A ciência e a morte Por Francisco Prosdocimi Este texto foi produzido para uma entrevista concedida à TV-UFMG sobre o assunto “como a ciência encara a morte”. O programa vai ao ar às sextas-feiras, 14h30; segundas-feiras, 21h; terças-feiras, 17h; quintas-feiras, 15h. "Se fosse anunciada alguma evidência real de vida após a morte, desejaria muito examiná-la; mas teria de ser uma evidência real científica, e não uma simples anedota” Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônicos “A morte é como um sono sem sonhos do qual nunca acordamos, nossa consciência suprimida para sempre” Keith Augustine A ciência considera a morte como, evidentemente, o fim da vida, ou seja, a completa interrupção de todas as funções vitais em um determinado organismo biológico, seja ele qual for. É considerado um estágio permanente que se acredita que todos os indivíduos eventualmente alcançarão, seja através de causas naturais – como doenças – ou através de causas não naturais, como acidentes ou traumas quaisquer. É fato, em biologia, que a morte está intrinsecamente associada com o processo de envelhecimento celular. Entretanto, o envelhecimento celular não é um processo universal e existem organismos que não ficam mais velhos de fato. Organismos unicelulares como bactérias, por exemplo, dividem-se por duplicação a cada vinte minutos e, houvesse recursos infinitos disponíveis no meio, continuariam se reproduzindo infinitamente; e jamais morreriam. Acredita-se, inclusive, que o processo de morte celular tenha surgido e se mantido em organismos mais complexos de forma a funcionar como uma proteção contra o câncer. É que as células somáticas (do corpo) que já se dividiram muitas vezes, passam a acumular cada vez mais mutações em seu DNA e, portanto, cada vez mais começam a apresentar uma chance razoável de se tornarem cancerosas. A senescência e a morte celular evitam esse problema. Entretanto, em algumas espécies como as esponjas e os corais, os processos de senescência (envelhecimento) celular são mínimos e em outras, nem podem ser detectados. Tais espécies, todavia, não podem ser consideradas imortais, já que elas eventualmente serão acometidas por doenças ou traumas que acabarão por matá-las. Mas acreditas-se que não morreriam de "velhice", por exemplo, esses organismos. No caso da morte humana, a ciência não faz qualquer distinção entre esta e a morte de qualquer outro organismo vivo. O ser humano não passa de um primata do velho mundo que de alguma forma teve seu cérebro mais desenvolvido e foi capaz de desenvolver a linguagem, aprender a utilizar ferramentas e descobrir um método eficaz de compreensão do mundo. A ciência não é antropocêntrica, para ela o homem é visto apenas como mais um animal. Parece claro que, caso existisse algum tipo de vida após a morte onde os mortos pudessem se comunicar com os vivos, experimentos simples poderiam ser desenvolvidos para se provar e estudar a veracidade destas teorias. Alguém, por exemplo, poderia escrever num papel um algarismo de 20 números, guardar em uma gaveta e perguntar a algum suposto espírito qual seria o número anotado. É claro que esta experiência deveria ser feita várias vezes e por pessoas diferentes para que isso se tornasse, um dia, uma “verdade científica”. Entretanto, não há qualquer evidência de que algo místico aconteça com os organismos depois de sua morte e, assim, a ciência permanece cética com relação a tais eventos. Já se considerarmos a existência de um mundo post mortem completamente desvinculado e não interferente com o mundo em que vivemos, então a ciência também nada é capaz de dizer sobre este pretenso mundo. A ciência trata apenas das chamadas hipóteses falseáveis, ou seja, aquelas com as quais se possam fazer testes e experimentos que as refutem ou não. A ciência restringe seu conhecimento apenas àquelas perguntas às quais ela é capaz responder. A falseabilidade ou refutabilidade de hipóteses é um critério científico básico, desenvolvido por Karl Popper nos anos 30, e de importante categórica na filosofia da ciência. Para que uma determinada asserção como “há vida depois da morte” seja considerada refutável ou falseável, ou seja, para que ela possa ser tratada pela ciência, deve ser possível realizar uma experiência física que tente mostrar essa asserção como falsa (ou, por exclusão, verdadeira). Se não há como fazer uma ligação entre um possível mundo post mortem com o mundo que chamamos de real, através da realização de experimentos que comprovem ou refutem a hipótese inicial, então essa questão sai do âmbito científico e entra para a esfera das crenças e misticismos. É que à ciência, não se pode ligar o verbo “acreditar”. A ciência não acredita, ela conclui. Keith Augustine completa a citação presente na introdução deste artigo, dizendo que “Não temos nenhuma razão adicional para crer que a consciência humana continue a existir depois da morte tanto quanto a consciência de um búfalo ou outros animais continue a ter experiências depois de morta. Além do