ATRÁS DA CASA-GRANDE: MEMÓRIA, GÊNERO E ESPAÇO ESCOLAR DA ESCOLA NORMAL DE CAMPOS (1895-1955) Silvia Alicia Martinez – UENF Maria Amelia de Almeida Pinto Boynard - UENF A planície de Campos dos Goytacazes (RJ) esteve marcada ao longo dos séculos -a vila de São Salvador foi fundada em 1677 e elevada à categoria de cidade em 1835- por economia e práticas essencialmente agrárias, principalmente a partir do cultivo da cana de açúcar. A vida patriarcal nos engenhos e usinas não somente transformou a região na maior produtora de açúcar da província, como reproduziu, pelos tempos, com as modificações que ele traz, as relações de dominação e submissão representadas nas figuras do senhor de engenho e da casa-grande por um lado, e na do escravo e da senzala, por outro. Homem e habitação se influenciam mutuamente. Como lembram Freyre (1992) e Lamego (1974), a influência da casa grande de engenho ou fazenda marcou a família patriarcal no Brasil. Ao final do século XIX, acompanhando a efervescência de idéias e ideais do contexto nacional, altera-se significativamente o espaço campista. Um novo contingente humano, formado por comerciantes, industriais, profissionais liberais, funcionários públicos e intelectuais se interpõe fortemente entre as oligarquias e o povo, exigindo mudanças que envolvem a instrução pública. Nessa nova ordem político-social, em 1880 é fundado o Liceu de Humanidades de Campos. Somente nove anos depois, em 1894, a Lei 164, de 26 de novembro cria a Escola Normal de Campos, anexa ao Liceu, destinada prioritariamente à educação feminina. Juntas, estas duas escolas viriam a se constituir em instituições de prestígio ímpar no Estado do Rio de Janeiro. Em 1955, por força de Lei, a Escola Normal transfere-se para um Grupo Escolar, constituindo o Instituto de Educação de Campos. Este trabalho apresenta parte dos resultados da pesquisa denominada “A Escola Normal de Campos: uma trajetória na formação de professores do Norte Fluminense (1894-1954)”, desenvolvida na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, com apoio da Faperj e CNPq. O texto estabelece relações entre as categorias de gênero e espaço escolar no estudo do fenômeno do “apagamento” da memória dessa escola na memória social da região. Analisa, também, a cultura escolar que se corporificou entre o Liceu de Humanidades de Campos e a Escola Normal, produzida, inclusive, pela ocupação física do prédio. Para este estudo foram utilizadas fontes escritas -documentos da Secretaria de Instrução Pública da Província do Rio de Janeiro, legislação educacional e jornais da época- e orais através de seis depoimentos de ex-alunos e ex-professores das duas escolas- aliadas aos estudos de gênero (Catani, 1997; Louro, 1997), cultura escolar (Julia, 2002), espaço escolar (Escolano, 2000; Viñao Frago, 1998) e memória (Nora, 1993; Le Goff, 1996). Escola Normal e Liceu de Humanidades de Campos: sessenta anos de convivência Na presente análise, como já antecipamos, torna-se impossível qualquer explicação a respeito da Escola Normal de Campos eximida de uma referência ao espaço que a abrigou: o Liceu de Humanidades. O Liceu de Humanidades de Campos, criado pelo decreto estadual No 2503 em 23 de novembro de 18801, instalou-se, em 1884, no antigo Solar do Barão da Lagoa Dourada, palacete luxuoso e monumental de estilo neoclássico, inaugurado vinte anos antes, ícone da pujança econômica campista produzida pela produção de cana de açúcar, movida pelo trabalho escravo. A mudança de uso do prédio, prática usual naquela época, não estava desvinculada das transformações pelas quais atravessava a sociedade brasileira, decorrentes de um novo projeto modernizador2 . Entre 1870 e 1900, a estrutura social campista, progressivamente, tinha se alterado. De uma elite essencialmente agrária, novos grupos passaram a ser constituídos, e foi, indiscutivelmente, com a participação (comb)ativa deles, que a região campista contribuiu, nacionalmente, com os movimentos republicano e abolicionista. Destacando-se