ARTIGOS TEMÁTICOS
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A Criação Crítica
Oiticica com Lacan
Tania Rivera∗
Resumo
Este ensaio tece considerações a respeito da criação e da sublimação, acentuando nelas a incidência
do descentramento do sujeito e da noção de êxtimo como concebida por Jacques Lacan. Em vez de
tomar tais noções como objetos unívocos sobre os quais a teoria psicanalítica poderia se debruçar,
propõe-se que a psicanálise acompanhe (e dialogue com) o questionamento crítico que o próprio
campo das artes realiza a respeito do sujeito e da cultura. Nessa via, é enfocada particularmente a
proposta do artista brasileiro Hélio Oiticica com seu parangolé.
Palavras-chave: Criação Crítica, extimidade, Hélio Oiticica.
Abstract
This essay weaves some thoughts about creation and sublimation, by stressing in them the incidence
of the notion of descentered subject and extime – as developed by Lacan. Instead of considering
these notions as univocal objects for psychoanalytical thought, we propose that psychoanalysis
follows (and dialogues with) the critical questioning realized by the artistic field itself about subject
and culture. In this way, we focus in particular the proposition of Brazilian artist Hélio Oiticica
within his parangolé.
Keywords: Critical creation; extimity; Hélio Oiticica.
∗
psicanalista, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora do CNPq. [email protected]
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Mais filosófica que a ciência e mais rigorosa, ou seja, mais próxima da essência da coisa
– é a arte.
Martin Heidegger
É sempre contra a corrente que a arte tenta operar de novo seu milagre.
Jacques Lacan
A questão da criação artística aparece na teoria freudiana bastante cedo, e já em 1907
configura uma torção fundamental. A Dichtung, a criação ficcional ou poética, não é tanto um
objeto a ser analisado quanto o modelo sobre o qual Freud se ampara para conceber a fantasia como
producão psíquica constituinte do sujeito (FREUD, 1908a/1976). O trabalho da fantasia (das
Phantasieren) faria de cada um de nós um poeta, um artista. A sublimação se articula a tal trabalho
ressaltando sua dimensão pulsional, ao indicar, graças à enorme plasticidade da libido oriunda da
inelutável perda do objeto originário, a possibilidade de se substituir o objetivo sexual por outro,
eventualmente mais valorizado socialmente. Mesmo que Freud ligue por vezes a sublimação à
criação artística, podemos dizer que esse destino pulsional indica algo muito mais geral e
fundamental: a articulação do desejo à cultura – ou melhor, a constituição do desejo e de seu sujeito
na cultura, de saída e inexoravelmente.
A noção de sublimação não é, portanto, específica à questão da arte. Antes, ela permite que
se localize a aproximação entre psicanálise e arte no campo alargado do diálogo com a cultura, em
que a psicanálise é arauto do mal-estar, da crise. Em vez de teorizar sobre a criação artística como
diante de um objeto bem delimitado e externo ao seu terreno de direito – o da clínica –, a
psicanálise, com a arte, recoloca a questão da relação entre sujeito e cultura. Para tratar dessa
questão, a própria psicanálise se põe em crise, aceita subverter-se, performa o descentramento que a
funda. Faz-se crítica – vendo na sublimação não tanto uma reconciliação com a sociedade, um
respeito a seus “valores”, quanto a transformação permanente de uma realidade cambiante. Pois a
sublimação, como demonstra particularmente a produção artística, é capaz de agenciar na cultura
efêmeras aparições do sujeito do desejo, lembrando-nos do poético mal-estar que nos constitui.
