RENASCENÇA E REALISMO (TRECHO) Johan Huizinga Se a fórmula de Buckhardt para o entendimento da Renascença ainda bastasse para nós (e para muitos parece ser mesmo assim), a relação entre os conceitos de renascimento e de realismo estaria definida. No caso de se entender por realismo a necessidade e a capacidade de, por meio de palavras ou imagens, chegar-se o mais perto possível da realidade natural das coisas, e, no caso de a Renascença significar a descoberta do mundo e do ser humano, o surgimento de uma meditação individual e imediata sobre a realidade, parece então que realismo teria de ser um simples correlato para Renascença: o ser humano tornando-se consciente dos seus vínculos naturais com o mundo que o cerca, e adquirindo a capacidade de expressar clara e distintamente esses vínculos. O realismo, no sentido do anseio pela “fidelidade à natureza”, ou da transcrição perfeita da constituição natural das coisas, tornar-se-ia desse ponto de vista um atributo indispensável, e uma marca característica da Renascença. Buckhardt faz parte dos mestres que são elevados acima do antagonismo de terem ou não razão – perguntar-se-ia não mais sobre as suas opiniões, mas sim sobre o seu espírito. Assim, a história da cultura tem hoje em dia a tarefa, em algumas considerações, de se desvencilhar de Buckhardt, sem que isso prejudique a sua grandeza nem diminua a gratidão que lhe devemos. O conceito de renascimento há muito tempo não mais se nos afigura de forma tão simples como Buckhardt parece tê-lo estabelecido. Está desmoronando por todos os lados. Todas as tentativas de delineá-lo esbarram na sua indefinição e relativa arbitrariedade. Nesse contexto, o mais seguro continua sendo utilizá-lo no sentido convencional, como designação daquele florescimento de um espírito cultural europeu, que culminou logo depois de 1500, cujo ponto de partida e centro esteve na Itália, e que foi absorvido e aperfeiçoado pela França, pela Espanha, pelos países acima e abaixo da Alemanha e pela Inglaterra. Precisar exatamente a natureza e a essência desse florescimento cultural não é de forma alguma necessário para darmos conta da manifestação mesma, em sua variada harmonia, nem para tê-la presente diante de nós. O realismo e o individualismo pareciam estar tão absolutamente conectados, e o individualismo parecia tão claramente ter sido a marca principal da Renascença, que se tendia a ver um prenúncio da Renascença em toda a parte da Idade Média onde se fazia valer um molde realista. O próprio Buckhardt apontara nessa direção, em colocações sobre a poesia de vagantes [Vagantenpoesie] do século doze. Courajod integrou os Kunst Sluters e também Van Eyck na Renascença – e nisso ele encontra eco até os dias de hoje. Dessa maneira, o realismo simplesmente se colocou no lugar do conceito de Renascença, e as pessoas não mais se perguntam se as manifestações em que se afixou essa marca teriam também, de fato, o timbre da Renascença – no sentido original da palavra. Assim, a Renascença, como é concebida, permanece uma ideia histórica sob a qual pode-se abarcar tudo aquilo que se quiser. Mas o conceito de realismo, no sentido da estética moderna – como aqui o usamos –, se deixa muito mais objetivamente demarcar, e um pouco mais detalhadamente circunscrever, de maneira que se pode em seguida chegar a uma determinação mais precisa do seu vínculo com a Renascença. O significado corrente da palavra realismo se apresenta mais nitidamente a partir de exemplos em que ela é empregada, e de algumas polarizações em que ela usualmente toma parte. Nós chamamos realistas os escribas egípcios, os pintores holandeses do século dezessete, os romances de Flaubert. realismo é tido como o contrário do idealismo1, do romântico, da estilização. Na maioria das vezes, ele parece ser correspondente ao naturalismo, ainda que o uso da linguagem guarde certas diferenças. A imitação de uma realidade externa ou interna parece ser o escopo que conduz à forma realista. Quando se acompanha o aparecimento de formas realistas na história da cultura, logo fica claro que, diversamente dos assim ditos seus contrários, o realismo não é de modo nenhum uma mentalidade geral, que rege períodos inteiros. Ele se mostra muito mais como uma excrescência cultural, bastante secundária, que pulula aqui e ali, freqüentemente de maneira bastante inesperada, 1 Por enquanto não tratarei da relação com o conceito escolástico de realismo. Por razões de comodidade, no que segue aparecerá realismo, realista, para designar o significado medieval do termo. para depois sumir de novo, repentinamente. As formas realistas na literatura e nas artes plásticas não mantêm o mesmo passo, e tampouco nas artes plásticas entre si – um período específico pode produzir obras de arte realistas, sem que o seu espírito objetivo esteja sob o signo do realismo. Uma cultura pode cultivar o mais extremo idealismo como princípio formal e, no entanto, produzir, ao mesmo tempo,obras de arte que expressam princípios como o da fidelidade à natureza. A cultura egípcia foi sempre em grande medida realista, quando se toma a palavra em sentido escolástico – quer dizer: voltada para o universal, para a ideia, para o símbolo. A sua arte também atesta isso. Seu intuito essencial não é representar personalidades ou acontecimentos, mas sim tipos e ideias2. Mas essa mesma arte fornece incontáveis exemplos daquele autêntico naturalismo, que o apreciador médio da arte experimenta mais imediatamente como “egípcio”. Uma obra de arte realista não nos fala nada sobre a mente que a produziu. O seu criador