pelas suas práticas literárias, especialmente o jornalismo, através da imprensa os intelectuais expressaram suas idéias. “Críticos ávidos de mudanças na estrutura social rural e escravista criaram jornais de oposição, veículos de propaganda contra a ordem estabelecida, integrando-se, assim, ao movimento dos intelectuais brasileiros que pregavam algumas mudanças profundas na estrutura sócio-econômica e política do país, a modernização e o progresso, a partir das teorias evolucionistas de Spencer e das concepções organicistas do funcionamento social, herdadas do positivismo de Comte”. (Faria, op cit, p.795). O Liceu de Humanidades de Campos, justamente, foi produto dessas forças modernizadoras, lideradas pelo deputado campista Candido de Lacerda3, que conseguiram fundar em 1880 e fazer funcionar em 1884, mesmo contra a vontade das oligarquias conservadoras, uma instituição educacional que prontamente constituiu-se no berço de formação desses novos líderes e que, em 1901, chegou a ser equiparado ao Colégio Pedro II. Entretanto, nele, local privilegiado para o desenvolvimento de um novo projeto civilizatório, a exemplo da interdição que sofre o corpo feminino em outros espaços, na época, ainda é negada a entrada à mulher, “por considerações de ordem moral”, o que vem demonstrar que as mudanças, em geral, não caminham pari passu com as dos costumes e comportamentos4. Nesse novo cenário político-social, a instrução primária passou a ser uma das grandes preocupações desses mesmos grupos, o que gerou a necessidade de um espaço que formasse os professores que viriam atender a esses anseios. Uma vez instaurada a República, e seguindo o modelo já em funcionamento em Niterói, em 1894 – pela Lei 164, de 26 de novembro- foi criada a Escola Normal de Campos, que passou a se constituir, ao longo de seis décadas, na segunda instituição pública e oficial de formação de professores do Estado do Rio de Janeiro.5 Por ato de 29 de março de 1895 foi mandada installar e por portaria de 30 de março abrir a matrícula a partir de 1º do corrente sem prazo determinado ao seu encerramento6. Anexada ao Liceu, as duas escolas conviveram por sessenta anos, compartilhando prédio, diretores, inspetores e professores e produzindo fecundos resultados. Por sua vez, o conceituado corpo administrativo e docente e os inumeráveis professores formados pela Escola Normal, constituíram-na em instituição de excelência, criadora/portadora de uma cultura pedagógica singular na formação de professores da Região Norte Fluminense. Em 1954, essa convivência se encerrou a partir da Lei Nº 2.146 de 12 de maio, deixando a Escola Normal seu espaço anexo ao Liceu, em 1955. Mudou de prédio, transferindo-se para um lugar então periférico da cidade7. Nesse novo espaço, o cotidiano e seus atores, a um só tempo, construíram uma nova cultura escolar8 e, lentamente, no curso dos anos, “foram-se apagando” as memórias edificadas na velha escola. Escola Normal: uma tradição (quase) esquecida Impressiona o fato de que, hoje, poucos sabem daqueles anos, mais de meio século, em que a Escola Normal funcionou junto ao Liceu. Este período foi gravado, predominantemente, nas lembranças daquelas pessoas que se orgulhavam de ser “normalistas” e de freqüentar um espaço tão valorizado no imaginário da região norte fluminense.A memória daquela época ficou retratada, também, nas paredes do velho Liceu, através das homenagens que alunas e alunos rendiam a seus mestres, em forma de lápida, ano após ano, no momento em que, encerrado o Curso, tinham que abandonar a Instituição. Imortalizou-se, ainda, nas palavras dos cronistas dos principais jornais da cidade, que registraram a presença alegre das moças da Escola Normal do Liceu alvoroçando e embelezando o cotidiano das ruas. Apenas fragmentos avulsos de memória... De forma similar, os trabalhos que resgatam a história da Escola Normal de Campos são escassos. Alguns dados acerca da sua criação, poucos acerca da sua trajetória. Dados, ademais, apresentados geralmente sem preocupação explicativa, sem vinculações com a política educacional de caráter estadual e nacional e que acabam ignorando as políticas de formação de professores. Dados gerais que também ignoram a cultura escolar dessa instituição de formação de professores que se tornou paradigmática na região. Como entender esse aparente “apagamento” da “memória” da Escola Normal de Campos? 