A sublimação como operação significante
É necessário ter cuidado, portanto, para não cair na falácia de tomar a criação como
atribuição de alguém – um eu. Apenas no século XIV algumas iluminuras começam a ser assinadas
por seus autores, e apenas com o Renascimento o artista será visto como criador, e não mais mero
veículo do poder divino através da intervenção do poder, bem mais terreno, da Igreja. Um eu capaz
de criar, e mesmo de ser genial, original em sua criação, é aquele que vai se autonomizando em um
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mundo que se desencanta, ao longo dos séculos, digamos – simplificando ao extremo –, até a
passagem para o século XX. Tal eu criador, senhor da criação, é o oposto daquele sujeito que, nas
palavras de Freud, não é mais “senhor em sua própria casa” (FREUD, 1917/1944, p. 295). A arte
moderna, que nasce ao mesmo tempo que a psicanálise, à primeira vista parece acentuar a figura do
gênio, liberando-o da mímesis, da imitação da realidade. Interessando-se pela arte dos povos ditos
primitivos, dos loucos ou das crianças, ou mais radicalmente ainda, principalmente com o
Surrealismo, buscando uma produção “automática”, ditada pelo inconsciente, os artistas modernos
não deixam, de maneira talvez menos evidente, de questionar a ideia de autoria. É Marcel Duchamp
com seus ready-mades que, em primeiro lugar, põe em cheque a criação, ao fazer da autoria não
mais que um gesto – o de equilibrar uma roda de bicicleta num banquinho, por exemplo (Roda de
Bicicleta, 1913), ou o de girar um mictório para deixá-lo em posição horizontal (Fonte, 1917). A
autoria torna-se não mais do que um certo rearranjo de objetos cotidianos, e a produção artística
rompe com a posição central do eu criador, herdeiro do poder divino de Criação.
Com a arte contemporânea, a partir do final da década de 1950, tal questionamento da
criação e da autoria se dissemina e radicaliza. O campo da criação artística põe-se, então, a cumprir
nele mesmo uma tarefa crítica no sentido forte do termo: ele põe em crise a própria noção de
criação, trazendo para seu bojo questões sobre o sujeito, a representação e o objeto. Em 1957,
Robert Smith manda fazer, por telefone, um cubo preto de aproximadamente 1,80m de lado (Die).
Em 1960, no mesmo ano em que Lacan profere seu Seminário sobre a sublimação, Ben Vautier,
artista ligado ao grupo Fluxus, que dissolvia a autoria entre seus diversos membros, concebe sua
Mystery Box. Essa caixa poderia ser reproduzida indefinidamente e trazia a inscrição: “Não abra.
Esta caixa perde todo seu valor e significação estética como obra de arte (mistério) no instante em
que é aberta”. Ela deveria conter poeira em seu interior. Para versões posteriores do mesmo
trabalho, Georges Maciunas pensa em preeenchê-la com cascas de ovo, cascas de laranja ou
saquinhos de chá usados, e comenta, com ironia, que isso seria muito prático, pois assim eles
poderiam livrar-se do lixo e ainda ganhar dinheiro com ele. No início dos anos 1960, Andy Wahrol
faz quadros que são reproduções serigráficas de fotos publicadas em jornais, enquanto nossa Lygia
Clark chega à radicalidade de seu Caminhando: a obra de arte não é mais do que o gesto,
desdobrado no tempo, de cortar no sentido longitudinal uma fita de moebius de papel com uma
tesoura. Em 1966, Nelson Leirner envia para o Salão de Brasília um porco empalhado. Em 1970,
Antonio Manuel apresenta seu corpo nu como obra na abertura do Salão de Arte Moderna no MAM
do Rio de Janeiro. Nessa profusão de práticas díspares, das quais trazemos apenas alguns exemplos
dispersos, como conceber uma noção unificada de criação? Não se trata mais propriamente de um
objeto – a obra –, feito por um sujeito – o artista –, sob o modo da “criação” de algo que antes não
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existia. A arte põe-se a criticar a si mesma, questionando vigorosamente a posição do sujeito, do
objeto e da representação.
Se a criação é ex-nihilo, como afirma Lacan mais ou menos no momento em que surge a arte
contemporânea, isso não indica uma produção autônoma de uma obra, à maneira de Deus criando o
Universo a partir “do nada”. A criação divina confirma a onipotência de seu agente, enquanto a
criação lacaniana põe radicalmente em questão a posição do sujeito de tal ato. O uso que faz Lacan
da expressão latina indica, antes, a prevalência do Significante que, sempre como “de fora”, “do
nada”, ao se criar introduz no mundo natural a dimensão do vazio e do cheio. É o significante que
cria, nessa medida, o nada. Referindo-se à produção de um vaso de argila como significante, em
conversa com textos de Heidegger, Lacan afirma que:
Esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é, em sua forma
encarnada, o que caracteriza como tal o vaso. É o vazio que ele cria, introduzindo com isso a
própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o cheio são pelo vaso introduzidos em um
mundo que, por si mesmo, não conhece nada disso. É a partir desse significante modelado
que é o vaso que o vazio e o cheio entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e
com o mesmo sentido. (LACAN, 1986, p.145).