simplesmente reproduziu o aspecto natural das coisas na sua especificidade, porque assim lhe foi dado representar, porque ele não conhecia outro, porque assim ele o tinha à mão. Não se pode designar o realismo na arte como o escopo de uma doutrina, pois ele consta do início de toda a história da arte – desde as profundezas do paleolítico. Ademais, se quisermos nos deixar enfim se perder completamente no conceito de realismo, observemos o seguinte: ao alcançar a sua mais perfeita conformação ele se transforma também inevitavelmente no seu contrário: nas esculturas da catedral de Bamberg, por exemplo, já não mais se encaixa. Quando se acompanha o formato realista na literatura um passo adiante, surge uma nova fissão no conceito. Nós partimos aqui do realismo enquanto conceito estético, mas na literatura ele envolve também um lado ético. O anseio por uma representação fiel à natureza de uma dada matéria pode nascer de uma vontade irresistível de descrição, ou imitação, de um pedaço da realidade, seja de forma plástica, em cor, em linha, em palavra ou som. Mas esse anseio pode também derivar da necessidade de ver, e assim também reproduzir, a vida, o ser humano, o mundo, como realmente 2 De acordo com A. De Buque – Het typische em het individueele by de Egyptenaren, Leiden, 1929. são, e não mais belos: sem o disfarce de uma forma dada, ideal ou convencional – sem ilusão. Nesse último caso, o realismo carrega um teor fortemente ético, ou melhor, pragmático. Este realismo sente-se em casa na literatura. Mas, ali onde as artes plásticas o cultivaram – por exemplo, na representação do corpo na Idade Média tardia, ou em Hogarth, ou Steilen –, ali, ao que parece, esse realismo surgiu sempre de uma intenção no fundo literária ou didática. Via de regra, quando realistas, as artes plásticas não são moralistas. Podemos encontrar exemplos desse realismo ético, dentre outros, na literatura ascética, tanto da Índia antiga, quanto do Cristianismo. A descrição do brilho mentiroso da beleza do corpo, com o intuito de suscitar repulsa e aversão, o muito reiterado tema do tratado de contemptu mundi, remontam amiúde a Johannes Chrysostomus, em uma conformidade bastante literal. A sátira, em seus objetivos e meios, é um parente próximo da pregação expiatória e do tratado ascético. Também o realismo dela é do tipo ético. Há, da mesma forma, uma conexão estreita entre a sátira e a farsa, porém, na última, o pressuposto ético tornou-se negativo: a farsa não exorta à virtude, não deplora o desvirtuamento, mas narra embustes completamente bem sucedidos. Já o realismo do fabliaux francês do século XIII, além de não ser pragmático, também já não pode ser tomado como ético – a não ser que se quisesse conceituá-lo como uma negação explícita e consciente do ideal da vida cortesã. Mas então, seria ele talvez um irônico não, dirigido à mentalidade excêntrica e afetada da cortesia? Uma tentativa de arrancar a máscara de toda a alta cultura espiritual, de castigar o sonho mentiroso da plenitude mundana, e ainda, de passagem, praguejar contra padres e monges? Então teríamos aqui o realismo como protesto, como exteriorização de uma reação afiada contra a convenção, enfim, contra todo o estilo daquela época. Entretanto, parece-me algo exagerado enxergar isso tudo no gênero do fabliaux. É claro que, também lá onde existe o escopo de tipo ético, o efeito realista continua dependente de meios estéticos. Sátira, pregação de costumes ou farsa adquiririam um gosto morno, se o seu realismo consistisse tão somente numa tendência ética ou política. O realismo, enquanto fator puramente estético, ora clama por uma discriminação mais precisa. O efeito é sempre aquele mesmo, da fidelidade à natureza, mas ele pode tomar diversas formas, e ser produzido de diversas maneiras. Pode basear-se numa só forte impressão, ser produzido pelo empuxo vigoroso de uma única imagem; mas pode também repousar na ilusão de uma representação integral da realidade visível. O artífice pode ter empregado a dita fidelidade à natureza como um efeito intencional, como um meio artístico consciente, mas ela também pode ter nascido da sua faculdade de representar, de forma totalmente inconsciente e involuntária. Os meios para evocar a sensação de realidade atual podem ser tanto a descrição detalhada do objeto, quanto a acentuação sugestiva de uma marca que lhe seja característica. O primeiro ocorre sempre consciente e intencionalmente, o último pode ocorrer com intenção, mas também espontaneamente. É indiferente se a realidade representada se adequa ou não ao ambiente onde o observador vive, e, igualmente, se o acontecimento de fato ocorreu um dia dessa maneira. Flaubert é igualmente realista em Salammbô e em Madame Bovary. Mas a diferença entre o realismo imitativo e o sugestivo não é absoluta: fundamentalmente, o realismo imitativo também só pode proceder de maneira seletiva. A interpretação mesma das percepções sensíveis, por parte do nosso intelecto, procede de maneira seletiva: toda a imagem do entendimento, de qualquer coisa, sempre se baseia na seleção. Para diferenciar por meio de um nome essas duas formas de representação realista, poder-seia falar, no melhor dos casos, num realismo analítico, descritivo ou ilustrativo, por um lado, e enfático ou evocativo, por outro lado. Ilustrativo e enfático parecem-me expressar melhor a oposição em jogo. Ambas as palavras já dão prontamente a entender que “ilustrativo” pertence mais ao terreno plástico, e “enfático” mais à representação pela palavra. Tradução de Alexandre Dal Farra. © dr J.Kist/ Huizinga Estate