9 Para dar resposta a este interrogante, inicialmente, devemos nos remeter à própria história da mulher ao longo do século XX, posto que é impossível se compreender a formação docente, e o ensino primário, sem levar em conta que se trata de um trabalho majoritariamente realizado por mulheres.10 Vinculado ao lugar que homens e mulheres ocupavam na sociedade campista da época, analisamos o forte culto à memória liceísta celebrado pelos seus ex-alunos majoritariamente homens - como um fator que poderia ter contribuído para ofuscar a memória da Escola Normal. Outro aspecto que julgamos relevante examinar é o espaço físico ocupado pelas moças da Escola Normal no prédio do Liceu. Nos relatos orais de ex-normalistas, verificamos que elas nunca questionaram o espaço que lhes era destinado na distribuição das salas de aula do prédio: a antiga senzala do Solar11. Entendendo o “ambiente” escolar como um “programa” invisível que educa e colabora na constituição de identidades, argumentamos que estudar em área menos nobre era considerado fato natural, pela condição da mulher campista que tinha acesso à Escola Normal, que, via de regra, estava acostumada ao mando de seus homens. A seguir, aprofundaremos as explicações até aqui esboçadas. Gênero e educação: as lembranças da Escola Normal Para entender o lugar que a mulher ocupava na sociedade campista e no espaço escolar no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, em primeiro lugar, devemos nos remeter ao gênero como categoria de análise, o que nos ajuda a elucidar as relações sociais e as diferenças dos sexos como construção eminentemente social (Scott, 1995; Louro, 1997; Catani, 1997). Embora conscientes do perigo de realizar grandes generalizações que ocultam múltiplas e complexas identidades, é consenso afirmar que na sociedade campista, fortemente marcada pela presença do açúcar como fator econômico, a casa-grande de engenho se constituiu numa das expressões do complexo “açúcar–sociedade patriarcal”, representando uma forma de expressão arquitetônica de um tipo social de vida no qual a maior parte dos poderes se concentrava nas mãos do senhor de engenho. Poder que extrapolava os limites de suas terras, expandindo-se pelas vilas, dominando as Câmaras Municipais e a vida colonial. A casa grande foi o símbolo mais marcante desse tipo de organização familiar implantado na sociedade colonial. Para o núcleo doméstico convergia a vida econômica, social e política da época. E junto à casa grande, ao solar e ao sobrado das grandes famílias... a senzala. A posse de escravos e de terras determinava o lugar ocupado na sociedade do açúcar. (Freyre, 1975). As novas abordagens historiográficas sobre a mulher e a família (Gouvêa, 2003; Faria, 1997), demonstram a existência de uma pluralidade de arranjos familiares e de usos, pela mulher, dos espaços público e privado no Brasil do século XIX, relativizando essa sujeição feminina aos poderes patriarcais e ao confinamento do lar de que nos fala Freyre. Nesse sentido, é bom lembrar que a memória campista preserva e destaca, na sua tradição cultural, a bravura das suas mulheres12. Histórias que abordam mitos femininos regionais, como Benta Pereira e sua filha, Mariana Barreto13 e, em época posterior, Nina Arueira. O período que aqui nos ocupa ainda sofre os vestígios do “ciclo do açúcar”. Saindo das fazendas e indo para os sobrados na cidade, a mulher tinha que se moldar aos “bons costumes", àquela moral civilizada e ordeira que a escola tinha por missão difundir. Nessa mudança, embora às mulheres da “casa-grande” 14 já tivesse sido permitido extrapolar o espaço privado do lar e freqüentar