam-se os novos Territórios, aumentando a composição da Região Norte;
– Fernando de Noronha retorna a Pernambuco;
– cria-se o Estado de Tocantins, que passa a ser da Região Norte;
– os especialistas da área econômica já falam – e sem reservas – em uma “Região
Centro-Sul” (Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, Espírito
Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul);
– crescem as propostas para “partir” os estados grandes (Pará, Amazonas), em dois ou três.
Tudo indica, portanto, que uma nova Divisão Regional do Brasil está por acontecer.
Ficam patentes as seguintes considerações:
1ª – as divisões regionais precisam sofrer reajustes, na medida em que a presença e a atuação dos componentes histórico, social, econômico e político produzem modificações na
organização do espaço, diminuindo as diferenças e aproximando os lugares;
2º – a alteração, pelas sociedades, das características regionais afasta cada vez mais o referencial das divisões e classificações, dos parâmetros ditados pela Geografia Física; na
escolha dos novos nomes dessas regiões produz-se, quase sempre, uma opção, por termos
e expressões que se distanciam das referências posicionais, tais como “Região Norte”, “Re-
162
História e Geografia do Vale do Paraíba
gião Nordeste”, para outras que falam mais alto como “Semiárido agropastoril”, “Bacia
Agropetrolífera Campista”, por exemplo;
Quando dividiu o Estado do Rio de Janeiro em REGIÕES DE GOVERNO, a Autoridade
agrupou municípios que guardavam, entre si, tanto quanto possível, determinadas características comuns de modo a buscar, de modo coordenado, soluções administrativas que os
abrangessem como um todo.
É o que reza o texto da Lei Complementar nº 87, de 16/12/1997, no seu artigo 3º:
– “consideram-se interesse metropolitano ou comum as funções públicas e os serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território
de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como os serviços supramunicipais, notadamente:
(e discrimina os tipos de serviços pertinentes).”
Para isto, foram requisitadas referências históricas, econômicas – e até geográficas – que
resultaram na atual divisão regional.
Eis, portanto, uma das atribuições da Geografia Regional: emprestar sua fundamentação
teórica e científica para que a administração pública possa atender melhor às necessidades
de uma “Região de Governo”.
2 – A Divisão atual do Estado em “Regiões de Governo”
A Legislação Complementar nº 20, de 1º de julho de 1974, criou a Região Metropolitana;
em 1987 uma nova Lei, de número 1227, instituiu as Regiões de Governo, dentro do que
estabelecia o Plano de Desenvolvimento Econômico e Social para o quadriênio 1988/1991.
Na edição informatizada do ANUÁRIO ESTATÍSTICO DO RIO DE JANEIRO, datada
de 2007, consta o QUADRO 2.3, intitulado “Divisão Regional, segundo as mesorregiões,
microrregiões geográficas e municípios”, que tem como fonte o critério geográfico da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE).
163
Veja abaixo:
Mesorregiões
1 – Metropolitana
2 – Noroeste Fluminense
3 – Norte Fluminense
4 – Centro Fluminense
5 – Baixadas
6 – Sul Fluminense
164
Microrregiões
Municípios
1.1 – do Rio de Janeiro
Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim,
Itaboraí, Japeri, Magé, Maricá, Mesquita,
Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Queimados,
Rio de Janeiro, São Gonçalo, São João de
Meriti e Tanguá
1.2 – de Itaguaí
Itaguaí, Mangaratiba e Seropédica
1.3 – Serrana
Petrópolis, S. José do Vale do Rio Preto e
Teresópolis
1.4 – de Vassouras
Engenheiro Paulo de Frontin, Mendes,
Miguel Pereira, Paracambi, Paty do Alferes
e Vassouras
1.5 – de Macacu - Caceribu
Cachoeiras de Macacu e Rio Bonito
2.1 – de Itaperuna
Bom Jesus do Itabapoana, Italva, Itaperuna,
Lage do Muriaé, Natividade, Porciúncula e
Varre-Sai
2.2 - de Santo Antônio de Pádua
Aperibé, Cambuci, Itaocara, Miracema, Santo
Antônio de Pádua e São José de Ubá
3.1 – de Campos dos Goytacazes
Campos dos Goytacazes, Cardoso Moreira,
São Fidélis, São Francisco de Itabapoana e
São João da Barra
3.2 – de Macaé
Carapebus, Conceição de Macabu, Macaé e
Quissamã
4.1 – de Nova Friburgo
Bom Jardim, Duas Barras, Nova Friburgo e
Sumidouro
4.2 – de Santa Maria Madalena
Santa Maria Madalena, São Sebastião do Alto e
Trajano de Moraes
4.3 – de Cantagalo - Cordeiro
Cantagalo, Carmo, Cordeiro e Macuco
4.4 – de Três Rios
Areal, Comendador Levy Gasparian, Paraíba
do Sul, Sapucaiae Três Rios
5.1 – dos Lagos
Araruama, Armação dos Búzios, Arraial do
Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, São Pedro
da Aldeia e Saquarema
5.2 – da Bacia de São João
Casimiro de Abreu, Rio das Ostras
e Silva Jardim
6.1 – do Vale do Paraíba Fluminense
Barra Mansa, Itatiaia, Pinheiral, Piraí, Porto Real,
Quatis, Resende, Rio Claro e Volta Redonda
6.2 – de Barra do Piraí
Barra do Piraí, Rio das Flores e Valença
6.3 – da Baía da Ilha Grande
Angra dos Reis e Parati
História e Geografia do Vale do Paraíba
Já nessa ocasião, alterou-se a configuração da Mesorregião Metropolitana: da Micro do Rio
de Janeiro faziam parte 17 municípios, reduzidos depois pela Lei Complementar nº64, de
21 de setembro de 1990, – a mesma lei que promoveu a retirada de Petrópolis e São José
do Rio Preto, que passaram a integrar a Microrregião Serrana.
Mais adiante, em 2/10/2001, nova Lei Complementar, de número 97 retira Maricá da Mesorregião Metropolitana e o transfere para outra, reunindo-o com outros constituídos por essa nova
Lei e que pertenciam à das Baixadas Litorâneas, melhor denominada “dos Lagos” – (Araruama,
Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia, Saquarema e Silva Jardim, além de Maricá).
No ano seguinte, 2002, a Lei Complementar nº 105 retira Mangaratiba e Itaguaí da Microrregião do Rio de e os reúne a Angra dos Reis e Parati, criando uma nova Mesorregião: a
Região da Costa Verde, extinguindo a Região da Baía da Ilha Grande, subdividindo a Costa
Verde em duas microrregiões: a da Baía de Sepetiba e a da Baía da Ilha Grande.
A Divisão em Regiões de Governo ora vigente é a seguinte:5
1 – Metropolitana
5 – Baixadas Litorâneas
2 – Noroeste Fluminense
6 – Médio Paraíba
3 – Norte Fluminense
7 – Centro Fluminense
4 – Serrana
Baía da Ilha Grande
8 – Costa Verde
Baía de Sepetiba
Todas estas modificações tiveram como finalidade, como ficou dito, prover uma política
administrativa adequada.
Ainda, em junho de 2007, foi publicada em O Globo, p. 26, nova proposta, elaborada por uma
comissão da Coordenação de Geoprocessamento e Cartografia do CIDE6, onde se tem o critério “Localização”, substituído por Características Geoeconômicas atuais:
1 – Turística da Costa Verde
6 – Serrana de Economia Agropecuária
2 – Industrial do Médio Paraíba
7 – Turística dos Lagos
3 – Urbano / Industrial
8 – Produtora de Petróleo e Gás
4 – Turístico/Cultural do Médio Paraíba
9 – Agropecuária do Pomba, Muriaé e
Itabapoana
5 – Serrana de Economia Diversificada
Baía da Ilha Grande e Baía de Sepetiba são classificadas como microrregiões.
CIDE, ex-Centro de Informações de Dados do Rio de Janeiro, atualmente denomina-se Fundação Centro Estadual de
Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro.
5
6
165
Nota-se que esta classificação, embora não seja oficial, espelha bem o estado de desenvolvimento dos diferentes espaços geoeconômicos do Estado do Rio de Janeiro, fugindo, como
ficou dito acima, dos aspectos meramente posicionais ou do âmbito da Geografia Física.
3 – Sobre o que é necessário refletir, nesse momento?
Ao intitularmos este estudo como REFLEXÕES, nosso propósito é levantar algumas
questões que levem os estudiosos das Ciências Sociais, em particular os que direta ou indiretamente produzem ações em nível de Governo, a pensar sobre algumas correções e
alterações que podem – e devem – ser feitas nas nomenclaturas regionais.
É necessário que sejam acolhidas as retificações sobre o que desobedece os Princípios da
Ciência, às vezes de forma grosseira; outro aspecto é admitir que a evolução e o progresso
social e econômico atuam sobre os espaços geográficos, modificando sua configuração,
exigindo a necessidade de revisões periódicas nas classificações.
Exemplificando:
É preciso corrigir o tratamento que se tem dado para certos espaços geográficos quando
fala em Regiões de Governo – e quando deseja dar precisão à sua dimensão espacial. Há
que se diferençar REGIÃO (MACRO), MESO E MICRORREGIÃO. O cartograma a
seguir ilustra esta mistura na legenda, ao chamar todas as áreas de “Regiões”.
Não se trata de preciosismo vocabular ou classificatório: antes, o Geógrafo, trabalhando com
as escalas dimensionais de MESO e MICRO, pode atender melhor ao Administrador, configurando cartograficamente quantos e quais municípios pertencem a um ou outro compartimento.
Parecem-nos necessárias, ilustrando, algumas retificações de alguns nomes de Regiões para que
sejam respeitados determinados princípios da Geografia na denominação de algumas delas.
Calcificados pela tradição, sobrevivem, em determinados casos, o uso indevido de certas
expressões, como por exemplo, as que se prendem à localização e direção dos lugares:
– confunde-se “subir” com “ir para o norte”; e “descer”, com ir para o sul;
– na Bahia, onde o termo se aplica tanto ao Estado quanto à capital, a região de Vitória
da Conquista é dita como “Sudoeste Baiano”, quando, em verdade, fica no sul do Estado.
Mas afinal: qual deve ser o critério para se dizer em que parte de um Estado fica um lugar?
Quem nos ensina isto é a Cartografia.
A elaboração e a utilização de mapas é o procedimento que orienta o observador a estabelecer direções e posições dos lugares.
O comportamento do observador deve ser o seguinte:
– procura-se, na carta geográfica, a rede de paralelos e meridianos;
166
História e Geografia do Vale do Paraíba
– os mais centrais (o paralelo e o meridiano) nos informarão as direções norte-sul (seguindo-se
os meridianos), e leste-oeste (seguindo-se os paralelos);
– visto isto, coloca-se no centro da carta geográfica uma bússola e orienta-se a carta, fazendo-a
girar até a ponta norte da agulha magnética estar paralela ao norte do meridiano mais central;
– se a carta for, por exemplo, um mapa do Brasil, é recomendável assentar-se a bússola em Brasília; aí o observador vai concluir por que o Amazonas está no Norte,
Ceará no Nordeste, São Paulo no Sudeste e o Rio Grande do Sul, no Sul do país.
Transferindo-se a prática recomendada acima para a carta do Estado do Rio de Janeiro, o
observador não vai achar que o Município de Campos dos Goytacazes fica no “norte fluminense”’... Muito menos, Itaperuna, no “noroeste”! ...7
... E por que razão o Município de Comendador Levy Gasparian, vizinho a Minas Gerais,
está no Centro Fluminense???
Mapa das Regiões do Estado do Rio de Janeiro
7
A propósito das Regiões costumeiramente denominadas como “Norte” e “Noroeste”, tivemos a oportunidade de divergir
destas denominações em “Geografices” 2005, posto que o posicionamento delas em relação a uma Rosa dos Ventos localizada no centro do Estado fica a LESTE e NORDESTE, respectivamente.
167
4 – Algumas propostas de mudanças
a) Mudança para correção de posicionamento:
O primeiro grupo de propostas tem por finalidade substituir na nomenclatura a utilização
equivocada de direção e posição geográfica de áreas em relação ao Estado do Rio de Janeiro:
– de “Norte Fluminense”, para “Leste Fluminense”;
– de “Noroeste Fluminense”, para “Nordeste Fluminense”.
b) Atualização em função da evolução econômica:
– A presença do novo centro de produção de petróleo em Macaé já exerce poderosa influência nos municípios vizinhos de Silva Jardim, Rio das Ostras e Casimiro de Abreu,
que funcionalmente já podem ser considerados “cidades-dormitórios” de trabalhadores
naquela atividade; assim, é recomendável que todos esses municípios fiquem agregados
na mesma região (que M. A. dos SANTOS de nomina de “Produtora de Petróleo e Gás”);
– Retomar o nome “Região dos Lagos” para Araruama, Armação dos Búzios, Arraial do
Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, Maricá, São Pedro da Aldeia e Saquarema, já que fazem parte de uma “esteira turística” que se consolidou dos anos 1970 para cá, após a construção da
Ponte Costa e Silva, que estendeu a área de influência da cidade do Rio de Janeiro para leste.
5 – Alertas para pesquisas
Considere-se, novamente, a mutabilidade a que está sujeita a paisagem geográfica, em decorrência da presença e da ação do homem, que a reorganiza segundo as necessidades ou
conveniências administrativas, sociais e econômicas.
Estas modificações são lentas, mas não podem escapar à observação do pesquisador
ou do administrador.
Torna-se necessária, portanto, a realização de projetos de pesquisa constantes, partindo-se
de convênios ou acordos de prestação de serviços ao Estado com instituições locais ou
próximas, de nível superior, que acompanhem as mudanças, notadamente nas ÁREAS DE
TRANSIÇÃO entre uma e outra REGIÃO.
Como modelos observem-se as transformações que vêm ocorrendo no Médio Vale
do Paraíba fluminense, onde é possível perceber uma superposição de fatos e fenômenos geográficos, após as etapas históricas de produção de café e pastoril, ora de
corte, ora leiteira.
A olericultura, a expansão das áreas de lazer do Rio de Janeiro e, mais recentemente, o
surto de industrialização por que passa o Médio Vale constitui, nesse momento ,(maio
de 2011) um interessante tipo de paisagem a ser estudada, de modo a serem estabelecidos os limites e as separações, em nível de município, para suas locações nesta o naquela Região de Governo ( “Turístico-Cultural”? “Serrana, de Economia Agropecuária”?
‘Serrana, de Economia Diversificada”?).
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História e Geografia do Vale do Paraíba
6 – Concluindo
Dois são, portanto, os motivos que nos trazem a este fórum de discussões para que as Autoridades Estaduais procedam a uma reflexão sobre a classificação atual das Regiões de Governo:
– a necessidade de serem corrigidos erros de nomenclatura, decorrentes do mau
emprego de referências geográficas e cartográficas que, sendo científicas, exigem
aplicação correta de seus conceitos: é o caso das denominações “NORTE FLUMINENSE” e “NOROESTE FLUMINENSE”;
– a segunda decorre de nossa observação de que houve uma preocupação das Autoridades, no curto prazo de menos de duas décadas, em ajustar as classificações às novas
circunstâncias históricas e econômicas por que passaram os municípios fluminenses.
Essas nossas preocupações valem como um alerta para as transformações por que passam os
espaços geográficos (Princípio Geográfico da Evolução) e que tornam as classificações, pela
sua própria dinâmica, suscetíveis de correções e atualizações, uma vez que esses fatos e fenômenos não são estáticos ou duráveis por longo prazo, sobretudo num tempo de Globalização.
Tal foi o procedimento da Coordenação do CIDE, cujo pensamento é aquele com o qual afinamos.
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dos anos 40 aos arranjos produtivos locais do início do século XXI. In: História e Geografia
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169
170
História e Geografia do Vale do Paraíba
Capítulo 3
A Riqueza Imperial do Vale
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172
História e Geografia do Vale do Paraíba
Abolição e Decadência Fluminense
Alex Nicolaeff*
Quem observa a paisagem ao trafegar pela Dutra, nota certo ar de abandono, capinzais, um
e outro boi pastando nas encostas, raras lavouras ou indústrias. Quilômetros a fio, ao longo
do Vale do Paraíba, até a divisa, é a mesma paisagem, bonita e estéril. A Rio – São Paulo
não difere de outras rodovias no Estado do Rio de Janeiro, caracterizadas pela escassa atividade econômica. A estagnação regional, após a opulência e brilho no Império, tem muitas
explicações. Ruy Barreto, empresário no ramo do café, deu a sua versão no artigo “E tudo
acabou numa grande tragédia social”. Foi publicado num período de muito tiroteio entre
polícia e traficantes em morros cariocas.
Após comentar as efemérides da Abolição, o texto desperta a curiosidade por afirmar a existência de omissões e complôs: “[...] os livros de História não contam – de que, por trás daquele
gesto magnânimo, concluía-se um dos mais hábeis golpes políticos.” (BARRETO, 2006, p. 7)
Termina descrevendo massas humanas abandonadas, prejuízos financeiros, a memória do escravagismo destruída. Instigante e sucinto, o artigo é transcrito na íntegra, seguindo-se um exame
de três aspectos da abolição abordados por Barreto: fatores econômicos, migrações de mão de
obra e circunstâncias políticas.
“A Princesa Isabel pegou um trem e deixou Petrópolis às pressas para acabar no
Rio de Janeiro com a escravatura no Brasil. Às 15h15m de domingo, 13 de maio de
1888, no Paço da Cidade, ela assinou a lei – transcrita num fino pergaminho por um
calígrafo famoso – com uma pena de ouro adquirida por subscrição popular. Nas
ruas, o povo aclamava a Lei Áurea e a Princesa, as festas se sucediam nas casas e no
palácio. Da Europa vinha um telegrama: ‘Abraços à Redentora. Seu Pai, Pedro.’
Todos ansiavam pela Abolição e o momento estava maduro. Mas poucos se deram conta – e os livros de História não contam – de que, por trás daquele gesto magnânimo,
concluía-se um dos mais hábeis golpes políticos. Um ano e meio depois, naquela mesma
praça do Paço, era proclamada a República. A ‘Redentora’ – com o marido, Conde d’Eu,
e o pai, D. Pedro II, velho e doente – era embarcada de novo às pressas, desta vez num
navio, para fora do país, para sempre, sem ninguém no cais para lhe dar adeus.
Não foi apenas a Monarquia que caiu em decorrência do 13 de maio. No ‘efeito-dominó’ da Abolição, foram terrivelmente golpeadas as economias fluminense, mineira
e capixaba, baseadas na cafeicultura, que representavam cerca de 90% da produção
nacional. Todo mundo sabia que a escravatura estava para acabar. O problema crucial era como encaminhar a transição e evitar um choque social e econômico. O Gabinete do Barão de Cotegipe, pensando numa data, tivera apresentado pelo próprio
senador paulista Antônio do Prado ‘o projeto que virá a ser lei de 28/9/1888 (...) e
o escravo só trabalhará até 25 de setembro...’
Era uma data racional. Coincidia com o fim do período da colheita do café no país.
No estado do Rio e na Zona da Mata de Minas Gerais, regiões mais quentes, o amadurecimento do café ocorria no início de maio; já em São Paulo a colheita começava
* Arquiteto e Urbanista. Sócio Efetivo do IHGRJ.
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em setembro. E representava apenas 10% da produção nacional. Este prazo permitiria a todos fazerem sua colheita, mesmo porque São Paulo não dependia da mão
de obra do escravo negro, mas se servia da imigração européia, que, por desígnio
expresso dos cafeicultores paulistas, só permitiam a vinda de gente inculta e faminta,
que acabava recebendo aqui o mesmo tratamento do escravo africano, ou até pior.
Os abolicionistas eram a favor do término puro e simples da escravatura, e salve-se-quem-puder. Já os emancipacionistas achavam que a Abolição deveria ser acompanhada de uma indenização, prevista em lei. Assim, até a chegada da colheita seguinte,
todos – escravos libertos e fazendeiros – teriam tempo para se adaptar ao novo
regime de trabalho livre e tudo voltaria à normalidade.
A história do Brasil teria sido diferente – para bem melhor. Mas isto não aconteceu.
Inopinadamente, o senador Antônio do Prado, através de hábeis manobras, antecipou a Abolição para 13 de maio. Os cafeicultores fluminenses, totalmente desamparados sem mão de obra na hora da colheita, viram seus cafés apodrecerem (90%
da produção nacional). Os ex-escravos, sem eira nem beira, descambaram para o
alcoolismo, a prostituição e a miséria. O golpe de misericórdia foi dado por Rui Barbosa, ministro da Fazenda do primeiro governo da República. Em 1890, ele mandou
recolher e incinerar toda a documentação existente sobre a propriedade de escravos
no Brasil. O ‘maior jurisconsulto do país’, numa autêntica queima de arquivo, tirava
a base legal para quaisquer pedidos de indenização da parte dos fazendeiros. As suntuosas sedes dos barões do café algumas ficaram em ruínas, outras viraram pousadas
com falsos móveis de época e senzalas redecoradas num duvidoso gosto sadomasoquista exibindo instrumentos de tortura dos escravos.
Em 1854, só o porto do Rio de Janeiro exportou, em apenas um ano, em café, o
valor equivalente a todo o ouro e diamante extraído pelo Brasil em 80 anos. O porto
do Rio de Janeiro, o maior da América antes da Lei Áurea, tem hoje seus 22 imensos
armazéns transformados em barracões para as escolas de samba. Não se pode dizer
que tudo tenha acabado em samba, mas na verdade, ao som de AR-15s e granadas,
numa grande tragédia econômica e social. (BARRETO, 2006, p.7)
Fatores Econômicos
“Os fazendeiros do Vale do Paraíba, cujas culturas tinham entrado em franco declínio e
que estavam insolváveis, não podiam substituir os escravos que morriam, nem melhorar
os engenhos, nem despender as somas necessárias à instalação de colonos; todo o progresso era para eles impossível. Em 1883 calculava-se que a dívida total da lavoura cafeeira do Império montava a trezentos mil contos; a maior parte recaía sobre as fazendas do
Vale do Paraíba. Cerca de cinquenta por cento desses proprietários encontravam-se em
situação deficitária e sem perspectiva de recuperação.” (COSTA, 1966, 215)
“Das 773 fazendas entre Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, 726 estavam hipotecadas” (PRIORE, 2007, p.150). A situação da lavoura fluminense era irreversível e, segundo
um economista: “A abolição veio apressar a seleção, que se teria de processar com o tempo, registrando-se a ruína rápida da maioria da classe agrícola.”(SIMONSEN, 1940, p.32).
Mostra um gráfico do volume anual da produção (em milhões de sacas) e do valor anual
174
História e Geografia do Vale do Paraíba
da produção (em libras-ouro). Constata-se que em 1884 foram produzidas seis milhões de
sacas e arrecadadas 12 milhões de libras-ouro (duas libras por saca). Em 1889 a produção
diminuiu para 4,8 milhões de sacas, enquanto a arrecadação aumentou para 18 milhões de
libras-ouro (3,5 libras por saca). O gráfico revela uma curva declinante para a produção
e uma curva ascendente para a arrecadação. Vê-se que o café estava em alta na época da
Abolição. Outro gráfico mostra que em 1889 o porto do Rio de Janeiro exportou 1,9 milhões de sacas de café a menos do que exportou em 1884. A exportação de 1889 foi feita
com a safra em 1888, afetada pela abolição. Pode-se estimar que a região atendida pelo
porto do Rio deixou de arrecadar seis milhões de libras-ouro. No entanto, “a lei áurea não
alterou praticamente os valores exportados pelo país, porque não obstante ter ficado sem
ser colhida boa parte da safra do café, o seu grande volume e o alto preço compensaram
essa diferença.” (SIMONSEN, 1940, p.32)
A comparação de riquezas geradas pelo café no Império e pelo ouro no Brasil Colonial é possível com cifras elaboradas por Roberto Simonsen: “De 1821 a 1889 foram
exportadas 169.696.000 sacas de café, valendo 399.879.000 libras-ouro.” (SIMONSEN.
1940, p.41) e, ainda, “Parece razoável admitir-se um número médio em torno de Libras
160.000.000 como representando o valor aproximado da produção aurífera do Brasil
Colonial”. (SIMONSEN, 1954, p. 298)
Migrações de mão de obra
“O Brasil era o café! O que lhe impedia o desenvolvimento era a falta de braços.”
(TAUNAY, 1934, XII).
“Em 1875, escrevia João Elisário de Carvalho Montenegro, proprietário das colônias Nova Lousã e Nova Colômbia, – consideradas, na época, modelares – que
enquanto existisse no Brasil ‘essa mancha negra chamada escravidão’ não poderia
haver imigração.” (COSTA, 2007, p.330)
O sucesso da cafeicultura no Brasil se deveu à grande disponibilidade de mão de obra. Terminado o tráfico africano na década de cinquenta, voltaram-se os fazendeiros para o mercado interno de escravos. “[...] passava-se a comprar cativos das áreas açucareiras do Nordeste – em forte crise devido à ascensão do açúcar de beterraba que, após 1860, permitiu
à Europa tornar-se auto-suficiente frente ao antigo produto importado.” (PRIORE, 2006,
p.147) Também essa fonte acabou quando da “proibição do tráfico interprovincial em
1884, coincidindo com o esgotamento das reservas de escravos nordestinos.” (LAMEGO.
2006, p.148) Tentou-se mesmo importar chineses. Fracassos sucessivos confirmavam a previsão de João Elisário de Carvalho Montenegro: “[...] as queixas constantes de imigrantes
a seus países de origem, fizeram que governos europeus, como o da Prússia, proibissem
por quase dez anos a emigração para o Brasil.” (LAMEGO, 2006, p.148) Outros países se
limitavam a desaconselhar a emigração para o Brasil. A Itália instalou em Gênova a Liga
Nacional de Proteção a Emigrantes. No Rio de Janeiro foi fundada a Sociedade Central de
Imigração em 1883 por Carlos von Koseritz, para atrair colonos através da oferta de terras,
enquanto outras visavam “[...] a obtenção de mão-de-obra para a lavoura de café, insistindo
na fomentação da imigração de massa, [...].” (HUTTON, 1986, p.39)
175
“Data de julho de 1886 a fundação da Sociedade Promotora da Imigração, projeto
encetado por cafeicultores paulistas, tendo a frente o próprio Antônio Queiroz
Teles, conde de Parnaíba, que nesse momento respondia também pela presidência
da província de São Paulo. Esse trabalho conjunto entre fazendeiros e governo
facilitou o encaminhamento da questão. Acertava-se que o fluxo migratório seria
proveniente da Itália e o governo subvencionaria a vinda do colono. O imigrante
isentava-se do pagamento da passagem e do transporte ferroviário até as fazendas
de café.” (MARTINS, 2008, p.127)
Um dos países mais aptos a liberar mão de obra era a Itália. Recém-unificada, com alto índice
de população, sofria de pauperismo no campo e milhares de camponeses tentavam emigrar.
Com o término do escravagismo, o afluxo em 1888 “mais que dobrou, elevando-se para
132.600 imigrantes, no movimento significativamente subvencionado pelo governo imperial
e pelo governo da província de São Paulo.” (MARTINS, 2008, p.129) “Em consequência ao
esforço, havia em São Paulo, em 1888, 200.000 colonos estrangeiros, superando em quantidade os negros libertados, estimados em 100.000, aproximadamente. (SIMONSEN. 1940, p.54)
Deve-se levar em conta que o 13 de maio beneficiou cafezais em São Paulo com nova migração interna de mão de obra: “ [...] terrível desorganização [...] atingiu a lavoura das províncias
da região fluminense provocando enormes êxodos de fazendeiros e trabalhadores para os
terrenos do oeste paulista [...].” (TAUNAY, 1934, XII)
Circunstâncias Políticas
Isabel assumiu o governo em junho de 1887. Foi um ano de prenúncios e convergências: o Exército deixou de perseguir escravos fugitivos, juízes mostravam indiferença a
pleitos de proprietários queixosos, bispos declararam apoio à libertação do elemento
servil, o Partido Republicano de São Paulo passou a admitir o fim da escravidão, os
conservadores paulistas também aderiram, empresas de recrutamento de imigrantes
tiveram apoio financeiro do governo imperial e do governo da província de São Paulo, abolicionistas eram aplaudidos nas cidades. Por motivo de saúde o monarca se
afastou. No Rio de Janeiro, a regente “revelou-se agressivamente abolicionista. [...]
Estabeleceu contato direto com abolicionistas, sobretudo com André Rebouças, [...]”.
(CARVALHO, 2007, p.188)
Chama a atenção a postura esclarecida de André Rebouças que
“[...] ligava o fim da escravidão ao estabelecimento de uma ‘democracia rural’, defendendo a distribuição das terras aos escravos libertados e a criação de um imposto
territorial que forçasse a venda e a subdivisão dos latifúndios.” (FAUSTO, 2010, p.123)
Ainda em 1887, Joaquim Nabuco buscou apoio à causa abolicionista no Vaticano. Em
Roma foi recebido pelo papa nos primeiros dias de fevereiro de 1888.
“Leão XIII prometeu que publicaria uma encíclica a respeito, que Nabuco esperava
fosse ainda divulgada antes da abertura do Parlamento do Império em maio, o que
não se concretizou devido às pressões do ministério Cotegipe junto ao Vaticano.”
(NABUCO, 2005, p. 288)
176
História e Geografia do Vale do Paraíba
A imprensa europeia noticiou logo a iminente encíclica papal e, no Brasil, “desde os fins
de fevereiro, ainda sob o gabinete Cotegipe, o país as conheceu pelas minhas revelações...” (NABUCO, 1999, p. 202) O líder abolicionista registrou em seus diários que Leão
XIII, durante a audiência, disse: “[...] e quando o Papa tiver falado, todos os católicos
terão que obedecer.” (NABUCO. 1999, p. 197)
“A 9 de março, a Princesa Isabel, [...], substituiu o gabinete Cotegipe, incompatibilizado com a opinião [pública] pelas sua atitude negativa relativamente à Abolição, por
outro ministério conservador, chefiado por João Alfredo Correia de Oliveira, que se
comprometeu a realizar a reforma do elemento servil.” (NABUCO, 2005, p. 291)
Integrou o gabinete abolicionista o fazendeiro Antonio Prado.
“Um projeto preparado pelo senador conservador de São Paulo, Antônio Prado,
ligado ao Oeste Paulista, tentou ainda contemporizar. Previa a imediata libertação
dos escravos, sujeita a indenização e prestação de serviços por três meses, de modo
a assegurar a próxima colheita. Diante da oposição dos liberais, o presidente do
Conselho, o conservador João Alfredo, decidiu propor a abolição sem restrições. A
iniciativa foi aprovada por grande maioria parlamentar, sendo sancionada a 13 de
maio de 1888.” (FAUSTO, 2010, p.123)
Em Roma, no dia 5 de maio de 1888, o Vaticano informava sobre a iminente encíclica. No dia 8,
quando o projeto deu entrada no Parlamento, Nabuco pediu urgência no seu andamento.
As ideias de André Rebouças sobre “democracia rural” e distribuição de terras aos libertos,
marcou os debates e fez o barão de Cotegipe lançar “[...] uma ameaça: ‘Daqui a pouco se
pedirá a divisão das terras e o Estado poderá decretar a apropriação sem indenização.”
(FAUSTO, 2010, p.123)
“É fato que, paralelo à questão da implantação da mão de obra livre no Brasil, houve também a
discussão da reforma do sistema fundiário, [...].” (MARTINS, Roselene de Cássia. 2008, p.374)
“A terceira e definitiva lei abolicionista que assegurou imediata e total emancipação em 13
de maio de 1888, foi obra de um gabinete conservador chefiado por fazendeiros (primordialmente de São Paulo) que anteriormente tinham lutado por preservar a escravidão. No
último minuto eles viram que a substituição do trabalho escravo pelo livre era inevitável e
podia até ser benéfico porque trabalhadores livres podiam ser menos caros e mais eficientes
que escravos. Além disso, controlar o passo final para a abolição deixaria a elite de fazendeiros no controle do governo, evitando a ascensão ao poder dos abolicionistas tradicionais
que podiam fomentar idéias radicais tais como reforma agrária.” (SKIDMORE, 1998, p.16.)
Através do mosaico de citações aqui selecionadas sobre momentos próximos à abolição,
vê-se que influíram no processo a doença do imperador, a cotação ascendente do preço
do café nos mercados mundiais, a pressão da grande oferta italiana de mão de obra, a imigração subsidiada, a ida de Nabuco a Roma, o sentimento e a vontade nacional. Houve
também a pragmática percepção, por parte dos cafeicultores, que a plena manutenção da
propriedade da terra lhes era mais conveniente que a manutenção da propriedade do escravo. E a paisagem fluminense pagou seu preço.
177
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TAUNAY, Affonso d’Escragnolle. A propagação da cultura cafeeira. Edições do Departamento
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História e Geografia do Vale do Paraíba
O Rei do Café
Rosimeiri Fonseca de Mello*
Século XIX.
O despertar do café.
A febre social rural.
Período, em terras fluminenses, onde os grandes proprietários rurais prosperaram e se
tornaram nobres.
A cidade de São João Marcos, cujo antigo nome era São João do Príncipe, região do Vale do
Paraíba no Estado do Rio de Janeiro, era um dos maiores centros produtores de café e os
grandes proprietários dessa região eram os Breves. Entre as famílias cafezistas fluminenses,
paulistas e mineiras surge em especial destaque o comendador Joaquim de Souza Breves,
cognominado “O Rei do Café”.
No Arquipélago dos Açores, os Breves têm fincadas suas origens. O patriarca da família,
Antônio de Souza Breves, foi o primeiro dos Breves a chegar ao Brasil com sua família, a
mulher Maria de Jesus Breves e seu primogênito José de Souza Breves. Estabeleceu-se nas
cercanias de São João Marcos em terras concedidas por sesmarias, fazendo parte então dos
primeiros desbravadores e povoadores daquelas terras. Tornou-se próspero comerciante e
fazendeiro, ficando conhecido como Antônio Cachoeira.
Filho de Antônio, José de Souza Breves, nascido em 1748, adquiriu bens fazendários no
distrito de Piraí, estabelecendo-se na fazenda Manga Larga de propriedade de seus pais.
Ingressou na política da região, tornando-se influente. Em 1813 tomava posse do cargo de
sargento-mor das ordenanças e desde então passou a gozar de todos os privilégios que o
cargo lhe conferia. Tornou-se o maior proprietário de terras e escravos da região. Foi nomeado depois capitão-mor e em 1822 empossado como juiz almotacel1 de São João Marcos
e logo depois passa a vereador.
Esse tronco da família, dita “Breves Graúdos” distinguia-se dos descendentes dos seus
irmãos – os “Breves Miúdos” – por sua notável fortuna em grandes fazendas de sesmarias
concedidas pelo governo imperial e pelo prestígio junto ao imperador. O capitão-mor,
como era conhecido, era casado com d. Maria Pimenta Frazão Almeida, também de Açores, e desta união nasceram seis filhos, entre eles, Joaquim José de Souza Breves.
O comendador Joaquim Breves nasceu na fazenda Manga Larga em 1804, recebeu boa
instrução, inteligente, tornou-se personalidade invulgar. Na juventude assistiu à expansão
cafeeira no Rio de Janeiro, que necessitava de muitos e muitos braços impulsionando o
tráfico negreiro. Teve a oportunidade de assistir ao grito do Ipiranga em 7 de setembro
quando se juntou ao Príncipe regente e sua comitiva, em 16 de agosto de 1822, por ocasião
da passagem do Príncipe pela fazenda Manga Larga.
* Arquiteta e Urbanista. Especialista em História da Arte e da Arquitetura/PUC-Rio. Licenciada em Matemática/UFF.
1
Almotacel: inspetor encarregado de fiscalização e taxação dos gêneros alimentícios.
179
Casou-se com sua sobrinha Maria Isabel Breves de Moraes, filha dos Barões do Piraí, e tiveram 8 filhos. De acordo com o autor José de Almeida Prado Castro, foi nessa
mesma data que Joaquim Breves foi agraciado com a Comenda da Ordem da Rosa e Cavaleiros de Cristo.
Foi o maior e o mais pomposo dos Breves. Esse homem
respeitado, excessivamente temido por sua severidade, capaz de lançar mão de todos os meios para trazer
a disciplina aos seus enormes batalhões de escravos, era
por vezes bom e generoso, tornando-se também querido. Punia um serviçal com facilidade e ao mesmo tempo
tinha gestos de caridade abrigando famílias necessitadas
inteiras e angariava a simpatia dos negros com a melhoria
da alimentação, com maiores rações de cachaça e na permissão para as danças. Compreendia que essa mescla de
atitude seria a melhor maneira de conduzir seus cativos, e
além disso, sua caridosa companheira, Maria Isabel, não
gostava de ver seus escravos castigados pelos feitores.
Comendador Joaquim José de Souza Breves. Foto IHGB.
Amava acima de tudo a gleba.
Sob as ordens desse homem extraordinário, os cafezais eram plantados pelos vales, colinas
e encostas de suas inúmeras fazendas, algumas herdadas, outras adquiridas. Desflorestar,
preparar a terra e plantar era primordial em sua vida.
Suas fazendas se estendiam desde Mangaratiba, no litoral, passando por São João Marcos,
Rio Claro, Piraí, Passa Três até o Vale do Paraíba. Alguns historiadores contabilizam mais
de 40 fazendas, chegando a 60, embora seja um número controverso.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
A fazenda de São Joaquim do Grama, em Rio Claro, era a sede das inúmeras propriedades
agrícolas que lhe pertenciam e o solar preferido da família. Cercada de todo o conforto,
incontáveis servos, vários tipos de plantações, gado e casario. A casa-grande edificada em
linguagem colonial possuía móveis raros, trabalhos em talha, porcelanas caras, louças inglesas, pratarias, e tudo o que trouxesse conforto para seus habitantes. Os costumes, hábitos e
educação eram palacianos. Era considerada como centro político dos mais movimentados,
por onde passavam políticos, nobres e ricaços. E nas festas que davam no solar, os convites
eram disputadíssimos tanto na corte quanto na província do Rio de Janeiro.
Fazenda São Joaquim do Grama em Rio Claro.
O Comendador Joaquim Breves, em 1860, colheu 205.000 arrobas de café, correspondendo a
1,45% da safra nacional que foi de 14.125.785 arrobas, segundo Agripino Griecco.2 Foi o maior
produtor de café de todo o Império, passando então a ser conhecido como “O Rei do Café”.
Mas para escoamento de toda essa demanda, tanto do comendador Breves quanto de outros
grandes proprietários da região (inclusive seu irmão José Joaquim de Souza Breves, proprietário
da famosa fazenda Pinheiro em Arrozal, atualmente Pinheiral no RJ) era necessária uma via em
boas condições para o transporte desse produto e que possibilitasse o acesso ao litoral, daí a
escolha do trecho que ligava São João Marcos ao porto de Mangaratiba.
O Governo da Província então autorizou a conclusão dessa via rudimentar, denominada Estrada
Imperial de Mangaratiba, que ao final foi custeada, em parte, pelo Comendador Joaquim Breves.
Mangaratiba, antiga povoação de índios, terra das begônias, logo se tornaria um importante
porto na exportação do café e importador de escravos. Por conveniência o ponto de embarque
não era na enseada da Vila (Mangaratiba), mas em um lugar um pouco mais acima, no Saco
de Mangaratiba, às margens do rio do Saco, onde se estabeleceu o centro comercial da Vila.
2
Agripino Griecco: crítico literário e ensaísta do Brasil.
181
Possível ruína de um trapiche, à beira da antiga estrada Imperial.
Arquivo autor.
Sacas e sacas de café, conduzidas pela estrada
Imperial, eram armazenadas em trapiches3 até
serem transportadas para os navios do Comendador Breves. Todo o abastecimento regional de todos os gêneros necessários para
aquela povoação se fazia pelo Saco de Mangaratiba, onde os navios que vinham buscar o
café traziam mercadorias para o comércio local. Durante anos foi a manifestação eloquente da expansão da região cafeeira.
Ruínas de um possível teatro. Arquivo autor.
Ruína de um possível trapiche para armazenamento de café.
Arquivo autor.
Isto rendia uma enorme prosperidade àquela região. Havia opulência e luxo no Saco,
onde os fazendeiros ficavam na época dos negócios. Havia hotéis de razoável conforto,
casas comerciais, grandes armazéns, ou seja, todos os elementos necessários para a movimentação do lugar. Tinha até um teatro onde João Caetano se apresentou.
O serviço marítimo, tanto o comércio de café quanto o comércio negreiro, era feito por navios do Comendador – o vapor Marambaia e o navio a vela Emiliana. Suas lavouras exigiam
sempre um maior número de mão de obra barata cujo custo e manutenção barateavam a
produção, daí a motivação do seu envolvimento com o tráfico de escravos. Foi proprietário
de mais de 6.000 escravos.
A ilha de Marambaia era o ponto estratégico, o pulmão de sua grandeza latifundiária. A prosperidade da ilha data da sua aquisição pelo Comendador. Lá se plantavam café, cereais, milho, feijão, cana-de-açúcar, mandioca e criava-se gado. Havia senzalas, pomares e plantas exóticas. Mas
acima de tudo era o ponto estratégico para as comunicações com os navios negreiros ilegais.4
Aí desembarcavam os negros contrabandeados da África; eram então tratados e alimentados para que servissem de mão de obra forte para o trabalho nas fazendas. As
sobras de escravos eram depois comercializadas. Apesar da proibição, essa atividade
prosseguiu impunemente na região sul fluminense, revelando o quanto o Comendador
se colocava acima da lei.
3
4
Trapiches: Armazéns onde se guardam mercadorias para embarque.
Em 1850 o tráfico negreiro para o Brasil foi proibido (Lei Euzébio de Queiróz).
182
História e Geografia do Vale do Paraíba
Poderoso, fazia render aos cofres do Império vultosas somas provenientes de tributos sobre o café, concedia empréstimos financeiros à Coroa e sua preponderância nos meios
agrícolas e financeiros propiciaram-lhe popularidade em todo o país.
Joaquim Breves superou fortemente a queda de preços que acompanhava o câmbio a partir
de 1874, que atingiu seu índice mais baixo em 1881. Em 1882, melhorou a situação cafeeira, embora os barões do café tenham sofrido enormes prejuízos por não conseguirem
competir com poderosas organizações estrangeiras. A tudo isso Souza Breves conseguiu
vencer, menos a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que trouxe a abolição empobrecedora.
Até os dias próximos a assinatura da lei, o Comendador comprava escravos por não acreditar que o governo teria coragem de tal atitude.
O senhor feudal de inúmeras fazendas morreu em 1889, ameaçado por todos os lados,
pela ruína total, ocasionada pelo êxodo dos que cultivavam a terra. Nessa região sobre
a qual exercia influência ímpar, outrora tão rica, fervilhante e movimentada, só restaram
abandono e desolação.
A abolição da escravidão encerrou a história do café fluminense e de seu grande senhor
Joaquim de Souza Breves, o “Rei do Café”.
Referências Bibliográficas
BREVES, Amando de Moraes. São João Marcos. Rio de Janeiro: 1966.
QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. Barões do Café. Ed. Atual. 2005.
TAUNAY, Affonso E. História do Café no Brasil. Rio de Janeiro: 1939. Tomos VI e VIII.
O CAFÉ– No 2º Centenário de sua Introdução no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento
Nacional do Café VI, 1934.
Site:http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=1881&cat=Teses_
Monologos&vinda=S.
Site: http://www.brevescafe.xpg.com.br/it02.htm.
183
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Capítulo 4
Gênero e Grupos Sociais
185
186
História e Geografia do Vale do Paraíba
Uma Mulher Inatual
Neusa Fernandes*
No período áureo da história vassourense, em meio a muita riqueza, nasceu, em 15 de abril
de 1850, a bela Eufrásia Teixeira Leite. Batizada na Matriz de Nossa Senhora da Conceição,
em 3 de junho do mesmo ano, Eufrásia teve como padrinhos o comendador Francisco José
Teixeira Leite e madrinha d. Mariana Correa e Castro.
Viveu sua infância e adolescência morando na bela residência senhorial, conhecida como
a Casa da Hera. Dos cômodos da Casa destaque para o salão de música, onde eram realizados concorridos saraus, frequentados por muitos artistas, poetas e intelectuais, como:
Sílvio Romero, Raimundo Correia, Raul Pompeia, Alcindo Guanabara, Lúcio Mendonça,
Olavo Bilac, Coelho Neto, Alberto de Oliveira, Escragnolle Taunay e Joaquim Nabuco.
Este, como narrou o escritor José Lins do Rego, “passeava a sua elegância londrina pelos
quatro cantos da cidade. Amou em Vassouras”.1
Em 1844, o escritor Joaquim Manuel de Macedo, no seu romance A Moreninha, escreveu
suas impressões a respeito de um sarau:
“Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo. Em um sarau
todo mundo tem o que fazer; o diplomata ajusta, com um copo de champagne na
mão, os mais intrincados negócios; todos murmuram, e não há quem deixe de ser
murmurado: o velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço
goza todos os regalos de sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu;
estão no seu elemento; aqui uma cantando suave catarina, eleva-se vaidosa nas asas
dos aplausos, por entre os quais surge às vezes um bravíssimo inopinado, que solta
lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do écarté mesmo na
ocasião em que a moça se espicha completamente desafinando um sustenido; daí
a pouco vão outras, pelos braços de seus pares, se deslizando pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da Guarda
Nacional, ao mesmo tempo, que conversam sempre sobre objetos inocentes, que
movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha vovó,
que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que veio para o chá, e que ela leva aos
pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um ataviado dandy, que dirige mil
finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na sinhá que senta-se ao lado.
Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca; porque para alguns é regra
durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos”.2
*
1
2
Pós-doutora. Sócia Fundadora e Benemérita do IHGV.
REGO, José Lins do. Gordos e Magros. Rio de Janeiro: CEB, 1942, p. 226.
MACEDO, Joaquim Manoel de. A Moreninha. Rio de Janeiro: L & PM, 2010, p. 118.
187
Fonte: Catálogo da Casa da Hera. Rio de Janeiro: Governo Federal/Ministério da Cultura/IPHAN/6ª Coordenação Regional, 1990, p.3.
O traje usado no sarau era a rigor. Senhoras de longo com cauda, e senhores de smoking.
As cores variavam entre o preto, rosa-claro, branco e verde-água. As damas preferiam tons
suaves e completavam o traje com joias de rainhas, de rubis, pérolas e brilhantes, caprichosamente confeccionadas pelos joalheiros João Joaquim Calhois e José Calazãs. Usavam
como proteção, xales e capas, que eram retirados à entrada. Completavam o luxo dos trajes,
os braceletes, adereços de brilhantes, pentes de tartaruga, marfim e madrepérola e os mais
ricos leques: de plumas, de marfim, de sândalo, de tartaruga.
A partir de 1864, apareceram na cidade as primeiras oficinas de modistas, como o de Madame Sisson, que contava, inclusive, com a colaboração de costureiras francesas e as damas
passaram a usar trajes mais requintados confeccionados pela citada Oficina. Outro atelier
surgiu, o de Madame Masson, que ditava a moda, usando rendas da Inglaterra, brocados,
veludos e sedas de Lion, na confecção da indumentária feminina.
Vale ressaltar que, naquele momento histórico, o sarau era o encontro social de elite, o mais
afamado. Em geral, começavam às 10 horas da noite e terminavam pelas voltas da 1 ou 2
horas da madrugada. Naturalmente o acontecimento dinamizava os donos da casa que deveriam dar atenção a todos os convidados. Serviam-se doces e salgados, com bebidas finas,
água, licores, e vinho.
Nos saraus vassourenses, brilhava Eufrásia Teixeira Leite, esbelta, com porte de rainha,
sobrancelhas marcantes, cabelos curtos muito negros, que não era comum na época. Já
demonstrando ser uma mulher contemporânea do futuro, usava belos trajes que fugiam do
convencional, vestidos elegantes, criados e confeccionados pelos mais renomados estilistas
franceses. Muitos traziam a assinatura de mestres da alta-costura, como Jacques Doucet,
Francis et Co. e Felix Brevete, Rouff.
188
História e Geografia do Vale do Paraíba
Fonte: Catálogo da Casa da Hera. Rio de Janeiro: Governo Federal/Ministério
da Cultura/IPHAN/6ª Coordenação Regional, 1990, p.3.
Eufrásia Teixeira Leite recebeu uma cuidadosa educação aristocrática, estudando as primeiras letras na
escola de moças de Madame Grivet, localizada na
rua do Comércio, atual Sebastião Lacerda. Embora
vivesse em um época difícil para a mulher, Eufrásia,
desde criança, demonstrou uma forte personalidade,
que transpareceu na sua letra firme, observada no
seu Caderno de Caligrafia. 3
A bela vassourense perdeu os pais muito cedo. Em 1871, morreu sua mãe e, no ano
seguinte, o seu pai. Ela e a irmã Francisca Bernardina Teixeira Leite herdaram grande
fortuna, o correspondente a 767:937$876 réis (setecentos e sessenta e sete contos, novecentos e trinta e sete mil, oitocentos e setenta e seis réis), o que correspondia, na época,
a 5% das exportações brasileiras.
Essa fortuna foi significativamente aumentada dois anos depois, quando faleceu sua avó,
a Baronesa do Campo Belo, Eufrásia Corrêa e Castro, riquíssima latifundiária, que possuía
cerca de 351 escravos. Em decorrência desse fato, as irmãs receberam outra herança, no
valor de 106:848$886 (cento e seis contos, oitocentos e quarenta e oito mil e oitocentos e
oitenta e seis réis), em forma de vendáveis títulos da Dívida Pública do Empréstimo Nacional de 1868, ações do Banco do Brasil, 12 escravos, títulos de crédito de pessoas, depósitos
bancários, débitos bancários, uma casa no Rio de Janeiro e a grande propriedade em Vassouras, onde Eufrásia viveu com os pais.
Apud RANGEL, Lília Maria Gilson de Oliveira. Eufrásia Teixeira Leite: entre a fantasia e a realidade. 2001. v.II. Dissertação
(Mestrado em História). USS, Vassouras, 2001,v. II.
3
189
Jovens, solteiras e ricas, as duas irmãs venderam
a casa no Rio de Janeiro, ações e títulos, cobraram créditos, alforriaram os escravos e partiram
para Paris, no ano de 1873. Antes, anunciaram
a decisão para o tio, o Barão de Vassouras, que
nunca aceitou aquele rompimento com as normas
tradicionais das duas sobrinhas, criadas em uma
família patriarcal.
No casarão de Vassouras, deixaram dois empregados, Herculano e Francisco Vicente, como caseiros, para tratar da conservação.
Um conjunto de razões explica a ida de Eufrásia
Fonte: Catálogo da Casa da Hera. Rio de Janeiro: Governo
para a Europa, aos 23 anos de idade. Inteligente,
Federal/Ministério da Cultura/IPHAN/6ª Coordenação
intuiu
que ficando na sua cidade poderia perder
Regional, 1990, p.3.
sua fortuna, uma vez que já vivenciara a crise do
café e vislumbrava o fortalecimento das novas ideias abolicionistas e republicanas.Por outro lado, reconheceu que somente na Europa poderia movimentar suas ações e investimentos com a sabedoria que seu pai lhe transmitira.Outra forte razão foi a divergência dos
parentes, o desejo das duas irmãs de se divorciarem da família castradora e interesseira.
Essa viagem definiu sua vida amorosa para sempre. Nela, reencontrou Joaquim Nabuco, o
grande amor de sua vida.
Eufrásia Teixeira Leite conheceu Joaquim Nabuco quando era ainda adolescente, durante
a regata de escaleres da Marinha Brasileira e de navios estrangeiros visitantes, realizada na
Enseada de Botafogo, lugar frequentado pela alta sociedade carioca e pela família real.
Desse primeiro encontro, em diante, Eufrásia e Nabuco trocaram uma correspondência
que durou dois anos. Oito anos depois, reencontraram-se num recital de poesia no Rio de
Janeiro. Nessa ocasião, Eufrásia já era uma jovem bonita e elegante.
Em 1873, reencontraram-se a bordo do navio Chimborazo, rumo à Europa. Ela, para viver,
e ele a passeio. Apaixonaram-se. Ao desembarcarem em Bordéus, estavam decididos a se casarem na Europa. Nabuco escreveu ao pai, solicitando-lhe que tratasse da documentação necessária ao casório, em sigilo. Por ser ele um jovem boêmio, sem profissão definida, temia que
o achassem um caçador de dotes e o veto do conservador Barão de Vassouras ao casamento
da sobrinha. Ainda em 23 de dezembro de 1873, Joaquim Nabuco escreveu ao pai, revelando
a sua ansiedade pelo casório.
190
História e Geografia do Vale do Paraíba
Joaquim Nabuco. Arquivo autor
O senador Nabuco de Araújo aprovou o casamento e lhe prometeu o sigilo solicitado, em carta datada de 18 de fevereiro de 1874. Mas quando a papelada chegou, o casal já havia desfeito a relação.
Como analisou o historiador Luiz Vianna Filho, “era uma destas paixões súbitas tão comuns nos tímidos incapazes de esperar pelo tempo”.4
O rompimento desagradou ao senador Nabuco de Araújo que, em carta enérgica, repreendeu a leviandade do filho. Quincas continuou a viagem, entregando-se a novos amores.
Duas pessoas de personalidades tão diferentes pretendiam se unir. Ela, uma jovem rica,
voluntariosa e independente. Ele vivia apertado e, apesar de gostar de viajar, não conseguia
viver no exterior. De comum, somente o amor ao luxo, a vaidade, a elegância, o gosto de
ambos de se vestirem bem.
Em 1º de janeiro de 1874, um encontro casual se deu à porta do Teatro Francês. Após
o espetáculo, Eufrásia recebeu Nabuco para jantar. Dois meses depois, estavam juntos
em um Hotel de Roma. Ao final desse mês de março, o casal passeava na Vila Albany,
aproveitando os belos jardins, juntamente com Francisca, a irmã de Eufrásia. Depois do
lanche no Coffee House, apreciaram muitas obras de arte, registradas por ele em seu Diário:
coleção de mármores antigos, Relevo de Antinoo, o Parnaso de Miguel Mengs. Visitaram
várias igrejas, terminando na Gesù, onde se encantaram com o altar de Santo Inácio e
os globos de lápis-lázuli.
4
VIANNA FILHO, Luiz. A Vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Martins/Brasília: INL, 1973, p. 56.
191
No mês seguinte, o romance viveu seu clímax em Veneza: passeios de gôndola, jantar no
famoso Hotel Danielli. Em San Giorgio, desentenderam-se. O motivo foi a sugestão de
Eufrásia para que, após o casamento, ficassem morando na Europa. Pazes feitas, namoraram à noite, em passeios de gôndola e apreciaram um concerto no Rialto.
No dia seguinte, viajaram de trem para o Lago de Como, na Suíça. Sós no vagão, puderam vivenciar toda a plenitude do amor. Nabuco, encantado, registrou no seu diário:
“Como ela estava boa, adorável nesse dia!”5 Ele a cumulava com seus versos. Chegando
na hora do almoço, apreciaram as montanhas, o lago de águas muito verdes e foram
jantar em Milão. Para ele, foi um dia feliz. Vale observar que Nabuco fez outras observações, em seu Diário, a respeito desse dia, mas foram rasuradas. Em 24 de maio, seguiram
para Genebra, ambos com anel de noivado nos dedos. A família, inteirada dos acontecimentos, apressava a documentação do casamento.
No final de maio, Nabuco já estava em Paris, outra vez. Passou o dia inteiro com Eufrásia: almoço no Véron, passeio no parque Bois de Bologne. À noite, seguiram para jantar
e hospedarem-se em Versailles, no Hotel Vatel.
Necessitando voltar ao Rio de Janeiro, Nabuco propôs que Eufrásia o acompanhasse.
Com a recusa da noiva, nos dias 6 e 7 de junho, no Hotel de Louvre, em Paris, foi, mais
uma vez desfeito o casamento e logo recomposto.
Outro ponto alto desse romance foi no ano de 1885, quando Eufrásia desembarcou
no Rio de Janeiro e, com Nabuco, hospedou-se no chique Hotel White, nas Paineiras,
distante dos olhares curiosos. Ali viveram intensamente o amor, com direito a retrato e
dedicatória da noiva: “Eu te amo de todo o meu coração.”
5
MELLO, Evaldo. Cravo de. Joaquim Nabuco. Diários. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 1960, p. 62.
192
História e Geografia do Vale do Paraíba
Transcrição:
“Eu te amo de todo o meu coração”
Eufrásia
8 de dezembro de 1885.
11 horas da manhã
Tijuca
Fonte: Original acervo da Fundação Joaquim Nabuco.
Agora, prontos para assumir o casamento, aos poucos tentaram escancarar a relação, sempre mantida sigilosamente. Para tanto, nos passeios, faziam-se acompanhar dos amigos Artur Carvalho Moreira e o Barão de Estrela, ambos senhores mais velhos, o que, supunham,
daria mais respeitabilidade ao romance.
A 10 de dezembro, Nabuco foi levar Eufrásia à Estação D. Pedro II para despedirem-se,
uma vez que ele deveria apresentar-se à Câmara de Pernambuco, para uma nova eleição, e
ela seguiu para Petrópolis, para encontrá-lo, depois da eleição. Mesmo sabedor que Eufrásia o apoiara, Nabuco temia a pressão que sua noiva sofreria, mediante a sua candidatura de
clara defesa do abolicionismo e ataque ao escravismo fluminense.
Nesse ínterim, Nabuco foi surpreendido com a chegada de Eufrásia a Recife, a caminho da Europa. Mal puderam falar, devido ao sigilo do romance e por estarem cercados por muitas pessoas.
Nabuco perdeu a eleição. E creditou a derrota à noiva que o abandonara e não fora solidária, em hora decisiva.
Ao chegar em Paris, Eufrásia escreveu-lhe, desejando vitória e confessando-lhe que não
queria ser a causa de sua demora na chegada à Câmara e consequente derrota.
Afinal, a sua irmã Chiquinha conseguira carregar Eufrásia de volta, como ela própria,
arrependida, admitiu na carta que lhe enviou em janeiro de 1886,: “ é verdade que ela fez
todo o possível para separar-nos e para trazer-me para aqui. (...) Como se engana pensando que, enquanto sofre, eu estou indiferente (...) Que se estiver triste, tenho a Ópera,
o País, o mundo para me consolar e distrair; mas não fui a nenhum desses lugares” (...)
Tenho mil saudades e nem penso em outra coisa senão na Tijuca e em tudo o que passou
no Hotel dos Estrangeiros.”6
Na tentativa de reconquistar Nabuco, narrou seu rompimento com a irmã, causa da separação, e colocava seu arrependimento de ter deixado o Brasil. Não é despropósito reconhecer
que Nabuco creditou a derrota à noiva, embora ela ainda procurasse desviá-lo da política,
em sucessivas cartas que enviava, mesmo sem esperar a resposta.
A fuga de Eufrásia golpeara o amor próprio de Nabuco que decidiu só encontrar a noiva
quando ela estivesse pronta para se casar com ele. E Eufrásia ganhou tempo. Afinal, o alertara que era mais importante para ela o amor que o casamento.
6
Carta de Eufrásia Teixeira Leit a Nabuco. Original Fundação Joaquim Nabuco.
193
Nabuco esperou mais três meses em silêncio. Entrou em depressão, fechado em casa, “sofrendo a ausência de certas pessoas”, em total desânimo, sem gosto para nada. Nesse isolamento, decidiu e, em 4 de abril de 1886, escreveu sua derradeira carta de amor a Eufrásia,
rompendo tudo.
Vale lembrar que a essa altura, o relacionamento sofrera muito desgaste, com tantas desestabilizações. Já passara a fase da paixão disposta a qualquer loucura. Diferentemente
de Eufrásia, Nabuco sentia-se maduro para um casamento e ela nada disposta a deixar a
independência conquistada. Apesar do desfecho, em 6 de abril de 1887, Nabuco chegou a
Paris, hospedando-se num hotel bem abaixo do padrão costumeiro e se sentiu isolado no
mesquinho quarto. Recebera um bilhete de Eufrásia e resistiu por quatro dias. No quinto,
capitulou. Foi jantar em sua residência e, novamente, as pazes foram feitas. Mandou-lhe
flores, visitaram o Louvre. Mas o casamento não se vislumbrava. Nabuco cansou-se e partiu para Londres.
Eufrásia continuou em Paris, onde viveu trinta e oito anos. Com uma esmerada educação,
facilmente integrou-se na sociedade francesa, requintou-se. Sua presença era constante nos
salões de Paris, exibindo modelos do famoso estilista Charles Frederic Whort, seu preferido, que aos 20 anos de idade, trocou Londres por Paris. Nesta cidade chegou em 1845.
Inicialmente trabalhou na Casa Gegelin, onde criou seus primeiros modelos, inovando com
sucesso o corte das roupas, até montar seu próprio atelier. Em 1858, introduzido na Corte
do II Império pela Princesa de Metternick, desfilou sua coleção no Palácio das Tulherias,
dando início, a partir dessa data, ao que se convencionou chamar de “Couture” ou “Haute
Couture”, para designar as grandes criações da moda.
Mestre incontestável da moda parisiense até a sua morte, em 1897, suas criações suntuosas
passaram a ser símbolo da elegância de uma época e célebres em toda a Europa e América,
contribuindo fundamentalmente para que Paris se transformasse no centro mundial da
moda. Esse estilista foi, durante muito tempo, responsável pela elegância de Eufrásia Teixeira Leite que sabia completar a indumentária, usando ricas joias presas nos vestidos, nas
bolsas ou nos cabelos.
Poucas vezes Eufrásia voltou ao Brasil ou Vassouras. Veio para o Rio de Janeiro, já doente,
direto para um apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde morou, acompanhada de muitos empregados. Depois, residiu em um edifício da Ladeira da Glória, 163, onde
faleceu, no dia 13 de setembro de 1930, solteira e milionária, com oitenta anos de idade.
Foi enterrada no Rio de Janeiro. Seus ossos foram, posteriormente, exumados e levados
para o mausoléu de seu avô, o Barão de Itambé, em Vassouras, sua cidade natal e da qual
ela é a grande benemérita.
A cidade de Vassouras deve quase tudo a Eufrásia Teixeira Leite que doou os seus pertences e grande parte de sua fortuna para a sua cidade.
O romance Eufrásia e Nabuco
Eufrásia viveu com Nabuco um amor tempestuoso, uma paixão recíproca e tórrida, na Europa e no Brasil. Entre muitas brigas e separações, encontros e desencontros, os dois mantiveram um longo relacionamento, sem nunca consumar o matrimônio, tantas vezes marcado.
194
História e Geografia do Vale do Paraíba
A maior parte do romance foi vivida na Europa. A riqueza, multiplicada pela lógica e espírito
comercial de Eufrásia, ofendiam a Nabuco e agredia seu comportamento machista, tão comum no Brasil do século XIX.
Entre farpas e beijos, o romance de Eufrásia Teixeira Leite e Joaquim Nabuco durou quase
14 anos. Durante esse tempo, Nabuco a pediu três vezes em casamento. Eufrásia sempre
adiou. Vez por outra afirmava só querer viver em Paris. Outras vezes, apelava para as diferenças familiares e outras confessava estar bem assim, alegando que o casamento não era
importante, mas, sim, o amor.
Após o reencontro em Paris, romance já desfeito, Eufrásia e Nabuco não mais se viram.
As famílias os separaram, mas a História os uniu, inseparáveis que são as suas biografias.
Eufrásia Teixeira Leite foi uma mulher muito além do seu tempo. Seu perfil, seu comportamento, sua habilidade com os negócios, o espírito empreendedor da família, seu caso de amor com
Joaquim Nabuco, tudo demonstra que Eufrásia foi uma mulher fora dos padrões da época. Foi
uma mulher avançada para o século XIX. Avançada para os dias de hoje. Uma mulher inatual.
As Cartas
A correspondência de Eufrásia e Nabuco durou quase todo o tempo do romance. Entretanto, para um período longo de namoro, são poucas as cartas existentes. A maioria está
desaparecida. Algumas de Eufrásia para Nabuco, em número de vinte e oito, encontram-se
no acervo da Fundação Joaquim Nabuco. Não se tem notícia fiel das cartas dele para ela.
Somente a do rompimento faz parte também do acervo da Fundação Joaquim Nabuco. Há
diferentes versões para explicar o desaparecimento das cartas enviadas por ele à Eufrásia:
foram incineradas por ordem dela; forraram o caixão no qual foi enterrada, por desejo
expresso dela; e, a mais provável, que, tenham sido destruídas pelo seu testamenteiro, cumprindo seu desejo.
Embora ricas de informações, a correspondência de Eufrásia e Nabuco não registram uma
só causa para explicar o desencontro do casal. A maioria dos biógrafos tende a achar que
Eufrásia não aceitava o casamento, porque cumpria promessa feita ao seu pai. Pouco provável que ela atendesse. Ela já era independente, livre e muito rica. Considerando-se o perfil
de Eufrásia, transparece que nem a família de barões vassourenses poderia impedi-la, se ela
o quisesse, embora fosse alvo da vigilância cruel de sua irmã.
A doutora M. Kittiya Lee, na tese “The Ungrateful an of Correspondence: A Love Affair,” no
trabalho destaca o capítulo, “Um caso e suas cartas de amor,” no qual a autora comenta que
o relacionamento dos dois “foi um caso volátil, mas sério e que as relações, como se pode ver
em suas cartas, foram marcadas por uma sucessão de entendimentos e desentendimentos”.
A pesquisadora citada faz apenas uma constatação: Não encontrou uma explicação para
a afirmativa. Outra muito aceita é de que ela insistia em morar em Paris, acostumada que
estava ao progresso e bem-estar que a vida na capital francesa lhe proporcionava, além de
ter na cidade os seus interesses financeiros. Nabuco não podia aceitar em virtude de sua
195
atividade política no Brasil. Outra razão aceitável também é que uma mulher de negócios, que
sabia ganhar dinheiro e fizera fortuna com seu trabalho de investidora, era um ser livre, independente financeiramente e não desejaria ver sua fortuna usada em campanhas abolicionistas,
afora ser Nabuco conhecido perdulário, vivendo sempre endividado, dependente de agiotas,
gastando muito mais do que recebia. Certamente também, era ele um tipo conquistador, que
não resistia a presença de belas mulheres. Além de tudo, Nabuco tinha ambições políticas no
Brasil. Acrescentamos a essas explicações as inúmeras intrigas que percorriam as sociedades e
as maledicências publicadas. Em 14 de julho de 1886, publicou o Jornal do Commercio:
“... esse Narciso desventurado, que vive a namorar-se de si mesmo (...) tem no cérebro projeto de casamento rico.”
A forte razão para o desfecho, a grande causa real da separação foi o problema ideológico.
Há que se considerar a culpa que sentia Nabuco, como abolicionista, amar uma latifundiária. Em uma das várias discussões que tivera com Eufrásia, esse fato foi lembrado por ele,
ao expor-lhe “a impossibilidade de, como líder abolicionista, casar-se com a herdeira de
uma importante fortuna territorial do Vale do Paraíba”. Ao que Eufrásia retrucou: “Ninguém acreditaria que não quisesse casar comigo”.7
A resposta foi contundente, mas evasiva, ao mesmo tempo, porque não se referia ao cerne da questão. Em termos políticos e econômicos, em que pesem as relações de amor e
dependência física entre eles, o conflito, se não foi uma constante, esteve sempre presente, culminando com várias desavenças e rompimentos. Enfim, as diferenças ideológicas
sempre pesaram. Ela envergonhava-se da relação, perante seus amigos conservadores, que
criticavam a posição ideológica de Nabuco – a ponto de pedir segredo na correspondência.
Em cartas enviadas a ele, Eufrásia, várias vezes, referiu-se à diferença ideológica entre eles.
A rivalidade política entre as duas famílias era antiga e profunda. O primeiro confronto
aconteceu no ano de 1854, quando o pai de Joaquim Nabuco, Nabuco de Araújo, como
ministro da Justiça, tentara implementar uma reforma judiciária, o que foi obstaculizado
pela família Teixeira Leite, assinante do Manifesto de Vassouras, um movimento de proprietários que se colocara em oposição ao projeto.
Com o tema da abolição discutido em todas as partes, ficou mais visível as diferenças
políticas da família. Muito difícil um amor resistir a um conflito ideológico dessa magnitude. Amar pressupõe admirar e ter afinidades. Eufrásia e Nabuco, ao contrário, sentiam vergonha das posições ideológicas um do outro. Embora ela tivesse sido uma das
primeiras damas vassourenses a libertar os seus escravos, este fato deve ser creditado a
uma posição paternalista, como uma das muitas sinhazinhas que tratavam bem seus empregados. Nada ideológico. Afinal, ela pertencia a uma família latifundiária, escravocrata
e capitalista. Ela mesma era uma legítima representante do capitalismo efervescente. Ele,
o maior defensor da abolição da escravatura no Brasil, era um ideólogo do socialismo,
defensor das reformas sociais de base.
Essa realidade foi o fantasma que articulou a separação.
7
MELLO, Evaldo Cabral de. Joaquim Nabuco. Diários. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 1960, p. 252.
196
História e Geografia do Vale do Paraíba
Fontes Documentais
Eufrásia Teixeira Leite – Inventário. 1930. Vols.1, 2 e 3. CDH. Vassouras, USS.
28 Cartas de Eufrásia Teixeira Leite a Joaquim Nabuco e I Carta de Joaquim Nabuco a
Eufrásia Teixeira Leite- acervo da Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
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VIANA FILHO, Luiz. A Vida de Joaquim Nabuco. 2ª ed. Rio de Janeiro: Martins; Brasília: INL, 1973.
197
198
História e Geografia do Vale do Paraíba
Parentela, Riqueza e Poder; Três Gerações de Mulheres
Miridan Britto Falci*
Desde 2002 temos realizado pesquisas e temos produzido trabalhos sobre a região de Vassouras, rico município de café da Província do Rio de Janeiro, que se caracterizou pela
presença de uma sociedade extremamente rica e escravocrata, no século XIX.
Algumas vezes nos debruçamos sobre mulheres importantes (caso de Eufrásia Teixeira
Leite de quem estudamos sua vida, suas atividades financeiras, sua biblioteca e seus amores
com Joaquim Nabuco)1 em outras sobre personagens masculinos, destacando a vida de
políticos ilustrados, o poder e a cultura no sertão fluminense.2
Pensamos, no entanto, que, para compor o quadro de entendimento daquela sociedade
elitista teríamos de elaborar um longo projeto sobre famílias de elite, parentela e poder.
Aprovada em julho de 2004 pela Universidade Severino Sombra3 essa história que estamos
tentando elaborar da vida privada em fazendas fica na interseção das tensões entre o ser
senhor/senhora e o ser escravo/ e tenta avaliar as ações com que determinados senhores e
mulheres procuraram dar sentido aos seus anseios, ampliando seus pertencimentos à coletividade e os de autonomia individual.
Trazemos, assim, neste trabalho, retalhos da vida de algumas mulheres que ali viveram.
Utilizando principalmente documentação do Centro de Documentação Histórica de Vassouras faz parte do projeto de pesquisa citado.
Nossas indagações nesse projeto seriam: como teria sido o cotidiano de baronesas do café;
que percepções de vida puderam ter; como a sociedade lhes observou e reteve seus nomes;
como se relacionaram com sua enorme escravaria; que aspectos marcaram sua vida material; como se manifestou sua vida espiritual e, finalmente, como comandaram suas famílias.
Da enorme documentação presente em Vassouras destacamos três mulheres que se sucedem em gerações: Mariana das Neves, a matriarca inicial do século XVIII, Eufrásia Correia
e Castro, sua neta, baronesa do Campo Belo, do século XIX e Eufrásia Teixeira Leite, neta
da anterior, a noiva de Joaquim Nabuco e financista que nasceu no século XIX e morreu
no século XX.
Temos assim uma personagem mulher que, embora nascida em 1850, morreu já no século
XX, a sua avó, que viveu no século XIX e a avó de sua avó, personagens que mostram a
inserção das mulheres no campo mais amplo da sociedade. Vivendo as três mulheres no
mesmo espaço (capitania, Província e estado do Rio de Janeiro) elas são, ao mesmo tempo,
* Pós-Doutora. Sócia Efetiva do IHGV.
1
Ver especialmente: FALCI, Miridan & MELO, Hildete. Riqueza e emancipação: Eufrásia Teixeira Leite: Uma análise de
gênero. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, n. 29, 2002, p. 165-185; MELO Hildete & FALCI. Miridan. Eufrásia
e Nabuco: uma história de desencontros amorosos. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro: IHGB, ano
165, n. 423, 2004, pp. 61-76.
2
FALCI, Miridan. Personagens, Poder e Cultura no Sertão Fluminense no século XIX. Anais da XXIV Reunião da Sociedade Brasileira de
Pesquisa Histórica (SBPH), Curitiba, 2004, pp. 197-201.
3
Projeto Famílias de Elite: parentela, riqueza e poder. Vassouras, século XIX.
199
objeto e agente da História. Reconstituir suas vidas e enquadrá-las no processo histórico
dessa região significa procurar compreender a transformação social das mulheres e tentar
mostrar a presença das mesmas em vários tipos de documentação.
Se para a avó da avó (a Mariana do século XVIII) o conhecimento está limitado à vida
sócio-econômica de seus maridos e a algumas lendas transmitidas oralmente sobre a mesma, para a sua neta do século XIX (a Eufrásia Correa e Castro) já dispomos de grandes
descrições de bens materiais em inventário (casas, fazendas, sítios, cafezais, roupas, louças,
mobílias e escravos) e para a neta da neta dispomos de 30 volumes de inventário, um longo
testamento, a presença de sua casa de moradia (a Casa da Hera hoje Museu do IPHAN em
Vassouras), de suas cartas, de seus livros, roupas, notícias em jornais e até processos judiciais contra os atos que manifestou em testamento.
Assim o conhecimento histórico vem nos ajudar na reflexão que desejamos fazer e se amplia na mesma razão da importância social dessas mulheres.
O Contexto Regional
Estamos na segunda metade do século XVIII. As lavras de ouro se esgotaram. Ricos mineiros
e pobres agricultores começaram a descer de Minas em direção ao Caminho Novo, aberto há
60 anos pelo bandeirante Garcia Paes. Os lavradores pobres arrancharam-se, fizeram roças,
cultivaram milho, feijão, mandioca e criaram porcos para vender toucinho aos tropeiros e
viajantes que por ali passavam. Aqueles mais ricos, donos de extensas sesmarias, construíram
as primeiras casas de fazenda, ainda de taipa, derrubaram a mata com descendentes de índios
e alguns escravos e, em breve iniciariam a plantação de cana-de-açúcar.
Até 1750, quando foi criada a freguesia de Sacra Família do Caminho Novo do Tinguá,
duas freguesias existiam na região. A primeira, a freguesia de S. Pedro, São Paulo, N. Sra.
da Conceição da Paraíba, fora criada em 1720, e seu arraial se encontrava no encontro do
rio Paraíba com o Paraibuna, passagem descoberta por Garcia Paes e onde o bandeirante
edificara sua fazenda de engenho de açúcar e ganhara 12 sesmarias de terra. A segunda
freguesia, a de Paty do Alferes, criada em 1739 abrangia extensa área mais ao sul incluindo
a região onde hoje está a cidade de mesmo nome.
Mas nesse final do século XVIII, como falamos acima, muitos aventureiros, desiludidos da
mineração, tentaram a sorte como agricultores, solicitando sesmarias a el-rei junto ao Caminho Novo de Garcia Paes e é assim que José de Pontes França, em 1764, filho de um francês
de nome Dupont que viera ao Brasil em busca de ouro e se aventurara nas Gerais, ficou estabelecido com roça de mantimentos na localidade de Roça do Alferes (hoje Paty do Alferes).
José França pede em casamento a jovem de 14 anos Mariana das Neves, filha de outro
agricultor João Correa Tavares também estabelecido na mesma freguesia na capitania do
Rio de Janeiro. São os agricultores desse final de século que vão sedimentar suas famílias,
ampliar os povoados, abrir estradas e dar um sentido novo ao povoamento da região chamada Sertões de Leste.4
4 Os Sertões de Leste abrangiam extensa área de Minas Gerais e norte do Rio de Janeiro. Coberta de matas e de difícil
acesso por ocupar a Serra do Mar, era, até o século XIX, ocupada por tribos indígenas tais como os coroados
200
História e Geografia do Vale do Paraíba
E este espaço se constituirá numa nova fronteira ocupacional, de formação de sociabilidades
e geradora de uma nova economia.
Ali se encontrarão duas frentes de povoamento.
A primeira frente se constituirá com os elementos vindos do Recôncavo da Guanabara, lá na
Baixada, já plena de engenhos de açúcar. São usineiros e também comerciantes de escravos e/
ou vendeiros que sobem a encosta da serra para expansão dos seus negócios levando consigo,
não só o conhecimento da fabricação do açúcar, mas a prática comercial e o conhecimento
das lides financeiras com os “homens de grossa fortuna” estabelecidos na cidade do Rio de
Janeiro. Essa frente se encontrará com a frente povoadora vinda das decadentes minas de
ouro. Famílias se entrecruzarão e casamentos formarão as alianças comerciais.5
E como rota de comércio, de passagem, de surgimento de novas sociabilidades a região
firmará a sua importância.
Mariana constitui a primeira geração de nosso estudo.
José e Mariana moravam no povoado de Montserrat na freguesia de S. Pedro e S.Paulo da
Paraíba onde José montara uma venda e um pouso. Povoado em desenvolvimento, junto à
passagem em balsa pelo rio Paraibuna, conseguiram prosperar graças ao intenso movimento de tropeiros, viajantes, militares e funcionários do governo que aí arranchavam antes de
cruzar em balsa o encachoeirado rio Paraibuna, afluente do Paraíba do Sul.
Segundo a lenda, Mariana ouvira de uma cigana que lhe lera as mãos, que ela teria muitas terras,
muitos filhos e filhas, teria nobres do Reino em sua família e que um rei e hospedaria em sua casa.
José Pontes França, cujo sobrenome lhe fora anexado devido a sua origem, 30 anos mais
velho que sua mulher, morre em 1769, e deixa Mariana viúva, aos 19 anos, com duas filhas
mulheres, a mais velha de nome Ana Esméria e um filho homem, ficando herdeira de umas
poucas braças de terra na Roça do Alferes, alguns escravos e parte da sociedade na venda.
Mas Mariana casa-se, pela segunda vez, em 1774, com o escrivão do Registro do Paraibuna,
Pedro Correa e Castro,6 jovem rico de 28 anos, arrematador do registro de passagem do rio.
A família Correa e Castro tinha suas raízes mais distantes. Eram também mineiros, da cidade de
Mariana, e seus membros se espalham pelas margens do Paraíba desde os finais do século XVIII .
Mariana terá com Pedro Correa e Castro também três filhos, nascendo o mais moço dessa
união, Pedro Correa e Castro – nome do pai, no mesmo ano (1792) em que nascia o seu
primeiro neto, filho da filha mais velha Ana Esméria com o português Cristóvão de Andrade.
Enquanto o segundo marido de Mariana, Pedro Correa e Castro, prospera e compra a
fazenda Santo Antonio próxima ao povoado de Vassouras, o genro de Mariana, Cristóvão
5
Ver a respeito dissertação de mestrado de Ubiratam Cruz Xerém, Mestrado em História da Universidade Severino Sombra, 2005, intitulada Família e sociabilidades Capitania do Rio de Janeiro século XVIII
6
Família Correa e Castro.
201
de Andrade compra a fazenda do Paraibuna, enorme extensão de terra que pertencera a
Garcia Paes e seus descendentes. Morrendo o genro Cristóvão quatro anos depois, coube
ao filho Hilário fundar, na margem fluminense do Paraíba, a fazenda Serraria, atual município de comendador Levy Gasparian, cuja enorme casa da sede estava ainda em pé em 1940.
Assim as terras dos França/Correa e Castro abarcavam espaços onde hoje se encontram
três municípios: Paraíba do Sul, Levy Gasparian e Vassouras. Foi a época em que o café
começou a dominar o vale do Paraíba (primeiras décadas do século XIX) e os fazendeiros
passaram a derrubar florestas pelos morros acima e comprar escravos para plantarem café.
É a época em que o segundo reinado iniciante manterá o seu poder através da doação de
títulos aos ricos plantadores de café da região.
Outras famílias como a dos Werneck, Avelar e Teixeira, esta última vinda de Minas Gerais,
passam também a se estabelecer na região. E começarão a receber títulos de nobreza.
Em 1846 cabe a um membro da irmandade dos Teixeira, Francisco José Teixeira, receber o
título de barão do Itambé. Construirá belo palacete na recente vila de Vassouras e disporá
de enorme cabedal em escravaria.
Em 1852 recebe o título de Barão do Paty um membro da família Lacerda Werneck (Francisco Peixoto de Lacerda Werneck) família que viera da outra frente de povoamento. Os
Werneck, segundo Stanley Stein,7 constituíram uma das maiores concentrações de riqueza
nas mãos.
Era preciso que a família Correa e Castro também corresse para receber títulos. Coube a
Pedro Correa e Castro (o filho de Mariana das Neves) receber em primeiro lugar o título de
Barão do Tinguá e seu irmão Laureano receberá, em 1854, o título de barão do Campo Belo.
A profecia se cumpria, muitas terras e muitos filhos muitos netos tinha Mariana das Neves
França Correa e Castro.
E agora, que tinha muitas terras e muitos haveres, era preciso compor as alianças familiares.
Mariana soube, naqueles ermos tão distantes, perceber a necessidade das alianças que garantissem à família Correa e Castro a manutenção do patrimônio, o poder político e a influência social. Propõe ao seu filho Laureano que se case com sua neta, Eufrásia, filha de Ana
Esméria, ou seja, tio casando-se com a sobrinha.
A história dos arranjos familiares dos Correa e Castro se encontra no livro de uma descendente Correa e Castro, Sonia Sant`Ana, trabalho intitulado Barões e Escravos do Café. Segundo
Sonia, Mariana das Neves, viúva pela segunda vez, que havia comparecido ao casamento da
neta, voltando para casa em companhia dos filhos José, Antonio, Pedro e Laureano Correa e
Castro, que a ajudavam na administração da fazenda desde a morte do pai, teria dito:
-e agora que minha primeira neta casou, está na hora de contratar casamento para
a segunda, a Eufrásia. É de boa prudência casar os filhos com parentes ou amigos;
você, Laureano, já tem idade para casar, a Eufrásia vai completar quinze anos. Estou
pensando em ter minha neta por nora.8
7
8
STEIN, S. Vassouras, um município brasileiro de café. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
SANT´ANA, Sonia. Barões e escravos do Café. Uma história privada do Vale do Paraíba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 38.
202
História e Geografia do Vale do Paraíba
Para manter a propriedade livre de subdivisões entre muitos herdeiros, muitos casamentos
se faziam dentro da mesma família e isso se deu entre todas as famílias importantes da região e do Brasil. Entre os Werneck, entre os Teixeira Leite e entre os Correa e Castro. Fortalecido o núcleo inicial da família os casamentos se passarão a verificar entre as famílias mais
importantes constituindo uma enorme teia de parentela e poder. Na região de Paty, como
nos diz Eduardo Silva,9 os Werneck se ligarão com os Ribeiro de Avelar, com os Pinheiro
de Souza, os Machado da Cunha e os Almeida Ramos.
E, vindos do casamento e mal chegando à enorme fazenda que possuíam no atual município de Vassouras, a de Santo Antonio, um dos rapazes, filho de Mariana, escreveria em
nome da mãe (que não sabia ler nem escrever) pedindo a mão de Eufrásia em casamento.
E assim, em 1824, encontramos Eufrásia com 15 anos morando com sua avó Mariana das
Neves França Correa e Castro.
Essa que será a futura “baronesa do Campo Belo” constituirá a nossa segunda geração de mulheres.
Eufrásia Correa e Castro
Eufrásia casa-se com o tio Laureano na fazenda de Serraria.
Laureano será figura de projeção naquele sertão e terá enorme poder e riqueza, pois conseguirá,
juntamente com os Teixeira Leite, emancipar o povoado de Vassouras, elevando-o a vila em
1833 e se extinguindo a vila de Paty ( pelo texto da mesma lei de emancipação).
Em Paty do Alferes ficavam os Lacerda Werneck e os Avelar. A região de Paty do Alferes ficará
dependendo administrativamente do município de Vassouras ate há cerca de 10 anos atrás.
Laureano foi escolhido entre seus pares como primeiro presidente da Câmara de Vassouras
entre 1833 e 1840.
Laureano tinha de herança uma parte na fazenda Santo Antônio e Eufrásia na Fazenda do
Paraibuna, mas como o café se expandia e estava dando muito lucro era necessário adquirir
mais terras e comprar mais escravos.
Em 1844 Laureano Correa e Castro compra a Fazenda Secretário onde, aos cinquenta e
quatro anos, passa a viver com Eufrásia e os filhos solteiros. Ana Esméria, a mais velha, já
residia numa chácara na vila (a Casa da Hera), pois o marido Joaquim José Teixeira Leite dirigia uma casa de crédito pertencente à família Teixeira Leite (Teixeira Leite & Sobrinhos).
Dez anos mais tarde (1854) Laureano recebe o título de Barão do Campo Belo.
Secretário situava-se à pequena distância da vila de Vassouras, em lugar aprazível, num
patamar de onde se despencava um pequeno rio cujo burburinho era ouvido da casa. Uma
nova sede foi erigida, construção dirigida por um arquiteto da corte, com características que
a diferiam dos casarões tão comuns da época.
9
SILVA, Eduardo. Três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista.
203
Mas a vida não transcorria calma. Naqueles anos a Província do Rio de Janeiro era a
maior produtora de café do Brasil. Somente ela produzia 77% de toda a produção do
vale do Paraíba e a mão de obra escrava era imensa também. Nos municípios de Valença,
Vassouras e Paraíba do Sul a enorme proporção de escravos conduziu a movimentos de
rebelião. Revolta de escravos, muitas fugas, levantes e assassinatos de senhores compunham o cenário daquele vale.
Em 1838 os fazendeiros importantes da região comandaram uma expedição contra os escravos rebelados no quilombo de Manuel Congo, também conhecido como de Santa Catarina, nome da mata onde se localizara. A revolta se iniciara na fazenda de Manoel Francisco
Xavier, mineiro parente de Tiradentes e conhecido por suas atrocidades contra os escravos.
A história desse quilombo foi relatada pelo jovem Carlos Frederico Werneck Lacerda (o mais
tarde jornalista e político Carlos Lacerda) com base em documentos encontrados em Vassouras.
Eufrásia se preocupava e Laureano conduziu reuniões na Câmara Municipal de Vassouras
para tomar providências acerca das rebeliões. O presidente da província prometeu enviar o
major Luís Alves de Lima e Silva – agora com 35 anos – à frente de um destacamento. Mas
Lacerda Werneck, comandante da Guarda Nacional para a comarca de Vassouras, sem aguardar os reforços, convocou os oficiais da Guarda para enfrentarem os rebeldes antes que se
embrenhassem pelas matas. A Câmara Municipal sob a presidência de Laureano declarou-se
em comissão permanente, revezando-se os vereadores, pois cabia-lhes coordenar as operações, receber e enviar notícias ao governo provincial e finalmente providenciar suprimentos
para as tropas. Dominada a sublevação, mortos muitos escravos, enforcado Manuel Congo a
vida prosseguiu nas fazendas de Eufrásia e Laureano,com grandes plantações de café.
Laureano morre em 1861.
Sua mulher, Eufrásia Correa e Castro, não abriu inventário, prosseguindo na exploração
agrícola de suas fazendas.
Somente em 13 de março de 1873, quando Eufrásia Correia e Castro, baronesa do Campo
Belo, viúva do seu tio Laureano Correa e Castro morreu em Vassouras, e deixando seis herdeiros, todos maiores, incluindo as duas netas já maiores ( 24 e 23 anos, Francisca Bernardina e Eufrásia Teixeira Leite, filhas da filha Ana Esméria Teixeira Leite), é que os herdeiros
resolveram, de comum acordo, avaliar os bens do casal e fazer a partilha amigável.
E é por este inventário que se percebe a capacidade que teve Eufrásia Correa e Castro, de
administrar, após a morte do tio-marido, a grande produção de café.
São 626 mil pés espalhados pelas seguintes fazendas: Secretário, S. Paschoal, Santa Rita,
Retiro, Anil e S. Gonçalo. Alguns mais velhos valendo 100 réis o pé, outros valendo 140,
outros 200 e ainda outros 240 reis o pé. Possui ainda 1.445 alqueires de café espalhados
entre o terreno do Secretário, em terras do Retiro e 400 alqueires nos paióis. Possui, tam-
204
História e Geografia do Vale do Paraíba
bém, terras ainda sem plantações correspondendo a 785 alqueires, sendo 220 alqueires em
Muriaé, Minas Gerais.
Das fazendas, a mais rica e descrita por Ribeyrolles, ainda hoje existente (a do Secretário), é
um magnífico edifício de dois andares com 24 janelas voltadas para enorme terreiro de café
colocado à sua frente. A beleza do edifício, como o equilíbrio de seu partido fazem-na, até
hoje, um dos mais belos exemplares da arquitetura rural do século XVIII no Brasil. Mas ao
lado da sobriedade e simplicidade de suas formas exteriores há uma suntuosidade e requinte
em suas partes interiores.
Dois andares ligados por uma imponente escadaria de madeira, quinze quartos, inúmeras
salas e salões. Como foi comum na construção oitocentista (antes do cimento armado) a
disposição da casa corria proporcionalmente à direita e à esquerda em iguais proporções
a partir da porta principal. Embaixo, após o belo hall de entrada onde se encontra a rica
escadaria de madeira, há, à esquerda, o grande salão de festas. O salão liga-se ao oratório
da casa, pequena capela, e alguns quartos. Ao lado direito do hall descortina-se a enorme
sala de jantar em cuja parede ao fundo vê-se uma bela pintura feita pelo pintor contratado
estrangeiro Vilaronga, com mesa para 32 pessoas ligada à sala de espera, ao jardim de inverno, e ao escritório.