O acento aí não é dado ao objeto criado, nem ao seu criador, mas a uma operação
significante – a de criação do próprio significante, ou seja, sua incidência capaz de gerar, no mundo
“natural”, a cultura (e, no mesmo golpe, o sujeito como efeito dessa operação). Tal operacão
introduz num objeto – ou num ato – um “nada de particular”, capaz de comemorar ou “re-suscitar”
em nós a origem da cultura. Não se trata necessariamente, portanto, de fazer surgir um objeto tal que
jamais tenha antes existido, mas de um agenciamento significante que pode ser como uma
bricolagem, uma sutil operação sobre objetos que já estão lá, fora de nós – objetos quaisquer como
as caixinhas de fósforo que Lacan encontra durante a Guerra na casa de Jacques Prévert (elas eram a
única coisa que restava, em tempos de guerra). A tais objetos a dignidade da Coisa perdida só
confere um brilho problemático [posto que a Coisa, como diz Lacan, “literalmente não é: ela se
distingue como ausente, estrangeira” (LACAN, 1986, p.78). A Coisa só se apresenta como fora e em
perda. Em vez de senhor da criação, capaz de produzir a Coisa, o eu se descentra, diante dessa
familiar estranheza. Poeira, restos de comida ou o corpo, algo se apresenta de modo a desmontar a
pretensa dignidade da Coisa. Somos aí tomados e subvertidos como por um lance de dados – jogo
simbólico que produz alguma poesia. Nesse golpe, e não antes dele, pode surgir algum sujeito,
efemeramente, como seu produto. A miragem da Dignidade da Coisa, assim como a d’O Belo,
desfaz-se na própria obra – com minúsculas, pois não é mais possível aí A Obra (assim como não é
mais possível O Sujeito, mas apenas o sujeito barrado).
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Em vez de sublime e autônomo criador, o artista talvez não seja mais do que um catador de
lixo, como dizia Walter Benjamin (BENJAMIN, 2000a). O chiffonier é aquele que recolhe o que a
sociedade despreza e destrói e, retomando esses objetos decaídos, faz com que isso retorne à
sociedade, ao olhar – em geral, por ironia, como algo valorizado socialmente (e muitas vezes
economicamente, não custa lembrar). Que tipo de “criador” seria esse, que não faz mais, talvez, do
que operar uma certa “reciclagem”? Ou melhor, para limpar do nosso campo qualquer conotação de
“melhoria” do material ou benefício econômico e/ou ecológico: que “criador” é esse que não faz
mais do que operar uma certa “re-volta” sobre a própria cultura?
A Psicanálise, crítica da cultura
A psicanálise já nasce como uma crítica cultural. De saída, a civilização é vista por Freud
como nociva à saúde mental, por basear-se em injunções morais que imporiam ao homem uma
severa repressão sexual. Em 1908, Freud afirma que, apesar de não ser atribuição do psicanalista
propor reformas na sociedade, suas considerações a respeito dos efeitos nocivos da “moral sexual
civilizada” poderiam servir como defesa da necessidade de mudanças (FREUD, 1908b/1976). A
vulgarização da teoria psicanalítica trouxe, sem dúvida, contribuições para a revolução dos costumes
realizada no século XX. Em geral, os psicanalistas seguiram, contudo, sem propor reformas na
sociedade – apesar de Freud não ter se furtado a exprimir publicamente suas opiniões sobre o
antissemitismo e a guerra, por exemplo.
Em um espectro mais amplo, podemos considerar o próprio nascimento da psicanálise como
produto de uma crise na cultura, e ver em sua trajetória até os dias atuais uma atuação
problematizadora do homem e da civilizacão. A psicanálise surge no amplo contexto de crítica da
representação da realidade que, desde o Renascimento (e com nuances que não cabem nesse curto
ensaio), se sustentava em uma racionalidade central e sem falhas. Em fins do século XIX, a
concepção de um equilíbrio entre o sujeito e a representação mostra-se radicalmente em crise em
variados campos da produção cultural, especialmente na literatura e nas artes plásticas. O conceito
psicanalítico de inconsciente vem, neste panorama, denunciar o descentramento do eu e, ao mesmo
tempo, a falta de garantias da representação. Ele gerará, nessa dupla empreitada, importantes
incidências na cultura.