a escola, espaço público, seu “inato instinto maternal” apregoado à época, “determinado” ao cuidado e à educação de crianças, tinha-lhes destinado apenas um tipo de escola: a Escola Normal. Lamego Filho (1974) observou essa mudança no comportamento feminino, quando afirma que a guerreira e livre mulher campista do Ciclo da Pecuária e da fase das engenhocas - referindo-se a Benta Pereira - transformou-se junto com a sociedade, através da educação, da necessidade de conforto e do refinamento nos costumes, passando a recolher-se aos confines do lar, às aulas de piano, canto e dança. Esse novo papel atribuído à mulher, no entanto, era sujeito a transgressões –não muitas- algumas das quais se materializam em outra figura, a de Nina Arueira, jornalista, defensora dos direitos da mulher e dos oprimidos e militante revolucionária que morreu antes dos vinte anos. Carneiro (2002) nos diz que Nina Arueira, após freqüentar um ano da Escola Normal, em 1933 abandonou-a, por considerar “inoperante a forma como a educação ali era tratada” (p. 42). Almeida e Silva (1980) reafirmando a diferença entre Nina e o restante das mulheres campistas, observam: “em plena adolescência, numa cidade cheia de preconceitos, onde a mulher só saía para procissões ou saraus dançantes, Nina se lança em luta libertária” (p. 52). As mulheres que, em diferentes épocas e em distintos espaços sociais, se destacaram na luta contra a opressão e (re)alimentam, pela sua valentia, o imaginário da cidade e o da baixada15 não se constituem, contudo, no “modelo” da mulher campista da época que nos ocupa. Seguindo as considerações de Sousa, Catani, Souza e Bueno (1996) “apesar das diferentes modalidades de análise sobre o que venha a ser e como funciona a memória feminina, no passado e no presente, existe consenso de que ela está intrinsecamente ligada ao lugar que a mulher ocupa e aos tipos de atividade que ela desempenha no espaço social” (p. 63).16 Fica reforçada, assim, a hipótese de que as escassas lembranças acerca da Escola Normal e, portanto, da história do magistério na região, estão relacionadas a esse lugar reservado que a maioria das moças da sociedade da época ocupava, minuciosamente registrado por Lamego Filho, em sua obra. Outra das causas encontradas que contribuíram para o “apagamento” da memória da Escola Normal, fortemente vinculada à que acabamos de apresentar, foi localizada no forte processo de “culto” à memória do Liceu que se mantém vivo até hoje, materializado em encontros anuais de ex-alunos, nas entrevistas e em diversas publicações. Por exemplo, no Boletim Histórico do Liceu de Humanidades de Campos, publicado em 1981 pelo historiador campista Sofiatti Netto, o registro da passagem da Escola Normal pelo Liceu resume-se a uma vaga frase: “No Liceu já funcionou uma Escola Normal, já funcionou uma Faculdade de Direito e uma de Farmácia ...” (p. 7, grifo nosso). Outras publicações nos remetem à História do Liceu já em seus títulos. Centenário do Liceu de Humanidades de Campos 1880-1980. Poesia e Prosa para uma homenagem.17 História do Liceu de Humanidades de Campos 1880-198018 e o Jornal “Liceu em Foco”, para citar apenas algumas. No interior de outras obras de escritores locais é possível se encontrar páginas e páginas que fazem referência à história do Liceu. À da Escola Normal a ele anexa, apenas são dedicadas algumas linhas. Em relação à memória preservada daquela época pudemos observar que, enquanto nos depoimentos das mulheres normalistas, as lembranças da Escola Normal afloram vivamente entremeando histórias que envolvem as duas escolas, os relatos dos homens liceistas reportam-se, vagamente, àquele cotidiano compartilhado, teimando em direcionar suas memórias apenas a uma das instituições: o Liceu. Espaço e Cultura: Atrás da Casa-Grande Uma das principais indagações que fizemos, inicialmente, ao tentar entender o cotidiano daquelas duas escolas, se refere à distribuição do espaço escolar e às relações –constituintes da cultura escolar- que nele se