Essas diversas salas e salões, tais como sala de visitas, sala de espera, sala do guarda-louça,
sala do terraço, escritório, jardins de inverno alinham-se numa disposição harmoniosa de
onde se vê o lindo jardim. Todas dispõem de mobiliário riquíssimo.
Fora do corpo da casa, o inventário descreve as dezenas de lances de senzalas, os paióis e
os engenhos.
De Eufrásia Correia e Castro podemos dizer que cumpriu o seu papel de mulher e principalmente mulher rica do século XIX.
Teve e criou os filhos, organizou a fazenda, dispôs sobre os cafezais. Pouco saiu da casa do
Secretário. Ao morrer, em 1873, perdera já sua filha Ana Esméria (morta em 1871) e seu
genro Joaquim José Teixeira Leite. Suas netas Eufrásia Teixeira Leite e Francisca Bernardina Teixeira Leite partirão, pouco depois, para Paris, no navio Chimborazzo, onde viverão
em magnífico palacete a rua Bassano número 40 próximo ao Champs-Élysées.
E teremos a nossa terceira geração de mulheres na figura de Eufrásia Teixeira Leite.10
Aos 23 anos de idade, a neta da baronesa do Campo Belo, outra Eufrásia, partia para Paris .
Eufrásia e sua irmã Francisca perderiam sua mãe em 1871 e no ano seguinte perderiam seu
pai. A perda de ambos causou em Eufrásia um grande choque emocional, mas fez dela e de
sua irmã as únicas herdeiras da fortuna acumulada pelo pai, herdada pela mãe.
10
Ver FALCI, Miridan & MELLO, Hildete. Eufrásia Teixeira Leite: uma sinhazinha emancipada. Revista Estudos Históricos,
FGV, n.29, 2002, op. cit.
205
Em 1873, o inventário de sua avó, a baronesa do Campo Belo, agrega mais fortuna às duas
irmãs. Ricas e independentes resolvem partir para a Europa.
Observe-se que Eufrásia Teixeira Leite não se envolverá com produção de café e escravatura. Os escravos que herdou no inventário de sua avó ela os alforriará e cedo empregará
sua herança em títulos e ações.
Sabe-se que as últimas décadas do século XIX fora palco de uma grande euforia no mundo
financeiro e uma etapa decisiva na internacionalização do capital.
A atuação de Eufrásia no mundo dos negócios pode ser ressaltada pela enorme documentação encontrada nos arquivos de Vassouras.
Herdando casa, sítio, muitas apólices e ações de Bancos, investirá em companhias de
petróleo, diamante e estradas de ferro. Seguia os rumos do seu pai, grande financista e
homem de letras.
Essa sinhazinha emancipada, como já chamamos alhures, construirá, na passagem para a
modernidade, um outro poder; o poder de fazer e multiplicar os investimentos bursáteis, o
poder de viver sozinha, de não se casar simplesmente por alianças familiares ou por imposição de familiares.
Tendo vivido um romance com o célebre abolicionista Joaquim Nabuco por 13 anos, com
ele não se casou vivendo ora em sua bela residência na rua Bassano 40 em Paris, ora em
sua casa da Hera em Vassouras.
Morreu em 1930, com 80 anos, solteira, milionária, dona de extensa área em Copacabana.
Deixou toda a sua enorme fortuna, em testamento, para instituições educacionais e de
caridade – irmãs do Sagrado Coração e Santa Casa da Misericórdia de Vassouras com a
finalidade de serem construídos colégios de meninas e meninos órfãos e o hospital de caridade, todos existentes hoje naquela cidade e mandados construir pelo seu testamenteiro
o ministro Raul Fernandes.
Esse trabalho teve a finalidade de ligar três mulheres historicamente pelos laços familiares.
Entre 1764 e 1930 três mulheres Correa e Castro tiveram o poder em suas mãos; a primeira
como articuladora das alianças familiares, a segunda como braço-direito da produção do
café e a terceira como mulher-símbolo da modernidade.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Narcisa Amália: Uma Trajetória Feminina do Sul Fluminense
do Século XIX
Gisele Oliveira Ayres Barbosa*
O presente artigo é resultado das reflexões apresentadas durante o I Congresso Nacional de
História e Geografia do Vale do Paraíba promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico
de Vassouras as quais nos permitiram revisitar a vida, trajetória e obra de Narcisa Amália de
Campos, poeta resendense do século XIX. Narcisa é uma figura pouco conhecida e as fontes
sobre sua vida são escassas, ainda que seja reconhecida como uma das primeiras jornalistas
brasileiras. É com dificuldade que conseguimos reunir informações capazes de reconstituir
sua trajetória. Publicou um único livro, Nebulosas, lançado em 1872, onde apresentou alguns
de seus poemas. Em 1874 prefaciou a obra Flores do Campo, do amigo Ezequiel Freire, também
poeta e seu grande incentivador, e publicou o conto Nelúmbia. Escreveu em jornais da época
em sua cidade e no Rio de Janeiro entre os quais o de maior repercussão foi o jornal A República. Na realização desta pesquisa foram de grande utilidade as informações sobre Narcisa
reunidas na biografia Narcisa Vida e Poesia, de João Oscar, e na obra Um espelho para Narcisa:
reflexos de uma voz romântica, da escritora Christina Ramalho.
Ainda assim, tal reconstituição se prende basicamente ao período em que a poetisa viveu
em Resende, cidade para onde se mudou ainda criança e que considerava sua terra, embora
tivesse nascido em São João da Barra a 3 de abril de 1852. Em Resende Narcisa escreveu a
maior parte de sua obra. Sua fase mais produtiva iniciou-se em 1870, quando tinha dezoito
anos. Após sua mudança para o Rio de Janeiro, ocorrida em 1889, passou a trabalhar como
professora e a levar uma vida recolhida, seus escritos foram rareando e praticamente nada
sabemos sobre o que lhe aconteceu até sua morte ocorrida em 24 de julho de 1924.
Dois objetivos nortearam a elaboração deste artigo: situar a trajetória de Narcisa Amália
dentro da perspectiva de uma História de Gênero e identificá-la como uma dentre as importantes vozes femininas do século XIX através de uma breve apresentação dos aspectos
sociais e políticos de sua poesia. Para Narcisa o poeta, além de entreter e proporcionar
prazer ao ouvinte ou leitor, devia atuar como agente transformador da sociedade, deixando “as regiões fantásticas do idealismo para arremessar-se nas lutas “( Jornal A República,
19.05.1873 apud OSCAR, 1994:58).
O termo gênero foi inserido na historiografia desde a década de 1970 do século XX para
designar a relação entre o masculino e o feminino. Resulta de uma longa germinação de
experiência e ideias das relações entre homens e mulheres em suas muitas vidas em comum
e foi influenciado pelos estudos antropológicos do século XX, mas também evidencia as
conexões entre a História das Mulheres e a política bem como as experiências do dia a dia
entre homens e mulheres (Costa, 2003:187-188). Surgiu, portanto, na esteira da História
das Mulheres da qual uma das precursoras foi a francesa Michelle Perrot, historiadora e
militante do movimento feminista capaz, assim, de observar as possibilidades de uma
historiografia na qual as mulheres ao invés de coadjuvantes se tornassem agentes de sua
* Mestre em História Social pela UFRJ, Professora da USS (Universidade Severino Sombra, Vassouras-RJ) e da UGB
(Centro Universitário Geraldo di Biasi, Barra do Piraí-RJ) e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras-RJ.
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própria história. Segundo Rachel Sohiet, uma das especialistas brasileiras na área, a grande
reviravolta da história nas últimas décadas, debruçando-se sobre temáticas e grupos sociais
até então excluídos do seu interesse, contribuiu para o desenvolvimento de estudos sobre
as mulheres, pluralizando os objetivos da investigação histórica e alçando-as à condição de
objeto e sujeito da História (1997:275). Ainda de acordo com Sohiet, a escassez de vestígios
sobre o passado das mulheres, produzidos por elas próprias, constitui-se num dos grandes
problemas enfrentados pelos historiadores (1997:295).
Narcisa Amália, com sua trajetória singular ainda que despida de grandes repercussões,
encaixa-se bem dentro deste quadro. Já fizemos referências acima à ausência de vestígios
sobre sua vida. Resta dizer que sua trajetória exemplifica a relação de forças entre masculino e feminino, predominante na em época. Para entendermos isto são necessárias algumas
considerações sobre sua obra poética e a época em que Narcisa viveu. Não pretendemos
discutir a originalidade de suas poesias nem o estilo literário no qual Narcisa se inseriu, mas
tão somente analisar sua trajetória no contexto histórico em que viveu.
A partir de 1870 o Império, até então apoiado na grande cultura cafeeira, começara a apresentar sinais evidentes de crise, em face, inclusive, das restrições internacionais ao tráfego
negreiro e à escravidão em si. Paralelamente difundiam-se as ideias republicanas alavancadas pela influência do Positivismo e pelas crescentes reivindicações políticas do exército. A
Guerra do Paraguai (1865-1870), pela participação de escravos como soldados e pelo papel
de destaque que deu aos militares, contribuiu para acelerar este processo.
A abolição da escravidão e a proclamação da República, principais preocupações dos intelectuais da época, eram os temas favoritos de Narcisa. Algumas de suas poesias demonstram seu lado sentimental e ligado ao cotidiano mas foram os temas políticos e sociais que
deram vigor a seus versos e a diferenciaram das demais vozes femininas do período. Neste
aspecto provavelmente sofreu influência intelectual de seu pai, professor e poeta, de sua
mãe, professora primária e também do avô, abolicionista e republicano de ideias liberais.
A opção por tais temas foi responsável por boa parte das críticas atribuídas a Narcisa. Ainda
que o século XIX tenha sido a época em que muitas mulheres brasileiras se rebelaram contra
o papel que tradicionalmente lhes era imposto de confinamento à vida doméstica e clamaram por serem ouvidas, por poder escrever suas ideias, redigir seus textos e escolherem sua
profissão (CIRIBELLI, 2006, p. 49), as resistências ainda eram muito fortes por parte de
uma sociedade patriarcal onde o masculino dominava o universo intelectual. O simples fato
de se tornarem escritoras era motivo para que se levantassem preconceitos contra elas. Ao
abraçar temas políticos e sociais, Narcisa provocava ainda mais resistências. Alguns críticos
elogiavam-lhe o talento, mas sugeriam-lhe que mudasse de caminho enquanto era tempo. Isto
porque, pelos padrões culturais época, uma mulher não tomava posições. Entonações femininas deviam expressar surpresa, submissão, incerteza, busca de informações ou entusiasmo
ingênuo. Uma mulher que falasse agressiva ou afirmativamente, o que no homem era sinal
de personalidade, era considerada mal-educada, tresloucada e até histérica. A não afirmação
social da mulher se repetia na sua não afirmação pela palavra (TELLES, 1997, p. 423). Elementos de ordem pessoal também foram utilizados para atacar Narcisa: boatos difamatórios,
acusações de atentado ao pudor e até infundadas suspeitas acerca da autoria de suas poesias
(OSCAR, 1994, p. 63). Para Oscar tais críticas foram as principais responsáveis por calar a voz
de Narcisa e fazer com que ela abandonasse a carreira de poetisa e escritora.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Há uma distância entre a imagem de Narcisa que podemos construir a partir de suas poesias e a partir dos dados que possuímos acerca de sua vida pessoal. Na poesia transparece
a imagem de uma mulher impetuosa, questionadora, dotada de ideias políticas firmes e
inconformada com as injustiças de sua época. Detalhes de sua vida pessoal nos mostram
uma mulher com uma vida pacata na companhia primeiro dos pais e depois do marido e
envolvida em atividades domesticas no dia a dia. Casou-se pela primeira vez em 1866 com
João Batista da Silveira, artista ambulante, de vida irregular, de quem se separou alguns anos
mais tarde. Casou-se novamente em 1880 com Francisco Cleto da Rocha, também chamado Rocha Padeiro, dono da “Padaria das Famílias”, em Resende. Já conhecida nos meios
literários, trabalhava na padaria ao lado do segundo marido mas continuava a receber os
amigos literatos em sua casa. Frequentaram seus saraus nomes famosos como Raimundo
Correia, Luis Murat, Alfredo Sodré e, inclusive o imperador Pedro II, que por ocasião de
sua visita a Resende foi conhecê-la, embora fosse a poetisa fervorosa republicana e abolicionista (PAIXÃO, 1999, p. 153). Segundo Oscar (1994) o fato de conduzir o Imperador a
uma padaria teria provocado constrangimento aos anfitriões deste. Ao que parece o marido
padeiro, ciumento, não apoiava a carreira literária de Narcisa e, por ocasião da separação
entre ambos, teria contribuído para disseminar na cidade os comentários maldosos sobre a
poetisa. O tema liberdade está constantemente presente nas poesias de Narcisa Amália: a
expectativa de liberdade dos escravos, a liberdade do povo conquistada através da Revolução Francesa, a liberdade na nação brasileira obtida no processo de independência (insatisfatória na visão republicana da poeta), a liberdade em prol da qual morrera Tiradentes (para
ela “o mártir Xavier”), entre outras. Tão presente que nos perguntamos se, além dos temas
diretamente abordados, Narcisa não buscava, indiretamente, dar vazão aos seus anseios
pessoais de liberdade, não desfrutada em sua vida pessoal nem em sua carreira.
Muitas especulações podem ser lançadas sobre os motivos das escolhas feitas por Narcisa
Amália, questões que provavelmente ficarão sem resposta na ausência de testemunhos pessoais da autora. Mas é inevitável pensar no quanto sua condição feminina teve influência
nas dificuldades que se colocaram no seu caminho. Já foi dito – dentro da concepção de
gênero como uma construção cultural – que cada época define o que é “ser homem” e “ser
mulher”. Ao se apropriar da palavra escrita, discutir temas políticos e questionar as injustiças sociais, Narcisa caminhava sobre um terreno que a sociedade da época definia como
exclusivamente masculino. Esta própria sociedade – a partir daquilo que assumia como
sendo papel “de homem” e “de mulher” – se encarregou de puni-la por sua transgressão.
Do crítico que sugeriu a Narcisa que abordasse “temas femininos” ao segundo marido que
contribuiu para impor-lhe uma vida recolhida afastada do espaço público não há culpados
facilmente identificáveis: o que estava em jogo eram questões culturais que permeavam
todo o tecido social.
Ainda assim, acreditamos que Narcisa Amália tem lugar na galeria de mulheres femininas
brasileiras que se destacaram na segunda metade do século XIX ao lado de Nísia Floresta,
Benedita Câmara Bormann, Josefina Álvares de Azevedo e Júlia Lopes de Almeida, entre
outras. Mesmo morando em uma pequena cidade do interior, possuía uma educação acima
dos padrões oferecido às mulheres da época, sabia latim, francês, demonstrava conhecimento sobre os principais fatos da História do Brasil e da História Geral e manuseava estas
informações de forma crítica em seus escritos. Ainda que não seja vasta, sua obra obvia-
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mente não pode ser conhecida apenas a partir de um artigo. Apenas a título de apresentação
citaremos a seguir trechos de alguns poemas de Narcisa Amália a partir dos temas políticos
e sociais mais costumeiramente abordados por ela: a abolição dos escravos, a proclamação
da República, a força e a importância da mobilização popular e (aspecto ainda não citado
mas que consideramos de fundamental importância haja vista permanecer ainda no pauta
de nossas discussões mais de cem anos depois), a necessidade de fornecer ao povo o acesso
à educação. Em todos estes poemas está presente a ideia de uma poesia com função social
e de um poeta que atua como agente transformador de seu tempo.
O papel social do poeta e o repúdio à situação do escravo aparece expresso na poesia “O
Africano e o Poeta” na qual Narcisa descreve a tristeza e o desgosto do “pobre cativo” e
afirma que apenas o poeta é capaz de compreender o sofrimento do escravo e através de
seus versos colaborar para melhorar a sorte deste.
Quem pensa? O poeta
Quem os carmes sentidos
Concerta os gemidos
De seu coração
Quem sente? O poeta
Quem o elísio descerra
Que vive na terra
De místico amor
Quem há de … o poeta
Que a lousa obscura
Com lágrimas pura
Vai sempre orvalhar
O lamento diante da situação desfavorável do escravo, também contemplado em “Vem” e
“Miragem”. O primeiro retrata a dura rotina e o trabalho estafante do cativo que só cessa
por um curto período quando o sono vem .
… o pobre escravo num langor benéfico
Recobre forças para a luta insana
Lasso proscrito, todo o horror do exílio
Mísero! Esquece!
O segundo é um lamento contra a escravidão seguido de especulações sobre quando e
como a liberdade finalmente virá.
Meu Deus, quando há de esta raça
Que genuflexa, rebrama
Erguer-se de pé ungida,
Das crenças livres na chama?
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Como já citado, os principais acontecimentos políticos da História do país também não escaparam ao olhar atento e à pena ágil de Narcisa. Nas duas primeiras estrofes do poema “Vinte
e Cinco de Março” ela faz alusão ao Projeto de Constituição elaborado pelos constituintes de
1823, no qual todos os grandes princípios de liberdade eram solenemente reconhecidos . Em
“Sete de Setembro” ela saúda a independência da nação ao mesmo tempo em que se preocupa com a manutenção da liberdade e com a participação popular no processo.
Ah ! Não te esqueças (liberdade) deste augusto dia!
Ampara o débil povo que se curva
Ante um falso poder!
Desdobra tuas asas refulgentes
Sobre o luto funéreo em que repousa
O mártir Xavier
A alusão a Tiradentes (o mártir Xavier) em um poema sobre a independência tem uma
razão de ser. Republicana, Narcisa não estava totalmente satisfeita com a maneira como se
dera a independência, o que é demonstrado claramente no decorrer da poesia. Liberdade
e independência, segundo Narcisa, rimavam com República uma vez que a Monarquia, a
seu ver, era enganadora e fazia mal uso das riquezas da nação. No caso específico do Brasil,
rompera-se a tutela de Portugal mas permanecera o regime monárquico e o pais continuara
a ser governado por um príncipe europeu de formação absolutista. Logo, a lembrança de
Tiradentes num poema em que saúda a independência é uma maneira de fazer com que os
ideais progressistas não fossem totalmente esquecidos e lembrar que ainda havia muito a
fazer antes que o Brasil se tornasse totalmente independente.
Seu objeto de adoração, assim como de muitos de seus contemporâneos, era a Revolução
Francesa. A ela dedicou o poema “Pesadelo”. Não economiza elogios ao movimento revolucionário e chega a comparar a “revolução”a uma divindade.
Salve! Oh! Salve! Oitenta e nove
Que os obstáculos remove!
Em que o heroísmo envolve
O horror da maldição!
Rolam frontes laureadas
Tombam testas coroadas
Pelo povo condenadas
Ao grito – Revolução!
No pedestal de igualdade
Firma o povo a liberdade,
Um canto a fraternidade
Entoa a voz da nação
Que em delírio violento
Fita altiva o firmamento
E adora por um momento
A deusa – Revolução
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Guiada por ideias europeias liberais, Narcisa colocou sua pena a serviço dos princípios
democráticos de modernização das estruturas da nação e de elevação do nível cultural
e material da população. Segundo Norma Telles, Narcisa achava que, para que os ideais
revolucionários de liberdade e igualdade fossem atingidos, era necessário que se levasse
educação ao povo, pois, em palavras suas “sem a instrução popular a democracia jamais
passará de uma dourada quimera” (TELLES, 1997, p. 420).
Este sentimento é claramente demonstrado na poesia “Condolências”. O objeto de suas
condolências é o povo, agora livre, forte, trabalhador, capaz de abalar qualquer tirania, mas
infelizmente sem acesso à ciência e à educação. Narcisa afirma:
Há uma força real que tudo abraça,
Que abala o sólio dos tiranos
Como esmaga o trabalho de mil anos
Quando livre, revolta ovante passa ! (…)
És tu, és tu, tremenda populaça ! (…)
Como alçar-te na pátria, águia cativa (…)
Em vão suplicas da ciência a esmola
Se te abraza a razão áscua furtiva,
Abrem-te a detenção, fecham-te a escola
Após a publicação de Nebulosas, os versos de Narcisa alcançaram enorme repercussão, o
que fez com que a poetisa não fosse totalmente esquecida mesmo não publicando mais
nada pelo resto de sua vida. O vigor que demonstrou em suas poesias não foi suficiente
para vencer todos os preconceitos de uma época. Mas Narcisa não foi foi totalmente esquecida, pois seus escritos permaneceram como testemunho de sua obra e de sua luta. Estudos
recentes vem resgatando a importância de sua figura conferindo-lhe um lugar de destaque
entre as mulheres do século XIX.
Referências Bibliográficas
AMÁLIA, Narcisa. Nebulosas. Rio de Janeiro: Garnier, 1872.
___, Nelúmbia . In: Lux! Campos, 1 dez. 1874, pp.158-160.
___, Duas palavras sobre este livro (Prefácio) In: FREIRE, Ezequiel. Flores do Campo. Rio
de Janeiro: 1874.
COSTA, Sueli Gomes. Gênero e História. In: ABREU, Marta & SOIHET, Rachel. Ensino
de História: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
MULHERES FEMININAS DO VALE DO PARAÍBA: histórias de luta e conquista da
cidadania feminina. Rio de Janeiro: Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, s/d.
PAIXÃO, Sylvia Perlingeiro. Narcisa Amália. In: Escritoras brasileiras do século XIX. Ed. Mulheres/Edunisc, 1999.
RAMALHO, Christina. Um espelho para Narcisa – reflexos de uma voz romântica. Rio de Janeiro:
Elo, 1999.
OSCAR, João. Narcisa: vida e poesia. Campos: Lar Cristão, 1994.
REIS, Antônio Simões dos. Narcisa Amália. Rio de Janeiro: Simões, 1949.
SOHIET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS,
Ronaldo (org). In: Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997.
TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto. UNESP, 1997.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
A Busca de uma Mulher em Vassouras na Ficção do Alentejano
Diogo Ribera Flores
Celeste Varella*
Resumo
Este trabalho trata do retorno ao romance histórico, aliado ao tema do exílio na literatura
de língua portuguesa. O autor do romance Rio das Flores, Miguel Sousa Tavares, envereda
pela História do Brasil do tempo do ciclo da borracha e o do ciclo do café, e a cidade de
Vassouras torna-se a referência do amor de um senhor de terras no Alentejo por uma humilde mulher da cidade dos barões do café. Tem-se assim, ficcionalmente, a retomada da
sedução das terras produtivas como foi Vassouras.
Os tempos estavam complicados em Valmonte. Os tempos estavam complicados
em todo o Alentejo, em Portugal, na Europa e no mundo, As consequências do
estoiro da bolsa de Nova York, em Outubro de 1929, haviam-se espalhado aos poucos como uma epidemia, atravessando o Atlântico a partir da América e atingindo
as principais nações europeias. Todos queriam vender e ninguém queria comprar.
(TAVARES, 2008, p. 213)
Assim o narrador, no IX capítulo do romance Rio das Flores, dá continuidade à trama romanesca, cujos protagonistas são dois irmãos: Pedro e Diogo Ascêncio Cortes Ribera Flores.
Do Alentejo, precisamente das terras de Valmonte, produtora de cortiça, gado e azeite, em
primeiro de abril de 1936, o latifundiário Diogo Ribera Flores vem a negócios ao Brasil,
em lugar do negociante Gabriel Matthäus, sediado na Alemanha, seu sócio na Atlântica C.ª,
uma firma de import-export constituída por ele, Francisco Menezes, que importava produtos brasileiros para toda a Europa, via Lisboa. Não parte de Lisboa, mas apenas a sobrevoa
e “daí então entrar oceano adentro” (p. 256).
Vem no voo nº9 do LZ-129 Hindenburg, saindo do sul da Alemanha, onze mil quilômetros
até o Rio de Janeiro, com esperança de encontrar o Novo Mundo. Desembarca, nas primeiras horas do dia 4 de abril, em um Rio de Janeiro chuvoso, em Santa Cruz, como visitante
e sonhador. De Santa Cruz à Estação D. Pedro II, e daí ao Hotel Copacabana Palace. Sabia
ele, pela leitura, tudo do Brasil: a efervescência política, a ditadura e a popularidade de Getúlio Vargas, a Constituição democrática de 1934, a história do “Cavaleiro da Esperança”
e a história dos descendentes dos antigos proprietários das fazendas do Vale do Paraíba,
mas o sonho do sonhador de Valmonte só terá início pelo acaso, pontuado pela indolência
na cadeira da varanda do Hotel, pelo andar “de bailarinos escutando música” e de mulatas
sensuais. Antes, recém-chegado, refaz de memória a história da migração dos portugueses,
faz breve referência à abolição da escravatura e o despovoamento das fazendas de café em
São Paulo e no Vale do Paraíba.
Para passar o tempo, depois do seu trabalho de exportador, começa a frequentar, como os
outros hóspedes, a sala de jogos do Hotel e vem casualmente a conhecer, diz o narrador,
*
Doutora em Letras Vernáculas (UFRJ).
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“uma mulata deslumbrante”: Benedita, mulher jovem, de dezenove anos, de Vassouras,
abandonada pelo pai de seu filho de dois anos, determinada a conseguir dinheiro e voltar à
vida familiar, comprar um pedaço de terra, criar galinhas e porcos. Seu sonho.
Diogo apaixona-se por Benedita e dá continuação ao seu projeto de exportador de “gado
de corte” com sucesso, cumprindo contratos como ficara sabendo de um comerciante
português, Joaquim Trindade, bem-sucedido exatamente por cumprir contratos. Entre a
paixão e os negócios sobrava tempo ao engenheiro Diogo para percorrer a cidade do Rio e
seus tradicionais restaurantes: o do Hotel Glória, o Cosmopolita, mais conhecido como o
“Senadinho”, na Lapa, para saborear o prato cujo nome se refere ao ministro de Relações
Exteriores de Getúlio – o filé à Oswaldo Aranha –, o Restaurante Rio Minho e sua sopa de
peixes e frutos do mar Leão Veloso, o Capela onde se deliciava o cabrito assado ao sábados.
Outras referências do Rio de Janeiro vão compondo a paisagem da cidade: a Confeitaria
Colombo, “fundada por uma família portuguesa e com pretensões a imitar um café francês: piano e móveis em jacarandá, espelhos biselados vindos da Bélgica e uma claraboia de
mosaicos coloridos no tecto” (Ibidem, p.399). O que causa interesse ao leitor, sem dúvida, é
o olhar de flâneur do narrador que permite contextualizar o romance do viajante passageiro,
em busca de uma liberdade cultural. Se ele conta o desprezo da cidade de Lisboa por Fernando Pessoa, o faz, talvez, pelo deslumbramento de encontrar poetas, críticos, pintores, na
Colombo, por exemplo Manuel Bandeira, Mário Couto, Di Cavalcanti e Portinari.
Romanescamente, o romance Rio das Flores põe em suspensão o casal: um “aristocrata
português liberal” que é comparado com os barões do café pelo proprietário da Confeitaria Colombo e a mulher de Vassouras. Um estratégico telegrama de Amparo, esposa do
agrônomo, solicita a volta dele porque seu irmão Pedro havia partido para Espanha, com
o objetivo de combater ao lado dos nacionalistas. A herdade ficara sem administrador,
os dois filhos de Maria da Glória estavam assim fora de Portugal: um no Brasil, outro
na Espanha. Ambos, jovens, ainda à procura de realização pessoal. Pedro, monarquista
como o pai; Diogo Ribera Flores, republicano, antissalazarista. O primeiro, e mais novo,
caçador de boa pontaria, defensor da bandeira do fascista Salazar; o outro, o mais velho,
atrás de um novo mundo.
O novo mundo de Diogo, por ele perseguido, vem a ser a Fazenda Águas Claras:
um nome profético, poético”, adequado ao seu sonho, “junto ao Rio das Flores – outro
nome profético – e um afluente do rio percorria a propriedade, formando uma cascata
a uns cem metros da casa, junto aos terreiros que tinham servido para seca dos bagos
de café, de modo que o ruído da água, caindo da cascata e correndo ao longo do jardim
de jacarandás e do pomar, escutava-se vinte e quatro horas por dia, marcando o ritmo
dos dias e embalando as noites. O homem que atinha edificado, como tantos outros,
alimentara a esperança de um dia ser feito barão pelo Senhor D. Pedro II, Imperador do
Brasil. Fora há uns sessenta anos atrás, e o que ficara desse devaneio de grandeza era uma
alameda de palmeiras imperiais no caminho conduzido até a entrada principal da casa
e que hoje tinham crescido a uma altura incomensurável, e uma sala de jantar capaz de
sentar mais de trinta comensais, e onde o Imperador jamais se sentara. (Ibid., pp. 507-8).
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Pois bem, em 10 de novembro de 1937, o “nascido morgado de latifúndio alentejano, em
Portugal, tornou-se dono de uma fazenda no Brasil [...] na confluência dos Estados do Rio,
Minas e São Paulo” (Ibid., p.510), assim acentua o narrador. Mas o destino político do Brasil, na época, não estava se diferenciando do da terra do agrônomo em retirada do salazarismo: aqui a Assembleia e os partidos foram dissolvidos, a censura à imprensa estabelecida,
e tribunais especiais foram criados para julgar crimes políticos.
Se me fosse dado maior espaço, aproveitaria para articular um tema muito familiar em
matéria de literatura portuguesa: a casa como pátria. Talvez, sem se dar conta, Miguel
Sousa Tavares projete, despretensiosamente, em Diogo Ribera Flores a vontade de fazer
a memória da casa portuguesa, distanciando-se do protocolo já consagrado, mas recuperando claramente, em Águas Claras, a casa de Valmonte, lembrança de uma aristocracia
rural feliz, que pelas voltas do destino e da política, migrou para o Vale do Paraíba como
salvação ou solução ficcional da História portuguesa nos anos de 1930. Manuel, filho de
uma camponesa e de homem do quilate do Ribera Flores – digno, justo, honesto; a favor
da liberdade de expressão; leitor crítico do velho mundo europeu –, vem habitar a casa das
palmeiras imperiais. A mulata Benedita não fica fora desta casa. Reescrevendo a sociologia
da Casa Grande, Miguel Sousa Tavares, escreve a casa portuguesa no Brasil, tomando como
referência a importância do histórico das fazendas de café, e articula o histórico com uma
mulher de Vassouras cujo sonho era ter “um pedacinho de terra”. Faz-se em escrita de
romance a aliança dos contos de fada.
Referências Bibliográficas
TAVARES, Miguel Sousa. Rio das Flores. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Capítulo 5
O Patrimônio Cultural no Vale do Paraíba
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Vassouras: Patrimônio Nacional
Olinio Gomes P. Coelho*
Entendemos como patrimônio cultural todo o meio ambiente criado pelo homem, incluindo-se os sítios onde se instala, necessários à sua vida social. Esta parece-nos a mais
abrangente conceituação de patrimônio cultural, pois envolve não só todas as realizações
do homem, como também o meio em que vive e os recursos apresentados pela natureza e
por ele transformados para prover suas necessidades materiais e imateriais.
A preservação desse universo cultural, que Cassirer denomina simbólico, é fator de fundamental importância para a vida humana. E como então manter o homem integrado nesse
universo cultural ? Entendemos que tais processos de integração cultural realizam-se em dois
planos distintos e interdependentes: o plano informal – através de controles sociais difusos
de aspecto comportamental; e o plano formal – em que as relações estabelecem-se através de
estruturas hierarquizadas, utilizando mecanismos formais de aspectos políticos e administrativos. Na vida social estão presentes comportamentos formais que possibilitam a integração
social, completando a informalidade dos mecanismos difusos. Na sociedade brasileira, o Poder Público, nos níveis federal, estadual e municipal, deverá participar desse processo cultural
através de estruturas que induzam e possibilitem a permanência da integração social.
No Brasil, a preservação do patrimônio cultural é institucionalizada pelo Decreto-lei nº. 25,
de 30 de novembro de 1937, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN e estabeleceu os critérios específicos para o tombamento ou classificação dos
bens que, na visão da burocracia cultural então vigente, deveriam ser preservados, independentemente de quaisquer manifestações da sociedade na sua indicação.
Não há uma política nacional clara implantada no Brasil que estabeleça uma relação mais
estreita entre os bens que são tombados e os grupos sociais dos quais participam. Isso tem
gerado uma dicotomia entre o que o Poder Público decide preservar/tombar e as próprias
comunidades que vivenciam esses bens.
O ente federal de proteção do patrimônio nacional não consegue fiscalizar e proteger todos
os bens que, tombados na esfera federal, encontram-se espalhados por todo o país. A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934 já estabelecia, em seu art. 148, que caberia1
(...) à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das
ciências, das artes, das letras e da cultura, em geral, proteger os objetos de interesse
histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual. (Grifos nossos)
Já em 1937, em seu artigo 134, a nova Constituição2 tornava-se mais clara quanto à preservação do patrimônio cultural nacional, estabelecendo que:
*
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Arquiteto e Urbanista. Professor Titular da UFRJ. Presidente do IHGV. Sócio Efetivo do IHGRJ.
Promulgada em 16 de julho de 1934.
Promulgada em 10 de novembro de 1937; aprovada dias antes da criação do Decreto-lei nº 25.
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Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais
particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais
da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão
equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional. (Grifos nossos).
A Constituição de 1946, em seu artigo 175, não cita claramente os estados e municípios
como agentes de preservação cultural, assinalando, genericamente, a proteção aos bens
pelo “poder público” e o artigo 175 da Constituição de 1967 repete essa expressão.
No entanto, apesar da citação expressa nas cartas constitucionais quanto à efetiva participação dos entes estaduais e municipais na preservação dos bens culturais de interesse
nacional, estadual ou municipal, nem os estados nem os municípios tinham criado até 1964,
órgãos destinados a essa proteção.
Em 1979, a Constituição do Brasil de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, e as alterações feitas por emendas constitucionais de
1972 a 1979, também, em seu artigo 180, estabelece
O amparo à cultura é dever do Estado.
Parágrafo único. Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos,
as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens
naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas. (Grifo nosso).
Na Carta Magna de 19883, encontramos, no parágrafo 1º do artigo 216: “o Poder Público,
com a colaboração da comunidade promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro,
por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras
formas de acautelamento e preservação”.
Desvela-se, assim, a clara participação da sociedade civil como agente participante dos
processos e mecanismos de preservação do patrimônio cultural brasileiro, junto ao Poder
Público: em diferentes níveis de governo – união, estado e municípios.
Essa carta especifica expressamente os bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro:
(...) os bens de natureza material e imaterial, tornados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
3
Constituição de 5 de outubro de 1988.
222
História e Geografia do Vale do Paraíba
Na administração Aluísio Magalhães (1979-1982), o SPHAN iniciou um processo de reformulação conceitual do patrimônio cultural, trazendo à tutela oficial não somente as casas
de fazenda senhoriais, as igrejas barrocas e os solares neoclássicos de nossas cidades, mas
também, edificações do século XX e bens imateriais, como os meios de produção de práticas artesanais e comportamentos religiosos, ainda vivos na sociedade brasileira. Não se
tratava apenas do tombamento de bens pretéritos – de pedra e cal, mas de representações
sociais contemporâneas materiais e imateriais.
No entanto, ainda estamos longe de políticas públicas que possam induzir a comportamentos sociais que venham a preservar o patrimônio cultural, fazendo com que os próprios
usuários desse patrimônio conheçam e venham consequentemente amar e respeitar tais
bens, preservando-os. Só se ama o que se conhece, segundo Aristóteles; é necessário amar
para preservar. É conhecendo o mundo cultural onde vivem que os homens entendem a
preservação desse mundo.
E, para que possamos, através de políticas públicas, desenvolver mecanismos de preservação cultural, quer de bens materiais, quer de comportamentos e produções culturais imateriais, torna-se fundamental o processo da educação para a integração desses grupos em seu
mundo cultural. A escola, através de procedimentos formais e sistemáticos, é importante
agente para a implantação e fixação de políticas de preservação. Fazer com que a criança e
o jovem conheçam seu mundo cultural através de exercícios e experiências vivenciais é um
fator primordial para a preservação cultural. Simultaneamente, os mecanismos de educação
informal, conduzidos pela família, pelos grupos de vizinhança e pelos grupos econômicos
e religiosos são fundamentais para os processos de integração cultural.
Assim, entendemos que uma política de preservação do patrimônio cultural, tanto em nível nacional como estadual ou municipal, tem seu lastro no processo educacional, que
permitirá a integração do homem em seu meio cultural e seu consequente respeito às suas
produções materiais e imateriais.
Os cidadãos devem ser atores participantes do processo cultural da preservação de seu
patrimônio, e não apenas expectadores que tenham que aceitar uma preservação imposta
por ações de entes administrativos.
A preservação do patrimônio está sempre na interdependência das transformações que
se processam na sociedade e sua permanência no tempo e no espaço dependerá dos fatos
que o condicionam. Imprescindível à continuidade da vida social, o patrimônio cultural
somente poderá subsistir quando integrado na vida contemporânea, participando de todos
os valores dessa vivência coletiva.
O Decreto-lei nº 25 tem como objetivo a proteção e preservação dos bens materiais: móveis e imóveis de interesse nacional: – imóveis: edificações, núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos; e os bens móveis: coleções arqueológicas, acervos museológicos,
documentais, bibliográficos, arquivísticos, fotográficos, cinematográficos e videográficos.
223
A conceituação de cultura passa a ser estendida também aos bens imateriais a partir de 2000.
Com efeito, o Decreto nº 3.5514 institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, estabelecendo o processo de reconhecimento desses bens como patrimônio imaterial,
instituindo seu registro e o compromisso do poder público de inventariar, documentar,
produzir conhecimento e apoiar a dinâmica dessas práticas culturais. Como bens imateriais,
objeto de preservação, o decreto identifica os saberes – conhecimentos e modos de fazer
do quotidiano das comunidades; as formas de expressão - artísticas e lúdicas; as celebrações – rituais e festas; e os lugares – espaços de realizações de práticas culturais coletivas.
Esse vasto elenco de bens culturais, tanto materiais como imateriais, dificilmente pode ser
contemplado por uma efetiva e continuada proteção federal, em vista de sua grande quantidade, imensa diversidade e disseminação por todo o território nacional.
No entanto, sabiamente, a Constituição de 1934 já estabelecia a participação dos poderes
estaduais e municipais na proteção dos objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país5. Não obstante, só a partir de 1964, efetivamente, o poder estadual surge como
ente de proteção aos bens culturais existentes em seu território.
O extinto Estado da Guanabara (hoje, Cidade do Rio de Janeiro), através do Anexo do
Decreto “N” nº 346, de 31 de dezembro de 1964, iniciou uma política que envolvia os moradores da cidade-estado, conduzindo-os a uma vontade própria de preservar os bens que
faziam parte de seu mundo cultural. Pesquisas foram realizadas através de sugestões vindas
das diferentes camadas sociais com vistas a tombamentos de exemplares arquitetônicos e
de sítios urbanos e naturais integrados nessas comunidades.
A então Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico Estadual6 foi a primeira experiência
como órgão de preservação cultural de âmbito estadual criado no Brasil. Foi pioneira na
implantação de uma política de identificação dos bens culturais a preservar, atendendo aos
anseios da população carioca. A preservação tornava-se assim um processo que, apesar de
ser formalizado por leis, decretos e portarias, descia aos fruidores desses bens em perfeita
integração cultural.
A seguir, o Decreto-lei nº 2, de 11 de abril de 19697, criou novos critérios para a preservação
do patrimônio cultural da cidade-estado, inovando com restrições às construções, afixação
de anúncios, cartazes ou letreiros e instalação comercial ou industrial em imóveis situados
nas proximidades dos bens tombados e à aprovação, modificação ou revogação de projetos
urbanísticos, inclusive os de loteamento, desde que pudessem repercutir de alguma forma na
segurança, na integridade estética, na ambiência ou na visibilidade dos bens tombados, assim
como em sua inserção no conjunto panorâmico ou urbanístico circunjacente.8 Essa restrição
Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000.
Artigo 148.
6
Esta Divisão foi dirigida, em seu primeiro momento, por Marcelo de Ipanema.
7
Do antigo Estado da Guanabara.
8
O Estado da Guanabara, criado pela Lei nº. 3752, de 14 de abril de 1960, existiu até 15 de março de 1978, quando da
fusão de seu território com o do antigo Estado do Rio de Janeiro. O novo estado incorporou ao seu ordenamento jurídico
o Decreto-lei nº. 2, em vigor até hoje no Estado do Rio de Janeiro.
4
5
224
História e Geografia do Vale do Paraíba
quanto à ambiência não existe na legislação federal, tendo sido objeto de algumas pendências
judiciais, como a referente à preservação da vizinhança da Igreja de Nossa Senhora da Glória,
no Rio de Janeiro, na qual algumas construções existentes foram demolidas para a preservação da ambiência desse monumento nacional.
Vassouras não conta em sua organização administrativa com um setor especialmente encarregado da proteção, tombamento e preservação de seu inestimável acervo cultural, integrado não somente por bens materiais, como também por diversas manifestações culturais
arroladas pelo Decreto nº 3.551.
Praça Barão do Campo Belo. Foto Autor.
Muitas edificações de Vassouras já desapareceram e outras estão em acelerado processo de
desmantelamento, como o solar do Barão de Vassouras e a Santa Casa de Misericórdia, todos significativos exemplares da arquitetura neoclássica que se estabeleceu na cidade, então
o grande centro da produção de café no Vale do Paraíba.
Antigo Paço Municipal. Foto Autor.
225
A Portaria Iphan nº 12, de 1986, considerando que o conjunto arquitetônico e paisagístico de Vassouras é parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, determinou sua proteção com o tombamento de seu centro urbano e vizinhanças especialmente
nomeadas. Vassouras é um dos poucos municípios brasileiros contemplado com especial
proteção federal de seu patrimônio cultural. Não obstante, edifícios, áreas verdes e manifestações culturais imateriais passam por violento processo de degradação, se não pela
omissão, pela impossibilidade de o poder federal exercer de fato a proteção determinada
pelos dispositivos legais.
Solar do Barão de Vassouras (Francisco José Teixeira Leite). Foto Autor.
Em consonância com as cartas constitucionais, essa efetiva proteção poderá e deverá ser
exercida pelo poder público municipal, que está presente no quotidiano dos cidadãos, participando, corpo a corpo, de todos os problemas da comunidade.
As secretarias municipais de Cultura e Turismo, Educação e Meio Ambiente poderiam, em
ajustada articulação, criar um órgão próprio para seguramente exercer uma ação complementar às poucas ações federais de proteção, conservação e preservação de seu patrimônio
cultural e natural. Tal órgão poderá exercer ações locais mais rápidas e eficientes, complementando os procedimentos federais exarados de distantes centros de decisões, tanto estadual como federal. É no município, no contacto direto entre os membros da comunidade
– os verdadeiros atores desse processo, que podem surgir os mecanismos e procedimentos
espontâneos para a preservação de seus valores culturais.
O Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, cujas finalidades são a pesquisa, o estudo e a difusão da História e da Geografia de Vassouras e do Vale do Paraíba, poderá
efetivamente colaborar com essas ações, que conduzirão a uma grande participação da
comunidade na preservação do inestimável patrimônio cultural e natural de nossa cidade.
Este Instituto está à disposição da administração municipal para, com todo o potencial
de seus integrantes, participar da implementação desse órgão municipal em Vassouras:
Patrimônio Nacional.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Bica d’água desativada. Câmara Municipal, 1872. Foto Autor.
Referências Bibliográficas
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HERSKOVITS, M. J. . Antropologia Cultural. Trad. M. J. de Carvalho e H. Bichels. S. Paulo:
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JUSTICIA, Maria José Martinez. Historia y Teoria de la Conservación y Restauración Artística. 2ª
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PATRIMOINE ET MODERNITÉ. Org. D. Poulot. Paris: L’Harmattan, 1998.
RADCLIFE-BROWN, A. R. . Estrutura e Função na Sociedade Primitiva. Trad. N. C. Caixeiro.
Petrópolis: Vozes, 1973.
227
228
História e Geografia do Vale do Paraíba
Museus-Casas: Relicários Arquitetônicos e Lugares
de Memória
Fabíola do Valle Zonno*
Nas terras do Vale do Paraíba o plantio dos pés de café consolidou uma paisagem constituída de vilas que se tornaram, posteriormente, pequenas cortes rurais dos barões do café
no século XIX.
Centros de intensa vida social em tom europeizado, as grandes fazendas e casas urbanas
recriavam um ambiente de festas e reuniões, jantares e música, e sua decoração reproduzia
o luxo e conforto da capital com apuro de execução equivalente.
A arquitetura de traços coloniais passa a acompanhar o neoclássico da Corte, porém adaptado à mão de obra e materiais locais, exibindo frontões e detalhes do estilo muitas vezes incorporados sem rigor compositivo, denotando uma reprodução imagética. Assim, as construções passam do pau a pique a tijolos maciços vindos do exterior, os beirais generosos em
telhas capa e bica ganham elementos esmaltados, os pisos em grandes tabuados somam-se
aos parquetes e portas e janelas emolduram a paisagem com ramicelos e pinázios. Os interiores são trabalhados decorativamente com forros estucados, pinturas trompe l´oeil, papéis
de parede, mobiliário, louças e cristais importados criando um cenário que atesta o poder
do barão e seu modo de vida requintado.
