“SÓ PROSTITUTAS NÃO BEIJAM”
Riam de não mais poder. Beijavam o espelho, dobra do braço, as bonecas, travesseiro
e, principalmente, garrafa, estágio já avançado de beijo-de-língua. Era a diversão
preferida das irmãs Rosinha e Carolina. Quando a mãe percebia aquele silêncio
ameaçador no quarto das adolescentes, batia à porta: “meninas, já estão aprontando,
né?”. Riam-se adentro.
Eram fotografias pregadas nas paredes, portas do guarda-roupa, espelho, teto,
impregnando o quarto com o desejo pelos galãs das novelas. Não perdiam das seis,
sete, oito. Fotonovelas liam escondidas, completando as estórias com risinhos.
Diante da televisão todas as noites, ao lado dos pais, nem respiravam de ansiedade na
hora do beijo. Uma almofada acomodada no colo, solidária, tentava esconder a
excitação. Cruzada, a perna de Rosinha balançava incontrolável.
“Tá com formiga no corpo, menina?”. Dizia a mãe em reprovação. Mal sabia ela do
formigueiro inteiro. O pai, aparentemente alheio, suspirando: “mulheres”.
Enfim o primeiro beijo. Uns quinze minutos grudada na boca daquele menino da
escola. Gersinho, tido por todas as meninas como bom de boca. Aquela sensação do
primeiro beijo a perseguiria durante dias. Amortecimento. Atemporal. De repente as
novelas perderam o encanto. Vidrada na televisão, pernas cruzadas, balanço, formigas,
entorpecia-se pela lembrança do primeiro beijo. Gostara tanto que repetiu Gersinho
centenas de vezes.
Gersinho bom de boca cansou de ser somente boca. Avançou. Rosinha paralisou.
Sentiu sua mãe bater à porta: “homem não presta. Não vai virar mulher da vida. Casese virgem, pense na vergonha da família”.
Rosinha não voltou às novelas, à dobra do braço, à boca de garrafa. Não ria com a
irmã. A formiga-rainha parou de colocar seus ovos. Começou a ter uma fixação por
casamento, vestido de noiva, buquês. Assistia agora somente aos finais das novelas.
Era quando a perna voltava a balançar um pouquinho.
Conhecera Romão em uma quermesse no último ano da escola. Apresentado como
primo de uma amiga, Rosinha encantou-se por ser mais velho. Parecia homem já. E
homem se casa.
Namoro, sofá, novelas, mãos dadas, almofada, pernas cruzadas, balanço impaciente.
Nenhum beijo até agora? Gersinho bom de boca aparecia de vez em quando, em
sonhos.
O tempo foi passando, as novelas foram passando, até que Romão propôs casamento.
A mãe de Rosinha se encantara por ele. Havia se formado recentemente em
engenharia. Emprego, casa, tudo certo. “O beijo virá com certeza na lua-de-mel”,
pensava Rosinha. Envolveu-se tanto com os preparativos para a cerimônia que se
esqueceu do detalhe do não-beijo. Quando o padre encerrou dizendo “pode beijar a
noiva”, veio o tradicional “na testa”. Mas acontecerá tudo como nas novelas. Final
feliz.
Não havia disponível para Rosinha método e treinamento para a noite de núpcias
como houve para o primeiro beijo. Romão, engenheiro, planejou tudo nos mínimos
detalhes. Uma noite inesquecível.
Inesquecível para Rosinha também. Sem beijo-nupcial. Amortecimento.
Atemporalidade. A dor nem foi importante. Sabia que iria doer mesmo na primeira
vez. Como dizia sua mãe, “depois melhora”. Doía, doía e de médico em médico os
mesmos conselhos: “você não tem nenhum problema, precisa relaxar minha filha”.
A primeira gravidez. Rosinha agora seria mãe. Sentiu-se tão bem com o fato que se
esqueceu da dor e dos não-beijos do marido. Afinal, a não ser por este pequeno
detalhe, era bom provedor, trabalhador, tinha um bom emprego. Tornou-se bom pai.
Veio o segundo filho e Rosinha satisfeita com sua vida. Formada professora,
capacidade e beleza elogiadas. Sentia-se especial por ter cumprido os ensinamentos da
mãe em como ser boa mulher-esposa-mãe também.
Depois de um curso para formação de professores “como melhorar sua autoestima
através da função inconsciente da assertividade”, tomou coragem e pediu a Romão um
beijo, na boca, de língua. A reação do marido foi tão inesperada que Rosinha paralisou
pela segunda vez na vida. Romão, engenheiro, perdeu as estribeiras: “não tá satisfeita
procura sua felicidade em outro lugar”. Virou obsessão compartilhada. Rosinha agora
em tom assertivo “só prostitutas não beijam” e Romão solidificando os alicerces de seu
edifício amoroso, como um bate-estaca: “não tá satisfeita..., não tá satisfeita...”.
Bodas de Prata no casamento. Rosinha tomou outra coragem dada agora pelo tempo e
foi procurar sua felicidade, como sempre sugeriu o marido-bate-estaca. Quando
anunciou a decisão, Romão tentou beijá-la à força. Convicta, negou. Mas havia motivo
para tamanha convicção. Encontrara Gersinho na rede social “amigos da escola”,
depois de trinta anos. Combinaram. Beijaram, beijaram, beijaram. Agora Gersão,
continuava bom de boca. E quando foi avançar, Rosinha paralisou.
Tendo sido Gersinho, Gersão sabia que seria inútil insistir. É como se o passado
retornasse em energia reconhecível, fluida, congelante.
Rosinha partiu pra outra e foi buscar felicidade. Esquivando-se do beijo na boca que
Sandro, um engenheiro que conheceu nas redes sociais, tentou lhe dar, balançou a
perna e relaxada, disse: “Prostitutas não beijam, meu bem”.
Novembro/2012.
Carlos Burke
Download

“SÓ PROSTITUTAS NÃO BEIJAM” Riam de não mais poder