Especialmente nos anos 1920, como sabemos, Freud debruça-se sobre a civilização e
delineia sua concepção da formação das massas, fornecendo os fundamentos de uma reflexão
política imbricada à subjetividade e abrindo caminho para a teoria crítica da sociedade forjada
décadas mais tarde pela chamada Escola de Frankfurt. De posse desses fundamentos, à psicanálise
pareceria se abrir a possibilidade de um engajamento social efetivo, para além da denúncia dos
efeitos deletérios da excessiva renúncia pulsional exigida socialmente. De maneira análoga ao
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trabalho clínico analítico, que desfaz estruturas sintomáticas desfazendo idealizações e desmontando
identificações, poder-se-ia conceber que a psicanálise teria na cultura o papel de esgarçar as ilusões
e expor o mal-estar constitutivo e transformador. Cabe-nos refletir, hoje, sobre em que medida tal
papel foi e é efetivamente exercido pelos psicanalistas.
Benjamin dizia, já em 1928, que a crítica estava morta. Não se sustentaria mais a posição
magnânime do crítico fora da cultura, capaz de julgar suas produções. Isso não significa, porém, que
não haja mais crítica. Ao contrário, podemos dizer que a crise está em toda parte, ela convida as
mais variadas disciplinas a assumirem um viés crítico. A psicanálise é um dos bastiões desta crise,
desde que denunciou não ser mais o homem senhor em sua própria casa. Pois isso implica na
constatação de que o homem também não é mais senhor de suas próprias teorias. A psicanálise
poderia ser considerada, nessa perspectiva, como a teoria crítica por excelência. Aliás, é bom
lembrar que krinen, em grego, é quebrar, ou seja, analisar. Arauto da crise contemporânea, a
psicanálise não apenas dá a ela voz, mas a fomenta, na medida em que visa quebrar as formações
imaginárias dos sintomas e, assim, levar o eu a assumir (ou melhor, a refazer, repetidamente) seu
descentramento. Tal descentramento deve-se ao fato de o sujeito ter sua determinação e seus efeitos
fora de seu campo: na cultura.
Em texto de 1957, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos e Reynaldo Jardim declaravam,
assumindo já a firme posição em relação a seus colegas de São Paulo que levaria pouco tempo
depois, à formação do grupo neoconcreto no Rio de Janeiro:
A poesia concreta não é um meio ”mais eficaz” de atacar o objeto, porque o “objeto” não
preexiste ao poema, mas nasce com ele – o objeto é o poema: o poema ataca o sujeito (o
espectador).
A linguagem não tem nenhuma ação direta sobre o mundo dos objetos a não ser “no
sujeito”, isto é, na proporção em que o mundo dos objetos, tornado significação, cultura, é já
o sujeito. (FERREIRA GULLAR, 2007, p. 71)
A imbricação constitutiva entre subjetividade e cultura é essencial à psicanálise, e deve ser
levada a sério em sua produção teórica. A psicanálise não forma com o sujeito um campo totalizante
que lhe permita se restringir à clínica analítica e às teorias psicanalíticas. Não é do próprio “discurso
do inconsciente que iremos recolher a teoria que dele dê conta”, como nota Lacan (LACAN, 2001,
p. 330). A psicanálise deve, obrigatoriamente, para falar do sujeito, se debruçar sobre o que lhe é
mais êxtimo – no neologismo forjado pelo psicanalista. É impossível recorrer a uma referência fixa
para a apreensão do inconsciente, pois ele não é seu próprio centro, mas remete a um campo Outro.
Buscar saber d’Isso, portanto, nos tira o tapete, nos subverte. Pois o sujeito se constitui em relação a
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uma “exterioridade íntima” (LACAN, 1985, p.167). A Coisa psicanalítica está, portanto, na Cultura,
e devemos aí buscá-la, para ter notícias do sujeito.
Esta parece-nos ser uma exigência metodológica fundamental a que a psicanálise deve se
conformar para ser fiel ao seu próprio objeto, o sujeito do inconsciente (ou melhor, o
sujeito/cultura). A psicanálise deve buscar descentrar-se, é imperioso que ela assuma um movimento
de reviramento, de subversão, de mal-estar na Cultura. Tal movimento é a crítica: potência
psicanalítica de acompanhar e acentuar a crise que conforma sujeito e cultura – e é capaz de
transformar a ambos. Além disso, a psicanálise talvez sempre esteja em uma situação crítica (como
se diz de um doente em estado grave), e deve aceitar “re-colocar-se” a cada momento em crise, no
confronto com a cultura.