Cada fazenda era um sistema produtivo composto pela casa sede e os locais de produção
(senzala, estábulos, pátio de secagem, tulhas, casa de beneficiamento, armazém), organização que espelhava a dinâmica econômica e social própria à época escravagista brasileira.
Verdadeiros relicários arquitetônicos, urbanos e rurais, estas residências merecem sua preservação e conservação como partícipes de um projeto de construção de memória da região que alimente, na atualidade, uma nova dinâmica produtiva e cultural.
Nossa proposta, neste trabalho, é defender a valorização destas residências como parte do
patrimônio, reconhecendo-as, hipoteticamente, como museus-casas.
Os museus casa são espaços que, por terem sido residências de personalidades históricas,
são preservados em suas características originais na tentativa de reproduzir a ambiência
de uma vida particular e, mais amplamente, do contexto cultural próprio à ação daqueles
agentes sociais.
Neste tipo de museu, acervo, personagem e cenário somam-se para contar não só uma
biografia, mas parte da história de um tempo, nos permitindo entender “a sociedade que os
reproduziu enquanto objetos históricos” (MENESES, 1994, p. 20).
* Doutora e Mestre em História Social da Cultura (PUC-Rio), Especialista em Comunicação e Imagem (PUC-Rio), Arquiteta e Urbanista (FAU-UFRJ) e Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (FAU-UFRJ).
229
É o que se pode dizer, por exemplo, do museu Casa da Hera, que tem como personagens
centrais Eufrásia Teixeira e seu pai Joaquim Teixeira Leite, um dos mais importantes comissários de café da região, e foi local de festas e saraus, além de discussões comerciais,
financeiras e políticas.
Embora a categoria museu-casa não possa ser diretamente aplicada a todas as residências
urbanas e rurais do Vale do Paraíba porque a maioria não é, institucionalmente, um museu
e nem sequer objeto de tombamento, julgamos que uma aproximação com as questões da
museologia possa contribuir para uma reflexão crítica sobre o uso atual das mesmas pelo
turismo cultural.
De modo generalista, seria possível pensar os barões, suas mulheres, escravos e escravas,
viajantes, comerciantes e outros como personagens da vida de uma casa de fazenda, contextualizando sua importância na história social.
O valor destes lugares faz pensar na necessidade de torná-los parte de um projeto de
memória da região, que contemple sua conservação segundo orientação e supervisão do
patrimônio e os articule como parte de um projeto cultural amplo, inserindo-os em uma
proposta de exploração sob a orientação de profissionais capacitados nas áreas de museologia, história, educação e turismo sustentável.
Neste sentido, nossa reflexão visa, ao mesmo tempo, produzir teoricamente uma análise
sobre a relação entre memória e história nestes lugares e propor uma primeira abordagem a
um modus faciendi para o reconhecimento destas casas como importantes agentes no processo de construção de memória do Vale do Paraíba. Isto através de três requisitos principais:
a intenção de memória, o reconhecimento de seu valor de histórico e cultural e a proximidade dialógica necessária aos museus na contemporaneidade.
Lugares de Memória
A origem do nome museu remonta à antiguidade grega: a casa das musas, que, sob a égide
da mãe de todas elas, Mnemosine, era o espaço de todas as artes, mas também da História,
representada pela musa Clio.
Esta percepção mítica ressalta o entrelaçamento constitutivo entre Memória e História na
definição do espaço de um museu.
Ocorre que, desde que a história como grande narrativa romântica e de visão totalizante entra
em crise, o modo como lidar com o passado, seus eventos e documentos é posto em questão.
Pierre Nora (1984) aborda a crise da história opondo uma memória verdadeira a uma
memória não verdadeira que seria a alcançada pela história como leitura teleológica e que
“solda” os acontecimentos do passado. A memória, de fato, estaria esfacelada, seria residual
e se refugiaria em lugares: “lugares de memória”.
Segundo o autor, a memória não possui regras definidas e para alcançá-la seria necessário
complicar o jogo de interrogação sobre ela mesma em seu próprio benefício. Um jogo que
230
História e Geografia do Vale do Paraíba
pretende encontrar nestes lugares algo mais complexo do que a história entendida como
uma narrativa racional, ordenada e cristalizada.
Fundamental é a intenção de memória que mobiliza um tipo de experiência e de conhecimento destes lugares como parte de um processo vivo: de construção de memória no presente.
Se as residências do Vale do Paraíba, como dissemos, não são, hoje, rigorosamente instituições museais, sem dúvida, podem ser consideradas “lugares de memória”.
Retomando o conceito da antropologia, podemos dizer que estes são tratados, de fato, como
“lugares” porque definem um sentido de identidade que tem sido buscado no presente.
Hoje, pode-se diagnosticar um senso de pertencer à região e a tentativa de explorar seu
valor cultural: os proprietários das residências (organizando-se em institutos) “autoproclamam” estes espaços como “museus”, abrindo as portas de casas particulares à visitação, e
assim, fazem memória.
É valoroso destacar que estas casas já atendem, portanto, ao requisito principal ou à instância de essência de todo processo de construção de memória: não só os lugares existem,
mas existe, no coletivo, uma “vontade” ou “intenção” de memória – ainda que explorada de
modo bastante intuitivo. As casas e seus objetos são tratados como “relíquias”, fragmentos
que podem conduzir a uma experiência do passado.
Todo museu-casa é também um relicário.
Nestes “lugares de memória”, é preciso, por um lado, valorizar a simplicidade e o caráter subjetivo do encontro, pois um fragmento do passado pode adquirir múltiplas significações a partir
da memória pessoal de quem visita o museu. Os objetos fazem ressoar a sensibilidade e, potencialmente, mobilizam a memória de modo inclusive “involuntário”, lembrando Henri Bergson.
Referindo-nos distinção entre os “valores de rememoração” tal como proposta por Alöis
Riegl (1987), podemos afirmar que, em muitos relicários, o “valor de antiguidade” é mais
explorado do que o “valor histórico”. Ou seja, a experiência é a de um contato direto com
o antigo, que remete à espessura do tempo, mesmo que muitas vezes não se tenha um referencial preciso sobre o contexto espaço-temporal do objeto.
A memória se constrói no presente da experiência: se hoje moramos e, hoje, manuseamos
objetos, a nossa vivência faz sentir a experiência do tempo, sendo a memória construída a
partir daquilo que é mais humano: o contato direto com o mundo. Além disso, todo objeto
possui o valor do trabalho, de uma energia material e mental depositada no ato do fazer. A
distância temporal aproxima a reflexão sobre os modos de vida, de produção de objetos,
modos de construir e fazer arte ontem e hoje.
Por outro lado, como bem adverte Lowenthal, em se tratando de história, as relíquias nos
oferecem apenas conjecturas; “os artefatos precisam ser ampliados por relatos e reminiscências”, pois “são os pensamentos, sentimentos e ações que são a substância da história e
não paus, pedras e bombazinas” (LOWENTHAL, 1988).
231
A partir daí tangencia-se a dimensão narrativa que todo espaço museal contempla e, principalmente, um museu-casa que lida diretamente com a questão biográfica. Trata-se de
pensar não só o valor de antiguidade de uma relíquia, mas também o seu valor histórico,
ao mesmo tempo, pessoal e coletivo. Isto porque este tipo de museu não só constitui um
espaço íntimo e privado, mas é parte de uma história cultural mais ampla.
Eis o segundo requisito para o processo de construção de memória do patrimônio do Vale:
o reconhecimento de seu valor histórico e cultural.
Por um lado, isto passa por questões formais administrativas e patrimoniais, entre as instâncias pública e privada, e requer a tomada de medidas como proteção, tombamento,
conservação e incentivos fiscais.1
Sob outro prisma, é o próprio conceito de museu – entre a memória e a história – que tem estado
em processo de discussão na contemporaneidade; este o ponto que iremos agora desenvolver.
Museu: lugar de memória e de história
Jacques Le Goff apresenta uma visão em que Memória e História estão uma relação de
simbiose: “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta” (LE GOFF, 1986,
p.47). Mas adverte que os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores de mecanismos de manipulação da memória coletiva.
Dá-se, na verdade, que a memória, por seu caráter plástico, pode ser moldada para constituir
uma história, uma narrativa, um discurso que valide uma visão de projeto social e de identidade.
Nas palavras de Gilberto Velho, “o projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar
significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria memória” (VELHO, 1994, p.101).
Dois são os perigos quando se pretende contar uma história em um museu casa: a romantização do passado, constituindo uma narrativa celebrativa e a ilusão biográfica, criando
um encadeamento de fatos que justifiquem acontecimentos, eventos célebres ou mesmo a
importância de uma vida.
O personagem central, o dono da casa, não deve ser visto como individualidade plenamente acessível: ele é também um universo complexo.
De fato, uma reunião de objetos pode ser comparada a uma escrita biográfica que, como
aponta Magaly Cabral, expõe “a faceta individualizada de nossos mitos, o avesso da faceta
pública do grande herói ou daquilo que é objeto de admiração”.
É, portanto, desmistificar a natureza sagrada dessas relíquias e transformá-las em
instrumentos de compreensão da casa, enquanto tipo sociocultural, a função na sua
trajetória e metamorfoses e na relação com os habitantes ou personagem-símbolo
que ela representa e, conseqüentemente, fazer o mesmo em relação ao personagem
ao qual ela serve de pedestal. Percorrer este labirinto de informações interconecta1
Neste sentido, merece reconhecimento o importante trabalho de inventário arquitetônico realizado nos últimos anos pelo Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), buscando catalogar e identificar as condições atuais das residências da região.
232
História e Geografia do Vale do Paraíba
das é não apenas visitar sala a sala, num roteiro pré-estabelecido, mas abrir mentalmente gavetas, armários, cofres, baús, estantes e prateleiras, percorrer o sótão das
memórias esquecidas e os porões da sensibilidade humana, cheia de fantasmagorias.
(HORTA, 1997, p.113. Apud. CABRAL.)
Assim, seria preciso entender a relação entre memória e história nos museus na perspectiva
da complexidade, ou seja, de modo interdisciplinar, admitindo diversos olhares e níveis
de leitura. A questão é como se aproximar do passado, buscando uma experiência viva da
memória no presente.
A percepção do passado implica mais que o movimento linear; circunstâncias sociais, culturais e outras são sobrepostas à narrativa, juntamente com histórias de outros povos, de outras instituições, de outras idéias. Enquanto a narração histórica é
unidimensional, o passado é multiforme, muito mais complexo que qualquer enredo
sequencial (LOWENTHAL, 1988, p.124).
O caminho da fenomenologia pode servir à crítica da história como progresso linear, em
defesa da visão de uma história de adventos, de acontecimentos.
Marilena Chauí, comentando Merleau-Ponty, afirma que para o filósofo nem sempre
o museu é benfazejo porque muitas vezes cria-se a impressão de que as obras estão
acabadas e reunidas somente para serem contempladas em uma unidade histórica e de
pensamento, validando uma história oficial, pomposa e celebrativa, assim perdendo uma
“forma nobre de memória”:
“Seria preciso ir ao museu e à biblioteca como ali vão os artistas, os escritores e os pensadores: na alegria e na dor de uma tarefa interminável em que cada começo é promessa de
um recomeço” (CHAUÍ, 2001, p.191).
Trata-se de um convite à aproximação do passado como fenômeno, na perspectiva de constituir sempre um olhar renovado sobre as coisas, sem ideias preconcebidas, pois o mundo
é continuamente redescoberto, reelaborando crenças, valores e sentimentos em uma experiência que é sempre atual.
Já para Reinhardt Koselleck, “é a tensão entre experiência e expectativa que em padrões
cambiantes, trazem novas resoluções e que através disso geram o tempo histórico”. “Experiência é passado presente” e “novas experiências podem abrir novas perspectivas” de
modo que as experiências “se acumulam e impregnam mutuamente” (KOSELLECK,
1990, pp. 272-275). Em sua terminologia, cada “campo de experiência”, o passado presente, está em tensão, no individual e no coletivo, com um “horizonte de expectativas”,
o presente no futuro.
Em nosso entendimento, pode-se unir a intenção de memória a uma visão de história que
explore o caráter complexo e a multiplicidade de discursos sobre o passado, tendo em vista
“campos de experiência” e “horizontes de expectativa” no passado e no presente.
233
A questão é de que forma o espaço museal, como “lugar de memória”, compromete-se
com uma visão histórica canonizada ou com uma vontade de memória que vê esta história
como o entrelaçamento complexo de diversas narrativas e vozes e, sempre, como a experiência do passado pode conduzir-nos a uma reflexão sobre o presente.
Todo museu, ao definir seu discurso, se coloca entre a obra e o espectador.
Podemos aproximar um projeto museal de construção de memória ao conceito de “espaço
de possíveis” tal como proposto por Pierre Bourdieu:
Os campos de produção cultural propõem aos que neles estão envolvidos um espaço de possíveis que tende a orientar sua busca definindo o universo de problemas,
de referências, de marcas intelectuais (...) todo um sistema de coordenadas que é
preciso ter em mente – o que não quer dizer na consciência – para entrar no jogo.
(BOURDIEU, 1996, p. 53)
O papel do museu, hoje, buscando um diálogo maior com seu público, deve ser definido
a partir da consciência de sua atuação em uma “superfície social” (BOURDIEU, 1996,
p.190), uma rede que permite ao discurso do museu conectar-se com outros discursos,
produzidos por indivíduos, famílias, instituições de poder e de ensino, expressões artísticas
e sistemas de comunicação.
Inevitavelmente, o jogo da memória tem como participantes os mais diversos agentes sociais e atua construindo a realidade. O museu toma consciência disso.
Neste sentido, destacamos a contribuição de Stephen Weil ao pensar os perfis de museu
na contemporaneidade. O autor desmistifica a imagem do museu, alertando para o fato de
que, como um meio neutro, ele pode ser usado na constituição de discursos.
Não há nada intrinsecamente virtuoso sobre o trabalho do museu; (...) Como
qualquer tecnologia, qualquer julgamento sobre o valor do museu depende dos
propósitos para os quais é usado. A este respeito, o trabalho do museu está muito
próximo do ensino, da publicação e do broadcasting. (...) O museu é essencialmente uma mídia neutra que pode ser usada por qualquer um para qualquer finalidade.
(WEIL, 1995, p.15)
Na defesa de espaços qualificados por seus objetivos, Weil afirma que o papel dos museus
deve ir além da salvaguarda de preciosidades, o “museu templo” de relíquias, para constituir
o “museu laboratório”, o “museu educador”, o “museu fórum” – espaço de debates e da
proposição de reflexões críticas sobre o passado.
A metáfora do templo expõe um significado mítico. Em sua origem, o museu foi pensado
como espaço de guarda, reverência e admiração de algo sagrado, de status. Vale lembrar que
o tema central da arte à época de sua criação era o religioso – imagem que parece ter permanecido no inconsciente coletivo quando se relaciona o templo à casa do tesouro.
234
História e Geografia do Vale do Paraíba
Já o “museu fórum” seria um espaço desmistificado, um lugar de reflexão e troca que
incentiva a participação dos visitantes, negando a imagem de um espaço que oferece informação e a de um visitante que tão somente a recebe. Assim, o museu seria um local onde a
natureza criativa e crítica do visitante é estimulada, tornando-se um espaço vivo, por oposição à imagem do museu em luto por um passado perdido.
Esta discussão ilustra a relação de tensão entre um habitus instituído de museu e uma nova
imagem. No encontro do Conselho Internacional de Museus realizado em 1992, foram
levantadas algumas diferenças entre o museu tradicional e o museu novo:
Museu Tradicional
Museu Novo
Puramente racional
Leva em conta as emoções
Especializado
Põe em manifesto as complexidades
Orientado para o produto
Orientado para o processo
Centrado nos objetos
Pretende visualizar os conceitos
Orientado para o passado
Interessa-se também pelo presente
Aceita unicamente originais
Aceita cópias
Enfoque formal
Enfoque informal
Enfoque autoritário
Enfoque comunicativo
Objetivo científico
Orientado para a inovação
É papel do museu saber interrogar o passado, estimulando a vontade de memória de seu
público para que este deseje partilhar o processo de construção de memória como produção de conhecimento crítico sobre o passado, o presente e o futuro.
Se nossa vontade de memória hoje percorre as vias de uma história em complexidade, o
diálogo do museu deve propor ações que se oponham a uma lógica explicativa e busquem
multiplicar as visões sobre um contexto através de várias narrativas, várias histórias e vários
tipos de mediação.
Talvez seja possível pensar de volta à “casa das musas”, em um lugar para várias expressões de arte que, junto às histórias, possam constituir verdadeiros lugares de construção da
experiência do passado no presente, através de um tipo de jogo, ao mesmo tempo, lúdico
e crítico, que reúna muitos participantes, muitas escritas, muitos meios de aproximação do
passado – objetos, música, literatura, fotografia, teatro, entre outros.
235
Eis o terceiro requisito de grande importância no processo contemporâneo de construção
de memória: a dimensão dialógica dos espaços museais. Como comunicar e como estabelecer uma relação de maior proximidade com o seu público de modo a, permanentemente,
incentivar a vontade de memória.
O Museu como próximo
É necessário que o museu, assumindo a dupla condição de relicário e fórum, seja visto
como um mediador de relações: entre o passado e o presente, entre os objetos e o público,
entre o individual e o coletivo.
Propondo uma abordagem entre a fenomenologia da memória e a sociologia da memória,
Paul Ricoeur (2000) defende, de modo humanizado, a mediação entre memória interior
(“eu” como subjetividade egológica) e memória coletiva (“coletivo” como abstração intangível) através da dimensão de filia ou dos “próximos”.
Ricoeur explora a relação entre filia e vida e ação na pólis da antiguidade. A filia pressupõe
um maior envolvimento entre as partes e um reconhecimento de si por parte do sujeito cuja
identidade faz parte de um todo. Para o autor, a família, a escola e os grupos são instituições
que estabelecem o papel de filia na relação eu-mundo.
Podemos estender o entendimento desta relação de proximidade aos espaços museais em
seu papel educativo, destacando a importância da contribuição, envolvimento e mobilização de instituições de ensino, escolas, professores em um projeto de educação patrimonial
que parta da relação com os espaços da memória.
Definindo um perfil dialógico como “próximo” e consciente de sua atuação em também
uma “superfície social”, o museu passa a ser um espaço aberto, não só um espaço de conservação, mas também de produção educativa e cultural.
Seria possível propor, unindo as instâncias administrativas, educativas e iniciativa privada,
uma rede de “lugares de memória” no Vale do Paraíba, seguindo a diretriz de um núcleo,
possivelmente um museu já instituído, onde ações educativas pudessem ser desenvolvidas,
envolvendo temas2 específicos.
Outros tipos de ações culturais que se encontram no limite do marketing cultural merecem
especial cuidado em sua implantação.
A proposição de eventos culturais sazonais, envolvendo uma rede de “lugares de memória”, pode ser incentivada, se contextualizada, como a iniciativa de aproximação com a
música clássica, que remete aos saraus e festas que aconteciam na região.
Assim também as estratégias de living history: ações performáticas em que a caracterização
de época pode somar-se a ações cotidianas do passado, produção de objetos e interação
com os visitantes através da dramatização. Estas propostas têm transformado espaços
arquitetônicos e até mesmo cidades em palcos de encenação que parecem agradar ao
gosto popular internacional. Qual o limite da espetacularização da construção da memória,
é uma importante questão. O perigo não está no recurso à teatralidade, ou qualquer outro
2
Como exemplos: a valorização do plantio do café e seu processamento; o morar dos barões e dos escravos e a relação entre espaço
e status; o cenário e os personagens do Vale na literatura; a paisagem e a representação do Vale nas artes plásticas, entre outros.
236
História e Geografia do Vale do Paraíba
meio de expressão e comunicação com o público, que pode ser dosado e contextualizado,
mas na forma de abordagem do passado – e este é um problema da história. Como toda e
qualquer narrativa, também a encenação corre o risco de romantização, cristalizando visões,
produzindo heróis e mitos.Na maioria das vezes, por seu caráter até mesmo simplório, as
ações performáticas realizadas nas fazendas do Vale – com personagens caracterizados à
época ou mucamas ou servindo à mesa – são apenas de um meio de tornar próximo o modo
de vida do passado, sem estabelecer reflexões sobre a realidade sociocultural de uma época.
Esta abordagem de teatralidade pode ser vista somente como um estímulo para o conhecimento porque o cotidiano representado não dá conta de apresentar os conflitos, as tensões
próprias da realidade como “lócus de instituição e produção efetiva das relações sociais”
(MENESES, 1994, p. 35).
Devem ser incentivadas abordagens mais elaboradas, como nas apresentações teatrais profissionais que fazem dos próprios espaços históricos das cidades o palco da encenação de
textos e fragmentos de obras literárias – ativando assim a memória também de modo imaginativo e, possivelmente, crítico.
Hoje, as mais diversas ferramentas servem à ampliação das possibilidades de comunicação
no museu: textos, fotografias, vídeos, multimídias, debates, atividades educativas, encenações etc. Porém, o caso dos museus-casa merece especial atenção e discernimento sobre
onde e como estes meios se adequam sob pena de interferir nos espaços que são eles mesmos acervo e parte da coleção.
Em síntese, um projeto de construção de memória pressupõe uma intenção interrogativa do
passado no presente, a valorização histórica e cultural dos lugares e a proposição de modos
de diálogo em que os espaços memoriais sejam vistos como próximos e partícipes de uma
superfície social ampla. Isto visando uma aproximação complexa do conhecimento, em perspectiva interdisciplinar, na tentativa de promover um modo de ver historiográfico formado
por diversas linhas de pensamento que se entretecem para descrever um fenômeno cultural.
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238
História e Geografia do Vale do Paraíba
Fazenda de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz:
Origens, Glória e Decadência na Serra do Tinguá
Sebastião Deister*
No atual território de Miguel Pereira (à época, pertencente à Freguesia de Nossa Senhora
da Conceição de Serra Acima da Roça do Paty do Alferes),1 tudo começou no ano da graça
de 1770, quando Manoel de Azevedo Matos iniciou a construção de sua primeira moradia
junto à margem direita do rio Santana, onde pretendia criar sua família ao lado da devotada esposa Antônia Ribeiro Werneck e dos filhos Ana de Jesus, Inácio de Souza Werneck
- já casado com Francisca das Chagas Monteiro – e Manuel de Azevedo Ramos. A partir
daquele local, Manoel sonhava estender pelo vale do rio e pelas férteis colinas adjacentes
suas plantações de cana, milho, feijão e mamona que então lhe pareciam ser a opção mais
rentável de vida após a queda da extração de ouro em Minas Gerais. Até aquela ocasião,
a mineração fora o mote de sua existência laboriosa e a razão do substancial pecúlio que
ele acumulara e que agora investia em terras do ensolarado e ainda inexplorado vale do rio
Santana. (DEISTER, 2004, vol. 2, p. 195)
Manoel de Azevedo Matos era um sesmeiro português nascido na Freguesia de Nossa Senhora da Piedade da Ilha do Pico, tendo se deslocado para o Brasil graças à atração exercida
pelas notícias enviadas por alguns amigos já radicados em Minas Gerais, dando conta da
facilidade e rapidez com que eles faziam fortuna naquela terra promissora. Aqui aportando,
logo buscou instalação na Freguesia de Nossa Senhora da Borda do Campo – atual cidade
de Barbacena –, ponto de referência para os faiscadores da época.
Ciente da vital importância de amealhar bens e fortuna capazes de sustentá-lo sem problemas
na velhice, o astuto imigrante deixava seus saldos no Rio de Janeiro a cargo de um dos seus
melhores amigos: o ajudante de ordens Francisco das Chagas Monteiro que, por uma admirável coincidência, seria alguns anos depois o sogro de Inácio de Souza Werneck, o segundo
filho do companheiro Manoel. Foi durante uma dessas viagens comerciais ao Rio de Janeiro
que Manoel de Azevedo Matos enfim conheceu D. Antônia Ribeiro Werneck, filha de João
Werneck, moradora então na Vila de Nossa Senhora do Pilar de Iguaçu, casando-se com ela
no dia 16 de dezembro de 1733 na Igreja da Candelária. (PONDÉ, 1980. p. 84)
No logradouro de Bertioga, na Freguesia de Nossa Senhora da Borda do Campo, Comarca
do Rio das Mortes, nasceram então os três filhos de Manoel e Antônia, a saber:
1 – Ana de Jesus Werneck, em 17 de Fevereiro de 1738.
2 – Inácio de Souza Werneck, em 25 de Julho de 1742.
3 – Manuel de Azevedo Ramos, 29 de Abril de 1748.
Professor. Vice-Presidente do IHGV.
A Freguesia de Paty nasceu com este pomposo título em 13 de abril de 1739 após a doação de uma quantia de 100$ réis
doada pelo Alferes Leonardo Cardoso e a subseqüente cessão de meia légua de terras para que nelas se erguesse uma Capela
Curada em honra de Nossa Senhora da Conceição, posteriormente benzida pelo Padre Manuel da Costa, Capelão Curado da
Paraíba, em 26 de abril do mesmo ano. (Cf. PIZARRO E ARAÚJO, Monsenhor José de Souza e Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1945, vol. 4, p. 94-95).
*
1
239
Aproximadamente trinta anos depois de se fixar pelas terras mineiras, Manoel de Azevedo
Matos resolveu, em função da acentuada queda da produção mineral nas montanhas mineiras,
mudar de profissão e dedicar-se com mais entusiasmo à agricultura no vale do rio Santana.
Escolhido um lugar seguro nas proximidades do rio Santana, Manoel, nos primórdios de
1770, iniciou então a construção da sua primeira moradia num dos flancos mais acessíveis do chamado Morro da Viúva. Ao lado de Ana Jesus, dos filhos Inácio e Manoel e da
nora Francisca das Chagas Monteiro (esta esperando o primeiro filho de Inácio) ele deu
por aberto os trabalhos bem junto à margem direita do rio, em um pequeno platô que
lhe oferecia uma série de grandes comodidades, entre as quais a terra fértil e muito bem
irrigada pelas águas do Santana e o acesso fácil a um trecho do Caminho Novo, pelo qual
eles pretendiam escoar a produção de sua futura fazenda tanto para Minas Gerais quanto
para o Rio de Janeiro.
Construída entre 1770 e 1771, a primeira moradia serviu de residência para Manoel e família pelo menos até o alvorecer de 1777, quando ele decidiu mudar-se para outro ponto
superior na margem esquerda do rio. Tal ideia fora determinada por dois motivos básicos: o
primeiro baseava-se no fato de que a primeira moradia já não mais atendia às necessidades
de acomodação da família, uma vez que em 1780 Inácio e sua esposa Francisca já criavam
sete filhos. O segundo remetia-se ao sonho que Manoel acalentava de fundar na Piedade
o primeiro estabelecimento de aguardente da região, aproveitando a febre de plantação de
cana-de-açúcar que vinha estimulando a grande maioria dos fazendeiros da Serra. O café,
que anos depois seria a grande mola de progresso de todo o território circunscrito pelas encostas do Tinguá e pelas águas do Paraíba, era ainda uma cultura incipiente e mesmo vista
com olhos desconfiados por grande parte dos agricultores do interior fluminense.
A segunda moradia contrastou em tudo com a primeira, principalmente em função de
sua inédita beleza e de suas notáveis dimensões. Todo o telhado foi assentado através do
uso de quatro águas, sustentadas por vigorosos esteios de maçaranduba, tendo os cunhais
uma cantaria aparente cuja base se viu engrossada por um resistente emboço. Sua fachada
ganhou portais e esquadrias de madeira de lei, complementadas em seus vazios com portas
de madeira em caixa contendo duas folhas e postigos de janelas confeccionados com o que
havia de melhor em questão de madeira na área serrana (PONDÉ, 1980, p. 89). Infelizmente, tais características tão curiosas, ricas e originais – até porque se acredita que tais peças
tenham sido talhadas com raro esmero pelos escravos de Manoel – desapareceram com o
tempo: na década de 1930, a Fazenda apresentava apenas os dois corpos laterais com as
peculiaridades remanescentes do período de sua fundação, pois quase um século antes, lá
pelos idos de 1850, o Barão de Paty, que a recebera como herança dos pais, substituíra o
corpo central original deixado pelo bisavô Manoel por outro em estilo neoclássico, modificação que recebeu depois retoques definitivos graças aos trabalhos ali desenvolvidos pelo
Visconde de Arcozelo, que a administrou no período de 1867 a 1870.
Bem mais protegida do que a primeira, a segunda casa da Piedade foi construída de frente
para o vale do rio Santana, com sua fachada contemplando o Oeste. Todavia, Manoel não
pôde desfrutar de seu conforto por muito tempo, pois a morte o levou em 1778, alguns
meses antes da comemoração de seus 90 anos.
240
História e Geografia do Vale do Paraíba
Aspecto atual da Fazenda N. S. da Piedade
A Fazenda da Piedade passou às mãos de Inácio de Souza Werneck logo após a morte de Manoel. Dando continuidade aos trabalhos iniciados pelo pai – apesar de suas obrigações como
militar o obrigarem a viajar constantemente para bem longe da Fazenda2 – Inácio, de pronto,
dedicou-se à lavoura, mandando vir de Minas Gerais diversas famílias para auxiliá-lo nos serviços do campo e doando para elas algumas de suas inúmeras glebas até então desocupadas.
Após a morte de sua querida Francisca, ocorrida em 11 de outubro de 1811, Inácio voltou-se para a vida eclesiástica (que, na mocidade, abandonara para poder se casar), sendo ordenado padre em 1813. Cumpriu suas funções de Vigário de Vara por cerca de nove anos,
pois veio a falecer na sua querida Piedade em 2 de julho de 1822, apenas vinte e três dias
antes de completar 80 anos.
Sua filha Ana Matilde recebeu então a Piedade como herança. Casada com o português
Francisco Peixoto de Lacerda, procurou ela dar continuidade aos trabalhos do pai naquela então florescente propriedade que, posteriormente, passaria às mãos do único
filho do casal – Francisco Peixoto de Lacerda Werneck – titulado 2º Barão de Paty
do Alferes3 –, que não apenas a exploraria comercialmente com imensas e rentáveis
plantações de café, como ainda nela introduziria algumas modificações e ampliações
estruturais, tornando-a definitivamente um marco fazendário de enorme peso social ao
longo do rico período de produção cafeeira verificado no Segundo Reinado. De fato, a
Na qualidade de sargento-mor do Império, Inácio exercia diversas atividades de fiscalização em outras freguesias. Ao lado
do amigo José Rodrigues da Cruz, foi um dos responsáveis pela criação da Capela de Nossa Senhora da Glória em 1789, junto
ao vale do rio Preto, origem da atual cidade de Marquês de Valença, posteriormente curada pelo padre Manoel Gomes Leal.
(Apud IÓRIO, Leoni. Valença de Ontem e de Hoje (1789-1952), Edição do autor, Rio de Janeiro, 1953, p. 28)
3
Francisco nasceu na Piedade em 6 de fevereiro de 1795, sendo filho único. Foi titulado 2º Barão de Paty do Alferes com Grandeza
em 15 de outubro de 1832, logo exercendo os cargos de deputado provincial e comandante da Guarda Nacional de Vassouras e Paty
do Alferes. Faleceu na Fazenda Monte Alegre em 22 de novembro de 1861, vitimado por um acidente vascular cerebral.
2
241
Piedade, com 600 braças (cerca de 1.320 metros) de testada e 1.800 braças (quase 4.000
metros) de fundos, possuía terra suficiente para produzir café a partir de 160.000 pés
racionalmente distribuídos por aquele fértil solo.
Após a morte do Barão de Paty em 1861, a Piedade passou por herança direta para seu filho
Luiz Peixoto de Lacerda Werneck e esposa, juntamente com outras propriedades, como a
Fazenda de Sant´Anna, o Sítio Barbacena e mais 575 braças de testada com 1.500 braças de
fundos da Fazenda das Palmeiras.
Ao receber as fazendas do pai, o doutor Luiz deve ter sofrido um forte impacto diante da
realidade da cafeicultura escravista brasileira, até porque jamais participara diretamente de
tais atividades rurais em face do tempo que passara estudando da Europa. De qualquer
forma, valeu-se de sua inteligência, de seu bom senso e de sua perspicácia para buscar a
orientação necessária para seu trabalho nos alfarrábios e nas orientações escritas deixadas
pelo pai, com isso pelo menos minimizando um pouco a dificuldade que sentiu ao assumir
seus deveres na fazenda.
A outrora magnificente Fazenda da Piedade não escapou do abraço asfixiante do declínio
da produção cafeeira, e apesar das exaustivas atividades do dr. Luiz Peixoto, aos poucos as
fecundas terras beijadas pelo rio Santana tornaram-se absolutamente inúteis e desencorajadoras. Com profunda amargura, a família Werneck viu espraiar-se cada vez mais pelas colinas o desnudamento dos terrenos e quedou-se impotente diante da erosão causada pelas
chuvas tropicais e do assédio esfaimado das pragas que se multiplicavam pelo restante das
plantações, a despeito de alguns negros mais féis tentarem, com as próprias mãos, eliminar
os insetos implacáveis e a invencível erva-de-passarinho que lenta, mas decididamente,
assenhoreavam-se de folhas carcomidas, de frutos envelhecidos e de brotos tímidos que
surgiam aqui e ali em alguns pés de café mais teimosos.
Em 1867, após a anuência de sua esposa Isabel Augusta e cerca de um ano depois da morte
da Baronesa de Paty, o dr. Luiz Peixoto enfim decidiu-se pela venda da fazenda a seu cunhado, o dr. Joaquim Teixeira de Castro, o futuro Visconde de Arcozelo, casado então com a
Maria Isabel de Lacerda Werneck, irmã do dr. Luiz. Livre do compromisso de administrar a
fazenda, este partiu em definitivo para Lucarno, na Suíça, onde, a propósito, faleceu em 22
de julho de 1855 vitimado por um edema pulmonar. (SILVA, 1984, p. 95)
Joaquim Teixeira de Castro,4 médico português nascido na Freguesia de Arcozelo, na cidade
do Porto, tratou logo de concluir a terceira moradia da Piedade, iniciada pelo sogro, o Barão
de Paty, por sobre as bases da chamada segunda moradia. Castro procurou melhorar o cafezal
e até arriscou-se a plantar novos cafeeiros nas áreas de terra que ele supunha ainda produtivas.
O Visconde, todavia, não encontrou facilidades na Piedade, segundo Francisco de Paula e
Azevedo Pondé, que registra em seu trabalho sobre a Fazenda:
Joaquim Teixeira de Castro nasceu no dia 14 de fevereiro de 1825 na vila de Arcozelo, em Portugal, tendo vindo para o Brasil
a fim de exercer a medicina. Foi contatado no Rio pelo Barão de Paty, vindo com ele para a Fazenda da Piedade. Apaixonado
por Maria Isabel de Lacerda Werneck, a filha caçula do Barão, com ela se casou na Igreja de Paty do Alferes em 25 de julho de
1845. Depois de herdar a Fazenda da Freguesia, deixada pelo Barão, Joaquim trocou-lhe o nome para Fazenda Arcozelo, a fim
de honrar o título que recebera de Visconde em Portugal no dia 7 de maio de 1874. A Fazenda hoje abriga a Aldeia de Arcozelo,
estruturada no século passado por Paschoal Carlos Magno e agora administrada pela Funarte.
4
242
História e Geografia do Vale do Paraíba
“A derrocada da zona agrícola cafeeira de Vassouras agravava-se dia a dia com as
pragas e a falta crescente de mão-de-obra. O ciclo cafeeiro consistia em arrancar do
solo virgem o máximo em menor tempo possível: e nesse afã em procurar meios
para aumentar a produção ou então substituir a perda pela exaustão do solo, os fazendeiros derrubavam as matas na ânsia de obter terras produtivas, destruindo-as,
já de início, pela queima indiscriminada da madeira, branca ou de lei, malbaratando
bens incalculáveis e prejudicando o solo fértil, pelo destocamento que favorecia a
erosão e pela queimada cujas cinzas reduziam sobremaneira a fertilidade. Um cafezal
exigia terras virgens e quatro anos para produzir; e, se bem tratado e em solo propício,
poderia dar frutos por quase meio século. Mas isso era impossível, baseado em derrubadas de mata, plantio desordenado e à mercê das pragas (...) A teoria dominante era
plantar o café para dar dinheiro e não uma cultura permitindo emprego e felicidade às
gerações futuras. Era a velha técnica combatida pelo Barão de Paty desde 1846, de arrancar do solo o produto no menor tempo possível, acarretando a destruição da terra
virgem pelo machado, fogo e enxada (...)” (PONDÉ, 1980, p. 131)
O Visconde administrou a Piedade por 24 anos, falecendo em 1º de maio de 1891, vitimado, segundo consta, pela febre amarela, moléstia que já derrubara muitos sitiantes e escravos nas décadas terminais do século XIX.
Após a morte do Visconde, a fazenda passou por herança direta para seu filho, o major Luís
Werneck Teixeira de Castro, casado então com d. Maria dos Anjos Albuquerque. Conhecedor das dificuldades da época, o major seguiu o mesmo caminho trilhado por vários outros
fazendeiros da região para conseguir os recursos necessários à administração da fazenda
com um mínimo de segurança e lucratividade: hipotecou a propriedade a seus primos, o
Coronel Joaquim Ribeiro de Avelar e sua esposa d. Mariana Albuquerque de Avelar (na
ocasião donos da Fazenda Pau Grande, em Avelar). A hipoteca foi lavrada em 20 de junho
de 1898, valendo Rs. 40:000$000 (quarenta contos de réis) com juros estabelecidos a 10%
ao ano, por um prazo de 3 anos. (PONDÉ, 1980, p. 139)
Não obstante suas ingentes tentativas de saldar a hipoteca, o major Luís Werneck Teixeira de
Castro viu-se compelido a entregar a Piedade a seus credores para solucionar em definitivo
suas dívidas. Assim, cinco anos depois da primeira hipoteca, ele entregava a fazenda aos primos através de escritura lavrada em 19 de fevereiro e reafirmada em 2 de abril de 1903.
Provavelmente, nessa data a imagem de Nossa Senhora da Piedade, mandada vir de Portugal por Manoel de Azevedo Matos em 1770, tenha sido transferida para a Matriz de Nossa
Senhora da Conceição de Paty do Alferes, por exigência direta do major Luís. Segundo
consta, ele condicionara a assinatura da escritura de transferência da Piedade para seus
primos à concordância desses em levar a Santa para onde seu tetravô – o padre Werneck –
encontrava-se sepultado.
O coronel Joaquim Ribeiro de Avelar, talvez por conta da distância que separava Pau Grande da Piedade, ou ainda devido a problemas financeiros ou mesmo políticos (já que ele
recebera a indicação para o cargo de chefe do Poder Executivo em Vassouras, uma posição
de alto prestígio hoje equivalente a Prefeito), não demonstrou grande interesse em reativar
243
a Piedade. Por consequência, apenas cinco meses depois de receberem a fazenda do major
Luís, ele e a esposa venderam-na, em 25 de setembro, por míseros 3 contos de réis para
Francisco Santoro, com escritura passada na própria Fazenda do Pau Grande pelo escrivão
Lafayette Werneck Dantas, por extrema coincidência também um descendente da pioneira
família fundadora da fazenda. (PONDÉ, 1980. p. 140)
Francisco Santoro e sua mulher, d. Gema Storino Santoro, buscaram desenvolver na fazenda a plantação de cana e a fabricação de aguardente no abandonado alambique de cobre,
além de tentar o cultivo de novos pés de café. Passaram ainda a criar gado leiteiro e de carro
e outros pequenos animais, e os produtos de sua propriedade – como carne, verduras, legumes, leite, ovos e algumas frutas – eles comercializavam, mesmo com dificuldades, na já
concorrida feira livre de Paty do Alferes.
Tudo, porém, conspirava contra seus planos: o cafezal, envelhecido e derrotado pelas pragas, já nada rendia; a pequena lavoura sofria com a terra exaurida; seu capital de giro ia se
extinguindo e a distância que separava a fazenda da estação da estrada de ferro, pela qual
eles poderiam escoar parte de sua produção, desanimava os sitiantes e onerava o preço
final das mercadorias. Em vista de tantos reveses, cansados e desesperançados, Santoro e a
esposa venderam a fazenda para Paulo Florentino Lebre e sua mulher – d. Maria Amélia do
Amaral Lebre – consumando-se o negócio no dia 23 de abril de 1918, em cartório do Rio
de Janeiro. (PONDÉ, 1980, p. 140)
Após adquirir a Piedade, Florentino Lebre continuou residindo no Rio, deixando um administrador na Serra para cuidar de seu vasto patrimônio. A partir de então, passou-se novamente a criar algum tipo de gado de leite na fazenda e deu-se início à lavoura de cana para
a produção de aguardente, plantando-se também hortaliças e frutas destinadas basicamente
ao consumo da família e dos seus empregados.
Mais tarde, influenciado por alguns amigos, Lebre montou uma pequena serraria em Vera
Cruz, bem junto à mata, barrando parte das águas do rio Santana para produzir energia,
esta tão necessária ao corte dos troncos obtidos nos poucos bosques ainda virgens que
circundavam suas terras. Embora também produzisse alguma quantidade de carvão, Lebre
demonstrava cuidado ao explorar as matas, evitando derrubar muitas árvores próximas
entre si – a fim de não formar clareiras – e plantando mudas de novas espécies ou mesmo
daquelas que eram utilizadas nos serviços da serraria. Com os troncos, ele chegou ainda a
talhar dormentes para o leito da estrada de ferro, negócio que, entrementes, não prosperou
como ele esperava, já que a ferrovia dispunha em Portela e em Avelar de hortos próprios
para tal demanda.
Paulo Florentino Lebre morreu em 27 de junho de 1931, na Piedade, passando todas as
suas propriedades (Piedade, Vera Cruz e Macuco) para a viúva Maria Amélia e filhos.
Os herdeiros, embora esperançosos, começaram a se deparar com uma série de dificuldades praticamente incontornáveis: falta de mão de obra barata, qualificada e específica
para uma fazenda, impostos cada dia mais pesados e insistentes exigências do Instituto do
Açúcar e do Álcool sobre a fabricação de aguardente. Às voltas também com as enormes
244
História e Geografia do Vale do Paraíba
dívidas do inventário, os beneficiários concordaram em vender a terceira moradia para d.
Charlotte Dublinau, incluindo no negócio a antiga senzala, o terreiro de café e o engenho, e
conservando para a própria família apenas a pioneira a primeira moradia, até hoje em mãos
dos descendentes de Júlio Lebre.
Em relação à terceira moradia, podemos lembrar que ela nada mais era do que a segunda,
ampliada e restaurada. Essa terceira moradia apresenta o estilo neoclássico dominante
no 2º Reinado Brasileiro, tão comum a dezenas de fazendas da região serrana. Ela foi
iniciada pelo Barão de Paty do Alferes no mesmo local do corpo central da segunda moradia, mas ele mesmo não chegou a concluí-la, pois em 30 de novembro de 1853 o Barão
adquirira a Fazenda Monte Alegre – talvez a maior de todas as suas paixões patrimoniais
na Serra –, na qual, de imediato, deu partida às obras de término da casa-grande para ali
fixar sua família, estabelecendo então nas proximidades de Paty um belo palacete de dois
andares que até os dias atuais permanece de pé na localidade de Pedras Ruivas como a
mais conhecida eloquente prova das riquezas daquele fazendeiro. Inteiramente dedicado
a Monte Alegre, o Barão de Paty não completou as obras dos dois corpos laterais da Piedade e nem mesmo o alpendre central. Tais serviços somente foram concluídos algum
tempo depois por ordem do Visconde de Arcozelo, até porque sabe-se que, em 1865 –
quatro anos depois do falecimento do Barão –, a Piedade ainda se encontrava envolvida
em restaurações sob o comando de Maria Isabel d’Assunção Lacerda de Werneck, a
Baronesa de Paty, na condição de inventariante do marido.
Em 1945, a terceira moradia da Piedade ainda apresentava o corpo principal neoclássico concluído pelos proprietários que sucederam o Barão e o Visconde de Arcozelo.
Seu pórtico central mostrava um arremate com um frontão triangular de tímpano
liso, com quatro colunas na frente, de base quadrada e tijolo aparente, e duas de
fachada, sustentando telhado de duas águas e formando o pórtico. Sua frontaria possuía quatorze janelas com pilastras de tijolo aparente separando-as de duas em duas.
Atualmente, no entanto, essas colunas encontram-se recobertas e pintadas de branco,
não existindo, portanto, os antigos tijolos aparentes que tanta elegância e bom gosto
conferiam à austera fachada da Piedade.
Embora a Piedade, à época de Lebre, ainda dispusesse de grande parte de sua infraestrutura
fazendária, sua decadência mostrou-se irreversível. Sua nova proprietária, d. Charlotte Dublinau, nela promoveu algumas reformas consideradas “modernizantes” nas alas da terceira
moradia, além de introduzir uma série de modificações internas no corpo formador da
antiga segunda moradia, como a construção de banheiros nos antigos quartos e a divisão
do velho salão de recepção em aposentos novos e menores. Na área externa, ela alterou
a entrada com a retirada de duas colunas centrais do pórtico e elevou seu piso de acesso.