estabeleciam. Como funcionavam ambas as escolas? Juntavam-se meninos e meninas nas salas de aula? E nos recreios? E ao redor da escola, no Jardim? Todos entravam e saíam no mesmo horário, pelos mesmos portões? Existiam relações de conflito entre os alunos de ambas as escolas? Que normas eram transmitidas pelos professores e diretores? Em relação à cultura escolar é Julia (2001) quem a explica como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (p. 9). A importância de desvendar essa distribuição do espaço escolar foi trabalhada por vários autores. Faria Filho (2002, p.17) afirma que “a respeito dos espaços escolares uma primeira dimensão que observamos é que o espaço educa. Não apenas acontece educação dentro de um espaço determinado, o escolar, mas também que este, em sua projeção física e simbólica, cumpre uma função educativa fundamental. Nessa perspectiva, a ocupação do espaço escolar, sua divisão interna, suas aberturas para o espaço exterior, a delimitação de fronteiras entre o interno e o externo (...) tudo isso cumpre um papel educativo da maior importância”. Por sua vez, Escolano (2000) fazendo referência ao programa arquitetônico, inclusive o escolar, afirma que este “introduce sentido en sus estructuras y en su semiología, condicionando las lecturas y apropiaciones que los usuarios hacen de estas significaciones a través de las prácticas que se escenifican en los espacios en que se materializan.” (p. 102). A partir dessas leituras e na medida em que fomos colhendo os depoimentos orais, as respostas aos nossos interrogantes foram se elucidando. A distribuição espacial19 foi tomando contornos mais definidos e assim, pudemos entendê-la melhor: às mulheres era reservada a entrada pelo lado esquerdo do prédio da escola. Aos homens, pelo direito. Aos secundaristas do Liceu, o prédio principal, o sobrado; às normalistas, o prédio que ficava atrás da “casa-grande”, a antiga senzala.20 Os depoimentos a seguir21 desvelam, com palavras, o que as letras dos documentos silenciam: “Nossas salas de aula eram todas ali (na parte de trás do prédio principal), mas eu nunca soube que aquilo chamava senzala, eu fui saber agora há pouco tempo. Aquele prédio era de um Barão, não é? Então, naturalmente ele tinha escravos. Aí, o Liceu, os meninos, tinham aula na parte de cima, entendeu? O Liceu funcionava na parte de cima, e na parte de baixo éramos nós, as salas quase todas eram na senzala, não é, que hoje eu sei que era senzala, mas naquele tempo não sabia”. (Depoimento de nº 1). Por último, e sem necessidade de fazer comentários adicionais, nos depoimentos podemos observar como os conceitos de gênero e espaço se misturam: “Não podíamos freqüentar o Jardim. Era só menino que ficava ali. Menina de Escola Normal não ia lá não. No Jardim eram só os meninos. A gente ficava lá dentro, no pátio, na senzala” (Depoimento de nº 1). “A escola funcionava (...) lá nas salas onde eram as senzalas dos escravos, que se transformaram em sala de aula, entendeu?” (Depoimento de nº 2). “As salas de aula eram as mesmas para as alunas do Curso Normal, mas em geral as aulas do Normal eram dadas naqueles salões de sala de aula da parte de baixo, ao invés do sobrado. Não usavam o sobrado, que era só para o Curso Secundário. Aquele sobrado da frente, bonito, e tal, que foi do Barão, do Barão da Lagoa Dourada...”. (Depoimento de nº 3). “Na entrada, os rapazes entravam de um lado e nós entrávamos do outro. O portão era com chave, então a gente não tinha contato com eles, nenhum.” (Depoimento de nº 4). “Mas não era junto não. A parte de cá, não tem uma entradazinha? Subia, não tem uma partezinha alta? Lá tinha um pavilhão, aberto, e depois aquela parte dos fundos do Liceu era a Escola Normal”. (Depoimento de nº 5). “Ah... ali tudo era separado. O lado de lá é dos meninos e o de cá era das meninas”. (Depoimento de nº 6). Considerações finais Em forma breve, foi feita nestas páginas uma incursão nas memórias de outrora referentes às lembranças sobre a Escola Normal e ao Liceu de