Segundo Roland Barthes, a crítica é nada mais, nada menos que a “construção do inteligível
do nosso tempo” (BARTHES, 1964, p. 266). A psicanálise pode e deve participar, legitimamente, de
tal construção. Nesta empreitada a se realizar em companhia de outras disciplinas nas ciências
humanas, a particularidade da psicanálise talvez resida na tentativa de dar voz ao que parece resistir
à inteligibilidade. Resistir a tornar muito rapidamente inteligível “nosso tempo” para fazer ressoar o
inatual, o tempo da catástrofe humana que as teorias vêm rapidamente encobrir. Ora, há um outro
importante domínio da produção cultural também particularmente afeito a apresentar o que resiste a
uma inteligibilidade imediata, em prol de um surgimento revirado do sujeito: o da arte.
Mal-estar e parangolé
Entre sujeito e cultura, Freud concebe um mal-estar fundamental, como já lembramos. Na
expressão mal-estar, há estar: na Cultura, o sujeito está, ele que nunca é de maneira reificada e
constante. Na cultura ele surge, o sujeito do inconsciente, o efêmero testemunho da subversão do eu
– este, ilusoriamente fixo, alienado nas formações imaginárias, ou seja, ideológicas, de que se
compõe o campo social. Isso nos permite pensar a criação como “re-volta” nesse sentido forte – e
mais fundamental do que o caráter explicitamente político de muitas obras da arte do nosso tempo.
Como diz Lacan comentando Sade, a obra de arte pode ser “uma experiência que, por seu processo,
arranca o sujeito de suas amarras psicossociais” – e nos impede “toda apreciação psicossocial da
sublimação de que se trata” (LACAN, 1986, p.237).
A arte contemporânea é intervenção crítica na cultura, convidando a uma experiência de
subversão – e, eventualmente, de reflexão sobre o sujeito e o mundo, a se entrecruzar com a
psicanálise e a filosofia.
A psicanálise, para ser crítica da civilização e fazer jus à torção necessária para que o sujeito
surja na cultura – para que ele aí possa, em algum lugar, mal-estar –, deve se assumir como
ensaística. É na categoria do ensaio que uma teoria assume com mais vigor suas próprias limitações,
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seu caráter de experimentação sempre fragmentária, delimitando-se radicalmente da ilusão científica
de forjar um discurso que veicule a própria realidade. O ensaio é o gênero fiel à concepção
fragmentada da realidade, e por isso nele o mal-estar pode ser posto em performance, ou seja, posto
a falar, a teorizar a própria incômoda torção na qual se configuram sujeito e cultura. Nós mesmos
devemos aceitar nos colocarmos nesse balanço, ou melhor, nessa verdadeira subversão, para refletir
sobre ela. O ensaísta é aquele que sai do centro e arrisca se perder. “O pensador, na verdade”, diz
Theodor Adorno, “nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual,
sem desemaranhá-la” (ADORNO, 2003, p. 30). Na sua própria (ou melhor, imprópria) criação
teórica, ele performa a crítica à noção de sujeito como origem e centro da criação – ou, como afirma
ainda Adorno, a forma do ensaio “acompanha o pensamento crítico de que o homem não é nenhum
criador” (Ibid., p. 36).
Que método deveria, então, adotar uma crítica psicanalítica? “Contrariamente ao que se crê”,
diz Benjamin, em 1922, “a tarefa da grande crítica não é nem de ensinar através de explanação
histórica, nem formar o espírito por meio da comparação, mas de chegar ao conhecimento se
abismando na obra” (BENJAMIN, 2000b, p. 268). Devemos nos lançar na experiência do Outro, da
extimidade. Devemos mergulhar na obra como em um abismo (o nosso abismo). Nessa queda, a
teoria se estraga um tanto, arrisca mesmo a se arruinar. Na mais amena das hipóteses, ela deve se
suspender e surpreender, ficar abismada com o que a obra lhe traz.
