ATRÁS DA CASA-GRANDE: MEMÓRIA, GÊNERO E ESPAÇO ESCOLAR DA
ESCOLA NORMAL DE CAMPOS (1895-1955)
Silvia Alicia Martinez – UENF
Maria Amelia de Almeida Pinto Boynard - UENF
A planície de Campos dos Goytacazes (RJ) esteve marcada ao longo dos séculos -a
vila de São Salvador foi fundada em 1677 e elevada à categoria de cidade em 1835- por
economia e práticas essencialmente agrárias, principalmente a partir do cultivo da cana de
açúcar. A vida patriarcal nos engenhos e usinas não somente transformou a região na maior
produtora de açúcar da província, como reproduziu, pelos tempos, com as modificações
que ele traz, as relações de dominação e submissão representadas nas figuras do senhor de
engenho e da casa-grande por um lado, e na do escravo e da senzala, por outro. Homem e
habitação se influenciam mutuamente. Como lembram Freyre (1992) e Lamego (1974), a
influência da casa grande de engenho ou fazenda marcou a família patriarcal no Brasil.
Ao final do século XIX, acompanhando a efervescência de idéias e ideais do contexto
nacional, altera-se significativamente o espaço campista. Um novo contingente humano,
formado por comerciantes, industriais, profissionais liberais, funcionários públicos e intelectuais
se interpõe fortemente entre as oligarquias e o povo, exigindo mudanças que envolvem a
instrução pública. Nessa nova ordem político-social, em 1880 é fundado o Liceu de
Humanidades de Campos.
Somente nove anos depois, em 1894, a Lei 164, de 26 de novembro cria a Escola Normal de
Campos, anexa ao Liceu, destinada prioritariamente à educação feminina. Juntas, estas duas
escolas viriam a se constituir em instituições de prestígio ímpar no Estado do Rio de
Janeiro. Em 1955, por força de Lei, a Escola Normal transfere-se para um Grupo Escolar,
constituindo o Instituto de Educação de Campos.
Este trabalho apresenta parte dos resultados da pesquisa denominada “A Escola Normal de
Campos: uma trajetória na formação de professores do Norte Fluminense (1894-1954)”,
desenvolvida na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, com apoio da
Faperj e CNPq.
O texto estabelece relações entre as categorias de gênero e espaço escolar no estudo do
fenômeno do “apagamento” da memória dessa escola na memória social da região.
Analisa, também, a cultura escolar que se corporificou entre o Liceu de Humanidades de
Campos e a Escola Normal, produzida, inclusive, pela ocupação física do prédio.
Para este estudo foram utilizadas fontes escritas -documentos da Secretaria de Instrução
Pública da Província do Rio de Janeiro, legislação educacional e jornais da época- e orais através de seis depoimentos de ex-alunos e ex-professores das duas escolas- aliadas aos
estudos de gênero (Catani, 1997; Louro, 1997), cultura escolar (Julia, 2002), espaço
escolar (Escolano, 2000; Viñao Frago, 1998) e memória (Nora, 1993; Le Goff, 1996).
Escola Normal e Liceu de Humanidades de Campos: sessenta anos de convivência
Na presente análise, como já antecipamos, torna-se impossível qualquer explicação a
respeito da Escola Normal de Campos eximida de uma referência ao espaço que a abrigou:
o Liceu de Humanidades. O Liceu de Humanidades de Campos, criado pelo decreto
estadual No 2503 em 23 de novembro de 18801, instalou-se, em 1884, no antigo Solar do
Barão da Lagoa Dourada, palacete luxuoso e monumental de estilo neoclássico,
inaugurado vinte anos antes, ícone da pujança econômica campista produzida pela
produção de cana de açúcar, movida pelo trabalho escravo.
A mudança de uso do prédio, prática usual naquela época, não estava desvinculada das
transformações pelas quais atravessava a sociedade brasileira, decorrentes de um novo projeto
modernizador2 . Entre 1870 e 1900, a estrutura social campista, progressivamente, tinha se
alterado. De uma elite essencialmente agrária, novos grupos passaram a ser constituídos, e foi,
indiscutivelmente, com a participação (comb)ativa deles, que a região campista contribuiu,
nacionalmente, com os movimentos republicano e abolicionista. Destacando-se pelas suas
práticas literárias, especialmente o jornalismo, através da imprensa os intelectuais expressaram
suas idéias.
“Críticos ávidos de mudanças na estrutura social rural e escravista criaram jornais de
oposição, veículos de propaganda contra a ordem estabelecida, integrando-se, assim, ao
movimento dos intelectuais brasileiros que pregavam algumas mudanças profundas na
estrutura sócio-econômica e política do país, a modernização e o progresso, a partir das
teorias evolucionistas de Spencer e das concepções organicistas do funcionamento social,
herdadas do positivismo de Comte”. (Faria, op cit, p.795).