Humanidades de Campos, em que pretendemos desvendar parte da cultura escolar -aquela que diz respeito à distribuição espacial no recinto escolar e ao lugar que a mulher normalista nele ocupava. Vimos, com a ajuda de alguns autores, que a educação não acontece apenas dentro do espaço escolar, mas que também este, em sua projeção arquitetônica e simbólica, cumpre uma função educativa. Observamos, ainda, a partir dos depoimentos, a falta de questionamento dos/as alunos/as em relação à distribuição espacial que cabia a cada um dos gêneros dentro da escola e, em particular, às normalistas. A memória da Escola Normal, eminentemente feminina, foi ofuscada por vários fatores: o primeiro nos remete ao lugar que a mulher campista ocupava, nesse período, na sociedade, articulado ao “culto” extremado à memória do Liceu exercido até hoje, através de comemorações anuais, publicações, reverência a grandes personalidades políticas que ali estudaram, dentre elas Nilo Peçanha 22 , estando ausentes das lembranças as grandes mulheres normalistas do Liceu. Outro aspecto analisado é que as ex-alunas da Escola Normal nunca questionaram o espaço que lhes era determinado na distribuição das salas de aula, a antiga senzala nos fundos do solar. Analisando o “ambiente” escolar como um “programa” invisível que educa e colabora na constituição de identidades (Viñao Frago, 1998), argumentamos que estudar em área menos nobre do prédio era considerado fato natural pelas moças normalistas. Ter estudado “naquelas salinhas que ficavam atrás do prédio principal” (depoimento de exliceísta, homem) nunca foi questionado por elas. Por último, atribuímos esse esquecimento à mudança de prédio, onde uma nova cultura escolar foi-se construindo. Com a transferência da Escola Normal para o Grupo Escolar Saldanha da Gama, para constituir o Instituto de Educação de Campos, os sessenta anos de história da formação de professores oficial da região foram se apagando. As lembranças da “antiga” Escola Normal perduraram apenas naqueles que a freqüentaram. Morrem, porém, com cada velho aluno ou mestre que se vai. Poucas pessoas sabem, hoje, que o atual Instituto Superior de Educação Prof. Aldo Muylaert é herdeiro da Escola Normal do Liceu. Referências bibliográficas ALMEIDA, Nilton M. de.: SILVA, Osório P. História do Liceu de Humanidades de Campos 1880/1980. Campos: Editora Planície Ltda, 1980. BOYNARD, M.A. ; MARTINEZ, S. 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Professor aposentado do Liceu de Humanidades de Campos e Presidente da Associação dos ex- liceistas. Estudou no Liceu em 1938. Depoimento de nº 3. Em 13/05/1939 assumiu o cargo de Professor de História Natural do Liceu. Foi Diretor do Liceu e da Escola Normal e o primeiro diretor do Instituto de Educação de Campos. Estudou no Liceu. Depoimento de nº 4. Terminou o curso normal no Liceu em 1936. Em 1952 passou a ser professora de Matemática do Liceu e da Escola Normal. Depoimento de nº 5. Tem 90 anos, não soube precisar exatamente a data em que cursou o Liceu. Depoimento de nº 6. Estudou na Escola de Professores em1939. Notas 1 Seu antecessor, o Lyceo Provincial, tinha sido criado em 1844 e funcionado até 1858. 2 Faria (op. cit.) explica a mudança de uso dos solares urbanos dos proprietários de terra, “que, por suas grandes dimensões e organização baseada na utilização do trabalho escravo, não são mais compatíveis com o novo modo de vida e adquirem novas funções.” (p.790). 3 Na década de 1880 o grupo dos abolicionistas conseguiu eleger três deputados para a Assembléia Provincial: Francisco Portela, José Heredia de Sá e Cândido de Lacerda (Almeida, N.; Silva, O., 1980). 4 Ofício do Director de Instrucção da Província do Rio de Janeiro, M. Ribeiro de Almeida, ao Director do Lyceu de Humanidades de Campos, Homero Moretzsohn. Nictheroy, 6 de dezembro de 1887. 5 No ato de criação da Escola Normal de Campos foi criada outra, em Barra Mansa, que, se chegou a funcionar, não teve vida longa, posto que nos muitos documentos analisados e ao longo do período em questão, apenas duas escolas normais públicas funcionaram no Estado do Rio de Janeiro: a de Niterói e a de Campos. 