Assim, interligando os corpos da segunda e da terceira moradias, ela instalou na Fazenda da
Piedade o Hotel Guaíra, de breve duração. (PONDÉ, 1980, p. 140)
D. Charlotte, de origem francesa, enfrentou na ocasião sérios atritos pessoais e políticos
com seu sócio alemão, em função dos anos de guerra na Europa que antepunha em
campos opostos seus países de origem. Tais desentendimentos foram parar na justiça, e
enquanto esta não formalizava uma decisão, a antiga senzala, o engenho e toda a terceira
245
moradia ficaram sob a proteção de um preposto da proprietária, cuja irresponsabilidade e
indiferença para com aquele patrimônio histórico deixaram a Piedade entregue a um total
abandono, a ponto de provocar a queda dos telhados e o desmoronamento das seculares
paredes de taipa. O descalabro dessa absurda administração chegou ao cúmulo de se
permitir o desmanche do que restava da senzala e do engenho, cuja madeira dos telhados
e das esquadrias de janelas e portas – confeccionadas havia mais de cem anos com o
esmero típico dos escravos e com madeiras de lei como jacarandá e sucupira – chegou a
ser utilizada pelos inúteis e ociosos empregados da fazenda como simples lenha de fogão.
Anos depois, até mesmo parte do terreiro de café – que recebera uma cuidadosa reforma
promovida pela Baronesa de Paty em 1863 – foi desmanchada e suas pedras empregadas
para se construir o piso de uma pequena piscina na propriedade.
O mais absurdo dessa atitude insólita e inconcebível é que Vera Cruz, graças ao rio Santana, sempre fora uma região abundante em pedras, mas, por comodismo e insensibilidade,
mostrou-se mais fácil destruir um piso centenário de pedras perfeitamente recortadas e
prontas para uso do que buscar material bruto às margens do rio. Em pouquíssimo tempo,
os belos telhados das casas e suas paredes de taipa vieram abaixo, deixando pela Piedade
um ar soturno de solidão, melancolia e saudade.
Lavrada finalmente a sentença judicial, d. Charlotte vendeu a terceira moradia ao industrial Cecil Davis, que recuperou o telhado parcialmente esboroado e alterou um pouco
a frontaria da fazenda com a retirada de duas pilastras existentes entre cada duas janelas,
substituindo ainda o que restara da segunda moradia por duas outras alas de características semelhantes ao corpo central já modificado, e assim conferindo à Piedade o aspecto
elegante que atualmente ostenta. Com a morte de Cacil Davis, assumiu a fazenda seu filho
Cristiano, que a administrou por alguns anos.
Posteriormente, o embaixador José Aparecido de Oliveira comprou a Piedade, e com um
paciente trabalho de restauração e pintura, fez novamente brilhar nos seios das colinas de
Vera Cruz a grande propriedade onde se gestou o embrião do Município de Miguel Pereira.
Em anos anteriores à morte de Lebre, vários loteamentos foram implementados em terras
da Piedade, retalhando a área original da fazenda e fazendo surgir na região uma comunidade de sítios menores. Claro está que a região de Vera Cruz, como um todo, não escapou do
processo de divisão de terras verificado em maior grau de intensidade na década de 1970.
Afinal, as dificuldades financeiras de manutenção dos imensos terrenos improdutivos e
íngremes do vale do rio Santana, aliadas à ausência de mão de obra mais especializada para
explorar lavouras numa zona eminentemente de veraneio, levaram os grandes proprietários
à conclusão de que seria mais viável lotear e vender suas terras para edificação de pequenas casas e sítios para turistas e veranistas. Isso aos poucos levou os empresários do ramo
imobiliário a tomar conta de quase toda a área de Vera Cruz, como reflexo natural da urbanização verificada no alto da Serra, onde Miguel Pereira já crescia de maneira considerável.
De qualquer forma, a Fazenda da Piedade e seus destemidos fundadores não foram importantes apenas para Paty do Alferes e Miguel Pereira em função de seus trabalhos no século
XIX e pela influência social e colonizadora ali exercida pelo Barão de Paty. Precisamos ter
246
História e Geografia do Vale do Paraíba
sempre em mente que a filha de Manoel de Azevedo Matos – Ana de Jesus Werneck – e
seu irmão caçula Manoel de Azevedo Ramos muito contribuíram para o aparecimento de
Governador Portela e Miguel Pereira: ela, administrando as terras de Monsores (na área
hoje correspondente a Cilândia e Morro Azul, em terras do município de Engenheiro
Paulo de Frontin) e ele explorando e urbanizando a Sesmaria do Sacco,5 em terras atuais
de Barão de Javary e parte do Distrito de Governador Portela.
Com efeito, Paty do Alferes, Pedras Ruivas, Miguel Pereira, Barão de Javary, Vera Cruz,
Francisco Fragoso, Marcos da Costa, Governador Portela, Cilândia e Morro Azul – isso
sem nos reportarmos a extensas glebas serranas inseridas nos territórios de Vassouras,
Marquês de Valença, Rio das Flores e Paraíba do Sul – devem praticamente tudo à saga da
família Werneck pelas colinas e várzeas da Serra do Tinguá. Não fossem o destemor e a
esperança, o profundo senso visionário e especulativo e, em especial, a férrea vontade de
Manoel de Azevedo Matos nos esfumaçados anos de 1770 e muito provavelmente nossa
História hoje estaria sendo narrada de maneira completamente diferente.
No século entrante, a família Lebre reivindicou na justiça o direito de exclusividade do
título Nossa Senhora da Piedade para a sua moradia, alegando ter sido ela a primeira das
construções erguidas em Vera Cruz. Por conseguinte, o proprietário da terceira moradia
– o embaixador José Aparecido de Oliveira – viu-se obrigado a trocar a designação de sua
propriedade, rebatizando-a então como Fazenda Santa Cecília, numa homenagem à filha
Maria Cecília. Por outro lado, o notável arquiteto Oscar Niemeyer ali deixou sua marca
como presente para a família, erguendo nos gramados da propriedade uma singela capela
dedicada à Santa Cecília.
Para todos nós, estudiosos daquela época tão fértil em realizações pessoais – e mesmo
para aqueles que demonstrem uma pequena curiosidade pelos nossos antepassados – resta
tão somente nos dias atuais a prova maior e inconteste de um período brilhante de lutas e
conquistas que cingiu nossas colinas ao longo de décadas e décadas de trabalho e otimismo:
a Fazenda de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz, desconhecida pela grande maioria
dos moradores de Miguel Pereira, mas sempiterna, sóbria, elegante, austera e saudosa, em
cujos salões e quartos bonançosos talvez perpassem, vez por outra, as lembranças de 241
anos de amor à terra que a acolheu e nutriu, recordações estas que nós, povos serranos,
não podemos e nem devemos permitir que sejam levadas pelo tempo implacável que tudo
envolve em seu manto de esquecimento e desprezo.
Cabe aqui uma digressão a respeito da peculiar denominação dada à sesmaria e ao pequeno riacho que atravessa Miguel
Pereira e Paty do Alferes. Com efeito, o próprio Manoel de Azevedo Matos legara ao filho Manuel de Azevedo Ramos a
Sesmaria do Sacco, cujas terras alcançavam parte de Barão de Javary e Miguel Pereira. A curiosa denominação Sacco foge à
nossa compreensão, a não ser que acreditemos que Manuel se tenha valido de um costume mineiro da época: sabe-se, com
grande grau de certeza, que em Minas era comum chamar-se “sacco” qualquer extensão de planície que fosse cercada por
matas ainda virgens, assim como em Goiás até hoje se usa o mesmo vocábulo para designar um arco de círculo descrito por
um rio qualquer. Como Manoel de Azevedo Matos viera de Barbacena e sua sesmaria, de fato, estivesse envolvida por largas
extensões de bosques marginadas pelo rio Santana, podemos deixar em aberto esta discussão: o termo Sacco foi lançado
pela família de Manuel de Azevedo Ramos a partir de 1789 para qualificar sua ampla sesmaria no alto da Serra do Couto, e a
reboque de tal decisão o pequeno córrego em Barreiros foi assim batizado tempos depois.
5
247
Referências Bibliográficas
DEISTER, Sebastião. Serra do Tinguá: 300 Anos de Conquistas (volume 2: Em Busca do Ontem Perdido). Rio de Janeiro: Edições Dédalus, 2004.
IÓRIO, Leoni. Valença de Ontem e de Hoje (1789-1952). Rio de Janeiro: Edição do autor, 1953.
PAMPLONA, Nelson Vieira. A Família Werneck. Edição do autor: Rio de Janeiro, 2010.
PIZARRO E ARAÚJO, Monsenhor José de Souza e Azevedo. Memórias Históricas do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945.
PONDÉ, Francisco de Paula e Azevedo. A Fazenda do Barão de Paty do Alferes (Fazenda da
Piedade). In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico. Rio de Janeiro: nº 327, abril - junho, 1980.
SILVA, Eduardo. Barões e Escravidão: Três Gerações de Fazendeiros e a Crise da Estrutura Escravista.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.
WERNECK, Francisco Klörs. Origem da Família Werneck (Portugal-Brasil). In: Revista
Genealógica Brasileira. São Paulo: ano IV, nº 8, 2º Semestre de 1943.
___ História e Genealogia Fluminense. Rio de Janeiro: Editado pelo autor, 1947.
WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck. Memória Sobre a Fundação de uma
Fazenda na Província do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal – Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1985.
248
História e Geografia do Vale do Paraíba
Fazenda Três Poços: do Café à Universidade
Roberto Guião de Souza Lima*
Agradeço ao Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras a oportunidade da apresentação desse trabalho e do livro que o consubstancia, escrito em parceria com ilustres historiadores, saúdo o professor Sebastião Deister, meu companheiro de apresentação nessa
mesa-redonda, e ao presidente da mesma, professor Jeronimo de Paula da Silva.
Peço permissão para homenagear o embaixador João Hermes Pereira de Araujo, que escreveu
— junto com d. Heloisa Helena Monteiro de Barros, falecida em 2001, bisneta de d. Cecília
de Moraes Monteiro de Barros, a grande matriarca de Três Poços — o capítulo que trata
da história da fazenda e dos seus proprietários, desde a concessão da sesmaria original até
a morte de d. Cecília. Ao amigo e eminente historiador, agradeço a amizade, a parceria e os
ensinamentos a mim prestados ao longo do nosso convívio.
A fazenda Três Poços pode ser considerada o ícone da cafeicultura em Barra Mansa (hoje
em Volta Redonda) — expressivo feudo cafeeiro do século XIX — e, também, exemplar
representativo da cultura do café dos oitocentos não só na vertente fluminense como em
todo o Vale do Paraíba. Assim, merece ter sua história resgatada e divulgada.
Vou falar sobre esta fazenda utilizando, parcialmente, imagens do livro em foco.1
1ª Parte – 1780/1784 até 1918
A fazenda foi fundada por volta de 1780, em sesmaria de “légoa em quadra” (900 alqueires
geométricos), concedida oficialmente a Matheus Pereira de Araujo e Oliveira, em 1784,
que a vendeu, ainda sem expressividade agrícola, ao 2º sesmeiro, Manuel José de Araujo e
Lima. Os herdeiros deste, já com algum café, a venderam, em 1835, por 10 contos de réis,
ao coronel José Gonçalves de Moraes, futuro barão de Piraí, e ao seu cunhado e genro, o
futuro comendador José de Souza Breves.
Foi doada a Cecília Breves de Moraes, depois Cecília de Moraes Monteiro de Barros, filha
do primeiro e sobrinha do segundo e casada, em 1834, com o futuro comendador Lucas
Antonio Monteiro de Barros, filho dos viscondes de Congonhas do Campo.
As imagens apresentadas a seguir retratam bem os principais aspectos desse período:
A figura (1) é o mapa da medição judicial de 1837, mandada proceder pelos compradores, e
que registra a sesmaria já bastante invadida e com somente 401 alqueires em relação aos 900
originais. Os compradores resolveram aceitar a propriedade como encontrada e, para não
se indispor com os posseiros, que seriam vizinhos, com eles celebraram acordos de divisas.
As figuras (2) até (7) retratam os principais personagens da época, a saber: dona Cecília
Pimenta de Almeida Breves, baronesa de Piraí, e seu marido, o coronel José Gonçalves de
Moraes, barão de Piraí; dona Rita Clara de Moraes Breves e seu marido, o comendador José
* Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro e titular do Colégio Brasileiro de Genealogia.
1
As imagens não foram incluídas no presente texto.
249
de Souza Breves e dona Cecília de Moraes Monteiro de Barros e seu marido, o comendador
Lucas Antonio Monteiro de Barros, casal que instalou e administrou efetivamente a propriedade. A figura (8) apresenta uma vista parcial da casa sede ao final do século XIX e a (9)
uma das suas mais expressivas dependências: a “Sala da Missa”, na qual estavam expostos
os retratos dos personagens apresentados e tendo ao fundo a bela capela dedicada a Nossa
Senhora da Conceição. O altar original dessa capela, a figura (10), foi instalado posteriormente em uma capela criada na fazenda Feliz Remanso, fronteira a Três Poços e atualmente
no município de Barra do Piraí, única propriedade do casal Monteiro de Barros que ainda
permanece na família. A figura (11) registra a planta baixa da casa-sede na configuração de
final do século XIX e, finalmente, as figuras (12) e (13), uma lembrança do falecimento de
dona Cecília, o popular “santinho”.
Termina aqui o período de mais de 80 anos de presença e domínio dos Monteiro de Barros
em Três Poços que ali exerceu administração profícua e crescentemente eficiente ao longo
do tempo. Atesta isso a evolução do patrimônio do casal que dos 40 contos de réis iniciais
atingiu 1800, quando do falecimento do comendador Lucas Antonio em 1862, e 4000,
em 1918, quando faleceu dona Cecília, que administrou a propriedade por 56 anos, após a
morte precoce do marido com apenas 50 anos.
A fazenda, que tinha 652 alqueires quando do falecimento de Lucas Antonio e 480 no falecimento de dona Cecília, chegou a produzir 22.000 arrobas de café (330t de grãos secos).
Fechando com “chave de ouro” esse período e este expressivo capítulo do livro, interessante e comovente depoimento escrito em 1925 por dona Maria Amélia de Souza
Rangel — nascida em 1906 e falecida em 1979, bisneta do casal Lucas Antonio e Cecília
— registra impressões e lembranças dela dos dias passados na casa da bisavó, que vivia os
últimos dias da sua longa e profícua existência, na companhia de vários primos, lá pelos
idos de 1913/1914.
2ª Parte – 1918 até 1968
Inicia com a morte de dona Cecília e, sob a égide de diversas entidades religiosas, passando
por isso a ser conhecida como a “Fazenda dos Padres“, vai até 1968, quando aconteceu a
sua desapropriação pela Prefeitura Municipal de Volta Redonda (PMVR).
Foi uma fase completamente diferente da anterior e na qual se tentou desenvolver diversas
atividades, empreendimentos e negócios sem que nenhum deles tenha conseguido dar à
fazenda utilização: clara, concreta e permanente como acontecido na fase anterior.
Não era isso, entretanto, que a matriarca esperava que acontecesse com a sua querida fazenda onde viveu por mais de 80 anos.
Vamos resumidamente aos fatos:
A figura (14) registra, em desenho do engenheiro Henrique Braune, a planta das benfeitorias e terras (100 alqueires geométricos) doadas por dona Cecília à Associação Brasileira dos
Trapistas, (ABT) em 1808, isto é, doação definida 10 anos antes dela morrer.
250
História e Geografia do Vale do Paraíba
Na página 104 do livro é apresentado um texto escrito e inserido na medição pelo dr.
Braune que é uma verdadeira peça histórica de quem conheceu muito bem dona Cecília,
de como ela pensava e o que ela desejava com a doação da sua querida fazenda que em resumo seria que nela fosse implantada uma moderna escola agrícola que pudesse difundir e
desenvolver, de forma ampla, as mais modernas técnicas agrícolas, que provesse o sustento,
o bem estar e o desenvolvimento profissional e pessoal de todos os que ali trabalhassem e
ensinassem e que, assim, pudesse prestar, de maneira contínua e permanente, um relevante
serviço às famílias e ao país.
Aqui caberia a pergunta: por que foram escolhidos os Trapistas?
Pela tradição secular e avançado conhecimento teórico e prático que eles detinham das
técnicas e procedimentos agrícolas, como já estavam demonstrando em fazenda por eles
adquirida em 1904, em Tremembé (SP), quando foram banidos da França devido ao processo de laicização radical do ensino lá promovido ao final do século XIX e início do XX.
Na visão da extremamente religiosa dona Cecília, essa seria a organização “sob medida”
para implantar/desenvolver seu sonho.
A planta da figura (15), peça do inventário de dona Cecília de 1918, registra, ao lado das
terras dos herdeiros, os 100 alqueires de terras doadas aos Trapistas dez anos antes, terras
essas que passaram a representar então a fazenda Três Poços.
A ABT aceitou formalmente o legado, mas não o assumiu. Sem intenção de ocupá-lo e
sem poder vendê-lo, devido a cláusulas testamentárias, e “de partida” do Brasil — pois não
conseguiam formar “quadros” que mantivesse em funcionamento a Trapa de Maristela em
Tremembé — arrendaram as terras à Ordem de São Bento (OSB) que nela tentou criar e
manter, entre 1921 e 1927, sem sucesso, um “patronato agrícola” que, em parte, atenderia
aos desejos da doadora.
Sem disponibilidade de tempo para apresentar aqui os detalhes e sem julgamento de valor,
pois se trata de uma narrativa histórica, embora com certo cunho investigativo, ficando por
conta do leitor eventuais conclusões, concretamente ocorreram, pelo lado da doadora: vários
equívocos nas cláusulas testamentárias da doação e nos seus sucessivos codicilos; muita boa
fé; inadequada assessoria jurídica; falta de amarras que acompanhassem a implantação do processo; filhos envolvidos com seus próprios interesses, entre outros aspectos e, pelo lado dos
recebedores: interesses que buscavam, através de tentativas administrativas e jurídicas, vender
ou dar outra destinação aos bens doados — o que só não foi conseguido, “oficialmente”, pela
existência da cláusula testamentária de “inalienabilidade vitalícia dos bens doados”.
Esses aspectos levaram a que, por volta de 1930, apenas 12 anos após a doação ser efetivada
e a morte da doadora, já tivesse sido completamente sepultado o sonho de dona Cecília.
Os monges Beneditinos da OSB, substituindo fisicamente os monges Trapistas mas mantendo, entretanto, oficialmente funcionando a ABT, dona legal da propriedade, desenvolveram na fazenda várias atividades como: arrendamento de terras a terceiros (várias moda-
251
lidades), mantendo concomitantemente as atividades religiosas; instalação de uma “Casa de
Estudos Teológicos”; cessão de uso a várias instituições religiosas como a “Congregação
dos Sagrados Corações”, a “Companhia de Jesus” e a “Mitra Diocesana de Barra do Piraí
– Volta Redonda” etc. até que, em 1968, a PMVR, em um processo controvertido, resolveu
desapropriar a área para nela criar conjuntos habitacionais populares, um distrito industrial
e a instalação da Fundação Oswaldo Aranha (centro universitário), pagando a ABT (OSB),
em valores de dezembro de 2006, cerca de R$1.250.000,00 pelos 100 alqueires de terras
doados por dona Cecília.
Na verdade, pouco se fez nas terras desapropriadas onde poucas indústrias se instalaram. Invasões ocuparam as áreas planas da propriedade e, se nada for feito, ocuparão também os morros.
Em uma área de cerca de três alqueires, onde ficavam a casa-sede e as instalações agrícolas
da fazenda, foi instalado o “Campus Olézio Galotti” (campus Três Poços) e a sede administrativa da Fundação Oswaldo Aranha (FOA), possivelmente a única coisa boa em todo
esse processo.
Várias imagens, da figura (16) até a figura (33), registram aspectos da fazenda no período apresentado como: vistas do conjunto casa-sede e instalações por volta de 1940; do conjunto, com
o rio Paraíba do Sul e a ferrovia; da parada ferroviária de “Treis Poços” (sic); de detalhes e
aspectos das instalações e da casa sede antes e após a recomposição realizada em 1968/1969;
da presença dos beneditinos na fazenda, inclusive na “Capela para a Comunidade”; do Centro
Histórico Cultural Dauro Aragão, inaugurado em 2005 aproveitando antigas instalações de
serviço da fazenda; e vistas do campus Três Poços, em 1998/1999 e atualmente.
Em termos da casa-sede, não houve uma restauração e sim uma recomposição que visou
aproveitar o que era possível adaptando a estrutura para suportar atividades educacionais,
inclusive com alterações na disposição interna para salas de aula, banheiros, laboratórios etc.
Embora talvez não tenha sido o ideal, aplica-se aqui a máxima, certamente repudiada pelos
restauradores ortodoxos, “nem tanto ao céu nem tanto a terra” ou “dos males o menor”.
Ao final do capítulo, um adendo registra, cronologicamente, todos os diplomas legais do
Poder Público Municipal de Volta Redonda (PMVR e CMVR) no processo de desapropriação da fazenda Três Poços
Finalmente, a professora Flavia Lages de Castro apresenta um capítulo institucional ligando
a antiga fazenda ao moderno centro universitário sob o título: A Foa e o Centro Universitário de Volta Redonda – UniFOA, dando assim consistência ao título do livro: Fazenda Três
Poços do Café à Universidade.
252
História e Geografia do Vale do Paraíba
Observações Acerca da Pintura no Solar do Barão de Itambé,
em Vassouras
Sergio Guimarães Lima*
De que se constitui:
A decoração no seu conjunto se desenvolve no entorno interior das paredes no espaço nobre do casarão situado no número 3 rua Barão do Tinguá; e ponto mais elevado no centro
da cidade que, junto à matriz dedicada à Na. Sra. da Conceição sua padroeira, compõe o
conjunto principal de maior importância, objeto de tombamento pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, processo 566-T-57, inscrito no Livro Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico a fls.4, número 18.
Trata-se de uma sucessão de painéis distribuídos em toda área ao longo das paredes internas do Salão Nobre da residência situado no plano inferior da planta, nível térreo junto à
entrada principal de acesso a propriedade.
Sumário sobre a decoração
Os quadros de dominante vertical se dispõem ao longo do pé-direito de proporções mais
elevadas naquele plano, indo do piso até ao nível do “filete”, elemento arquitetônico que
marca o friso ao alto. Forma pela qual o artista autor do trabalho se ajusta em obediência
rigorosa e fiel à articulação devida ao que se lhe impõe o rigor do estilo vigente na época,
o neoclássico, adotado em parte para o Casarão, cuja data de construção remete ao ano de
1849. O acesso inicial da entrada no prédio é assinalado apenas por um pequeno vestíbulo,
elegante solução encontrada pelo seu arquiteto que desse modo, defende este belo conjunto dos olhares indesejáveis e fortuitos vindos do exterior.
Sobre o tratamento dado à temática pelo artista decorador, está ele baseado no alinhamento
livre e independente de maiores cuidados sequenciais do repertório bastante vasto, que via
de regra eram possuidores, os profissionais do ramo. Numa rápida visão de conjunto, ali
estão dispostos em meio a elementos ornamentais, sugestões de situação em interiores de
arquitetura, por vezes com a incidência eventual de figuras animadas e recortes de paisagem. Digno de destaque especial talvez possíveis retratos femininos, por sinal em melhor e
cuidada realização plástica.
Ainda sobre o mesmo tópico, cumpre chamar a atenção para o modo como foi encontrada
a solução plástica adotada. Por meio de uma conjugação dos painéis com diferenciada individualidade de motivos, selecionados que foram previamente de algum álbum com os “motivos” para tanto disponibilizados, tiveram nessa decoração a respectiva adoção pelo artista
responsável pela empreitada que assumiu, da realização, a seu cargo e responsabilidade no
resultado final apresentado. Resultado felizmente preservado na sua posteridade de mais de
século. Seu autor, responsável pela execução, o mestre e muito requisitado pintor, catalão
de origem, José Maria Villarongo, cuja assinatura de certo modo um tanto dissimulada, lá se
*
Doutor Livre-Docente. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com especialização em História da Arte.
253
encontra podemos dizer, meio que escondida numa papeleta, deixada sobre a prateleira de
um móvel, em verdade inexistente, mas de todo visível no recurso do “trompe l’ oeil”, deste
modo registrada para a posteridade, em meio à composição.
Entretanto, forçoso se faz assinalar o fato de tratar-se de um procedimento, muito em voga
à época, observável nas decorações presentes tanto nos interiores como nos avarandados
residenciais e que se consistia em transferir para o suporte da parede literalmente, os modelos previamente selecionados pelo contratante da obra, junto possivelmente, dos principais
membros da família.
Esses modelos aludidos se compõem de elementos figurados de um repertório variado
desde guirlandas com motivos florais, fitomórficos como buquês compostos por folhagens,
cenas de interiores comportando a presença de figurações animadas ou não, elementos outros próprios da gramática ornamental de variados estilos de época ligados ‘a arquitetura,
assim como das formas geométricas conhecidas como “gregas”. Isto sem esquecermos
as “chinoiseries”, assim mesmo em francês como são denominadas, toda uma gama de
ornatos de origem ou inspiração orientalisantes. Passava também pelas “estampas” de variadíssima coleção de acidentes paisagísticos, tudo mediante escala consoante o espaço a
ser preenchido.
Pelo que ficou exposto, tratava-se como podemos avaliar, de um sistema de trabalho coletivo de “ateliê”, o mesmo que hoje encontramos com a denominação de “escritório” e
liderado pelo artista principal responsável pela autoria da execução, porquanto não só era
quem o assinava como distribuía as funções e selecionava a quem cabia a execução das
partes que exigiam, maior conhecimento, prática e talento artístico.
No presente caso, estamos diante de um conjunto que permite ser observado e analisado
segundo suas partes, por exemplo, como observamos no Barão de Itambé, o elemento
central de um painel que mostra uma “deusa”, figura feminina sobre embasamento na
forma de coluna romana; esta elemento construtivo ligado ao campo temático arquitetônico. Já a figura por ela, a deusa, elemento pertencente ao domínio da forma orgânica e
animada, presente como associada ao elemento coluna, esta pertencente ao domínio da
forma geométrica.
Idêntico exemplo podemos destacá-lo noutro painel do mesmo conjunto decorativo, das
figuras a passear em meio a um “corte” de elemento paisagístico, ligado à natureza, portanto com dominantes composicionais e específicos: planos de visualização de chão, se
ausente de vegetação ou com a sua presença, aquilo que para o”paisagista” configura a ambientação ao “ar livre”, iluminado, sombrio e assim por diante. Mas especialidades, próprias
de cada um desses domínios.
Pois bem, tudo o que foi descrito não passa de particularidades técnicas formais da representação a configurar determinadas circunstâncias de CONCEPÇÃO, que mais não
são que o resultado portador das intenções deliberadas, “volitivas” portanto. Tem como
objetivo traduzir diferentes maneiras de atingir o mais próximo possível os sentimentos
254
História e Geografia do Vale do Paraíba
dos proprietários, contratadores dos serviços, somados as interpretações adicionais por
parte dos sentires diversos daqueles que, membros de equipe, estão situados na condição
de incumbência na interpretação material baseada naqueles modelos, o que de fato vai caracterizar o que conhecemos por trabalho de OFICINA .
No “pensar” da interpretação reside o “cogito” de toda uma análise procedida, em meio
à observação, seguida do objeto do nosso particular interesse em debruçar sobre a monumental obra que temos diante de nós. Há que considerar ainda as possibilidades de concretização a nível perceptivo, desse conjunto de observações que tem como portador um
objetivo que se estende por mais de meia centena de metros de área trabalhada.
Por tratar-se de um conjunto formado por mais de uma dezena de painéis de diferentes
dimensões e temas há também que se levar em conta a necessidade de alguma forma
integrá-las, o que irá se dar em função de uma subordinação gestáltica nos arranjos da
realização, consoante os materiais utilizados e suas possibilidades técnicas oferecidas. Do
exposto no presente caso, há que se considerar também a imprescindível observação
adequada que se impõe, mediante o fato de estar, no presente, relacionada com o projeto
em curso de restauração de todo o conjunto.
Depreende-se do exposto que outras observações terão lugar nos exames a serem completados com auxílio de instrumentos para um melhor conhecimento das alterações sofridas,
suas causas, com vistas a elaboração da respectiva planilha técnica que permita orientar
com fundamentada segurança as intervenções técnicas a serem realizadas para a sua efetiva
recuperação. A mais próxima da verdade em razão do tempo de existência e da sua História.
Entrementes, envidamos todos os nossos esforços juntos, profissionais de todas as áreas do estudo, do conhecimento, do saber, como um todo em bloco, concitar aos responsáveis por todas as áreas de atividade pública e privada para unidos levantar junto
a população esclarecida e com ela fazer com que valores patrimoniais possam, desse
modo, junto com a educação, a saúde, o empreendedorismo, vir a ocupar o lugar de interesse e de destaque na ingente tarefa a ser desenvolvida: o de zelar pela sua integridade
e promover a sua PRESERVAÇÃO como seus “depositários legais” que somos todos
indistintamente considerados.
Qual a tarefa que se impõe para a recuperação dos VALORES repetimos, se impor também caros na recuperação de uma cidadania de FATO e de DIREITO, de respeito a nossa
História. Por tudo que possa ela, a História repetimos, representar em benefício geral, de
todos como um preito de respeito ao justo, inexorável e oportuno julgamento, sem mácula
ou arrependimento, no próximo futuro. E de uma infalível posteridade.
Dentre aqueles VALORES mencionados, sem dúvida se encontra a decoração parietal existente ainda hoje, em Vassouras, RJ. São precárias no entanto as suas condições de conservação, obra que leva a assinatura de J.M.VILARONGO, prejudicado por desprendimentos
vários ocorridos e já bem visíveis no final não muito longínquo do recém-findado século
XX, notada de modo bastante claro na perda total de um dos painéis, o da entrada à esquerda do espaço nobre dos Leite Ribeiro.
255
Ligeiras Considerações Históricoestéticas
Com a aquisição do imóvel por parte da Universidade Severino Sombra, o palacete, por vezes
também mencionado “casarão”, veio Vassouras a recobrar as esperanças de um destino mais
generoso, condizente com o seu enorme valor de magnífico exemplar de /época seja pelo
porte de elegante desenho de indiscutível valor de inspirada estética arquitetônica, mercê de
uma fachada que prima pela sobriedade, em tudo muito próxima do que sugere o modelo
neoclássico e seja também pela privilegiada localização que ocupa junto aos demais, que ainda
apesar dos pesares podem ser admirados, em nada lhes ficando a dever.
Assim sendo não podia deixar de despertar a atenção e o interesse dentre muitos, por parte
do gal. Severino Sombra, pessoa conhecida e admirada, pela cultura, arrojo e destemor nos
projetos que desenvolveu ao longo da sua existência. Vassouras deve-lhe a Universidade
que leva o seu nome, criação da mais importante instituição na região, depois do Hospital
Eufrásia Teixeira Leite e os Educandários Regina Coeli (feminino) e outro (masculino),
ambos legados em favor da população por aquela ilustre figura ímpar de inolvidável lembrança e importante memória histórica vassourense.
Sonhou Severino Sombra com a realização naquele edifício das atividades culturais com a
chancela da Universidade como o aval da sua qualidade e com isso dar vazão da nobreza de
homem culto, preocupado com a preservação dos Valores históricos documentais, intenção hoje em pleno processo, desenvolvido a cargo do CeCult – Centro Cultural, também
encarregado dos projetos da restauração arquitetônica do qual a pintura mural de Villarongo é parte de especial importância.
A consecução desses projetos, além de se constituírem num alento, no sentido de que a sua
preservação representa um enorme benefício à população acrescido de muito, em favor da
preservação material de um dos exemplares arquitetônicos da maior e destacada, importância a ser colocada a serviço e à disposição da cultura brasileira em particular para a região
sul fluminense.
Logo em sequência à aquisição mencionada, viria Vassouras perder o seu grande propulsor,
que tanto benefício trouxe ao município. Dizemos de benefício não apenas no cunho cultural e turístico, mas dado relevante de indiscutível projeção social no quanto que significou
em termos de efetivo aporte econômico para a cidade.
Todavia, a despeito das dificuldades que vimos por enfrentar sobremodo naquilo que concerne de modo geral a atividade cultural, o fato é que as obras planejadas com o objetivo
de proceder à recuperação arquitetônica da edificação de um modo geral e agenciamentos
necessários para a adaptação ao novo destino a ser dado ao Barão de Itambé, se arrastam
de modo inexplicável dado a importância de que se reveste, posto que objeto cujo destino é
deixar de ser apenas uma residência, para ganhar a projeção maior de um espaço destinado
a diversas atividades culturais.
Um novo destino, nobre porque não dizê-lo, estudado e pensado para o espaço, erguido
pelo Barão de Tinguá para nele residir com sua família, o de fazer-se presente hoje, século
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História e Geografia do Vale do Paraíba
e meio após, de inequívoca vocação histórica e social. Observar o andamento das obras
em realização, oferecer aspectos técnicos construtivos que deixam entrever no seu devir,
soluções estruturais à época, adotadas com elegante maestria. Pena que não ficarão à vista.
Com isso, queremos nos referir, por exemplo, ao novo artesoado do telhado recém reconstituído, no seu formato original, ameaçado que esteve em razão do apodrecimento da madeira nele utilizada de origem. Assim como também do mesmo processo que soe acontecer
no plano inferior, onde se poderá admirar os elementos de apoio da edificação, assim como
o necessário procedimento para o apoio do tabuado no piso. Isso justo, no espaço onde se
encontra a monumental obra, é bom que aqui seja enfatizado, a decoração pintada, projeto
e execução a cargo do artista decorador José Maria Villarongo.
É de se imaginar o que poderá vir a ser para Vassouras o funcionamento pleno dos programas culturais cujos projetos ganham forma no sobrado do edifício e, imaginá-lo em plena
atividade, passo a passo, em meio aos espaços resgatados à sua condição de uso, por parte
dos variados setores culturais e da população em geral como um todo. Neste ponto é justo
que se faça referência à qualidade do trabalho que ali vem sendo feito a cargo e graças à
extraordinária competência e dedicação por parte do mestre de obras sr. Antônio Bahia
junto com seus não menos dedicados auxiliares.
No presente quadro se insere as medidas iniciais, parte delas já tomadas, com objetivo de
proceder as ações preliminares indispensáveis que visam assegurar a estabilidade da decoração. Providência tardia, porquanto deveriam ter tido lugar no momento anterior ao início
das ações de desmonte das áreas em processo de desprendimento, desta forma passiveis de
ocorrências de perigo grave. Do mesmo modo, a remoção das peças tornadas imprestáveis
pela ação do tempo do uso, e da ação implacável por parte dos insetos.
O que vimos de relatar poderá haver ocorrido por conta de mero cochilo embora, mas
ao desabrigo e sujeito a sofrer de graves consequências, para as pessoas que ali residiram
e das que mais recentes, passaram a trabalhar. Um cochilo, repetimos, mas que felizmente
não resultou em acidente. O que foi no mínimo uma temeridade, a evidenciar o quanto
andamos de modo geral à deriva, quando se trata da atenção a ser dada às questões ligadas à
defesa e à preservação de tudo aquilo que possa representar VALOR E RIQUEZA contido
no PATRIMÕNIO CULTURAL DA HUMANIDADE. Conceito ainda faltante em vários
aspectos da educação. Ausência que se faz sentir exagerada quando se trata de cumprir
o sagrado direito de agir em defesa do patrimônio comum da HUMANIDADE legado
este ao esquecimento, infelizmente.
Seja como for, não encontramos forma atenuante que possa oferecer qualquer guarida a
“cochilo” de tamanha proporção, mormente quando providências recomendadas em tempo mais recente encontraram “ouvidos moucos” como se diz. Exceto, é bom que fique
registrado da parte do mestre de obras, sr. Antonio, de quem já nos referimos em outra
parte deste mesmo texto.
Os exames ainda por serem efetivados, tais como os realizados com auxilio de instrumentos no emprego de observação sob luzes especiais, seguidos de rigorosa documentação
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fotográfica, é medida que se impõe para o melhor conhecimento geral e pormenorizado de
toda a superfície decorada, base de todo o trabalho de proteção da arte parietal de Villarongo.
A nossa fala programada para ter lugar durante a realização do I CONGRESSO NACIONAL DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DO VALE DO PARAIBA foi pensada em princípio para ser realizada em meio à visita ao monumento, objeto do presente trabalho, não
acontecida ali em virtude também do que acima foi apreciado. Realizada que foi no âmbito
e endereço para tanto estabelecido na programação optamos por uma descrição virtual de
dois modos. O primeiro de uma virtualidade no nível das ações sugeridas integralmente
“ao vivo” seguida por descrição falada com apoio informatizado de projeções fotográficas,
poucas em razão do tempo destinado.
Daquela forma, pudemos acompanhar as pessoas na Praça Barão de Campo Belo em
direção da matriz Na. Sra. da Conceição e diante da grade limítrofe do “adro” com a
praça observar à meia distância a imponente fachada do palacete à nossa esquerda, o
denominado “Barão de Itambé”. De imediato adentramos a propriedade ao atingir a
imponente portada de granito encimada por um arco no cimo coroado por uma “Fênix”;
à frente descortina-se diante dos visitantes a lateral de dupla finalidade, sendo a segunda,
a passagem livre para a carruagem.
Já no interior da edificação e de imediato um pequeno vestíbulo. A primeira porta que
se nos apresenta, abre-se em duas folhas para descortinar a monumental decoração
contida no espaço que aos poucos é revelada ao visitante. Estamos no Salão destinado
aos momentos mais importantes da família; oportunidades a merecerem por certo toda
pompa e circunstância.
Ao visitante, o interior impõe nos primeiros momentos o misto de surpresa e de admiração.
No correr dos olhos se sucedem variadas e surpreendentes visões que lhe são proporcionadas, por mais de uma dezena de painéis. Quadros pintados a ocuparem literalmente todo o
entorno de um espaço quadrangular composto por segmentos de ordenação em forma de
dois-a-dois, de dimensões regulares por faces e sentido ordenados vis-à-vis.
Passemos então à observação de cada um dos panos de parede, ao todo quatro a enfeixar o
conjunto desenvolvido no espaço que se apresenta, podemos assim dizer no formato de uma
caixa de base retangular. Nele, a parede no sentido lado direito de quem adentra o recinto pelo
vestíbulo, observará a existência de duas portas distribuídas segundo uma relação aproximada
nos segmentos áureos do retângulo a que se encontram limitadas, como que a guarnecer o
pano central do conjunto. A parte central de maior dimensionamento comporta por sua vez
três painéis melhor atendidos pela iluminação natural de que desfruta.
Por ordem, contém a área referida o painel com o motivo guarnecido por medalhão central.
Nele vê-se a figura de senhora sentada, a segurar uma criança ao colo. Em sequência o painel
central, cujo tema é o de uma “Vista” frente a algum espaço limitado por gradil. Apresenta
uma terminação em forma de cúpula e, curioso, apoio de pouso para um belo tucano. O destaque proporcionado pela presença da ave é, em verdade, um documento, a confirmar a sua
presença ainda hoje na região.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Por último nessa sequência, visualizamos o painel de destaque especial pela realização de
que faz merecê-lo dentre os demais. No centro de um medalhão, emerge a efígie de jovem
senhora, trajada com fina elegância, olhar absorto e distraída, segura o que pode ser um
carnê por entre os dedos da mão. Dentre todos é por certo o de execução mais feliz, sem
qualquer desmerecimento quanto aos demais.
O lado fronteiro ao acima descrito se apresenta com a decoração distribuída segundo o
número de vãos que proporcionam o necessário para a aeração e iluminação natural deste
espaço em foco nomeado “salão nobre”, muito acertadamente, pois é de se concordar com
as referências registradas por parte de quantos já tenham se debruçado sobre ele nas suas
apreciações. Enquanto ao lado acima descrito de modo sumário, cabe referir-se às aberturas
delimitadoras dos espaços decorativos e que se fazem na direção do interior mediante acesso ao corredor de ligação para acomodações de intimidade do casarão, o lado fronteiro se
faz em favor da vista para a paisagem descortinada no exterior do edifício.
Quanto aos planos correspondentes à direção transversal, são elas de menor dimensão a
configurar a disposição observada na retangularidade dessa enorme caixa suporte da decoração que a enobrece. De regular, os três eixos centrais dispõem os painéis portadores da
temática simbólica centrada na antiguidade remota, de uma romanidade sugerida na linguagem simbólica a expressar-se como de hábito, segundo a presença figurada numa deusa.
Em planta, a disposição dessa parte da casa, a decoração se deixa entrever contida nas paredes suporte, enquanto apreensão estética em conjunto à paisagem que do exterior é vasada,
faz-se aparente nos entrechos visualizados por entre os recortes dos vãos de janelas, nos
recortes da natureza, que lá fora radiante de luz, ao tempo em que ofusca no interior do
salão, os painéis sobre as paredes pintados enquanto aguardam a necessária acomodação
visual do circunstante.
A intensa emoção estética, deve o observador aos recursos habilmente empregados pelo
pintor e decorador Villarongo, autor do projeto, que adotados a eles são devidos à atração
e o tempo não medido, passados na fruição decorrida, tenham sido eles propositados ou
não, bem certo intuídos em meio ao “tempo” de realização. Dificilmente notará o visitante
observador uma relação no nível do intencional, numa busca infrutífera de certa ordem na
sequenciação das partes, porquanto se encontrará sob o pleno envolvimento do todo. O
que não exclui uma outra e nova possibilidade de leitura, a depender tudo da momentânea
condição de luz, por acaso oferecida.
Não obstante, a reunião dos painéis, no seu conjunto, permanecerá como ainda permanece
em quantos já tenham tido a oportunidade de visitar o Solar Barão de Itambé, mercê de
um fio condutor cujo segredo se faz em função não da visualidade pura e simplesmente
“física”, mas quem sabe aquela residente na percepção mais íntima do seu autor Villarongo
acolitado pelos seus companheiros de trabalho.
Foi mencionada a condição de especialidades várias de cada profissional que ao lado de Villaronga comungou o mesmo sentido de melhor formalizar a ideia própria no efeito produzido
de cada sentir, revelador da “vontade”, que na arte ganhou o conceito de “necessidade da arte”
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gravado nada menos que pelo historiador e filósofo da arte Winckelman em referência ao fenômeno do impulso criador, a “Kunst Volen”, desenvolvido por este grande pensador, que assim
se faz expresso em meio ao sentimento a seu turno e propulsor daquela “Vontade”.
Uma pequena amostra do que pode ser visto no Palacete Barão de Itambé.
Referências Bibliográficas
BRANDI, Cesare. Principi per Il restauro dei monumenti – Il restauro secondo l”instanza
estética, In: Teoria Del Restauro. 3ªed. Milano, Einaldi, Picola biblioteca, 1979.
MARACAJÁ, Marcelo. (Coord.) Investigações sobre o palacete “Barão de Itambé. Vassouras; Documento Interno Cecult/USS, 2009. (Não publicado).
SILVA TELLES, Augusto C. Vassouras: estudo da construção residencial urbana. Rio de Janeiro,
IPHAN / MEC, 1968.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
O Significado da Talha na Catedral de Valença e na Matriz de
Paty do Alferes
Magaly Oberlaender*
No início do século XIX o romantismo envolvia a Europa, com o enfoque voltado para
o povo, os ideais de liberdade e a natureza, principalmente com o gosto pelo bucolismo
e o pitoresco. As artes, naturalmente, absorveram este tema e o mantiveram como uma
constante na produção artística daquela época. Alguns nomes exemplificam bem esse fato
ao retratar o panorama cultural do século XIX. Alguns nomes exemplificam bem esse fato
ao retratar o panorama cultural do século XIX. Na literatura – Victor Hugo, na França,
com Os Miseráveis, denunciando o estado lastimável dos pobres; Goethe, na Alemanha, com
Fausto, uma verdadeira ode à liberdade; e Coleridge e Wordsworth, na Inglaterra, usando
a natureza como o principal das suas obras. Nas artes plásticas, a Revolução Francesa é o
tema dominante na França com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, destacando-se Louis David, com Marat, e Géricault, com a Medusa. A música passa a interpretar
sentimentos nacionalistas com Lohegrin de Wagner, as óperas de Rossini, Bellini e Verdi, a
Rapsódia Húngara de Liszt e as Polonaises de Chopin. A fonte da grande produção artística
do século XIX, principalmente a musical, foi a cultura popular.