O artista brasileiro Hélio Oiticica concebeu na década de 60 um trabalho que se apresenta da
seguinte maneira:
(...) Uma caixa d’água feita de concreto: o concreto fica aparente, cinza, sem pintura, cheio
d’água mas não completamente, quase até em cima: no fundo você pode ver através da
água, cortadas em letras de borracha, as palavras MERGULHO DO CORPO. A sensação é
do ato de olhar para um abismo: talvez a tentação de mergulhar, aqui sintetizada pelas
palavras poéticas. (OITICICA, 1986, s./p.)
Temos aí a concretude de uma simples caixa d’água – objeto talvez emblemático do trabalho
civilizatório, e que não deixa de ser um vaso que pode ser preenchido de água, como aquele tratado
por Lacan como modelo de sublimação. O vaso é o objeto capaz de indicar com certeza, em
escavações arqueológicas, a presença longínqua de uma cultura. O objeto capaz de preencher essa
função na atualidade talvez seja como uma feia caixa d’água industrial. Nessa coisa qualquer – resto
da civilização e, contudo, ou por isso mesmo, tão radicalmente humana! –, o corpo é evocado para,
em uma vertigem, convidar ao mergulho de tornar-se outra coisa. Convite ao sujeito.
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Hélio Oiticica
Bólide Caixa 22, Apropriação. Mergulho do Corpo, Poema Caixa 4, 1967
Nenhum significante mostra tanto a dimensão de “modelagem do significante” implicada na
sublimação quanto o Parangolé de Oiticica. O termo vem da gíria dos morros na época, e denota
“agitação súbita, animação, alegria e situações inesperadas entre pessoas” (OITICICA, 1997, p. 88).
Algo acontece entre pessoas, graças a um certo objeto que se propõe como “transobjeto”, busca da
própria “estrutura do objeto” (Ibid., p. 93) que se daria entre sujeito e cultura. Tal objeto
materializaria e atualizaria o enganchamento entre sujeito e cultura. Os parangolés são estandartes,
capas ou túnicas, muitas vezes compostas de planos sobrepostos de tecidos diversos, eventualmente
revelando a inscrição de palavras ou frases. São objetos de arte que seguramos, em continuidade
com o corpo, ou vestimos –– e que nos convidam a dançar, experimentando a vertigem de nosso
mal-estar na cultura. Mas parangolé é também uma denominação de Oiticica para sua reflexão
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artística como um todo – trata-se de uma proposição geral, e não apenas de um certo conjunto de
objetos característicos.
O parangolé P15 Capa 11, de 1967, traz a inscrição “incorporo a revolta”. Os parangolés nos
transformam, estejamos dentro (vestindo, dançando) ou fora deles (olhando e, por meio do outro,
também em movimento, de uma certa maneira). Aliás, a maioria desses “transobjetos”, para usar um
termo de Hélio, tem a estrutura da fita de Moebius, a fita unilátera que é dentro-fora, materializando
o êxtimo, graças a uma torção de sua superfície. Essa mesma fita que Lygia Clark havia empregado,
e que Lacan começara, pouco antes, a utilizar em seu seminário como apoio para suas elaborações
sobre a estrutura do sujeito.
Hélio Oiticica
Parangolé, Nildo da Mangueira com P15 Capa 11, Incorporo a Revolta, 1967 (1)
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O parangolé é um acontecimento que põe em ato, por meio de um objeto, a imbricação
constitutiva do sujeito à cultura. Ele pode, então, transtornar um pouco, se não transformar, esse
ponto agudo em que o sujeito é cultura. Como diz ainda Hélio, falando do “participador” (e não
mais “espectador”) do parangolé: “Há como que uma violação do seu estar como indivíduo no
mundo, diferenciado e ao mesmo tempo ‘coletivo’, para o de ‘participador’ como centro motor,
núcleo, mas não só “motor” como principalmente ‘simbólico’, dentro da estrutura-obra” (Ibidem).