6 Ofício recebido, pelo Director da Escola Normal de Campos, Dr. Joaquim Ribeiro de Castro, expedida pela Directoria de Instrucção Publica. Petrópolis, em 5 de Abril de 1895, com assinatura do diretor, Alberto de Oliveira. Arquivo histórico do Liceu. 7 A transição da Escola Normal para o novo endereço; as lutas e resistências das alunas à mudança, as estratégias de integração e as mudanças de princípios, normas, currículo e funções que ocorreram, foram questões abordadas em pesquisa anterior. Martinez, S.; Boynard, M.A. Memórias de 1955: O (re)nascer do Instituto de Educação de Campos. In Gantos, M. (org.), 2004. 8 A cultura do Instituto de Educação de Campos, historicamente forjada pela junção do “espírito liceísta” com o “ideário escolanovista”. (Boynard; Martinez, 2004). 9 Le Goff (1996) e Nora (1993) são referências importantes que fundamentam a pesquisa, embasando todo o trabalho com as fontes orais. 10 Por não se constituírem no foco deste trabalho não aprofundaremos as explicações acerca da feminização do magistério, embora sejam vários os autores que abordem este processo. Dentre eles encontra-se Marisa Vorraber Costa, com “Trabalho docente e profissionalismo. Uma análise sobre gênero, classe e profissionalismo no trabalho de professoras e professoras de classes populares”, Porto Alegre, Ed. Sulina, 1995, Cap. IV: Trabalho docente e gênero. 11 “Possuía o prédio grande senzala anexa, hoje transformada em salas de aula, chamada agora por estudantes e professores de“senzala”(Almeida, N.; Silva, O.,1980, p. 23). 12 A legenda de Campos é: Ipsae matronae hic pro jure pugnant (Aqui, até as mulheres lutam pelo direito). 13 Benta Pereira de Sousa, grande fazendeira nascida na segunda metade do século XVII, é quem recebe os conspiradores e planeja o levante contra os Assecas. Ela e sua filha Mariana Barreto são quem o chefiam pelas ruas de Campos, à frente dos motins (Lamego Filho, 1974, p. 169). 14 Neste contexto, não estamos analisando aquelas mulheres escravas e de origem popular, que possivelmente não tivessem tido acesso, à época e nesta região, sequer ao ensino elementar. 15 Região onde se situa o Solar Fazenda do Colégio, onde residiu Benta Pereira e onde é hoje o Arquivo Histórico Municipal. 16 Não queremos, ao falar da memória feminina, reforçar teses conservadoras sobre a condição feminina, nem afirmar a existência de determinantes biológicos para a memória de cada um dos sexos. Afirmamos, seguindo ainda as autoras, que são as experiências e as trajetórias de vida de cada sexo que determinam o tipo de memória. 17 Venancio, Maria Thereza da Silva (Org.). Centenário do Liceu de Humanidades de Campos 1880-1980. Poesia e Prosa para uma homenagem.1 Textos de autoria de professores e ex-alunos. Campos, Liceu de Humanidades de Campos, 1980. 18 Almeida, Nilton Manhães; Silva, Osório Peixoto. História do Liceu de Humanidades de Campos 18801980. Campos: Editora Planície LTDA, 1980. 19 A distribuição espacial descrita se refere, principalmente, às três primeiras décadas do século XX. Após a Reforma do Ensino Secundário de 1931, o(s)/a(s) normalistas, obrigado(s)/a(s) a fazer o curso secundário, passaram a utilizar, em aulas comuns a todos, as salas de aula do Solar do Liceu. 20 A maioria dos solares de Campos apresenta a seguinte característica: as dependências reservadas aos escravos, as senzalas, eram construídas imediatamente atrás do casarão principal. O prédio do Liceu não foge a essa regra. 21 Os depoimentos fazem referência ao período que data até os primeiros anos de 1940. Legislações várias reformularam tanto o Ensino Secundário como o Normal, o que provocou alterações na dinâmica e funcionamento das escolas, inclusive, na redefinição dos espaços. 22 Deputado, Senador, Presidente do Estado do Rio de Janeiro por duas vezes, Vice-presidente da República, Presidente da República e Chanceler da Guerra.