Enquanto isso o Brasil vivenciava, nessa mesma época, de modo pleno seu período colonial, influenciado diretamente pela metrópole. Economicamente, o Brasil conta, no início
do século XIX, com uma nova riqueza que irá se estender pelas terras situadas no Vale do
Paraíba, entre a Serra do Mar e Minas Gerais, o café. Este produto movimentará o interior
fluminense, alavancando a economia da região e propiciando a abertura de novas estradas
e investimento nas já existentes. Nas artes ocorrem mudanças imediatas com a chegada da
Missão Artística Francesa nos idos de 1816, com a introdução oficial do neoclássico. Entretanto, o neoclássico já se fizera presente na Bahia, através da talha do final dos setecentos,
quando as colunas de fuste reto, com seus terços inferiores marcados, começam a aparecer
em substituição às helicoidais, conforme nos mostra Luiz Alberto Ribeiro Freire no livro
A talha neoclássica da Bahia. Germain Bazin já, anteriormente, legitimara esta afirmação ao
atestar que, no Brasil, só o Rio de Janeiro e a Bahia absorveram, ao mesmo tempo, o neoclássico e o rococó. Essa assertiva contraria o pensamento de muitos autores que atribuem
a entrada do estilo no Brasil pela Missão Artística Francesa de 1816. É preciso lembrar que
Portugal do final do século XVIII não manteve uma coerência estilística. Convivia com
uma variedade de estilos que ia desde o barroco tardio, herança italiana, passava pelo rococó do reinado de D. José (1750-1777) influenciado pela França e Alemanha, sobrepondo-se
em parte ao estilo pombalino da reconstrução de Lisboa, e chegava ao neoclassicismo do
reinado de D. Maria (1777-1816). Entretanto, a ligação da Bahia e do Rio de Janeiro com a
metrópole propiciou a absorção desses estilos lá correntes e seu emprego, quase que simultaneamente, se deu nesses dois estados. Daí, espelhados em Portugal, retratarem o neoclássico. Porém, o estilo puro só chegaria, realmente, com a Missão Artística Francesa de 1816.
O neoclássico consegue modificar a ordem estética do Brasil ao acentuar bem a influência
estrangeira no país, principalmente a francesa. Entretanto este estilo se apresentara em duas
* Mestre em História e Crítica da Arte, museóloga e restauradora. Segunda Tesoureira do IHGV.
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versões: a oficial, afeta à Corte, praticamente toda importada, e a da província, com caráter
bem mais simples, realizada por escravos, onde os proprietários rurais usavam o tipo de
arquitetura e as soluções artísticas da corte como forma de estabelecer vínculo entre os dois
poderes, o seu poder local e o central. Porém a influencia da corte mostrou-se, apenas, na
decoração, resultando numa grande mistura na maioria das vezes, tornando-se difícil até
a identificação do estilo, exemplificando bem a falta de coerência estilística existente em
Portugal no final do século anterior. No período situado entre o colonial e o neoclássico, a
talha nas igrejas apresenta-se muito reduzida, apenas de forma pontual, como apliques dourados dispostos isoladamente sem se integrar à composição. A ênfase da decoração é dada
pelo contraste do dourado que aparece somente nos entalhes sobre o madeiramento liso
pintado de branco ligeiramente pigmentado de bege. No interior, os altares à semelhança
de sua arquitetura, absorvem o neoclássico apenas nos elementos decorativos, mantendo
formalmente a estrutura do rococó tardio.
E com esse panorama de fundo, duas das grandes igrejas da região foram erguidas: a Igreja
Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes, inaugurada em e 1844, e a Catedral de Nossa Senhora da Glória de Valença, cujo início da construção data de 1813 e, da
finalização, de 1874.
O tempo e intervenções espúrias lhes trouxeram danos e descaracterizações que solicitaram, urgentemente, seu restauro, cujos projetos foram realizados em 2003 para a Catedral de Valença e, em 2005, para a Matriz de Paty. Os projetos afetos à recuperação dos
valores artísticos basearam-se no levantamento e confronto dos dados obtidos através da
análise histórico-artística e iconográfica e das prospecções identificadoras dos diferentes
estratos de pintura recebidos pelo monumento. E, por fim, a legitimação desses dados
foi realizada pela iconologia através das interpretações dos recursos simbólicos, utilizados nas representações dos elementos decorativos e cores, que caracterizaram os valores
culturais-religiosos do monumento.
A simbologia empregada pelas antigas civilizações, cultoras dos deuses pagãos, repete-se no
cristianismo, constatando-se uma interessante similitude ao ser interpretada sob uma visão
iconológica. Os símbolos e alegorias são recursos complementares usados pela Igreja no
intuito de atingir o sentimento cristão, sugerindo à mente o que a ela não poderia chegar
pela linguagem falada ou escrita nos diversos povos que se iam incorporando à cristandade.
Enquanto que no mundo pagão a imagem é uma representação material tirada da fantasia
religiosa dos povos, sem correspondência no mundo moral. Traduz apenas as forças naturais ou ficções divinizadas pelo homem. No cristianismo quando se trata de mistérios
intraduzíveis ou os que envolvem concepções transcendentes, intervêm os símbolos. Estes
diferem dos elementos meramente decorativos que, entretanto, são aproveitados muitas
vezes como alegorias, integrando composições educativas ou glorificantes.
O neoclássico emprega amplamente esses elementos, distribuindo-os, pontualmente, como
ornatos nas talhas de suas igrejas. Sob uma observação um pouco mais atenta, pode-se
notar que o trabalho de talha nessas duas igrejas não visou exclusivamente à decoração,
dispondo aleatoriamente os elementos apenas para atender a um padrão estético. Mas são
portadores de grande carga simbólica. Ao se conjugar a disposição ordenada no espaço
desses elementos decorativos com a liturgia católica, teremos uma interessante leitura.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
Matriz Nossa Senhora da Conceição de Pati do Alferes
A terceira e atual Matriz Nossa Senhora da Conceição de Paty de Alferes teve sua construção realizada entre 1840 e foi inaugurada no dia 8 de dezembro de 1844.1 A Matriz de
N. Sra. da Conceição tem a construção assemelhando-se muito às antigas igrejas mineiras.
Possui paredes de pau a pique, amplos corredores laterais, duas torres sineiras que são,
igualmente como o frontão, cobertas por telhados. O forro em forma trapezoidal possui
apainelados com molduras. Possui dois altares laterais na nave.
Ao se entrar na capela-mor avistam-se quatro tribunas ao nível do segundo piso. O forro
da capela-mor, abobadado, é diferenciado da nave. A falta de talha e de policromia, como
se encontra atualmente a igreja, torna seu interior inexpressivo e monótono.
Altares
A imagem do orago localiza-se no topo dos degraus do trono, dentro de camarim em arco
pleno, com baldaquino encimado por medalhão do Divino com resplendor. Os painéis, com
oito carreiras de botões formando raios, dispostos atrás da mesa do altar, remetem à simbologia dos oito raios da roda, são as oito direções do espaço evocadas pelas oito pétalas do lótus,
cujo significado é a renovação, a regeneração que, no conceito cristão é a base dos ensinamentos de Cristo. A simbologia dos oito raios da roda foi de grande abrangência, sendo conhecida por muitos povos, numa extensão que ia do mundo céltico até a Índia, passando pela
Caldéia. No frontispício da mesa encontram-se e elementos decorativos de grande singeleza:
duas palmas entrelaçadas formando uma coroa tendo uma rosa ao centro. A palma na Grécia
e Roma é símbolo de Apolo e da vitória tendo este significado sido absorvido pelo simbolismo cristão e pode ser considerada como uma árvore cristológica. Seus ramos festejam a
entrada do Cristo em Jerusalém. É a árvore que simboliza o Paraíso por excelência, que os
cristãos representam como um oásis no deserto e sendo, também, o emblema das recompensas prometidas aos mártires. Como o fênix, sugere a idéia da imortalidade e da ressurreição.
Quanto à rosa, a iconografia cristã absorveu da Índia seu significado, triparasundari (rosa
cósmica), simbolizando a perfeição, a Mãe Divina. A rosa, que representa na sua essência o
que é de mais puro no amor, a perfeição, serve de referencial para a Mãe Divina. É a Nossa
Senhora da Conceição, que é a Mãe Divina e orago da igreja que, devido a sua superioridade
pode, através seu amor (rosa) e da vitória sobre o mal (palmas) unir as pessoas a Deus. E, a
partir daí, atingir a regeneração (a roda dos 8 raios que está acima).
Nos altares laterais o único elemento diferenciador é o medalhão situado no coroamento
que indica a quem pertence o altar. Nas mesas dos altares laterais, as palmas em forma de
coroa se repetem como elemento decorativo, mas sem a rosa. Entretanto neles existem dois
símbolos em seus coroamentos que a substituem, estabelecendo a união das pessoas com o
Divino, através da devoção de cada altar: o rosário localizado no altar de Nossa Senhora do
Rosário e no de São Francisco de Paula, seu símbolo, a inscrição CHARITAS.
Em 26 de abril de 1739 foi benta a primeira matriz, na vila de Roseiral, Arcozelo. Construída com esteio de garaúna e alicerces
de taipa, era de pequenas dimensões, medindo a nave 40 palmos de comprimento por 20 palmos de largura e a capela-mor 20
palmos de comprimento por 18 palmos de largura. Em 1750 a capela ganha o título de Paróquia devido ao sr. Bispo Dom Frei
Antonio Desterro. O ano de 1784 ainda não chegara e a segunda matriz já iniciava sua construção que durou muitos anos e muita
polemica envolveram sua obra que acabou se tornando inconclusa e teve suas ruínas estimadas em trezentos mil réis no ano de
1817. Sua construção foi próxima a primeira matriz. Pizarro relata em maio de 1794 que “...Corredores laterais e uma sacristia
completavam a construção. A pia batismal era de madeira trabalhada em local sem grade. O cálice e a pátena eram dourados. As
âmbulas dos santos olhos, de estanho. Só existia um altar com a imagem de N. Sra. da Conceição.”
1
263
Policromia da Nave
A igreja tem seu interior dotado de extensas paredes brancas que, somadas aos púlpitos
de pequenas proporções, à ausência de talha parietal na nave ou outro qualquer elemento decorativo que seja, acabam por contrastar, visivelmente, com a área do arco-cruzeiro
onde se localizam os dois altares laterais. Ali ao existir uma concentração maior de massa,
percebe-se, de uma maneira geral, falta de ritmo espacial e desequilíbrio volumétrico no
todo. Devido a esse fato, fez-se necessário uma investigação na questão cromática do monumento e de seus elementos integrados para melhor subsidiar a intervenção. Tornou-se
fundamental este procedimento, principalmente para atestar a incompatibilidade existente
entre monocromia do monumento em relação a seus pares, levando-se em conta sua tipologia e localização. Aplicou-se, como método investigativo, a prospecção estratigráfica em
todas as áreas mais significativas.2
O resultado dessas prospecções foi muito revelador, indicando belíssima gama de cores,
distribuída nos pilares e pontuando as paredes brancas. Essa policromia acentuada é
uma característica, por excelência, das igrejas e capelas interioranas e será empregada
largamente em toda arte do interior, individualizando-a e tornando-a marcante. Ao se
retornar com a policromia do interior da Matriz de Paty do Alferes, três resgates que,
em conjunto, podem legitimar a excepcionalidade do bem, ocorrerão: resgate de ordem
estética e harmônica – com os pilares pontuando a nave com suas cores, até fazer a passagem à concentração maior de massa, onde ficam os retábulos e o arco-cruzeiro; resgate
dos valores culturais cristãos – com as portas e janelas voltando à cor original, o verde,
justificado, iconograficamente, por ser considerada feminina e a igreja pertencer a um
orago mulher, como também, representar a imortalidade e, completando com os pilares
azuis, cor atribuída à Virgem, com pedestais de uma tonalidade mais esverdeada remetendo à colocação das portas, tornando agradável essa passagem de tons; resgate dos
valores histórico-artísticos, acrescentando mais um exemplo à historiográfica da arte ao
demonstrar que mesmo com a introdução de um estilo importado, no interior, a estética
local se fez presente, dando-lhe nova feição.
Catedral de Valença
Já em 1803, existia uma capela da aldeia dos índios, no mesmo local e com o mesmo orago
da atual Igreja Nossa Senhora da Glória, Matriz e Catedral de Marquês de Valença que,
dez anos depois teve sua construção iniciada, com a entrega de sua capela-mor no ano de
1825. As obras ainda se prolongaram até 1874, quando foram colocadas mais remota, com
o mesmo orago, em 1803 Valença coincidiu seu desenvolvimento com marcante período
de transição da arquitetura: a passagem da influência lusa do barroco e rococó para a influência notadamente francesa do neoclássico.
À semelhança da arquitetura do interior, os altares da Igreja de Nossa Senhora da Glória,
Catedral de Valença, absorveram o neoclássico apenas nos elementos decorativos, mantendo ainda a estrutura do período anterior, com os elementos classicistas aparecendo na talha
A prospecção estratigráfica consiste na abertura sequencial de pequenos quadrados, numerados desde o primeiro estrato
(suporte da pintura) até a pintura visível atual.
2
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História e Geografia do Vale do Paraíba
apenas em forma de apliques dourados, distribuídos pontualmente, sobre estrutura de um
rococó tardio. A exceção fica para dois altares, dispostos à entrada da nave, com estrutura
e forma dos elementos decorativos de feição neogótica. Durante o trabalho de prospecção,
constatou-se a existência de um marmorizado em tons de azul e verde, com molduras também policromadas. Ressalta-se neles, também, a introdução do arco ogival, com cercaduras
típicas do gótico tardio. Esta tendência surge, a partir da metade do século XIX, quando
foram introduzidos vãos com vergas apontadas em forma de ogivas nas construções civis e
religiosas. Nesta fase historicista, a maioria das igrejas passa por grandes reformas e adquirem
feição neogótica,3 estilo que, segundo o gosto da época, melhor se adequava às construções
religiosas. A catedral de Valença absorve, timidamente, esta tendência, fazendo-a presente
em seus dois altares secundários, construídos em 1857. Ao se entrar na igreja, as colunas,
localizadas no início da nave, mostraram, através das prospecções realizadas, possuirem pintura utilizando a técnica chamada de “fingidos”,4 imitando o granito da entrada principal.
A seguir, vem os dois altares de feição neogótica, já tratados anteriormente, dispostos nas
paredes laterais e, já próximos ao arco-cruzeiro, mais outros dois altares com devoções de
Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora da Conceição, onde existe presença significante
do rococó, principalmente no coroamento. Destaca-se por sua finalização em forma de canga
ou arbaleta e pelas curvas e contracurvas dispostas graciosamente em movimentos ascendentes. O coroamento desses altares é sustentado por três pilares de cada lado, com os do meio
mais avançados, e decoração de pencas de flores e folhas amarradas por laços e distribuídas
ao longo, com os lírios embaixo se destacando. Atribui-se ao lírio a restituição da vida pura, a
promessa de imortalidade e salvação. E, na tradição bíblica, simboliza o privilégio da eleição
dada a Israel entre as nações e à Virgem entre as mulheres de Israel. Justifica sua localização
nos altares dedicados à Virgem.
O arco-cruzeiro representa o pórtico de entrada para a capela-mor, tem em seu coroamento
um buquê com sete folhas de acanto assentado sobre um medalhão com as insígnias da Virgem
Maria. O uso do acanto foi muito difundido na arquitetura funerária como ornamento dos carros fúnebres e vestimentas dos grandes homens como, também, dos defuntos, porque foram
homens que souberam vencer as dificuldades de suas tarefas. Simbolizando a transformação
da provação vencida em glória. A disposição e a quantidade de folhas de acanto em torno do
medalhão à entrada da capela-mor passam a seguinte mensagem: sustentados pela Virgem (insígnias de Maria) e unidos num mesmo pensamento (buquê significando pensamento comum
de uma comunidade),5 no caso a oração, e sob a égide (acantos descendentes) das sete 6 virtudes
que traduzem a vida moral, teremos condições de vencer as provações que poderão ser transformadas em glória, com alusão direta ao orago da igreja – Nossa Senhora da Glória.
É marcante a monumentalidade do altar-mor em comparação com os laterais da nave. Seus
tamanhos reduzidos e sua independência lembram grandes peças do mobiliário. No altar-mor, o coroamento é a parte mais dinâmica da composição a partir do triangulo que o cir3
O neogótico encontra seus exemplos mais antigos nos pavilhões projetados para o Paço de São Cristóvão em 1816, com
apenas um executado. Outro foi em 1871, a Escola São José no Largo da Mãe do Bispo, e, em 1866, o Real Gabinete Português de Leitura, projeto do arquiteto português Rafael de Castro e o do Posto da Fazenda da Ilha Fiscal, do eng. Adolfo
José del Vecchio.
4
A prática desta técnica chamada de “fingidos” – reboco fingindo pedra – vem sendo usado desde o início do século XVIII
em Minas, tendo sua utilização largamente ampliada no século XIX.
5
No Oriente, um buquê de folhas designa uma coletividade unida num pensamento comum.
6
O número 7 indica a mudança depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva. Resume a vida moral na soma das
três virtudes teologais – a fé, a esperança e a caridade – às quatro virtudes cardeais – a prudência, a temperança, a justiça e a força.
265
cunscreve, tendo como elemento central de destaque o resplendor circundando um medalhão com as insígnias de Maria e orlado por rosas7. O camarim, em arco-pleno contornado
por friso de palmetas,8 é encimado por canga em volutas dispostas em curvas e contracurvas contornadas por folhas de acanto9 estilizadas formando acrotérios de palmetas, acanto
e girassol; possui trono escalonado em 3 degraus com pequena profundidade do nicho. A
mistura do acanto com as palmetas e o girassol10 e sua respectiva localização, no lugar mais
destacado do altar, exprimem a promessa máxima do cristianismo que é alcançar-se a paz
eterna, atingindo-se a imortalidade, após vencer as provações da vida e da morte.
Elementos dourados entalhados, como festão de coroa de louros11 entrelaçado a de acanto,
estão aplicados na lateral da base do altar. E, assentados sobre a base do altar, duas colunas
estriadas externas e dois pilares internos sobre bases ornadas com palmetas, e arrematados
por capitéis jônicos com pinhas12 pendentes de suas volutas e portando, no ábaco, cabeças
de anjos. O louro e a pinha, estes dois elementos conjugados, significam a vitória, a ressurreição após o drama do calvário – a imortalidade.
De cada lado, entre a coluna e o pilar, na mesma altura do sacrário, localizam-se apliques
escultóricos de pães13 orlados de folhas de parreira14 como fossem resplendores dourados
e, acima, mísulas tendo como arremate pinhas invertidas, sendo encimadas por cortinado.
A capela-mor é toda forrada por lambris de madeira com pintura lisa branca que, certamente, deveriam estar à espera dos elementos decorativos.15
A rosa, apesar de ser a flor simbólica mais empregada no ocidente, será na Índia, a rosa cósmica chamada triparasunda, é
que representará a beleza da Mãe Divina. A rosa é o símbolo do amor puro. Na iconografia cristã a rosa aparece igualmente na
representação da taça que recolhe o sangue de Cristo, da transfiguração das gotas desse sangue ou do signo das chagas de Cristo.
8
O emprego da palma ou palmetas, em festões ou individualmente, foi amplamente difundido no século XIX. Decoração
usada desde as festas de Osíris no Egito, também foi empregada nos jogos olímpicos da Grécia, nos cortejos triunfais da
antiga Roma e na entrada dos reis em Jerusalém. A vitória e a paz englobam seu sentido mais amplo e, no cristianismo, a
paz eterna – o martírio cristão, a redenção e a imortalidade. As palmas de ramos e as palmas carregadas pelos mártires têm o
mesmo significado – a ressurreição após o sofrimento.
9
O acanto utilizado na decoração dos elementos integrados da Igreja Nossa Senhora da Glória, empregado largamente pelos
romanos, denomina-se acanto mole (acanthus mollis), cujo os espinhos continham o simbolismo indicando que as provações
da vida e da morte haviam sido vencidas. A arquitetura o empregou decorativamente, principalmente no capitel coríntio, e
em diversas outras ornamentações.
10
Na China o girassol representa o alimento da imortalidade.
11
Para os romanos seu significado estava ligado diretamente com a glória, tanto das armas quanto do espírito, usando suas
folhagens para coroar os gênios, os heróis e os sábios. Representante do triunfo e da glória, o louro também está relacionado
à imortalidade, como todas as plantas que permanecem verdes no inverno.
12
O fruto do pinheiro aparece na mão de Dionísio, como um cetro, exprimindo a permanência da vida vegetativa e a superioridade do deus sobre a natureza considerada através de suas forças elementares. Representa a força vital e a glorificação
da fecundidade, já que também o pinheiro era dedicado a Cibele, a deusa da fecundidade. E, também representa o corpo do
deus morto e ressuscitado no paganismo, simbolizando, nos cultos a Cibele, a mudança das estações, que reporta ao culto
de Ísis, deusa egípcia: um pinheiro era abatido e enrolado como um defunto, significando Átis morto (marido da deusa) e,
originalmente, o espírito das plantas; após o velório, passavam de gritos de desespero a gritos de alegria, comemorando, a
partir daí, desregradamente, a volta à vida, a renovação da natureza. Da mesma maneira, o significado do emprego da pinha
nos templos cristãos indica a ressurreição de Jesus após o drama do calvário. Muito empregado nas cornijas, frisos e motivos
de coroamento.
13
Simboliza o alimento essencial do homem, simbolizando sua alimentação espiritual, o Cristo Eucarístico, o pão da vida, o pão
sagrado da vida eterna. O pão relaciona-se, tradicionalmente, na Eucaristia com a vida ativa e os pequenos mistérios.
14
Antigamente a videira era identificada como árvore da vida e nos textos evangélicos, a videira é o símbolo do Reino de
Deus, cujo fruto é a Eucaristia. Significa o sangue de Cristo derramado para nos salvar. Os gregos ligam o cultivo da videira
a Dionísio, cujo culto era associado ao conhecimento dos mistérios da vida após a morte e continuará no simbolismo cristão.
É a expressão do reino vegetal da imortalidade.
15
Usualmente, as irmandades deixavam a decoração das paredes para serem realizadas mais tarde devido à falta de recursos.
7
266
História e Geografia do Vale do Paraíba
Como se vê, a simbologia empregada pelas antigas civilizações cultoras dos deuses pagãos
repete-se no cristianismo, constatando-se uma interessante similitude, inclusive de interpretação. No período do neoclassicismo, a arte religiosa resgata mais amplamente esses
elementos e os distribui como ornatos em suas igrejas.
A arte e a religião sempre estiveram intimamente ligadas durante toda a história da humanidade, transmitindo, através da sensibilidade do artista, os ensinamentos religiosos, metaforicamente, através de símbolos. As tendências e gosto de cada época foram fatores
determinantes no aparecimento do profano e do secular na arte religiosa.
As pesquisas realizadas para os projetos de restauração dos elementos integrados da Igreja
Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Pati do Alferes e Catedral e Matriz de Nossa Senhora da Glória de Valença adicionaram valores históricos, artísticos e culturais aos
monumentos, até então, desconhecidos. Os mais importantes são: uma nova leitura desses espaços com aparecimento de elementos policrômicos significativos, imprimindo mais
ritmo e melhor distribuição do volume espacial em seus interiores; a restituição da rica e
simbólica policromia da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Pati do Alferes,
a tornará apta para ser iniciado um estudo de tombamento de relevância artística, já que
seu tombamento pelo Iphan contempla-a apenas com inscrição em seu Livro Histórico.
E, dentro de um olhar mais amplo, essas igrejas acrescentam muito aos estudos das igrejas
interioranas fluminense, ainda tão incipiente. Tornam-se, mais um exemplo, de terem sido
policromas, apesar da já absorção do neoclássico, o que as fez destacarem-se, de forma
singular, tipicamente interiorana.
Lamentavelmente, o branco que as recobriu devido ao gosto de uma época que renegava
qualquer estética local, se fez sentir novamente na Catedral de Valença quando passou por
uma grande restauração em 2004. Apesar do resultado das prospecções apontarem para
uma policromia enriquecedora da tipicidade do monumento, o critério adotado foi a manutenção do branco para dar unidade ao neoclássico existente, anulando, novamente, precioso
testemunho que melhor consubstanciaria o estudo das igrejas do interior fluminense.
A importância da pesquisa na restauração é elemento fundamental para a eleição de critérios a serem adotados. Todos os dados coletados através das pesquisas devem ser levados
em conta para localizar-se, corretamente, a obra em seu tempo e meio de sua criação. É
obrigação inerente ao restaurador, a preservação da matéria e, também, de todos os sinais
conclusivos apresentados para que essas informações possam servir a outros estudiosos,
sem falseamentos e dificuldades, seja para resgatar todo seu valor histórico e cultural factível, seja para permitir a admiração estética do bem. E ocorrerá exatamente a dupla historicidade da obra a qual se refere Cesare Brandi: o momento de sua criação e o momento de
sua restauração – quando possibilitará a obra ser experimentada esteticamente de novo e, a
partir daí, também permitindo sua recriação.
Referências Bibliográficas
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ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Minc, 1999.
267
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Olímpio, 1989.
FERGUSON, George. Signs & Symbols in Christian Art. New York: Oxford University Press, 1961.
FERREIRA, Luiz Damasceno – História de Valença. Valença: Editora Valença, 1978.
ROIG, Juan Ferrando, PBRO. Iconografia de los santos. Barcelona: Ediciones Omega,
S.A., 1950.
IEPHA – Iconografia da Virgem Maria – Caderno de Pesquisa. Belo Horizonte: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, 1982.
OBERLAENDER, Magaly. A interrelação entre a história da arte e a restauração –
Igreja da Ordem III de São Francisco da Penitência. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2000.
Dissertação de Mestrado,
PASTRO, Cláudio. Arte sacra; o espaço do sagrado hoje. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1987.
VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura no Brasil: sistemas construtivos. Belo Horizonte:
UFMG, 1979.
VORÁGINE, Santiago de la. La Leygenda Dorada 1. Madrid: Alianza Forma, 1999.
268
História e Geografia do Vale do Paraíba
Acervo de Imagens Digitais do Patrimônio Edificado Aplicado
na Educação para Preservação do Patrimônio Histórico
Luiz Neves*
A nossa proposta apresentada no I Congresso Nacional de História e Geografia do
Vale do Paraíba, realizado pelo Instituto Histórico Geográfico de Vassouras, refere-se à pesquisa em desenvolvimento no Departamento de Técnicas de Representação, da
Escola de Belas Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tem como objetivo
inicial o desenvolvimento de um acervo de imagens digitais das fachadas que compõem
o conjunto arquitetônico da área central da cidade do Rio de Janeiro e seus documentos
de referência; a serem disponibilizados em site como instrumento de pesquisa para professores e estudantes. Em um segundo momento, a criação de parcerias com escolas do
ensino básico e médio para, em conjunto com os professores das instituições, serem desenvolvidos trabalhos acadêmicos de extensão através de palestras e trabalhos de campos
visando despertar no estudante o gosto pela pesquisa aplicada, voltada para a observação
da paisagem construída pelo conjunto arquitetônico, semeando o respeito ao patrimônio
edificado da nossa cidade, com referências históricas, de simbolismos e cultura.
As áreas centrais das cidades brasileiras, desde o final da década de 50, vêm sofrendo uma
visível perda da qualidade ambiental e social. Este quadro demonstra o resultado de várias
políticas equivocadas, sensivelmente observado na prática de investimentos em novas áreas
do Município, geralmente distantes do Centro.
Este quadro de abandono e decadência resultou em perdas irrecuperáveis do seu patrimônio edificado. Transformado em ruínas, apagaram-se referências da formação da cidade,
eliminando vestígios de um passado que foi edificado a um custo muito alto pago pela
sociedade. Com isso tornamo-nos mais suscetíveis a influências de uma estética de moda,
momentânea, com soluções para um único objetivo, a maior obtenção de lucro.
Os centros históricos das cidades do Estado do Rio de Janeiro são exemplos deste triste
cenário. Esta área da cidade geralmente apresenta um conjunto de construções composto
em boa parte por edifícios representativos da arquitetura eclética e art-déco. Lembramos que
estes estilos da nossa arquitetura consolidaram uma produção arquitetônica de qualidade,
resultando em uma sólida escola de arquitetura no Estado do Rio de Janeiro, o que foi fundamental para a formação da Escola Modernista Brasileira, que tornou a nossa arquitetura
conhecida no cenário internacional.
Hoje, após dois anos e meio de trabalho, a pesquisa construiu um acervo de 5.650 imagens
digitais de fachadas, incluindo os detalhes dos elementos decorativos e o conjunto construído de entorno, ou seja, foto do edifício em primeiro plano (frontal), imagens complementares das construções laterais e fotos em perspectiva, para melhor visualizar o conjunto
de fachadas, integrado ou não, isto é, novas construções que geralmente não respeitam
a volumetria (gabarito), ritmo de composição e material de acabamento. O conjunto de
imagens está organizado por pastas, nomeadas pelo nome do logradouro (ruas, avenidas,
praças, becos etc.), onde está localizada a edificação.
*
Arquiteto e Urbanista. Professor da Escola de Belas Artes/UFRJ. Mestre em Planejamento Urbano/IPPUR/UFRJ.
269
Quanto aos documentos de referência aos edifícios registrados, contamos com 1.260 documentos, entre reportagens, fotos antigas e informações de moradores (usuários). Estas referências
anexas à imagem têm a função de contar um pouco a história da edificação, ilustrar as modificações (inclusive do entorno) sofridas na sua arquitetura e posicionar o edifício com relação à
cidade. Em grande parte os documentos são reportagens, com comentários diversos, desde a
divulgação de um novo tipo de uso atribuído ao imóvel (como restaurante, loja), a restaurações
para revitalização, ocorrências de incêndios (infelizmente mais comuns que o esperado) etc.
Rua Dom Manuel. Centro. Rio de Janeiro, 2008. Foto Autor.
Será adotada a mesma metodologia utilizada na pesquisa base. Iniciaremos o nosso trabalho
pelo levantamento de campo, isto é, o registro de imagens das fachadas (vista geral da fachada,
seu entorno e os elementos da composição da arquitetura de fachada), por processo digital.
A base para a identificação das construções será em planta cadastral, com a identificação
do imóvel pelo seu endereço. As primeiras fotos serão as das fachadas históricas, já em andamento, com o registro de 250 prédios, entre imagens das fachadas, detalhes dos adornos
de composição (elementos construídos) e conjuntos de fachadas.
Os documentos de referência às construções da cidade de Vassouras serão pesquisados junto a diversas
fontes de registro, principalmente junto aos usuários/moradores da edificação registrada pelas fotos,
além de outros habitantes da cidade e empresas particulares com lembranças documentais do edifício.
A procura pelo novo tornou míope a visão da importância em se preservar, deformando conceitos e valores culturais, e atrelando a estética às prerrogativas do forte mercado imobiliário.
270
História e Geografia do Vale do Paraíba
Acreditamos que a conscientização do jovem estudante para o respeito e a valorização dos
prédios históricos, através da educação iniciada no ensino básico, consolida valores de respeito aos espaços e bens imóveis coletivos. Estas ações já demonstraram bons resultados sociais,
com resposta nas atividades de convênios/parcerias desenvolvidas na aplicação da pesquisa.
No sentido de viabilizar as parcerias dos responsáveis pela pesquisa com escolas públicas e privadas do ensino básico e secundário em Vassouras, formalizamos parceria com o Instituto Histórico
Geográfico de Vassouras, acertada em reunião plenária, o que será de relevante importância na
ponte entre as escolas indicadas pelo IHGV e a aplicação dos trabalhos acadêmicos pesquisados.
Registrar o rico conjunto arquitetônico de Vassouras, a sua disponibilização para toda a comunidade, será, a nosso ver, uma boa contribuição para setores de emprego e renda (destaque para
turismo, produção artesanal e comércio de produtos locais). Lembramos que a cidade de Vassouras é conhecida não só no Estado do Rio de Janeiro, mas em todo o país, pela sua importância histórica, marcada pela plantação de café, que construiu um rico patrimônio arquitetônico.
Nosso trabalho de pesquisa pretende ser periodicamente atualizado com novas fotos digitais, que irão além dos tradicionais prédios históricos, incluindo as imagens das mudanças
na paisagem urbana. Acreditamos ser fundamental o registro das mudanças na paisagem
construída, o que evidenciará a importância de se construir um conjunto em que sejam
respeitados os elementos do conjunto arquitetônico integrado, em especial pela altura do
gabarito. Novas construções devem compor cenários nos quais os seus elementos arquitetônicos mantenham uma composição de equilíbrio.
Exemplo de fachadas compondo um conjunto com equilíbrio de composição e volumetria. Av. Mem de Sá. Centro.
Rio de Janeiro, 2009. Foto Autor.
271
Conjunto de edifícios residenciais. Rua Barão de Capivari. Vassouras, 2011. Foto Autor.
Consideramos como justificáveis as colocações e os argumentos apresentados. Acreditamos que a construção do Acervo de Imagens da Arquitetura de Vassouras, com o
apoio do IHGV, a sua disponibilização para a comunidade, e as parcerias com os colégios
da cidade para desenvolvimento de atividades extracurriculares, um instrumental acadêmico de pesquisa paliçada, incentivarão uma política de respeito e preservação do patrimônio
histórico, que é de todos.
Solar do Barão de Vassouras. R. Barão de Vassouras, Vassouras, 2011. Foto Autor.
272
História e Geografia do Vale do Paraíba
A Documentação de Vassouras e do Vale do Paraíba no Acervo
da Presidência da Província – Século XIX
Paulo Knauss*
O Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro é a instituição arquivística de referência
do Poder Executivo fluminense. Desse modo, reúne documentos das diferentes eras da
administração regional, com exceção do período colonial, pois os documentos do governo da capitania do Rio de Janeiro se encontram no Arquivo Nacional. Assim, o acervo do
período provincial do tempo do Império do Brasil, do período da Presidência de Estado
do tempo da Primeira República e de épocas posteriores da administração estadual está
reunido no APERJ. A missão da instituição impõe o compromisso com o tratamento
técnico da documentação, favorecendo seu acesso e difusão.
No contexto atual do planejamento de desenvolvimento da instituição, tem-se como meta
o tratamento da documentação da era manuscrita da administração pública, que antecedeu
a produção de documentos datilografados que se generalizaram a partir dos anos de 1930
e que está sendo sucedida pelos documentos digitados ou, mais recentemente, de formato
digital. Uma das características da documentação administrativa do tempo do manuscrito
é a existência de grande número de códices, conjuntos encadernados de manuscritos, que
eram a base da administração, ao lado dos documentos avulsos que são basicamente oriundos de correspondência entre instâncias administrativas e de poder público.
Comprometidos com essa meta geral, o APERJ tem trabalhado nos últimos anos os conjuntos documentais do século XIX e mais recentemente tem avançado em relação aos conjuntos das primeiras décadas do século XX, que integram a era da administração manuscrita. No universo do século XIX, destaca-se o Fundo da Presidência de Província. Conhecer
os documentos desse acervo significa ir ao encontro dos fatos da história da província
fluminense no tempo do Império, em que a lavoura do café, o Vale do Paraíba e Vassouras
ganharam destaque na história regional.
História Arquivística
Originalmente a documentação da Presidência de Província encontrava-se nos porões da
Escola Aurelino Leal, em Niterói, até que em 1961 foi transferida para o Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro e logo após para a Biblioteca Estadual de Niterói, ali permanecendo até 1979, quando retornou ao Arquivo Público.
Entre 1977 e 1978, a documentação avulsa recebeu tratamento técnico de uma equipe da
Universidade Federal Fluminense, coordenada pela professora Ismênia de Lima Martins.
Em 2000, foi definido um novo arranjo para toda a documentação com o estabelecimento
de seções de fundo e séries. Paralelamente, foi constituída uma base de dados para disponibilização do material na sala de consulta do APERJ.
A partir de 2004, o APERJ passou a integrar o Convênio CONARQ – COLUSO /UERJ
e a contar com estagiários da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para auxiliar no
trabalho de organização do acervo da Presidência de Província.
Diretor-geral do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense. Sócio Colaborador do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras.
*
273
Em 2009, com a constatação de alguns problemas de organização e ordenação interna,
decidiu-se realizar uma revisão do quadro de arranjo estabelecido e das unidades de descrição na base de dados existente. A revisão foi concluída no início de 2011.
O Fundo Presidência da Província do Rio de Janeiro encontra-se organizado em 4 (quatro)
séries documentais: Secretaria da Presidência da Província; Diretoria da Fazenda Provincial;
Diretoria de Instrução Pública e Diretoria de Obras.
Ainda no que diz respeito ao tratamento técnico, foi desenvolvido entre 2009 e 2010, o Projeto “Restauração, Acondicionamento e Informatização da Documentação do Fundo Presidência da Província do Rio de Janeiro”. Patrocinado pela Petrobras, através da Lei Rouanet, o
projeto permitiu o tratamento de 282 códices, 76 plantas e 10 mapas; a digitalização do álbum
de fotografias de Marc Ferrez e a microfilmagem toda a coleção cartográfica.
O Fundo Documental
O Fundo Presidência de Província do Rio de Janeiro abrange o período de 1715 a 1889 e
possui cerca de 85 metros lineares de documentos manuscritos (entre avulsos e códices),
produzidos e acumulados por diversos órgãos administrativos da antiga província fluminense, tais como ofícios, relatórios, mapas estatísticos, autos de agravo e de protesto, processos, requerimentos, certidões e registros de escravos. Contém Registros Paroquiais de
Terras, Livros de Decretos e Leis, Livros de Deliberações da Presidência da Província, de
Termos de Posse, de Contratos, de Finanças, de Registros de Despesas e da Dívida Pública.
Inclui ainda plantas, mapas (10) e um álbum de fotografias de autoria de Marc Ferrez.
Trata-se da documentação mais antiga do acervo do APERJ e constitui fonte de fundamental relevância para o estudo da história política, econômica e social da província fluminense
no tempo do Império do Brasil, bem como para fins probatórios. Dentre os principais
temas encontrados nesse material podemos destacar: escravidão, agricultura, questões agrárias, obras públicas, imigração, finanças, instrução pública, paróquias, irmandades, polícia e
poder judiciário de todo espaço fluminense e as relações entre a Província do Rio de Janeiro
e as demais províncias.
História Administrativa
A estrutura administrativa da Província do Rio de Janeiro foi organizada após a instituição do Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, uma mudança na Constituição de
1824, que dentre outras medidas criou o Município Neutro na cidade do Rio de Janeiro,
capital do Império, separando a Corte da província fluminense, passando esta última
a ter autonomia e jurisdição própria. As atribuições do presidente da Província do Rio
de Janeiro, que era nomeado pelo Imperador, foram regulamentadas pela Lei Imperial
n° 40, em 3 de outubro de 1834.
Anteriormente, após a Constituição de 1824 que dividiu o Império em Províncias e criou
o cargo de presidente das mesmas, o governo provincial fluminense era administrado pelo
Ministério do Império através de avisos dirigidos às Câmaras Municipais.
274
História e Geografia do Vale do Paraíba
A Constituição de 1824 instituiu também a monarquia constitucional no Brasil, combinando a tradição monárquica com a ordem do liberalismo político, pois o Império foi
organizado com 4 poderes: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o poder Moderador.
Este último era atribuição exclusiva do Imperador que podia, assim, interferir nos outros
poderes. As Províncias refletiam a organização do poder central divididas formalmente nos
três poderes acima citados sem o poder Moderador.
Entretanto, a província fluminense durante o período de 1824 até 1834 era a única jurisdição
regional que não tinha um parlamento próprio representado pelo Conselho Geral de Província por ter o território situado junto à Corte. Após o Ato Adicional de 1834 que substituiu os
Conselhos Gerais de Província por Assembleias Legislativas Provinciais foi instituído o Poder
Legislativo em território fluminense que passou ter a sua própria Assembléia Legislativa, fato
que se tornava imperativo tendo em vista a separação da Corte da Província.
Dessa forma, a Vila Real de Praia Grande foi elevada à condição de cidade com o nome de
Niterói em 1° de fevereiro de 1835, requisito necessário para ser a capital da Província do
Rio de Janeiro, sediando nesta mesma data a primeira reunião da Assembleia Legislativa e
tendo sido nomeado para ser o primeiro presidente da Província Joaquim José Rodrigues
Torres, o Visconde de Itaboraí.
Assim, a estrutura administrativa provincial foi organizada paulatinamente, sendo criadas em
1835: a Secretaria da Presidência da Província em 27 de março, a Escola Normal de Niterói
em 4 de abril, e a Guarda Policial da Província em 14 de abril. No ano seguinte foram organizadas as Coletorias e Registros vinculados à Tesouraria da Província, a Diretoria de Obras
Públicas e uma Escola de Arquitetos e Medidores para preparar a mão de obra para esta
função posteriormente extinta em 1844, além do Colégio de Artes e Mecânicas para Órfãos.
A Diretoria de Instrução foi criada em 1837, e em 1841 foi criado o cargo de Chefe de Polícia
além de ser aprovado o regulamento da secretaria da Presidência que tinha em sua estrutura
duas seções. A Diretoria da Fazenda foi criada somente no ano de 1859 na primeira reforma
administrativa provincial, sucedendo a Administração da Fazenda Provincial criada em 1842.
Até esta data os assuntos fazendários da Província eram controlados pela Corte.
A substituição dos Conselhos Gerais de Província pelas Assembleias Legislativas Provinciais fortaleceu estas instituições que podiam controlar as Câmaras Municipais, criar paróquias e termos, elaborar o orçamento da Província, fixar impostos, organizar a polícia, criar
e extinguir postos de funcionários provinciais dentre outras atribuições. Era constituída por
36 membros escolhidos por eleição indireta.
De outro lado, a Constituição de 1824, embora definisse o Poder Judiciário formalmente
separado dos outros poderes, não concretizava esta medida na prática, pois em boa parte
do período imperial esta instância de poder se misturou com as atribuições policiais ao
mesmo tempo que integrava as atribuições do Poder Executivo. Assim, a Constituição definiu que a 1ª instância era atividade dos juízes de direito e juízes de paz, e a 2ª instância ficou
sob a atuação dos Tribunais de Relação nas capitais das Províncias tendo acima o Tribunal
de Justiça funcionando na Corte.
275
A Constituição de 1824 estabelecia também o catolicismo como religião única e oficial do
Estado e atribuía ao Poder Executivo o direito de nomear bispos e prover benefícios eclesiásticos, além de aprovar as normas da Santa Sé numa clara subordinação da Igreja ao Estado. O controle por parte do Estado imperial envolvia tanto os trabalhos relacionados ao
clero secular quanto regular. Este tipo de controle foi transferido para o governo provincial
que tinha atribuição de aprovar a criação de novas paróquias além de construir e preservar
igrejas e capelas dentre outras funções.
As atribuições das Câmaras Municipais por sua vez foram definidas pela Lei Orgânica dos
Municípios de 1828, que vigorou até 1891, estabelecendo que as mesmas eram corporações
meramente administrativas não exercendo jurisdição contenciosa. Além disso, a lei de 1828
estabelecia que o número de vereadores era de nove para as cidades e sete para as vilas,
sendo que o vereador mais votado presidiria as Câmaras. Tal número foi modificado pela
lei de 1881, determinando que na Corte este número seria de vinte um, e treze em algumas
capitais, incluindo a Província do Rio de Janeiro. Esta lei alterou também a escolha do presidente que seria eleito pelos vereadores junto com o vice.
As posturas municipais regulavam o funcionamento das vilas e cidades e as Câmaras deliberavam sobre: conservação e alinhamento das ruas, calçadas, cais e praças, iluminação, água,
esgoto, saneamento, vacinação, abastecimento, construção de estradas, pontes e aquedutos
dentre outras. Com o Ato Adicional de 1834, a tutela das Câmaras Municipais passou dos
Conselhos Gerais de Província para as Assembleias Legislativas Provinciais encarregadas
de legislar sobre a economia e a política dos municípios.
Além disso, havia a Guarda Nacional, uma corporação privada de âmbito nacional instituída em 1831 que auxiliava a manutenção da ordem nas Províncias, tendo uma subordinação
ligada ao ministro da Justiça e ao presidente da Província, além dos juízes de paz fora das
capitais até 1850.
A falta de uma separação clara entre os três poderes instituídos e entre o poder central e o
poder provincial em função da proximidade da Corte com a Província do Rio de Janeiro foi
uma importante característica da administração provincial fluminense. O cargo de Chefe
de Polícia na Província, por exemplo, era subordinado tanto ao Chefe de Polícia quanto ao
presidente da Província até a reforma administrativa de 1876.
A administração provincial fluminense foi marcada ao longo do período imperial por duas
importantes reformas realizadas em 1859 e 1876. Antes da primeira reforma de 1859 deve
ser destacado que além dos órgãos já mencionados que foram organizados nos anos iniciais
da administração fluminense foram criados também: o Instituto Vacínico e a Comissão
Central Diretora de Colonização em 1844, a Casa de Detenção de Niterói em 1847, o Arquivo Estatístico da Província com sede em Niterói e a Repartição Especial de Terras da
Província em 1850, esta última integrando a estrutura mais ampla da Repartição Geral das
Terras Públicas, órgão de atuação nacional criado no âmbito da Lei de Terras publicada no
mesmo ano, e a secretaria da Polícia em 1853.
276
História e Geografia do Vale do Paraíba
A primeira reforma administrativa da Província foi realizada em 4 de fevereiro de 1859
e, além dos órgãos e cargos criados anteriormente já mencionados, dividia a estrutura da
administração interna provincial em 3 grandes repartições: a Secretaria da Presidência encarregada da gerência geral da administração provincial, a Diretoria de Instrução Pública da
Província, que a partir de 1844 passou a reunir o ensino primário e secundário, a Diretoria
de Fazenda criada neste ano, e a Diretoria de Obras Públicas novamente recriada após sua
extinção em 1844.