Se o indivíduo está no mundo – e nele está ao mesmo tempo “diferenciado” e “coletivo” –,
Oiticica busca uma “violação” desse estar capaz de transformar o indivíduo em outra coisa: em
“motor simbólico”. Como no ato analítico segundo Lacan, há aí um circuito que só se completa com
o outro. O parangolé nomeia tal torção que se dá com o outro – e toma sua origem no outro, pois é
apropriação da palavra e do ato de um outro. Em sua última entrevista, apenas uma semana antes de
sua morte, em 1980, o artista conta, sobre o parangolé:
Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. Porque eu trabalhava no Museu Nacional da
Quinta, com meu pai, fazendo bibliografia. Um dia eu estava indo de ônibus e na praça da
Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma
espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de
madeira de uns 2 metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulo no
chão. Era um terreno baldio, com um matinho e tinha essa clareira que o cara estacou e
botou as paredes feitas de fio de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia um
pedaço de aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: “aqui é...” e a única coisa que
eu entendi, que estava escrito era a palavra parangolé. Aí eu disse: “É essa a palavra”. (In
FIGUEIREDO, 2008, p. 264-265)
Assim, a formulação do parangolé, segundo o próprio Hélio, teria sido determinada por
“experiências coletivas anônimas” (OITICICA, 1997, p. 114). O trabalho do mendigo descrito pelo
artista ressoa claramente em diversas obras do artista, especialmente nas construções que ele
chamava “bólides” e “penetráveis”. O significante “modelado” [na expressão de Lacan (LACAN,
1986, P.144), assim como o objeto “criado”, vêm do Outro, nos ensina Oiticica. Ele não é criado por
alguém, mas radicalmente anônimo, comum, contrário à autoria – mas votado à transmissão. A
apropriação a que ele nos convida é transitória, dirigida a um outro, sempre. Apropriação: tornar
próprio o que é do outro, para passá-lo adiante e tornar-se outro, nessa passagem. A arte é, nesse
sentido, marcada pela transitoriedade, como já dizia Freud em 1915 (FREUD, 1915/1976), mas não
apenas no sentido da limitação de sua duração no tempo. Uma obra seria transitória também na
medida em que ela não é mais do que um trânsito entre sujeitos. Tal passagem, que poderíamos
tomar como capaz de definir da cultura, não é, porém, certeira, imediata e garantida. Ela é precária e
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adversa – para lembrar o conhecido lema de Oiticica: “da adversidade vivemos” (OITICICA, 1997,
p. 119).
Fotomontagem de Hélio Oiticica como parte de
Subterranean Tropicalia Projects
A. Babylonests, 81, 2nd Avenue Loft, 4, New York City
B. Subsisto, poema de Augusto de Campos
C. Nordeste do Brasil
D. Morte de Carlos Lamarca, líder da guerilha brasileira nos anos 70
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Nessa “trans-missão”, o sujeito não apenas está na cultura, mas se apropria desse “estar” para
transformá-la um tanto. Sem a pretensão de nela “existir”, ele opera uma forma crítica de
aparecimento – algo como o que Oiticica nomeia “subsisto”:
SUBSISTO – a constatação de uma subsistência que se mantém, subsistência intelectual,
poética e criadora que estabelece posições permanentemente críticas, que colocam em
questão o próprio problema da criação artística (eu, particularmente, procuro desintegrá-lo,
dissecá-lo, desde o início de toda minha evolução [...] (OITICICA, 2008, P.318).
Em lugar de “eu sou”, logo “eu existo”, a enunciação “subsisto” indica uma existência
dividida, precária e oscilante, uma posição em crise – e crítica, fomentadora da crise. Única
enunciação, talvez, capaz de definir o sujeito descentrado, subsisto é ela mesma a apropriação de um
significante: Oiticica a toma de Colidouescapo, o belo livro-poema de Augusto de Campos, de 1971.
Formado de folhas duplas soltas dobradas ao meio, cada uma com uma inscrição cujo centro
localiza-se na dobra: “suscrevo”, “exispero”, “esisto” e “subscontro”, entre outras, esse livro se
transforma segundo a manipulação de seu leitor, convidado a redobrar e/ou misturar as folhas à
vontade. Formam-se, nessa transliteração reveladora, palavras como “susto”, “excrevo” e “subsisto”.
Subsisto: possibilidade precária e “coletiva”, porque em trânsito entre sujeitos, de uma fundante
porém repetida recriação do sujeito e da cultura.
Nota
1. Todas as imagens aqui reproduzidas, com autorização da família Oiticica, encontram-se no
Catálogo da Exposição Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica/Rio Arte,1997.
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Recebido em: 14 de abril de 2010.
Aprovado em: 05 de maio de 2010.
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