mais, temos evidências muito fortes de que a consciência depende do funcionamento do cérebro e, portanto, a vida mental acaba com a morte deste”. Vale comentar que observações neurológicas realizadas em seres humanos provam que, quando determinadas regiões do cérebro são afetadas por doenças, traumas ou remoções cirúrgicas, a consciência do indivíduo é muitas vezes alterada, o que evidencia uma relação direta entre biologia e consciência. Tais observações reforçam a idéia de que nossa consciência está diretamente ligada à nossa biologia e que a morte de uma implica diretamente na morte da outra. Outras teorias em biologia consideram que os organismos consistam em máquinas de sobrevivência para seus genes. Assim, seríamos nós um conjunto de variantes gênicas (alelos) específicas entre todas as possíveis formas de variação de cada gene existente em nossa espécie. Se considerarmos esse ponto de vista, nossa vida pode ser vista como “a vida de nossos genes” e, sabendo que nossos familiares carregam grande parte de seu genoma similar ao nosso, ao morrermos estaremos ainda um pouco vivos, dentro de seus organismos. Nossos filhos carregam 50% do nosso genoma somado a mais 50% do genoma de nosso parceiro e, assim, de alguma forma eles podem ser vistos como uma extensão viva de nós mesmos. Poderia se considerar ainda que o fato de ser enterrado e ter seu corpo digerido por microorganismos seja também uma forma de se permanecer vivo, sendo que as moléculas que antes compunham seu corpo biológico passam a fazer parte de outros organismos vivos, a saber, aqueles que o digeriram. Assim, recicla-se o próprio corpo e entra-se novamente no ciclo da matéria orgânica. A ciência encara a morte, portanto, como o fim das funções vitais de um organismo. Embora existam formas de se pensar vivo ainda depois da morte, mesmo usando a ciência, seja através do compartilhamento de alelos gênicos com parentes ou através da “sobrevivência” de moléculas de nosso corpo nos organismos que o digerirão, tais visões estão completamente desvinculadas da sobrevivência de nossa consciência. A neurologia mostra que a consciência é um fruto claro de nossas complexas capacidades cerebrais e que ela esta está diretamente ligada às nossas funções biológicas vitais. Portanto, para a ciência, a consciência de um organismo cessa no exato instante de sua morte cerebral. Além disso, vale lembrar que a ciência trata apenas das hipóteses falseáveis e, assim, questionamentos que não possam ser testados empiricamente ficam de fora da esfera do científico. Assim, como a ciência não é capaz de responder a determinadas perguntas, as pessoas tendem a procurar as respostas que desejam na esfera do misticismo e das religiões. Por não terem qualquer relação direta com a realidade ou necessitarem de se mostrar verdadeiros, esses empreendimentos místicos freqüentemente conseguem adeptos que não são capazes de suportar, psicologicamente, a falta de sentido através da qual a ciência enxerga o mundo. Para saber mais: * http://en.wikipedia.org/wiki/Senescence * http://en.wikipedia.org/wiki/Death * http://www.str.com.br/Atheos/sentido.htm * http://www.str.com.br/Scientia/bilhoes.htm * Dawkins, R. O gene egoísta. Ed. Itatiaia Ltda. * Sagan, C. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Ed. Companhia das Letras. Texto complementar extraído de Epicuro, Carta a Meneceu. "Além disso, acostuma-te à idéia de que a morte, para nós, é um nada. Todo o bem e todo o mal residem na faculdade de sentir; a morte, porém, é a privação desse sentimento. Assim, o conhecimento de que a morte nada é torna deliciosa a nossa vida efêmera. Evidentemente, esse saber não modifica o limite temporal da nossa vida, contudo livra-nos do desejo de sermos imortais, pois para quem ficou ciente de que nada de terrível existe na ausência da vida, nenhum terror pode haver no viver. Mas se alguém argumentar que não teme a morte por causa da pena que ela trará quando, mas sim porque o simples fato da sua vinda já lhe é doloroso, é um tolo; pois é doidice que algo que não nos cause receio quando acontecer, possa trazer-nos pena, durante a espera, pelo fato de ser esperado! Assim a morte, o mais temível de todos os males, é para nós um nada: enquanto nós existirmos, não existirá ela, e quando ela chegar, nada mais seremos. Desse modo, a morte não toca nem os vivos nem os mortos, porque onde estão os primeiros não se encontra ela, e os últimos já não existem mais. É verdade que a grande massa do povo evita a morte como o mais terrível dos males, mas deseja-a, por outro lado, como se fosse o descanso das labutas da vida. O sábio, porém, nem nega a vida nem tem temores de não mais viver, pois aquela não lhe é repugnante, e ele não considera o não-mais-viver como se fosse um mal. Do mesmo modo que, na refeição, ele não faz questão absoluta da quantidade desmesurada, mas dá maior valor ao prato mais gostoso, igualmente na vida não se preocupa com o tempo que esta dura, mas sim com a delícia da colheita que ela lhe traz."