Esta reforma definiu melhor a administração provincial, sendo a Secretaria da Presidência
dividida em uma seção central e em mais 3 seções responsáveis pelas diversas funções
públicas que tinham um órgão específico para isto e outras que não como: comércio, agricultura e navegação, saúde pública, africanos livres, Assembleia Legislativa, municipalidades
dentre outras.
Além disso, a Secretaria da Presidência assumia a responsabilidade dos assuntos ligados ao
Ministério do Império. Este órgão se tornou importante dentro da estrutura interna da administração provincial, expressando no plano provincial o caráter centralizador do governo
imperial. Após a reforma administrativa de 1859 foram criadas em 1874 a Penitenciária de
Niterói e a Guarda Municipal da Província extinta em 1878.
Em 1876, a administração provincial passou por suas últimas mudanças antes do fim do
Império. Esta reforma manteve a divisão outrora estabelecida dividida em Secretaria da
Presidência e nas 3 (três) Diretorias mencionadas: Fazenda, Obras Públicas e Instrução
Pública, além dos cargos e órgãos criados anteriormente. A Seção Central da Secretaria da
Presidência se transformou na 1ª seção encarregada dos assuntos administrativos internos
e da organização da legislação enquanto as outras seções se encarregavam das diversas funções públicas independente de existirem órgãos administrativos para isto ou não.
A nova estrutura da administração provincial buscou racionalizar o serviço público ao
diminuir o número de empregados, realizando uma definição mais rigorosa de atribuições
e promovendo maior autonomia dos órgãos, procurando evitar que chegasse à Presidência problemas que poderiam ser resolvidos em outros níveis da administração provincial.
Dessa forma, as diferentes questões públicas eram do âmbito da responsabilidade de uma
determinada seção. A estrutura estabelecida em 1876 traduziu, de fato, o nível mais complexo de organização da administração da Província.
A partir destas duas reformas as mudanças da administração pública provincial foram cada
vez menores, destacando-se a criação do Liceu de Humanidades de Campos em 1880, a Inspetoria Provincial de Imigração, e a contadoria Anexa ao Corpo Policial – ambas em 1888.
Não ocorreram mais mudanças administrativas na Província até a proclamação da República.
Patrimônio Documental
O tempo do Império do Brasil e da província fluminense corresponde à época em que a
lavoura do café ganhou relevância para a economia nacional, projetando o Vale do Paraíba
277
e Vassouras na cena social daquele tempo.Considerando sua posição e destaque nos quadros da Província do Rio de Janeiro, diversas foram as questões de época que se encontram
tratadas na documentação da Presidência de Província do Rio de Janeiro, existente no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Os relatórios de Presidência de Província são documentos fundamentais para acompanhar o
desenvolvimento geral da administração provincial. Na década de 1850, a questão da construção da Estrada de Ferro D. Pedro II ocupou a atenção dos presidentes de província de modo
especial. Representava uma transformação geral da forma de transporte na província e que
teve como consequência uma maior capacidade de transporte de carga. O tempo das tropas
de mula era superado pela força da máquina. Em função da atração que a ferrovia exercia, novos aglomerados populacionais foram se estabelecendo e as cidades ao longo dos caminhos
de ferro como Vassouras ganhavam capacidade de competição econômica. A expansão da
lavoura de café, bem como das formas de sua distribuição e comercialização foram condicionadas pela construção da ferrovia. Consta, por exemplo, em página de relatório:
Concessão, posse, herança, controle e aquisição de propriedades, encontramos nos Registros Paroquiais de Terras. Abaixo termo de abertura do Livro de Vassouras:
278
História e Geografia do Vale do Paraíba
Certamente, um dos documentos mais interessantes para a história de Vassouras que se
destaca no fundo da Presidência de Província é o documento que eleva Vassouras à vila,
deixando então de pertencer a Vila de Paty do Alferes. Consta em sua introdução:
“ O território do atual município de Vassouras, originariamente, era parte da Freguesia de Sacra
Família do Caminho Novo do Tinguá, pertencente à então Vila de Paty do Alferes. Esta vila, criada
pelo alvará de 4 de Setembro de 1820, foi extinta por meio da Lei de 15 de Janeiro de 1833. Em seu
lugar foi criada a vila de Vassouras com sede na povoação do mesmo nome”.
Este documento não é apenas relevante pela sua informação, mas pelo seu valor simbólico
para a história do município, demarcando seus primórdios.
Nesse sentido, a promoção do acesso aos documentos da Presidência de Província do Rio
de Janeiro é um modo de promover o encontro dos cidadãos fluminenses com sua própria
história e afirmar a importância da preservação do patrimônio cultural que garante o sentido simbólico dos bens culturais.
279
280
História e Geografia do Vale do Paraíba
Capítulo 6
Educação, Cultura e Lazer
281
282
História e Geografia do Vale do Paraíba
Instrução Pública em Vassouras no Segundo Reinado
Gabriela Maria Costa da Silva*
No tempo do Brasil imperial, na província do Rio de Janeiro, competia inicialmente ao
Ministro do Império a criação de escolas. Com o Ato Adicional, em 1834, essa província
adquiriu autonomia e a instrução pública provincial passou a se subordinar também ao
presidente da Província. Esse Ato descentralizador atribuiu às Assembleias Legislativas
Provinciais a tarefa de legislar sobre instrução pública de ensino elementar e médio. Este
artigo tem por objetivo tratar do perfil das escolas destinadas à população de Vassouras na
segunda metade do século XIX, como também analisar o número de escolas distribuídas
por freguesias, o público ao qual a instrução estava direcionada, aspectos como troca e
promoções de professores dessa localidade e as atribuições dessas instituições de ensino.
A educação é um aspecto inseparável da cultura de uma sociedade e para construção de
um sentido de nacionalidade, o objetivo deste trabalho é analisar a educação na região
de Vassouras, na Província do Rio de Janeiro, no século XIX, desde o segundo reinado
até a Proclamação da República (1889), momento em que a instrução pública passa por
determinadas mudanças, bem como a localidade em questão, que assume a denominação
de vila e é contemplada com a construção de escolas, que ainda assim não abrange grande
parte de sua população.
A promulgação da lei de reformas constitucionais deu-se em 12 de agosto de 1834, em seu
artigo 10, parágrafo II, e atribuiu às Assembleias Legislativas provinciais o direito de cada
província legislar sobre a instrução primária e secundária, nos limites de sua competência.
As Faculdades de Medicina e Direito, as Academias e outros estabelecimentos de instrução
pública superior ficariam excluídas desta atribuição. Permaneceu, igualmente, com o Poder
Executivo, o direito de regular sobre a matéria no Município da Capital do Império.
A Constituição do Império, de 1824, estabeleceu a instrução como uma garantia individual
e gratuita de todos os cidadãos do Império. Mas somente em 1827, com o Decreto de 15 de
outubro, é que houve uma primeira proposta de criação de escolas primárias no país. Porém
a elaboração deste decreto preocupou-se com o nível de ensino em prol da sua extensão a
todos os cidadãos, havendo um descuido em garantias do cumprimento efetivo da lei. O
decreto transformou a instrução pública elementar em Escolas de Primeiras Letras e nada
dispunha sobre as condições materiais de sua implantação.
Na verdade a independência política não modificou o quadro da situação de ensino. Essa
educação de tipo aristocrático, destinada antes à preparação de uma elite do que à educação
do povo, desenvolveu-se no Império, seguindo fortemente as tradições intelectuais do país,
o regime de economia patriarcal e o ideal correspondente de homem e cidadão da época,
ligado estreitamente às formas e quadros da estrutura social da época, num Estado agroexportador e escravocata, que persistiram por quase todo o Império.
As discussões efetuadas no início do Período Imperial e as medidas básicas tomadas para o
estabelecimento do sistema de ensino público no país marcaram os limites dentro dos quais
*
Mestranda em História Política/UERJ.
283
a organização escolar estabeleceu-se. A afirmação da escola pública como uma instituição
fundamental do Estado Imperial esbarrou em graves problemas: uma sociedade de base
escravista e a falta crônica de recursos dos governos. A instrução popular parecia desnecessária e, por isso, não se atribuía função relevante à escola pública elementar. Deste fato
e de outros, que a sua extensão a todos os cidadãos do Império não aconteceu na prática.
Até meados da década de 30, do século XIX, a educação pública caracterizou-se, predominantemente, pela implantação de cursos superiores e de cursos preparatórios oficiais, deixando clara a constituição de um ensino de elite, entendendo assim que o governo central
concentrava seus esforços no suprimento destes cursos.
Esta concentração de esforços explicitou-se através do Ato Adicional de 1834, emenda à
Constituição de 1824, que vedou explicitamente às Assembleias Provinciais deliberar sobre
questões de interesse geral da nação. Assim sendo a partir deste, as províncias se encarregariam da instalação e manutenção dos cursos secundários e elementares.
A explicação para época dava-se pela tendência de descentralização da administração dos
níveis de ensino primário e secundário, para adequá-los melhor às circunstâncias locais (países europeus). Porém isto não se sustentou por muito tempo pelo controle indireto que o
poder central passou a exercer sobre o ensino provincial.
Quando as províncias assumiram a incumbência da criação das Escolas de Primeiras Letras,
após o Ato Adicional de 1834, o ensino elementar público praticamente inexistia na maior
parte delas (cerca de 200 escolas). Com instrumentos e recursos próprios para o ensino das
primeiras letras, as camadas superiores não reivindicavam a difusão das escolas elementares.
Quando o faziam, era apenas no discurso civilizado que cultivavam e de que lançavam mão
em épocas de instabilidade interna ou de descrédito externo.
No período imperial (1822-1889), o órgão que cuidava dos assuntos ligados à instrução era
a Secretaria de Estado dos Negócios do Império, criada em 12/10/1822, com o nome de
Secretaria do Império e Negócios Estrangeiros, e desmembrada pelo decreto sem número
de 13/10/1823. Após a independência, em 1922, o Brasil, chegava à emancipação política,
sem qualquer forma organizada de educação escolar, com algumas poucas escolas e sem
nenhum sistema de ensino.
“Evidentemente, o campo da educação não é nada imune ao movimento da sociedade
e, portanto, não se trata de defender a distância das relações entre educação e estruturas
sociais. Impõe-se, no entanto, à história da educação buscar ressaltar as mediações socialmente demarcadas e que problematizem os entrelaçamentos entre história e educação”1.
A Lei nº 317, de 21/10/1843, artigo 44, autorizou a regulamentação da Secretaria de Estado
dos Negócios do Império, executada pelo Decreto Imperial nº 346 de 30/03/1844. O artigo
13 desse decreto estabeleceu a divisão dessa Secretaria em 6 seções. A 2ª Seção se ocupava da
Instrução Pública, Obras Públicas, Saúde Pública, Polícia Civil e Estabelecimento de Caridade.2
De acordo com o Decreto Imperial nº 5.659, de 06/06/1874, a Secretaria do Império recebeu novo regulamento e os assuntos de instrução pública passaram à competência da 2ª
1
KNAUSS, Paulo. Entre Normas e conflitos – o cotidiano escolar na documentação do Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro. In: Educação no Brasil - História e Historiografia. SBHE. Campinas, SP:2001. P. 206.
2
Provincial Presidential Reports (1830-1930): Rio de Janeiro.
284
História e Geografia do Vale do Paraíba
Diretoria. No que se refere à instrução primária, antes mesmo da Constituição de 1824, o
Decreto de 20/10/1823 ordenava, no artigo 2, a manutenção do Decreto de 28/06/1821,
que permitia a qualquer pessoa estabelecer escola de Primeiras Letras independente de
exame ou de qualquer licença do Estado.
Pela Constituição de 1824, artigo 179, item XXXII, ficava garantida a instrução primária
gratuita a todos os cidadãos.
Esse direito foi regulado pela Lei de 15/10/1827, de criação de Escolas de Primeiras Letras, que ordenava serem erguidas estas escolas, por ação dos presidentes de Conselho nas
cidades, vilas e lugares mais populosos, como também serem criadas, nas cidades mais
populosas, escola para mulheres. O artigo 15 estabelecia que na Província onde estivesse a
Corte, competia ao ministro do Império o encargo da criação de escolas. Assim, de 1822 a
1834, quando através do Ato Adicional, a província do Rio de Janeiro adquiriu autonomia,
as decisões pertinentes à Instrução primária emanavam da Secretaria de Estado do Império.
O gerenciamento do ensino primário na província, no período citado, pode ser acompanhado, entre outras fontes, através das Coleções de Divisões do Governo do Império.
O Ato Adicional, no artigo 10, parágrafo 2º, atribuía às Assembleias Legislativas Provinciais a tarefa de legislar sobre instrução pública, excluindo as Faculdades de Medicina e
cursos jurídicos e acadêmicos, então existentes. Competia a estas legislar sobre ensino elementar e médio. Convém mencionar que a Lei de 01/10/1928, que dava Regulamento às
Câmaras Municipais das cidades e vilas do Império, já previa como função das Câmaras, no
seu artigo 70, a inspeção das Escolas de Primeiras Letras.
Illmo. Sr. Presidente da Província do Rio de Janeiro - Izabel Maria de Jesus Lima,
solteira, natural da Corte, moradora na rua da Carioca n.98, onde vive em companhia
de sua Mãe Clara Francisca de Jesus e seu Irmão José Correa Lima, desejando dedicar se ao magistério público de instrução primária para o que se julga habilitada, vem
pedir a V. Exa. que se digne mandar que sipra seja admitida no primeiro concurso, e
assim – E.RM. [espera tal mercê] – 30 de março de 1861.3
Observamos a partir deste trecho como se dava a solicitação para admissão no magistério
público, e os demais documentos que compunham o processo era formado por atestados
de saúde e boa conduta religiosa, deixando claro que o controle do governo se estendia a
outras instâncias, como a Igreja, marca da burocracia imperial.4
O fortalecimento do Estado com uma estreita vinculação entre os poderes sociais e político: são os poderes sociais, das mais diferentes instâncias, que configuram as representações
políticas, as quais se vinculam, por sua vez, com o autodomínio e com o poder da técnica. A
partir dessas múltiplas interações, constitui-se a esfera pública, entendida como o conjunto
de instituições e entidades que, no mundo moderno, se responsabilizaram pela representação da vontade política (HABERMAS, 1984).
Fundo Presidência da Província, notação 215.
KNAUSS, Paulo. Entre Normas e conflitos – o cotidiano escolar na documentação do Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro. In: Educação no Brasil – História e Historiografia. SBHE. Campinas, SP:2001. P. 211.
3
4
285
No entanto, no relatório ministerial de 1844, o governo apresentava preocupação com a
devida formação dos mestres e dos cumprimentos da Lei nº 2, de janeiro de 1837, para não
escapar da vigilância dos inspetores municipais.
As Assembleias Provinciais neste momento apressaram-se em fazer uso de suas novas prerrogativas e votaram, sobre a instrução pública, algumas leis que nunca entraram em prática.
Neste período, nitidamente havia uma falta de interesse na realização de um sistema de
educação voltado para a população mais pobre. Os projetos apresentavam uma preocupação em garantir e desenvolver um sistema de educação de elite: era sólida a demanda
social para o ensino superior, como forma de ascensão social; havia uma carência efetiva
de pessoal qualificado para o suprimento dos quadros administrativos do Estado e também
do administrativo privado; a pressão da elite intelectual, inspirada pelas doutrinas em voga
na Europa, pela difusão da instrução e da ciência, que dariam à jovem nação um lugar no
mundo civilizado e a limitação das vias de promoção dos indivíduos e dos grupos, na atividade econômica e na hierarquia social.
Em relação ao ensino secundário percebeu-se outro contexto, uma vez que o mesmo era
necessário ao ingresso no nível superior, o que atraia a elite como clientela. Foi concedido
o direito de ensinar a particulares, religiosos ou leigos, verificando-se assim uma expansão
significativa da presença da iniciativa privada no ensino secundário. Cabiam as províncias,
portanto, usar seus próprios recursos financeiros e humanos para encaminharem as questões da educação.
Resgatar as ações desses indivíduos, que desde jovens ingressavam no magistério e o papel
destes na sociedade em que viviam, atentando para as suas possibilidades como sujeitos da
sua própria história, pode trazer uma contribuição fundamental para a história da educação.
Os estudos atuais nessa área têm atentado para a história do currículo, não o teórico, mas o
vivido, à história da realidade e das práticas escolares, do cotidiano e das culturas escolares,
das reformas educativas em sua aplicação prática e da profissão e prática docente5.
A documentação da Instrução Pública do fundo documental Presidência da Província é
rico em dados relativos a todo período imperial, auxiliando o estudo e entendimento da
educação em um interessante período da História do Brasil. Seu acervo nos revela as regras,
as mudanças, as atribuições e condições de profissionais e instituições no Império, principalmente no que se remete a Província do Rio de Janeiro.
O acervo é composto por documentos referentes à coordenação e inspeção do ensino
público na Província do Rio de Janeiro; atas de concursos de professores, de sessões do
Conselho Diretor, de exames de alunos, de instalação de escolas e de visitas; nomeações,
exonerações e transferências de funcionários; atestados, certificados, diplomas, matrícula
e frequência de alunos; juramento e posse de profissionais da instrução pública; livros de
ponto de professores; pareceres; correspondências entre o presidente da Província, escolas,
órgãos fazendários e diretores.
5
VIÑAO, 2004, pp. 333-335.
286
História e Geografia do Vale do Paraíba
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288
História e Geografia do Vale do Paraíba
Brandão, o Popularíssimo e as Companhias Teatrais Mambembes
no Vale do Paraíba, no Século XIX: Uma Viagem Pitoresca
Marco Aurelio Martins Santos*
As companhias teatrais mambembes, assim como os circos, tinham mais de uma função
a partir da segunda metade do século XIX, onde se encaixa o recorte temporal estudado.
Além da óbvia função de entretenimento, elas serviam para levar notícias frescas de um
ponto a outro, numa época em que os meios de comunicação eram bem restritos. Aguardava-se a chegada dos artistas, para se saber o que ia pelo mundo. Por conta disso, além
do fascínio que o artista exercia e exerce sobre o indivíduo comum, como uma figura que
reúne as catarses coletivas, ele também agia como uma espécie de mensageiro, trazendo
novidades e notícias.
O Vale do Rio Paraíba do Sul nesse período era um destino certo e também ponto de partida, como veremos adiante, para companhias teatrais mambembes. A riqueza econômica
gerada pelo café, a possibilidade de mecenato pelos barões e coronéis, fazia destas cidades
um porto seguro para as agruras da vida itinerante do artista. Por conta disso, muitas histórias nasceram nesta região e é sobre isso que aqui abordaremos, empreendendo uma viagem pitoresca no tempo, conhecendo e reconhecendo aspectos cotidianos da vida cultural
e doméstica destas cidades e das cias. teatrais que a frequentavam.
Comecemos por esclarecer o que seriam exatamente estas companhias chamadas de “Mambembes”. Segundo Arthur Azevedo, que escreveu uma peça com este nome, o mambembe
é velho como o Teatro, tendo começado nos tempos da Grécia Clássica. São companhias
artísticas nômades, organizadas de improviso, e que percorriam cidades, vilas e povoações
levando um repertó rio eclético, com peças de fácil apelo popular, especialmente comédias,
que eram apresentadas onde fosse possível: desde um teatro, propriamente dito, até galpões, terreiros, praças etc. De forma geral, um mambembe era a “escola” de um ator.
Teatro em Cidades do Paraíba do Sul
Os jornais de época, editados nas cidades do Vale do Paraíba, nos poucos exemplares de
numeração irregular que chegaram aos dias atuais, atestam a efervescência cultural, mais especificamente quanto a visitas de companhias teatrais, na segunda metade do século XIX,
nas localidades banhadas pelo rio. O “Imprensa Barramansense”, por exemplo, dá conta de
que com alguma regularidade, companhias mambembes chegavam por lá para apresentações.
Citam inclusive a “Companhia Pery”, como uma das que lá deram espetáculos em 1888.
O jornal O Bem Público, de Pindamonhangaba, na parte paulista do Vale, trouxe na página 4,
do dia 10 de fevereiro de 1878 a seguinte nota:
Comunicaram-nos que depois do Carnaval aqui dará cinco espetáculos uma Cia.
Dramática organizada na Corte por Francisco Moreira de Vasconcellos. Fazem parte
* Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela ENCE e Analista em Planejamento e Gestão de Informações
do IBGE. Sócio do IHGV e do IHGRJ.
289
da Cia. nomes já bem conhecidos no palco, bem como, os Srs. Cardoso da Motta
e Adrião de Castro. (...) Os espetáculos serão frequentados por meio de assinaturas
(cinco), que antecipadamente estarão expostas à venda; não podendo demorar-se
mais que o tempo preciso para satisfazer as cinco assinaturas; os dias de espetáculo
serão na terça, quinta, sábado e domingo, não se repetindo os dramas já apresentados. (O Bem Público, 10.02.1878, p. 4)
Pelas notas nos jornais é possível descobrir que às vezes havia problemas nas companhias
teatrais. No mesmo O Bem Público pindamonhangabense, lê-se em 13 de junho de 1880:
“Empresa Maria Lima. Sabemos por pessoa competente que não há espetáculo hoje em
nosso teatro, como foi anunciado. A empresária ausentou-se precipitadamente.” (O Bem
Público, 13.06.1880, p. 1)
Na página seguinte, outra nota anônima: “Espetáculo – Anuncia-se um espetáculo para
hoje, em Taubaté, representado por parte da empresa que se denominava Maria Lima. “ (O
Bem Público, 13.06.1880, p. 2)
Com base nas duas notas, há margem para várias ilações. Não era incomum um empresário
ter que se ausentar “precipitadamente” de uma cidade. Quando a bilheteria era magra e as
dívidas gordas, este era um expediente a que muitos recorriam. E só restava aos atores buscarem outra praça, defendendo-se como podiam para fazer frente às despesas cotidianas.
Entre as cidades do Vale do Paraíba, Vassouras dava bons exemplos de especial predileção
pela arte teatral. Pelo menos é o que nos garante Raposo. Segundo ele, o primeiro teatro
vassourense foi fundado por Henrique José da Costa, em meados do século XIX, em local
incerto, mas com enorme probabilidade de ter sido criado em propriedade de Sebastião
Fábregas, e que este estabelecimento era alugado, em 1849, “por 60 mil reis mensais a uma
companhia dramática dirigida por Pedro Joaquim do Amaral.” Raposo cita como autor
desta informação o Desembargador Siqueira, apreciador de artes, e extremamente exigente
e cáustico em suas opiniões. Disse Siqueira que Pedro Joaquim era “ator de talento, não
lhe sendo inferior a protagonista, sua mulher D. Adelaide Amaral”, mas que “o resto da
companhia estava abaixo de medíocre”. (RAPOSO, 1978, p. 87)
De acordo com Raposo, o primeiro teatro de Vassouras estava localizado em imóvel (hoje
dividido em três casas) situado na esquina das atuais ruas Caetano Furquim e Visconde de
Araxá, o que explica que por muito tempo esta última fosse chamada de Rua do Teatro.
Entre 1854 e 1855, a cidade de Vassouras chegava ao seu esplendor nas relações políticas
e era acompanhada por significativa frequência nas apresentações teatrais. Além das acanhadas instalações na casa de Sebastião Fábregas, um outro teatro, maior, foi instalado na
cidade. Ainda recorrendo a Raposo, esta casa de espetáculos foi adaptada em um conjunto
de imóveis situado na Rua Bonita (atual Caetano Furquim), começando em sobrado na Ladeira da Santa Casa “e a terminar no prédio onde se acha presentemente um açougue” (RAPOSO, 1978, p. 99). Embora sem a opulência de um grande teatro, o espaço era bastante
amplo. E nesta casa, receberam, além de companhias dramáticas, companhias líricas, como
a da prima donna Augusta Candiani, acompanhada pelo tenor Licori. Escreveu o Jornal do
Commercio carioca, em 2 de setembro de 1854, que Candiani tinha assinado contrato para
apresentações em Vassouras, seguindo a trupe em grande séquito para exibir-se na principal
cidade cafeeira fluminense da época.
290
História e Geografia do Vale do Paraíba
No dia 11 daquele mês, a cidade assistia surpreendida a “entrada triunfal em Vassouras,
enchendo os olhos deslumbrados da plebe, que boquiaberta e pasmada, olhava todo aquele
cortejo como se fosse um monstruoso bando de ciganos que tivesse vindo de um mundo
ignorado”. ((RAPOSO, 1978, p. 100)
De fato, devia ser um outro espetáculo à parte, ver uma trupe enorme como aquela, bem
maior que os elencos de companhias teatrais, com caixas, bagagens, instrumentos musicais,
significativo número de músicos, cantores, pessoas envolvidas na produção, tendo que se sujeitar em dormir em estalagens e locais improvisados, visto não haver hoteis para tanta gente.
Apesar do desconforto, a companhia lírica fez enorme sucesso. Se a intenção inicial era dar
somente cinco récitas, dada a acolhida generosa, ficaram por três meses, efetuando 24 récitas.
E cada assinatura não saía barata: custava 48 mil-réis. Como para atestar o sucesso, há uma
carta enviada pelo empresário da Companhia ao Dr. Francisco de Assis e Almeida, onde
ele informava ter comprado “um riquíssimo guarda-roupa como talvez João Caetano o não
tenha: é verdade que muito perto está de 400 mil-réis, porém quero mostrar que o público
vassourense é merecedor de muito mais”. (RAPOSO, 1978, p. 101)
O prazer que o teatro proporcionava à população de Vassouras levou alguns empreendedores a tentarem construir uma casa de espetáculos de verdade, e não um estabelecimento
improvisado. Em 1857, uma comissão foi organizada para promover a construção deste
teatro. Compraram um terreno na Rua das Flores para este fim. Mas, desafortunadamente,
o plano original não seguiu adiante por falta de recursos. Embora fossem erigidas as fundações do novo teatro, estas foram abandonadas, constituindo-se em ruínas que por muito
tempo permaneceram no local.
Todavia, o público vassourense ainda iria prestigiar companhias dramáticas que por ali aparecessem, levando suas joias, as senhoras exibindo sedas, rendas leques importados pagos
pelo dinheiro do café. No dizer de Raposo, “a cada momento chegavam companhioas
dramáticas, grupos de cantores (...) e nunca lhes faltavam espectadores a aplaudirem ou
patearem artistas num desenfreamento próprio daquelas eras”. (RAPOSO, 1978, p. 122)
Em 1857, por aquelas plagas esteve o notável ator João Caetano, como também companhias comandadas por atores do naipe de Florindo Joaquim da Silva, João Barbosa Pereira
e Ludovina Soares da Costa. Do Teatro Ginásio Dramático do Rio de Janeiro, lá esteve
Gabriela Augusta da Cunha, sua primeira atriz. Em 1860, também esteve se apresentando
para as plateias vassourenses o famoso ator Alfredo Silva, assim como o não menos famoso
Furtado Coelho, ator e empresário de enorme sucesso na Corte. Como o jornal O Vassourense só apareceria em 1884, não se pode contar com essa ótima fonte durante os anos de
fausto do café e nos espetáculos teatrais que ele proporcionou.
Brandão, o Popularíssimo – um ator que começou profissionalmente no Vale do Paraíba
Falemos de João Augusto Soares Brandão, que se tornaria o ator Brandão o Popularíssimo.
Ele nasceu nos Açores, na ilha de São Miguel, no povoado de Lomba da Maia, em 19 de
junho de 1844 (ou seja, há quase 167 anos atrás). Quando tinha 11 anos, decidiu emigrar
para o Brasil, acompanhando alguns primos.
291
O destino do nativo insulano daquelas paragens parecia ser emigrar, como bem observou
Serpa: “o açoriano, por nascimento vem marcado pelo mar, na descendência de um povo
marítimo e religioso, à mercê do oceano e ao abrigo do firmamento” (SERPA, 1978: p. 12).
Brandão chegou à Corte do Rio de Janeiro em 1855 e foi trabalhar no comércio de carnes,
com um compadre de seu pai, também açoriano. Após algum tempo, foi se envolvendo em
outras tarefas: padeiro, sapateiro, caixeiro... Até que se enredou nas malhas do Teatro. Disse
ele certa vez que o célebre ator João Caetano foi sua grande inspiração.
Inicialmente, participou de peças amadoras apresentadas pela cidade do Rio de Janeiro.
Até que conheceu uma pessoa que daria o pontapé inicial de sua vasta carreira como ator
profissional. Por volta de 1862, uma proprietária de companhia mambembe do interior
fluminense foi ao Rio em busca de dois atores cômicos e um dramático para a sua companhia. Quando ela viu o jovem Brandão atuar, apressou-se em contratá-lo como comediante. O segundo contratado foi um ator também de nome João, igualmente português
e mais jovem ainda, praticamente um adolescente. Seu nome completo era João Machado
Pinheiro Costa, mas o Rio e o Brasil o conheceriam como Machado Careca. A empresária
teatral contratou os dois e os levou para a sede de sua companhia, em Vassouras. Ambos
estrearam naquela cidade do Vale do Paraíba, na comédia “Um marido vítima das modas”.
Em seguida, se apresentaram em outra comédia, denominada “Marido no Prego”. Brandão
começou em Vassouras uma carreira que duraria 57 anos, dos quais mais de 30 foram passados em cidades do interior, muitas delas do Vale do Paraíba.
Ao longo deste tempo, Brandão atuou em companhias mambembes lideradas por ele e
por outros empresários: Capitão Cabral, Francisco Gonçalves, Ribeiro Guimarães, o velho
Carroça, Ruas, Capitão José Dias... Alguns deles viraram legenda nas cidades interioranas
de São Paulo, Estado do Rio, Minas Gerais, e ainda do Sul, Centro-Oeste e Nordeste do
País. O ator Brandão, nesse período, percorreu o interior do Rio, São Paulo, Minas, principalmente, e também Paraná e Santa Catarina. E fez isso utilizando os meios de transporte
da época: trem, carroça, lombo de burro, carro de boi, a pé...
Nestes tempos de mambembe, nem sempre ele estava trabalhando no mesmo elenco que
Machado Careca. Depois de algum tempo juntos na Companhia Maria da Glória, eles seguiram outros caminhos, embora volta e meia ainda se encontrassem nos palcos da vida.
Eles estiveram na companhia do Capitão José Dias, por volta de 1868, também em Vassouras, onde a primeira-atriz contratada era a bonita portuguesa Maria Emília da Piedade,
que tempos depois, brilharia na Companhia Dias Braga. Lá, atuaram em “O Noviço”, de
Martins Pena, com Brandão fazendo o protagonista. Aliás, este texto seria incorporado ao
seu repertório por muito tempo.
Depois dessa temporada, Machado Careca viria para o Rio de Janeiro onde se consagraria
em muito pouco tempo graças ao seu extraordinário talento de cômico. Embora ele tivesse
convidado Brandão para seguir com ele, o amigo preferiu continuar viajando pelo interior,
se aperfeiçoando como ator naquela verdadeira escola prática.
Nessa fase inicial de sua carreira, o seu carisma facilitava o surgimento de grandes amizades
em todos os lugares por onde passava. Na cidade de Campanha, sul de Minas Gerais, não
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História e Geografia do Vale do Paraíba
muito longe das cidades do Vale do Paraíba, uma família tradicional, que daria (e ainda dá)
filhos célebres ao País, o acolhia sempre que por lá passava – a família Bernardo Veiga, do
nobre advogado e jurista Evaristo da Veiga. Uma de suas célebres apresentações na cidade
foi com a peça “Os Milagres de Santo Antônio”, onde ele fazia o protagonista.
Ele viveu inúmeras histórias nos 30 anos de perambulação pelo interior. Vamos aqui destacar algumas das que aconteceram no Vale do Paraíba do Sul.
Em Cruzeiro, por exemplo, na parte paulista do Vale, Brandão e sua companhia deram espetáculos ao meio-dia. E em sessões! Só para que engenheiros ingleses e operários engajados na
construção da Estrada de Ferro Central do Brasil pudessem admirar e aclamar a sua arte. Os
ingleses não entendiam o português falado pelos atores, mas aplaudiam e riam a valer com as
peripécias daquele ator frenético, que fazia coisas inacreditáveis em cena. E Brandão rapidamente descobriu como divertir os britânicos. Na verdade, o seu grande interesse era descobrir
o que o público queria e fazer o esperado, mesmo parecendo algo insano.
Certa vez, sua trupe estava passando por uma das cidades do Vale, no interior do Estado
do Rio de Janeiro, apresentando-se onde fosse possível. Um fazendeiro poderoso convidou
a companhia para fazer representações em sua propriedade cafeeira. Veja o relato contado
pelo próprio Brandão, em um texto de época, recolhido por mim:
O teatro improvisara-se armando-se no celeiro da fazenda uma série de pranchões
sobre estrados de carros de boi, escorados no porão por escoras, caixotes e as infalíveis barricas. era este o palco. a platéia se estendia pelo vasto celeiro, de que se
derrubara uma parede para aumentar a lotação, ficando parte da sala abrigada e a
maior parte em pleno teatro da natureza. A estréia com “29 ou honra e glória” deu-nos uma enchente a cunha; a peça corria otimamente mas em meio do primeiro ato,
o soalho do palco mal pôde resistir ao peso dos soldados (comparsas contratados,
entre eles um corcunda) e fomos todos ao porão com o fragor do desmoronamento! desceu o pano. o dr. Breves, dono da fazenda, mandou logo seus numerosos
escravos à reconstrução do palco. trabalhávamos todos nos reparos, enquanto a autoridade policial passeava de um lado para o outro a observar. Terminado o serviço,
refeito o palco, o diretor de cena propôs que se continuasse o drama com o 2º ato;
protestei, era preciso terminar o 1º ato interrompido, para aclarar o enredo da peça;
o diretor teimou: deixaria o resto do primeiro ato porque a demora poderia fazer o
espetáculo terminar muito tarde. estávamos a discutir, quando a autoridade local interveio: ‘mecês arrepresentam o 2º ato, despois passam pro 3º e, antonces, se houvé
tempo, mecês arrepresentam o tiquinho que farta do premeiro ato!’ E a ordem da
autoridade foi cumprida! (SANTOS, 2007: p. 22-23)
Nesta história narrada por Brandão, e escrita por ele em papel avulso com o fito de publicá-la em uma futura autobiografia, percebe-se também algumas expressões desconhecidas
como “enchente a cunha”, significando casa lotada, e “comparsas contratados”. Esta última dizendo respeito a atores figurantes convocados nos locais onde se faziam as apresentações. Normalmente desempenhariam pequenos papéis, sem falas ou com pouquíssimas
palavras a dizer. Quando determinada peça pedia “multidão”, “povo”, ou, no caso, “solda-
293
dos”, a produção afixava uma placa admitindo voluntários para essas pequenas participações. Era a festa dos gaiatos da cidade, que teriam chance de fazer algumas estrepolias em
pleno palco. Nessas ocasiões apareciam tipos de diversas características. Como o corcunda
citado por Brandão.
Outra aventura pitoresca aconteceu em Além-Paraíba, na parte mineira do Vale, conforme
o relato que recolhi e publiquei no livro Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo. Naquela
cidade há pequenas ilhas dentro do Rio Paraíba do Sul. Em uma delas, a Recreio, com
um pequeno número de moradores, vivia um espanhol, de nome Izquierdo, comerciante
bem sucedido e apreciador da arte teatral. Sua paixão era tanta que mandou construir um
pequeno Teatro na ilha onde morava. Deu-lhe o nome Theatro Izquierdo, em sua própria
homenagem. Ele queria inaugurá-lo em grande estilo e soube da presença da Companhia
Brandão nos arredores. Propôs ao ator e, naquele momento, também empresário, inaugurar
sua pequena casa de espetáculos com sua trupe. E para isso, ofereceu uma boa quantia,
prontamente aceita.
O transporte para a ilha Recreio era feito em canoas exploradas pelo próprio espanhol.
Prevendo que a apresentação do famoso ator Brandão fosse atrair um público grande,
conseguiu convencer o prefeito a construir uma ponte para levar os espectadores até o seu
Teatro. O prefeito concordou e mandou construir provisoriamente uma ponte de madeira,
ligando a cidade à ilhota. Como a ponte foi feita às pressas, ela não resistiu à pequena multidão que acorria à nova casa de espetáculos para ver o ator e sua companhia mambembe.
Não houve nenhum ferido no acidente, nem as águas eram profundas, mas o trânsito de
pessoas estava impossibilitado.
Nisso, chegou Brandão vindo do hotel com os seus atores. A situação era delicada. O espanhol proprietário do Teatro, irritadíssimo, disparava impropérios em castelhano. Por conta da
construção da ponte, o senhor Izquierdo mandara guardar as canoas responsáveis pela forma
antiga de transporte e dispensara os canoeiros, todos já engalanados na plateia do Teatro.
Sem titubear, Brandão se certificou da baixa profundidade do rio e propôs aos atores que
despissem as roupas para atravessarem na direção da ilha:
Os atores, obviamente, não levaram a sério a proposta do ator e se surpreenderam quando
o viram se livrando das vestes e, apenas em roupas de baixo, adentrar no rio, incitando os
demais a não se atrasarem.
Os artistas ficaram boquiabertos. Assim como a população e mais ainda o tal Izquierdo. As
atrizes sequer cogitaram a possibilidade de despir sua toilete para entrar nas águas barrentas
do Paraíba do Sul.
O espanhol mandou chamar os canoeiros e ordenou-lhes que buscassem as canoas e, mesmo
engravatados como estavam, providenciassem o translado de artistas e demais espectadores.
E por mais sucesso que a representação possa ter alcançado, no dia seguinte a repercussão
maior foi o gesto de Brandão. O seu senso prático tornou-o ainda mais popular na região.
294
História e Geografia do Vale do Paraíba
As peripécias do ator nem sempre terminaram em final feliz. Por temperamento, ele tinha
especial afeição pelo sexo feminino. Embora fosse um homem pouco dotado de beleza física
– o que pode ser percebido pelas fotos dele que chegaram aos dias atuais – o seu jeito extrovertido, alegre, extremamente comunicativo atraía a atenção das moças. E mais: ao seu carisma juntava uma atitude de galanteador incorrigível. O resultado dessa equação se traduzia em
um sem-número de namoradas e flertes que ele ia acumulando pela vida de ator itinerante.
E Brandão vivia feliz assim até que o Destino resolveu lhe pregar uma peça.
Em uma cidade do interior paulista (Guaratinguetá, segundo a revista Theatro & Sports,
No 242, mas não encontrei nenhum outro indício confirmando esta informação), ele conheceu uma moça que lhe despertou a atenção. Não há indicativos claros do seu nome. A
história foi narrada ao autor deste artigo por Vanda Brandão Goulart, filha do ator. A tal
jovem devia ser bonita, visto ele não se interessar por mulheres não atraentes (como assim
me garantiu sua filha). Começaram a “fazer querosene”, no dizer da gíria da época sobre
quem estava namorando. Não demorou muito e ela se deixou enredar pela lábia do ator.
Para Brandão, aquele seria mais um namorico, como muitos outros que ele deixou pelo
caminho. Ele só não contava com o seu próprio poder de conquistador.
Chegado o momento da caravana seguir viagem, a moça armou o estratagema. Correu para
contar tudo ao seu padrinho: ninguém mais, ninguém menos que o padre da cidade, muito
amigo do delegado de polícia...
Brandão teve de concordar com o casamento para reparação da honra da moça “ofendida”.
Depois do ocorrido, sua intenção era viver uma vida pacata naquela cidade do interior.
Durante algum tempo até o foi, deveras. Até o dia em que ele descobriu que sua esposa
não era virtuosa. Conforme relatou sua filha, com a mesma dignidade que o fez concordar
em se casar com a tal moça, ele pegou seu matulão e caiu na estrada, deixando a senhora
Brandão para trás.
Uma outra história envolvendo suas conquistas amorosas também nos foi relatada por Vanda Goulart, filha do ator. Estava ele com seu mambembe em uma outra cidade do interior
paulista, desfilando o repertório da companhia, quando num dia avistou uma bela jovem,
acompanhada de suas duas irmãs igualmente formosas. Segundo o relato de Vanda, todas
três tiveram envolvimentos com ele, obviamente sem o conhecimento dos pais das jovens.
Mas Brandão só não contava com o egoísmo de uma delas: a caçula, de nome Isaura
Guimarães. Ela não queria mais dividi-lo com as outras irmãs e além disso, não queria ser
deixada para trás quando ele partisse da cidade.
As outras não desejavam divulgar o caso, uma vez que as consequências poderia ser graves
para elas. Estavam satisfeitas em reparti-lo com as irmãs. Mas Isaura foi inflexível. Estava
decidida a receber a reparação pelo casamento por sua sedução.
Ela desconhecia o fato dele já ter uma esposa, não podendo, pois, cometer bigamia. Revelada a impossibilidade, nem assim ela se deu por vencida. Iria acompanhá-lo, mesmo sem
se casar oficialmente.
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Assim foi feito. Brandão a tomou por “esposa” e a levou com ele quando deixou a cidade.
Com o tempo, ela aprendeu o ofício de atriz e participava junto com o marido das companhias mambembes em que ele atuava. A partir daí, o ator refreou o seu comportamento
hedonista junto ao sexo feminino.
Não só o ator Brandão vivenciou histórias pitorescas em suas andanças por cidades do Vale
do Paraíba do Sul. Há registros – não muito claros, devemos admitir – de outras situações
curiosas, jocosas mesmo, envolvendo o ofício dos atores mambembes em viagem pela
citada região. No meu livro, cito algumas onde não me foi possível levantar o exato local
onde elas aconteceram. Trabalhei com fontes antigas e relatos orais de pessoas que ouviram
as histórias contadas por outros, que provavelmente foram transmitidas por outros, não
necessariamente envolvidos no evento em questão. Mesmo assim, na minha avaliação, são
relatos que merecem ser analisados até mesmo sob a luz da História Social, visto trazerem
indícios que ajudam a conhecer melhor grupamentos sociais temporalmente localizados
em fins do século XIX. Transcrevo abaixo uma das histórias, conforme foram publicadas
em Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo:
Tem uma história famosa, acontecida em um mambembe, se apresentando em uma
cidade do interior. No intervalo de um dos atos, o principal galã teria dado uma
bronca no ponto na frente de todo o elenco, acusando-o de não lhe dizer as falas
corretamente. Na verdade, o tal primeiro-ator humilhou o rapaz. Este não tardou em
dar-lhe o troco, saboreando a vingança que arquitetara.
Começa o segundo ato, o primeiro ator estava contracenando com a primeira-atriz
em uma cena de suma importância, onde ele sempre esquecia as falas, recorrendo
ao ponto. No exato momento da tal cena, ele dirigiu os olhos para onde ficava o
auxiliador, esperando pela ajuda mas...:
– Canalha! Ele não está na caixa! – gritou o galã, causando espanto em todos, pois
aquelas não eram as falas do texto.
Ele começou a andar de um lado para o outro no palco. O empresário, ao perceber, baixou o pano e foi saber o que tinha havido. E realmente foi constatada a
fuga do ponto. Pediram desculpas ao público pela interrupção, e ainda perguntaram se alguém na plateia poderia fazer aquela função, já que a peça não poderia
prosseguir sem alguém ocupar a caixa no proscênio. Não foi fácil conseguir. Era
uma cidade com população muito modesta e naquele tempo nem todo mundo era
alfabetizado. Com muito custo, conseguiram convencer um dos poucos que sabiam ler: o boticário da cidade. Deram ao voluntário o texto do antigo ponto e ele
foi assumir o seu posto. Levantou-se a cortina e a peça reiniciou do lugar que tinha
parado. O galã começou a dizer suas falas, mas naquele mesmo fatídico trecho, sua
memória falhou novamente e ele dirigiu os olhos para o novo ponto. Este botou a
cabeça para fora da concha e gritou:
– Está faltando essa página!
296
História e Geografia do Vale do Paraíba
Não só o outro tinha fugido como, para completar a vingança, arrancara a página da
bendita fala. Novamente o pano baixou, debaixo de vaias e pateadas do público, enquanto o primeiro-ator pronunciava os palavrões mais cabeludos que a sua memória
poderia lembrar. (SANTOS, 2007: pp. 200-201)
Esta história, que bem poderia ter acontecido em alguma cidade do vale do Paraíba (não
há registro claro na fonte sobre onde ela efetivamente aconteceu), dá bons indícios sobre
características da população interiorana da época, como a forte taxa de analfabetismo e a
presença marcante da população na plateia de peças de Teatro, mesmo porque não tinham
muitas outras opções de lazer.
As ligações de Brandão com Vassouras são dignas de nota. Em janeiro de 1883, ele estava
morando na cidade e se apresentando no teatro local com seus atores, quando sua mãe e
seus irmãos chegaram dos Açores. Em agosto, sua genitora faleceu e foi rezada uma missa
por sua alma na Matriz de Vassouras.
Após circular pelo interior de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, Brandão foi convidado a participar de uma peça na Capital Federal, onde fez enorme sucesso. Após quase
trinta anos de companhias mambembes, em boa parte deles se apresentando em cidades do
Vale do Paraíba do Sul, o ator que seria apelidado de “O Popularíssimo” atingiria o auge do
sucesso no principal centro político-cultural do país. A partir dali, se seguiriam quase outros
trinta anos. Mas isso seria uma outra história...
Referências Bibliográficas
RAPOSO, Ignácio. História de Vassouras. Rio de Janeiro: SEEC, 1978.
SANTOS, Marco. Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2007.
SERPA, Caetano Valadão. A gente dos Açores. Lisboa: Prelo, 1978.
Local onde existiu o primeiro teatro de Vassouras.
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Capa do livro Popularíssimo: o ator Brandão e seu tempo.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
A Crítica como Condição à Preservação da Arte Popular:
A Escola de Samba e o Boi-bumbá
Raphael David dos Santos Filho*
I – O Julgamento com Processo Crítico indispensável à Preservação da Cultura
O julgamento, dentre os diversos modos de interpretação da manifestação cultural, contribui para esclarecer o valor da obra, porque se algo for julgado é porque tem valor e, se
tem valor, então é digno de ser apreciado, visto e compreendido. Enfatiza Gorovitz (2003):
“Mas atenção: é necessário um juízo verdadeiro e não a opinião ou a conjectura, manifestações infundadas ou irrefletidas (doxa). O juízo é sempre um posicionamento
por reflexão sobre uma relação, afirmando ou negando um valor. Só ele propicia
ao sujeito, enquanto conhecimento verdadeiro, de natureza científica (episteme), a
reunião dos dados desconexos da experiência num fato significativo. E reflexão é
movimento de retorno a si mesmo. 0 sujeito que julga, ao julgar adequado (bom) ou
não, verdadeiro ou falso, belo ou feio, qualifica o objeto como utensílio, evidência
histórica ou obra de arte.”
O juízo que atribui valor à obra e que se supõe perfeito, é um posicionamento que afirma
ou nega valor, em geral, abalizado por critérios públicos, claros e justos. E, por critérios públicos se entende aqueles que o público, participantes e responsáveis pelo evento propõem,
compreendem e aceitam.
No que se refere a critérios claros e objetivos, se supõe que a formulação dos parâmetros
de avaliação não poderá, no caso da Arte Popular, se dar de modo erudito ou hermético:
nas manifestações populares, os sentidos mais exigidos são a visão e a audição (sentidos
teóricos; PULS, 2006) e, portanto, em termos de avaliação, o problema teórico e intelectual
fica restrito a plano secundário.
O que importa, neste caso, é a impressão, a imagem, o momento que se torna presente e
que passa rapidamente. Como lembra Robert Altman (STERRIT, 2010), em um resumo
de sua atitude em face à verdade e ao realismo do cinema e da vida: “I don’t think anybody
remembers the truth, the facts, (...) You remember impressions.”
II – A Construção do Julgamento: Natureza e Futuro da Manifestação da Arte Popular
O referencial de análise utilizado na avaliação das festas da cultura popular, em geral proposto pelas próprias agremiações, além da documentação iconográfica e documental do
evento, é determinante para a manutenção e renovação do evento. Ela é parte do evento e
decisiva à qualidade do espetáculo presente e futuro.
Um detalhe interessante é que quando se julga uma exibição artística anual (periódica),
como é comum acontecer com as festas populares, ou folclóricas que costumam ter como
* Professor Doutor Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
299
base o calendário, em última análise se está julgando a forma como ela se realizará no ano
seguinte, porque hoje se aponta as falhas que deverão ser corrigidas no futuro. E, se as
falhas não forem apontadas pelo julgador, se repetirão no futuro, porque não foram entendidas como falhas. Logo, o futuro da manifestação cultural é traçado no presente.
1 – O julgamento dos desfiles das escolas de samba
A estrutura de julgamento implantada no Desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro foi
concebida pelo pesquisador e escritor Hiram Araújo1 em 1984: neste ano, Hiram assume na
RIOTUR o recém-criado cargo de Coordenador de Jurados, ocasião em que organiza o 1º Seminário de Escolas de Samba naquela Empresa de Turismo do Município e cria o 1º Curso de
Jurados de Escolas de Samba.
Em 1987, assume a Coordenação de Jurados e institui o Curso de Jurados na Liga Independente
das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), implantando a metodologia de julgamento
adotada até hoje. Essa estratificação do julgamento reduziu a subjetividade do juízo e permitiu
uma avaliação mais racional dos motivos para as penalizações, enfatiza a profissionalização do
carnaval carioca e institucionaliza de forma pública, clara e objetiva a ossatura cultural dessa
forma singular de manifestação cultural.
Em 1991, os julgadores foram convidados pela Presidência da LIESA para, através de reuniões
setoriais, procederem à revisão dos quesitos que vigoravam desde 1987. Naquele mesmo ano, os
grupos apresentaram às escolas as suas sugestões e os Critérios de Julgamento foram alterados
e atualizados. A partir desta época, e tendo em vista o sucesso que as modificações alcançaram
– o G.R.E.S. Estácio de Sá com o enredo Pauliceia Desvairada venceu o Carnaval de 1992 com
uma comissão de frente composta de integrantes em perna de pau – anualmente as escolas se
reúnem para apreciar e propor alterações nos Critérios de Julgamento do Desfile.
Hoje, o julgamento do desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro é feito a partir de um
conjunto de dez quesitos – Bateria, Samba-Enredo, Harmonia, Evolução, Enredo, Conjunto, Alegorias e Adereços, Fantasias, Comissão de Frente, Mestre-sala e Porta-Bandeira (cf.
Manual do Julgador; LIESA, 2011) – e obrigatoriedades (cf. Regulamento Específico dos
Desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial da LIESA; LIESA, 2011).
Esse conjunto de quesitos configura um universo que procura, por um lado, assegurar
a manutenção de características culturais tradicionais (cf. o casal de mestre-sala e porta-bandeira, por exemplo, e entre outros) e, por outro lado, abre para as novas manifestações
e expressões culturais (cf. a evolução do quesito de Comissão de Frente entre outros) que
responderão pela inovação e pela perpetuação cultural do evento. Entretanto, dois aspectos
devem ser destacados: as Escolas de Samba evoluem de acordo com um determinado rito
processional e, em segundo lugar, os enredos são inéditos a cada ano.
1
A contribuição de Hiram Araújo para o julgamento do Desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro é decisiva: Em
1971, cria o Conselho Consultivo das Escolas de Samba e elabora com Edson Carneiro o trabalho “ORGANIZAÇÃO
DOS DESFILES”, do qual constam os primeiros critérios de julgamento. Em 1977, no V Simpósio do Samba, na cidade
de São Paulo, apresenta a tese “A Modernização nas Escolas de Samba”. Em 1984, assume o posto recém-criado na RIOTUR, de Coordenador de Jurados, organiza o 1º Seminário de Escolas de Samba na Empresa de Turismo do Município e
cria o 1º Curso de Jurados de Escolas de Samba. Em 1987, assume a Coordenação de Jurados na Liga Independente das
Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), institui o curso de Jurados na LIESA, lançando a metodologia adotada até
hoje. Em 1997, assume o cargo de Assessor Cultural da LIESA. Em 2001, assume o cargo de Diretor Cultural da LIESA e
em 2002, inicia o projeto Centro de Memória do Carnaval da LIESA.
300
História e Geografia do Vale do Paraíba
A exibição do desfile sob a forma processional influencia o modo de julgamento e a avaliação tanto pelo lado do
julgador quanto pelo público, porque
a Escola deve apresentar um conteúdo, um discurso linear seguindo
um rito em que são apresentados
sequencialmente as partes e grupos
componentes da escola, aspecto que
é enfatizado pela planta da Passarela
do Samba. (Figura 1).
Fig. 1: Passarela do Samba, Rio (GOOLE EARTH, 2011).
O samba-enredo, única melodia entoada durante a exibição da Agremiação e que deve ser
obrigatoriamente cantado por todos os componentes, é o fio de Ariadne,2 o vínculo que
guia o público ao longo o desenvolvimento do enredo, ao longo da avenida e permite a
assimilação do que está sendo relatado visual e auditivamente. E, na medida em que o conteúdo é assimilado, é compreendido e, em consequência, valorizado e qualificado.
Ainda, quanto aos enredos, deve ser destacado que mesmo no ano em que a Prefeitura sugeriu uma uniformidade dos temas (2000), houve criatividade no tratamento deste quesito.
Neste caso, houve, além da criatividade, a preocupação em variar o tempo, local e conteúdo
cultural, fator indispensável à qualidade e ao interesse pelo espetáculo.
A combinação de andamento e de desenvolvimento plástico e artístico com o canto
constitui a essência do Desfile da Escola de Samba. Este se constrói no tempo e sacraliza
a tradição, incluindo aí as suas partes constituintes, na medida em que ele é reconhecido
e apreciado.
2 – O Julgamento dos Bumbás3
O Festival Folclórico Duelo da Fronteira, realizado há 14 anos, em Rondônia, é realizado na
cidade de Guajará-Mirim, a 320 km da capital Porto Velho, Rondônia, na fronteira entre o
Brasil e a Bolívia e tem uma tradição semelhante ao “duelo” que acontece todos os anos entre
o boi Caprichoso e Garantido, em Parintins, inclusive na utilização das cores.
Os bumbás ‘Flor do Campo’ (vermelho e branco) e ‘Malhadinho’ (azul e branco) se enfrentam nos dias 8, 9 e 10 de agosto, em uma arena de Guajará-Mirim que tem capacidade de
receber seis mil pessoas por noite. (PORTAL AMAZÔNIA, 2011)
2
O mito de Ariadne na mitologia grega, conta que Ariadne é a bela princesa que ajuda o herói Teseu a se guiar pelo
labirinto, onde ele entra para matar o Minotauro, monstro devorador de gente. Para isso, Ariadne amarra a ponta de um
novelo na entrada do labirinto e vai desenrolando-o à medida que ela e o herói penetram na emaranhada construção. Morto
o Minotauro, ambos conseguem sair do labirinto, enrolando o fio de volta. (BAGNO, 2002)
3
As informações se referem ao XVI Festival Folclórico de Guajará-Mirim, vencido pelo boi-bumbá Flor do Campo (O
MAMORÉ, 2010). A primeira edição do Festival ocorreu em 1995 e em 1997 se iniciaram as competições e a grande rivalidade entre as duas agremiações, pois foi a partir desta data que se iniciou o Duelo da Fronteira.
301
O julgamento dos dois únicos bumbás (Flor
do campo e Malhadinho) segue um roteiro de
21 quesitos,4 com algumas obrigatoriedades5 e
onde a participação popular e a empatia com
o público têm ênfase especial, como comprovado pelo quesito Galera de avaliação obrigatória e inexistente no Regulamento do Desfile
das Escolas de Samba (LIESA, 2011).
Fig. 2: Bumbódromo, Guajará-Mirim (GOOGLE EARTH, 2011)
Diferente do Desfile das Escolas de Samba,
os bumbás se apresentam em um espaço circular (Fig.2), onde as torcidas das duas agremiações são distribuídas e se localizam frente
a frente e separadas pela arena. Tal disposição
acentua o caráter de disputa na apresentação
e se constitui um dos traços singulares e característico daquela manifestação cultural.
Isto implica que a construção do
visual do espetáculo se conclui
com a construção de um cenário,
que aos poucos vai sendo completado com alegorias e personagens da trama à medida que é
narrada. Portanto, segue-se um
roteiro dinâmico que se conclui
com a apresentação e presença na
arena de todos os personagens e grupos que têm um tema melódico próprio além do tema
musical específico do próprio bumbá, neste caso, o hino que representa a Agremiação.
O enredo também é em linhas gerais o mesmo e as alterações se apoiam na história tradicional da filha do fazendeiro que perde o boi, que morre e ressurge ao final da apresentação.
A avaliação do espetáculo segue a sequência em que as alegorias e personagens vão surgindo na arena e ao julgador cabe a avaliação, quanto à maestria, na execução e a qualidade, de
todos os quesitos. Ainda, a avaliação desempenha um papel complementar ao espetáculo,
de aperfeiçoamento técnico, de correções de pequenas falhas e, ainda, e no caso específico
do Duelo na Fronteira, contribui para estimular o inédito, o original, componentes indispensáveis à renovação artística do espetáculo.
Os quesitos em julgamento são Apresentador, Levantador de toada, Batucada/Marujada, Ritual Indígena, Porta Estandarte, Amo do Boi, Sinhazinha da Fazenda, Rainha do Folclore, Cunhã Poranga, Boi-Bumbá Evolução, Toada (letra e música),
Pajé, Tribo Indígena Masculina, Tribo Indígena Feminina, Tuxauas, Alegorias, Lenda Amazônica, Vaqueirada, Galera,
Organização e Coreografia. (GALO DA MEIA-NOITE, 2011)
5
Dentre as obrigatoriedades está a apresentação de dois personagens, o Pai Francisco – marido da Mãe Catirina, e é um empregado da fazenda. Com medo do filho não nascer com saúde, satisfaz o desejo da esposa grávida, que é comer língua de boi,
matando um dos bois de seu amo – e a Mãe Catirina – também conhecida, esposa de Pai Francisco, figura burlesca da lenda do
Bumba Meu Boi - que não são avaliados, mas que são de presença obrigatória. (Dicionário do Boi-Bumbá, 2011)
4
302
História e Geografia do Vale do Paraíba
III – Análise
O Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial e o Duelo da Fronteira, em Guajará-Mirim, são dois eventos de sucesso de público e audiência: cerca de 70.000 pessoas compareceram ao Sambódromo em 2011 (Jornal do Brasil, 2011) por noite de espetáculo para
presenciar ao desfile das escolas de samba do Grupo Especial, os 685 metros de extensão
da Passarela do Samba, na Marques de Sapucaí. E cerca de 6.000 espectadores presenciaram a exibição dos bumbás na arena com 130m de diâmetro do bumbódromo de Guajará-Mirim, em Rondônia. (Portal Amazônia, 2011)
Para que se tenha uma ideia da importância dessas festas para a população e para a Cultura
Popular no Brasil será suficiente lembrar que a primeira escola de samba, a Deixa Falar,
surgiu em 1928: do A União Faz a Força, nasceu o Deixa Falar (ainda com características de
bloco carnavalesco; ARAUJO, 2011), cujas reuniões ocorriam em frente à Escola Normal
no Largo do Estácio e de onde se originou o nome dado por Ismael Silva à nova agremiação, Escola de Samba. São, portanto, 83 anos de desfile e de carnaval.
Por outro lado e de acordo com o IBGE (Censo Demográfico 2010), a população do Município de Guajará-Mirim é de 41.656 habitantes, 15,5% distribuídos na área rural (6.449
habitantes) e 84,5% do total (35.207 habitantes) localizado na parte urbana do Município.
Comparando-se somente a população urbana com o número de espectadores por noite de
apresentação dos bumbás (três noites no total) e supondo que cada espectador vá apenas
a uma única apresentação, calcula-se que metade da população urbana (51%) participe da
festa. Mesmo que esse índice apresente variações, é impossível negar que estamos em face
de um fenômeno cultural importante.
Essas festas populares, além da sua simplicidade estrutural, apontam caminhos que explicam o seu sucesso e a sua permanência. O que, por outro lado, pode justificar ao ocaso
experimentado por outras manifestações culturais, que foram muito populares, mas que
hoje existem apenas como importante memória da cultura nacional.6
Embora com estruturas diferentes, quanto aos quesitos (número e conteúdo e modo de
apresentação (processional e arena), as duas manifestações têm um critério de julgamento e
avaliação similar, quesitos que se referem a aspectos ou personagens que devem obrigatoriamente ser apresentados. Estes critérios traduzidos em quesitos constituem a ossatura da
manifestação e o ponto de partida para as reflexões sobre seu conteúdo e expressão, tanto
plástica quanto simbólica ou artística.
Deve ser enfatizado: os critérios de avaliação se constituem na ossatura do evento: quando
em 1952 foi instituída a obrigatoriedade de fantasia, enredo e samba-enredo para o desfile
das escolas de samba (ARAÚJO, 2011) no Rio de Janeiro, ali foi criada ipso facto a Escola
de Samba e o desfile que permanece até hoje. Antes o que havia eram blocos de samba
6
Hiram Araújo (2011) destaca que no caso do Rio de Janeiro, o fenômeno das Escolas de Samba assimilou as outras manifestações culturais como a micareta, a quadrilha e outras formas culturais. De fato, a análise cuidadosa dos desfiles permite
identificar a presença dessas expressões que estão inseridas no Desfile das Escolas.
303
(ARAÚJO, 2011) e até então, as escolas se apresentavam em conjuntos uniformizados. A
exigência de fantasia, como enfatiza Hiram Araújo (2011), diferenciou a escola de samba
das outras manifestações carnavalescas e, inclusive, a diferenciou de outros eventos populares e que se desenvolviam de modo análogo (paradas militares ou não, procissões, etc.).
A permanência da obrigatoriedade e a avaliação de sua qualidade para o evento vão confirmar a identidade da Escola e da própria manifestação: Carnaval é fantasia, é samba e desfile
de escola de samba tem enredo, samba, etc.
No caso dos bumbás, a inserção do público no espetáculo, cuja participação é avaliada e
julgada, estabelece um vínculo entre a exibição e a plateia, quando esta passa a ter parte no
espetáculo. Participação que é avaliada como um dos quesitos da festa (Galera).
IV – Conclusões
A avaliação nos eventos populares, em primeiro lugar, confirma os ritos e práticas tradicionais para garantir sua perpetuação. Entretanto e através da renovação dos quesitos de análise, o julgamento crítico contribui para assegurar a sobrevivência cultural da festa, porque
à medida que são acrescidas novas interpretações à avaliação, também são atualizados os
conteúdos culturais da festa para o tempo presente, em um processo de renovação crítica
importante, porque as práticas culturais que não se transformam estarão destinadas à repetição e daí, muitas vezes, ao esquecimento.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Hiram. Entrevista. [Entrevista concedida por Hiram Araújo a Raphael David
dos Santos Filho]. Rio de Janeiro: Centro de Memória do Carnaval/Liga Independente das
Escolas de Samba do Grupo Especial (LIESA), 13 de maio de 2011.
BAGNO, Marcos. O fio de Ariadne. In: JACOB, Maria Célia (Cordenadora). Fio de Ariadne.
Orientação e Iniciação à Pesquisa na Graduação em Letras. Belém: Centro de Ciências
Humanas e Educação/Universidade da Amazônia. UNAMA, 2002.
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com/dictionary_pt.htm#letter_n. Acesso: 15MAIO2011.
GALO DA MEIA-NOITE. Notícias do Galo da Meia Noite. Quarta-feira, 19 de agosto de 2009. Disp: http://galodameianoite.blogspot.com/2009_08_01_archive.html.
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LIESA. Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Carnaval 2011.
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JORNAL DO BRASIL. Desfile das escolas de samba campeãs do Rio leva mais de 60 mil pessoas ao Sambódromo. Disp: www.jb.com.br/carnaval-2011/noticias/. Acesso: 15 MAIO 2011.
O MAMORÉ. Boi-bumbá Flor do Campo é campeão do XVI Festival Folclórico de Guajará-Mirim. Disp: http://www.rondonoticias.com.br/?noticia,83667,boi-bumb-flor-do-campo-campeo-do-xvi-festival-folclrico-de-guajar-mirim-. Acesso: 15MAIO2011.
304
História e Geografia do Vale do Paraíba
DAVID, Raphael. Sugestões para o aperfeiçoamento do evento e do julgamento. Duelo
na Fronteira - Guajará-Mirim. [Documento encaminhado ao Senhor Dayan Saldanha
M.D. Secretário Municipal de Cultura e Turismo de Guajará-Mirim]. Rio de Janeiro, 26
de agosto de 2010.
PORTAL AMAZÔNIA. Festival de bumbas em Guajará agora ultrapassa as fronteiras de
Rondônia. RONDÔNIA Notícias. Disp: http://portalamazonia.globo.com/new-structure/view/scripts/noticias/noticia.php?id=71515. Acesso: 15MAIO2011.
PULS, Maurício. Arquitetura e filosofia. São Paulo: Annablume, 2006.
STERRIT, David. Robert Altman: The Oral Biography. [ZUCKOF, Mitchell. New York: Knopf, Random House, Inc., 2009] 05FEV2010. Disp: http://www.criterion.com/current/
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305
306
História e Geografia do Vale do Paraíba
O Correio da Lavoura: Múltiplos olhares de uma região: Poder,
Cultura e Sociedade. Nova Iguaçu (1917-2000)
Ivonete Cristina Campos Lima*
A análise da participação dos grupos na sociedade iguaçuana explica-se pelas razões do
contexto sociocultural das primeiras décadas do século XX, que o cenário em questão,
impunha-se diante das novas conquistas econômicas que vieram corroborar com a dinâmica desse espaço regional, transformando a paisagem natural que encontrou ressonância
diante do início da edificação do jornal: O Correio da Lavoura.
Logo, o propósito é investigar os anônimos componentes da região de Iguaçu, que de
forma peculiar foram inclusos nas entrelinhas sociais, a partir da análise da trajetória do
jornal O Correio da Lavoura em seu papel informativo e formativo com viés divulgador do
pensamento das elites agrárias.
Inicialmente, não se tem por enfoque atribuir ao jornal uma relevância isolada que levaria
ao esquecimento dos grupos sociais que atuaram de forma pertinente na construção da cultura no espaço iguaçuano, mas, sim inseri-lo no conjunto da sociedade deste, é a temática
a ser explorada a partir da representatividade de sua trajetória. A criação do periódico nos
revelou um atalho para estabelecer as relações comerciais e por que não afirmar industriais
entre as famílias da região com as que residiam no centro da cidade do Rio de Janeiro.
O universo de discussões sobre a trajetória da economia iguaçuana, no que dizia respeito
ao cenário sociocultural a partir das primeiras décadas republicanas, é bastante significativo.
Em princípio a produção historiográfica da formação do pensamento de uma elite agrária
no início do século XX, na região de Iguaçu, é em torno da economia local, como sendo o
caminho de enaltecimento para o ato civilizador a partir de “pequenas práticas industriais”
e de sua condição para reunir bens ditos consideráveis na esfera da inserção social. Nota-se
que para este lugar os produtos alimentares são o caminho para manter os aspectos tradicionais culturais e que o processo de transformação desses elementos naturais implicam
para a região um grande avanço industrial. (Lucas, 2001, p. 58)
A dinâmica econômica na região no início republicano nos traz à lembrança os portos Iguaçu e Estrela que de certa forma desencadearam os inícios dos desdobramentos comerciais
de modo a solidificar as bases das famílias agrárias do lugar. Percebe-se que o rio Iguassu
era o veículo de sustentação da vila de mesmo nome, ou seja, as confluências iguaçuanas
mesmo diluídas com a sua extinção, não caíram no esquecimento, ao contrário, deslocado
para Maxabomba ganharam um novo impulso com a construção férrea que marcou ao seu
entorno novas modalidades de comprometimentos sociais com a produção cafeeira.
Outro aspecto também na região são os resquícios da dinamização escrava que certamente
veio corroborar com este pensamento agrário, ou seja, há um deslocamento desse contingente negro para Maxabomba e essa expressividade ganha peso na movimentação ao
entorno da linha férrea e depois para os armazéns de laranjas.
* Profª Mestre em História Social da UNIABEU/SEMEDBR.
307
Nesse momento, é interessante observar que as primeiras edições do Correio da Lavoura se
lançam ao domínio público tendenciosamente ao retratarem os tempos áureos das famílias
iguaçuanas, resgatando a história do luar. Há uma preocupação do jornal em informar a
contribuição dessas famílias para o desenvolvimento da região, a partir da genealogia. Existe uma pretensão de demonstrar a linha do progresso na cidade a partir da atuação das ditas
celebridades locais, focando os laços matrimoniais, suas trajetórias política e econômica.
A formação da família ganha significados culturais, sociais e históricos. Para Prado (2003,
p.139) a instituição familiar tem aspectos conservadores sim, quando a ela é atribuído o
conceito de organização patriarcal de Gilberto Freyre (apud, 1995, p.138) assim como indicadores de mudança, apontados por Priore (apud, 2001, pp.139-140), quando a autora
discute as diferentes organizações estruturais que dizem respeito às famílias.
Mas a família patriarcal teve grande influência não só na historiografia, como na formação
da elite local. O conceito de família tem muito a ver com a economia do lugar. É no grupo
familiar, sobretudo na esfera agrária, que muitas atividades produtivas de subsistência são
desempenhadas. Essa família grande, extensa, tem o poder de determinar e monopolizar
as etapas da produção.
A propósito, o jornal O Correio da Lavoura é fundado por um dos membros de uma família
respeitosa e de grande influência na região iguaçuana.
Os periódicos (Schmidt, p.121) de certa forma captam o discurso do local-Cainelli, (2006,
pp.120-122) aborda também esta questão. Retrata que as questões, a serem levadas em
consideração quando se propõe o uso da imprensa local como ponte para evidenciar as
reflexões sociais e culturais, dizem respeito aos comprometimentos ideológicos, políticos
ou econômicos dos grupos sociais que monopolizam as opiniões veiculadas e, portanto,
deve-se procurar explicar o lugar de onde eles falam, como falam e a partir de que e de
quem estão falando, além de procurar saber a quem eles falam.
A autora assinala que fica evidente a tendência à retomada dos princípios voltados para a
formação da dinâmica dos grupos que lideram o espaço de acordo com o modelo urbano republicano reproduzido pelas famílias. Embora Cainelli, sutilmente, em sua obra, faz
críticas a esse modelo, ela nega a importância do momento diante das transformações no
campo daquelas.
A análise do discurso, em um sentido mais amplo, vai além do conteúdo do texto. O discurso representa as diversas relações construídas entre o sujeito e o objeto que ele representa.
Como afirma Orlandi (1990, p.105), quando identificamos o discurso a partir do contexto
de sua produção, de suas origens, das condições sociais de seus autores e do imaginário então dominante, notamos que representam não apenas o que se pensava, mas, o modo pelo
qual a sociedade se relaciona com os diferentes espaços ora estabelecidos.
O discurso do jornal O Correio da Lavoura age em prol da solidificação do poder de quem
domina historicamente e que muitas das vezes passam desapercebidas, mas, são entremeadas e ricas em significados. Os sentidos buscados no discurso do citado jornal têm a ver
308
História e Geografia do Vale do Paraíba
não somente com o que foi dito, mas também com o que não foi dito e com o que poderia
ser dito, mas não foi. Deve então reportar-se ao jornal e verificar o porquê de tais palavras e
não outras, o porquê da forma de apresentar aquela mensagem e não outra. Até que ponto as
famílias agrárias iguaçuanas apoiavam o O Correio da Lavoura? O jornal formava o pensamento
dessas famílias no sentido de afirmar a atuação política e econômica das mesmas? Ou reproduzia simplesmente o que na prática já acontecia? Havia um financiamento para o jornal por
parte dessas famílias no sentido da perpetuação do poder local? Quem eram os colaboradores
do jornal? Indagações essas que nos levam a pensar para além do que está escrito.1
Assim, a redação, O Correio da Lavoura, tem a sua origem neste contexto. Fora construída
nos idos finais do século XX e inaugurada em 1917. Recebeu esse nome de seu fundador,
que era proprietário de terras na região, dedicadas á produção de laranjas. Embora não
existisse por parte do dono do jornal, naquele momento nenhum prenúncio de falência, o
fato foi devido a não circulação sistemática de periódicos que viessem a retratar a dinâmica
local, uma vez que cerca de 85 outros periódicos não vingaram, pois não conseguiram sobreviver às fases críticas da política e dos recursos financeiros da época.
Com os seus ideais de respeito, sobretudo à família e devoção à Pátria, Silvino de Azeredo,
inicia a sua trajetória como dono de uma pequena empresa, cujos princípios eram: saúde do
povo, instrução e produção.2 Percebemos neste slogan, a simbiose de periódico com a sociedade local no momento em que se revela uma ligação com as famílias existentes na região,
porque na verdade a “saúde do povo” era para os poucos que tinham condições, gerando
de fato um ato civilizador que mesmo mascarado conseguia atender muito bem toda a elite.
Todavia, a produção necessitava de uma mão de obra desqualificada e despreparada, mas
que servia muito bem para os anseios da época.
A região de Iguaçu ganha um tom diferente em sua paisagem agrária e rural. Seus aspectos
físicos serão transformados a partir da construção de locais específicos, a exemplo da redação do jornal que ficava dentro das terras do seu proprietário, dos grandes galpões para
o armazenamento de laranjas, dos pequenos comércios como as padarias e “phamárcias”
terão um crescimento bastante expressivo, ou seja, novos acabam por mudar o local, localizado em um interior montanhoso e pouco habilitado.3
O Correio da Lavoura cumpriu aqui o seu papel de veículo-mor da citricultura, numa fase em
que o espírito produtivo se fez presente em Nova Iguaçu, no sentido de definir os contornos
políticos, econômicos, sociais e por que não dizer culturais da “cidade perfume” que comemora o seu centenário em 1933, confirmado por uma iconografia panorâmica publicada onde
já se revelava a configuração urbana do que hoje consideramos o centro da cidade.
Um novo olhar historiográfico, voltado para a produção econômica, do início das décadas republicanas, incrementa o espaço das práticas comerciais e por que não dizer empresariais que
passaram a ter destaque como fator de desenvolvimento. Entretanto, paralelamente a estes inciVer, PEREIRA, Waldick. Nova Iguaçu para o curso normal. IHGNI, 1969, pp.24-25.
Ver, suplemento especial de O Correio da Lavoura de 27 de março de 2007.
3
MONTEIRO, Linderval Augusto. Baixada Fluminense: identidades e transformações. Tese de Mestrado, Rio de Janeiro,
UFRJ, 2001, p.14.
1
2
309
pientes investimentos, o mercado de trabalho exigirá uma reorganização na economia que infalivelmente contará com a imprensa para a implementação efetiva desse novo campo de atuação
no recôncavo da Guanabara. Assim, a divulgação da dinâmica citadina iguaçuana ganha espaço
no cenário brasileiro porque a cidade é uma realização humana. (Carlos, 2007, p. 57)
A dimensão histórica que permeia a movimentação iguaçuana na esfera econômica é fundamental para a compreensão da natureza da cidade, porque ela é essencialmente algo não
definido e não pode ser analisada como algo pronto e acabado, pois as diversas formas impostas que a cidade assume ganham caminhos diferentes no decorrer das múltiplas nuanças
históricas. Logo, a cidade tem uma história (Id., p.57) e o jornal como empresa também. Ele
foi testemunha privilegiada de todas as mudanças que ao longo do tempo foram alterando
o perfil da região perfume. Dos tempos dos laranjais, ele presenciou a crise da citricultura
e a consequente especulação imobiliária plantou. Verifica-se o grande pesar nas entrelinhas
de seu discurso quando as notícias soam com um ar de tristeza, neste momento o progresso de início não é muito bem-vindo. As famílias da terra vão viver do quê? Este processo
começou no pós-guerra e se acelerou no início dos anos 50.
Outro aspecto também foi a abertura da Rodovia Presidente Dutra que mudou notavelmente Nova Iguaçu. Para as famílias do lugar, a imposição do inevitável progresso transformou hábitos e atitudes aceitos como uma resistência perceptível e compreensível para
que se formara nos tempos áureos do café e dos laranjais.
Por fim, esta nova cidade que surge ainda é mesclada pelos frutos do lugar. O nacionalismo
exacerbado, impregnado no sincero amor à região se fortifica no jornal que traz por detrás
do seu discurso humanista dominador, a sua gente marcada pelo envolvimento das mudanças socioculturais que a região experimentou.
Quadro Teórico
Apontando a memória como foco condutor, devemos assim descrever como ela é compreendida no meio historiográfico, delimitando seu alcance e profundidade no presente
trabalho. Quando nos propomos resgatar a trajetória de um periódico que se perpetua a
quase um século, na memória dos descendentes do seu fundador e na daqueles que lhe
avizinham, acompanhando seu desenvolvimento, poderemos alcançar o registro histórico
não só do jornal como instituição, mas de toda a região iguaçuana que o cerca no que tange
à formação das elites agrárias dominantes no início da República.
Com o resgate da história do jornal, O Correio da Lavoura, traçamos também a trajetória
das famílias agrárias de Iguaçu, onde a memória de ambas se coaduna. O registro local se
torna uma preciosa ferramenta para construirmos o debate que procuramos elaborar. O
conceito de memória nos remete essencialmente às abordagens da historiografia francesa,
onde a Escola dos Annales representa um marco natural. Fundada na década de 1920, pelos
historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, a nova forma do fazer histórico consegue transcender o limite das fontes textuais, alargando o caminho do pesquisador no seu trabalho de
construção de seu objeto.4
A Escola dos Annales foi um marco para a historiografia, pois a partir dela, a releitura e a amplitude conceitual permitiram
um novo olhar para a pesquisa acadêmica.
4
310
História e Geografia do Vale do Paraíba
A memória não seria apenas um fenômeno biológico particular, mas no métier dos historiadores, ela se alargaria, alcançando a esfera social, onde grupos podem compartilhar memórias coletivas. Nas palavras de Jacques Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que
se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos das sociedades de hoje. Na febre e na angústia”5.
Assim, compreendendo a memória como um conceito amplo e abrangente, temos como
reconstruir o histórico de uma instituição e ao mesmo tempo entrelaçar no discurso histórico a caminhada da comunidade que a cerca.
O conceito Memória, ainda segundo Le Goff, vem sendo compreendido de diversas formas durante o tempo.6 Ele não pertence apenas o cabedal conceitual dos historiadores, mas
também de outros campos, como, atualmente, a antropologia. E ainda, além dos diferentes
campos que o tem, como o familiar, o conceito de memória nem sempre possui a mesma
semântica, às vezes nem mesmo dentro de uma mesma disciplina.
A memória pode ser vista de um viés marxista, sendo alocada dentro da esfera das ideologias,7 ou tida como uma forma de arquivo social de um grupo, a chamada “Memória
Social”. Essa última se apoia na retórica durkheimiana, principalmente na obra de M. Halbwachs,8 que trabalha com o conceito de memória alcançando uma esfera mais ampla. O
sociólogo afirma que somente o indivíduo chega ao grupo social. Essa ideia tem reflexos
claros de Durkheim, que tenta levar à coletividade todo um conjunto de representações que
superariam o indivíduo. Assim,
A memória, de recurso de preservação e transmissão dos saberes da sociedade, passava a ser representada como a grande sede, o grande arquivo da individualidade,
desenrolada ao longo da História e como expressão de um potencial interno do
indivíduo complementar ou antagônico à área das relações interpessoais.9
A ideia de uma memória social é compartilhada pela produção da escola francesa, como
podemos bem notar quando citamos Le Goff anteriormente. Peter Burke, ao escrever sobre o fenômeno dessa forma de memória, também a localiza no trabalho de M. Halbwachs:
O primeiro explorador sério do ‘quadro social da memória’, como ele chamou, foi o
sociólogo francês Maurice Halbwachs nos anos 20. Halbwachs argumentou que as
recordações são construídas por grupos sociais. Os indivíduos recordam, no sentido
literal, físico. Contudo, são os grupos sociais que determinam aquilo que é ‘memorável’ e também a maneira como será recordado.10
LE GOFF, Jacques. Memória. In: (Ed.). Enciclopédia Einaudi. Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, v.1, 1984, p.46
Ibidem., p.46.
7
“Ideologia” in BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, pp. 183-187.
8
Sociólogo francês, discípulo de Émile Durkheim.
9
“Memória social”. In: Vários autores. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, FGV.
10
BURKI, Peter. O mundo com teatro: estudos de Antropologia Histórica. São Paulo, Difel, s/d., p.236.
5
6
311
A percepção de M. Halbwachs nos deixa muito próximo de um grupo social que alcança uma
objetividade palpável, assim como o conceito de memória comungaria com essa objetividade.
Burke aponta os passos que comporiam a paulatina construção dessa memória onde princípios de seleção da memória social e a forma que poderiam variar de lugar para lugar, ou de um
grupo para ouro, bem como a forma como se modifica ao longo do tempo.11
1 – Quais os modos de transmissão das recordações públicas e como mudaram esses
modos ao longo do tempo?
2 – Quais são as utilizações dessas recordações, as utilizações do passado, e que
modificações têm sofrido?
3 – Simetricamente, quais são as utilizações do esquecimento?12
Outro ponto deve ser apontado para abarcarmos o mais possível a questão da memória.
Ampliando a discussão acerca de sua origem pessoal ou coletiva, teremos que abordar outro ponto de apoio para seguir adiante a memória com testemunho.
Ao trazer o testemunho à baila, tentamos aproximar o conceito com a questão metodológica de nossa pesquisa. Para podermos reconstruir a história do jornal e sua importância
para a comunidade onde ele se colocou, além de fontes escritas – ou a chamada Memória
Artificial de Leroi-Gourhan13 –, os testemunhos das pessoas que acompanharam o início de
sua trajetória são de suma importância. Levando em consideração que o jornal tem como o
trabalho a divulgação das ações individuais e/ou coletivas dos moradores de Nova Iguaçu
no que tange às esferas culturais, sociais, econômicas e políticas e de como essas práticas
repercutem dentro e fora da região.
Tendo abordado o conceito de memória e da sua relação com o todo social, podemos abordar os caminhos de aproximação do objeto da pesquisa.
Optamos por nos aproximar do objeto abordado tanto no seu papel como Instituição,
segundo o campo de investigação de História Empresarial quanto a sua relação com o discurso da elite agrária iguaçuana, no campo da História Cultural.
O modelo de história Empresária nos permite alocar a redação do jornal pesquisada dentro
da realidade histórica do empreendimento econômico do País. Compreendendo o papel
das questões econômicas próprias dos períodos atravessados pela empresa na sua trajetória
como um todo, será possível entender as opções e escolhas tomadas pelo seu fundador e
continuadores quanto ao caminho a seguir. A autora Eulália L. Lobo sugere diversas formas de estudarmos os documentos empresariais, onde esses não se limitariam em narrar
apenas o trajeto da firma, mas da realidade socioeconômica mais ampla. Assim,
(…) seria preciso reformular o conceito de empresa e sua utilização na história.
Tomando genericamente, tal conceito refere-se a uma unidade de produção, lócus
11
12
13
Idem, ibidem, p. 238.
Idem, ibdem, p. 239.
Apud. LE GOFF, Jacques. Op. cit., p.12.
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História e Geografia do Vale do Paraíba
institucional de combinação de fatores de produção deverá ser analisada estudando a estrutura social em que se insere, (…) é necessário considerar as relações
internas entre o sistema econômico de uma sociedade e sua estrutura social como
único modo de evitar uma generalização da racionalidade capitalista. (LOBO, in
CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 218)
Portanto, a proposta é avaliar o conjunto de influências que o jornal proporcionou em seu
entorno, como também trazer à tona os resultados dessa influência, que refletiram, sem
dúvida, no rumo das famílias da elite iguaçuana, quer na sua formação, quer no seu pensamento. Assim, a trajetória histórica do jornal ultrapassa os tempos e faz-se presente no
município de Nova Iguaçu.
Referências Bilbiográficas
AMADO, Janaína; MORAES, Marieta. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 2004.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
BRITTO, Miridan de. História Regional: conceito, problemas e tipologias. Rio de Janeiro, IGHV, 2005.
BURKE, Peter. O mundo como teatro: estudos de Antropologia Histórica. São Paulo, Difel, s/d.
CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história. Rio de Janeiro, Campus, 1997.
DEL PRIORE, Mary (Org). História das mulheres no Brasil. 6ª ed., São Paulo, Contexto, 2002.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob regime da economia patriarcal.
Rio de Janeiro, Record, 1995.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da
moeda, v.1, 1984.
LUCA, Tania Regina de. Indústria e trabalho na história do Brasil. São Paulo, Contexto, 2001.
“Memória social”. In: vários autores. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro, FGV, 1986.
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Os traços multiculturais e as práticas cotidianas dos espaços urbanos
desenvolvidos no Vale do Paraíba fazem a diversidade deste livro que
apresenta uma visão abrangente da História, da Geografia, da Economia
e da Arquitetura das principais cidades e muniçipios dessa região. Promove
uma reflexão multidisciplinar sobre as expressões socioeconômicas e seus
principais personagens, as histórias de mulheres e diferenças de gênero na
evolução e na formação da comunidade do Vale do Paraíba.
Destaca ainda o rico acervo de seu patrimônio histórico e cultural, seu atual
estado deervação e as medidas cabíveis para a sua preservação.
Apoio
Neusa Fernandes
Olinio Gomes P. Coelho
Aqui estão a História e a Geografia em sua
união fecunda e renovada. A Arqueologia, a
Literatura, a Pintura e a Arquitetura se fazem
igualmente presentes na composição da
história e da paisagem do Vale. Os temas
clássicos do café e da escravidão no século
XIX não poderiam faltar. Os escravos, suas
culturas e sua resistência, além de seu suor e
sangue, descortinam uma história do Vale
onde ainda há muito por ser feito. Sem eles,
nada se sabe sobre a região. Quase tudo está
por fazer em relação à história das populações
indígenas. As mulheres, como tema e como
agentes da história do Vale, marcam sua
presença. As cidades imperiais e, entre elas,
Vassouras são revisitadas. A geografia, os
caminhos, as estradas compõem ainda mais o
amplo painel que o leitor tem a oportunidade
de apreciar. Painel que não se detém na
história, mas avança para interpelar temas do
presente e do futuro: o patrimônio, a
memória, a cultura popular, o meio ambiente,
a água, o turismo, as políticas administrativas,
o desenvolvimento regional e muito mais.
HISTÓRIA E GEOGRAFIA
DO VALE DO PARAÍBA
Por tudo isso, é extremamente feliz a
iniciativa desse Congresso em prestar
homenagem, no aniversário de dez anos de
sua morte, a Milton Santos, geógrafo que
pensou as mazelas e os desafios do
desenvolvimento do capitalismo global e de
sua inserção e impacto no território, na
região. Ele foi também um grande intelectual
no sentido pleno da palavra, de homem de
seu tempo, engajado com as questões de seu
país e da humanidade. Sua presença nas
páginas deste livro está não apenas nos
artigos que lhe são diretamente dedicados,
mas como uma espécie de inspiração
multidisciplinar que permeia o conjunto dos
trabalhos apresentados e ora publicados.
HISTÓRIA E GEOGRAFIA
DO VALE DO PARAÍBA
Neusa Fernandes
Olinio Gomes P. Coelho
Organizadores
Ao longo dos últimos dois séculos, o Vale do
Paraíba ocupou uma posição de destaque na
história brasileira. No século XIX, com o café
e a escravidão, esteve na base da formação e
da consolidação do Estado nacional. No
século XX, depois de uma certa decadência
das primeiras décadas, que se seguiu ao fim da
escravidão, ao esgotamento das terras e à
queda do regime monárquico, o Vale, com a
Usina de Aço de Volta Redonda, alavancou a
industrialização dos anos de 1950 em diante.
Essa industrialização transformou a região
em um imenso, complexo e múltiplo corredor
a ligar as grandes metrópoles de São Paulo e
Rio de Janeiro. Tudo conectado, tal como já
havia ocorrido no século XIX, com a
expansão do mercado mundial capitalista.
É longa e rica a tradição de estudos sobre a
história e a geografia do Vale. Ela passa por
Eloy de Andrade, Mattoso Maia Forte,
Ignácio Raposo, Leoni Iório, Alberto Lamego
e muitos outros, sem esquecermos o trabalho
seminal do brasilianista avant la lettre, Stanley
Stein. Essa tradição se mantém e se amplia nos
dias de hoje. A iniciativa do IHGV de realizar
o I Congresso Nacional de História e
Geografia do Vale do Paraíba e publicar
este livro traz um novo alento a esta tradição e
vem em boa hora!
Ricardo Salles
Realização
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE VASSOURAS
IHGV
A interseção entre História e Geografia
sempre rendeu bons frutos no campo do
conhecimento. É esta interseção que está na
raiz da proposta do Instituto Histórico e
Geográfico de Vassouras e de seu I
Congresso Nacional de História e
Geografia do Vale do Paraíba, realizado em
Vassouras, entre os dias 18 e 21 de maio de
2011, cujos anais o leitor tem agora em mãos.
A interseção entre Geografia e História
permite ampliar os horizontes de cada uma
dessas disciplinas do saber tomadas
isoladamente e, além disso, abre perspectivas
para estudos multidisciplinares que avancem
no conhecimento de um território. No caso
de Vassouras e do Vale do Paraíba,
especialmente do Vale fluminense, não se
trata de um território qualquer, ainda que
nenhum o seja, todos tendo seu valor
intrínseco, com sua geografia, sua história, seu
ecossistema, sua vida, suas vocações,
impasses, dilemas e potencialidades.
Vassouras e o Vale têm tudo isso e muito mais.
VASSOURAS
2013
Se o País se fez assim, em grande medida,
sobre o Vale, isso teve um preço elevado.
Como se pode imaginar, o impacto desta
história sobre a vida de seus homens e
mulheres e sobre seu ecossistema foi
gigantesco. Suas cidades reproduzem e
convivem com todos os problemas das
grandes metrópoles contemporâneas. O rio
Paraíba do Sul, que distribui a vida através do
estado do Rio de Janeiro, luta para sobreviver
diante do despejo de toda sorte de detritos,
de lixo urbano e industrial, e dos
assoreamentos que sofre. A Mata Atlântica
foi devastada. Espécies de animais
encontram-se ameaçadas. Todos esses
problemas constituem-se em um imenso e
inadiável desafio. O presente e o futuro do
desenvolvimento brasileiro no século XXI
têm no Vale do Paraíba uma de suas arenas
principais de luta.
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