O Liceu de Humanidades de Campos, justamente, foi produto dessas forças modernizadoras,
lideradas pelo deputado campista Candido de Lacerda3, que conseguiram fundar em 1880 e fazer
funcionar em 1884, mesmo contra a vontade das oligarquias conservadoras, uma instituição
educacional que prontamente constituiu-se no berço de formação desses novos líderes e que, em
1901, chegou a ser equiparado ao Colégio Pedro II. Entretanto, nele, local privilegiado para o
desenvolvimento de um novo projeto civilizatório, a exemplo da interdição que sofre o corpo
feminino em outros espaços, na época, ainda é negada a entrada à mulher, “por considerações de
ordem moral”, o que vem demonstrar que as mudanças, em geral, não caminham pari passu com
as dos costumes e comportamentos4.
Nesse novo cenário político-social, a instrução primária passou a ser uma das grandes
preocupações desses mesmos grupos, o que gerou a necessidade de um espaço que formasse os
professores que viriam atender a esses anseios.
Uma vez instaurada a República, e seguindo o modelo já em funcionamento em Niterói, em
1894 – pela Lei 164, de 26 de novembro- foi criada a Escola Normal de Campos, que passou a se
constituir, ao longo de seis décadas, na segunda instituição pública e oficial de formação de
professores do Estado do Rio de Janeiro.5 Por ato de 29 de março de 1895 foi mandada installar
e por portaria de 30 de março abrir a matrícula a partir de 1º do corrente sem prazo
determinado ao seu encerramento6.
Anexada ao Liceu, as duas escolas conviveram por sessenta anos, compartilhando prédio,
diretores, inspetores e professores e produzindo fecundos resultados. Por sua vez, o conceituado
corpo administrativo e docente e os inumeráveis professores formados pela Escola Normal,
constituíram-na em instituição de excelência, criadora/portadora de uma cultura pedagógica
singular na formação de professores da Região Norte Fluminense.
Em 1954, essa convivência se encerrou a partir da Lei Nº 2.146 de 12 de maio, deixando a
Escola Normal seu espaço anexo ao Liceu, em 1955. Mudou de prédio, transferindo-se para um
lugar então periférico da cidade7. Nesse novo espaço, o cotidiano e seus atores, a um só tempo,
construíram uma nova cultura escolar8 e, lentamente, no curso dos anos, “foram-se apagando” as
memórias edificadas na velha escola.
Escola Normal: uma tradição (quase) esquecida
Impressiona o fato de que, hoje, poucos sabem daqueles anos, mais de meio século, em que a
Escola Normal funcionou junto ao Liceu. Este período foi gravado, predominantemente, nas
lembranças daquelas pessoas que se orgulhavam de ser “normalistas” e de freqüentar um espaço
tão valorizado no imaginário da região norte fluminense.A memória daquela época ficou
retratada, também, nas paredes do velho Liceu, através das homenagens que alunas e alunos
rendiam a seus mestres, em forma de lápida, ano após ano, no momento em que, encerrado o
Curso, tinham que abandonar a Instituição. Imortalizou-se, ainda, nas palavras dos cronistas dos
principais jornais da cidade, que registraram a presença alegre das moças da Escola Normal do
Liceu alvoroçando e embelezando o cotidiano das ruas. Apenas fragmentos avulsos de
memória...
De forma similar, os trabalhos que resgatam a história da Escola Normal de Campos são
escassos. Alguns dados acerca da sua criação, poucos acerca da sua trajetória. Dados, ademais,
apresentados geralmente sem preocupação explicativa, sem vinculações com a política
educacional de caráter estadual e nacional e que acabam ignorando as políticas de formação de
professores. Dados gerais que também ignoram a cultura escolar dessa instituição de formação
de professores que se tornou paradigmática na região.
Como entender esse aparente “apagamento” da “memória” da Escola Normal de Campos? 9
Para dar resposta a este interrogante, inicialmente, devemos nos remeter à própria história da
mulher ao longo do século XX, posto que é impossível se compreender a formação docente, e o
ensino primário, sem levar em conta que se trata de um trabalho majoritariamente realizado por
mulheres.10 Vinculado ao lugar que homens e mulheres ocupavam na sociedade campista da
época, analisamos o forte culto à memória liceísta celebrado pelos seus ex-alunos majoritariamente homens - como um fator que poderia ter contribuído para ofuscar a memória da
Escola Normal.
Outro aspecto que julgamos relevante examinar é o espaço físico ocupado pelas moças da Escola
Normal no prédio do Liceu. Nos relatos orais de ex-normalistas, verificamos que elas nunca
questionaram o espaço que lhes era destinado na distribuição das salas de aula do prédio: a antiga
senzala do Solar11. Entendendo o “ambiente” escolar como um “programa” invisível que educa e
colabora na constituição de identidades, argumentamos que estudar em área menos nobre era
considerado fato natural, pela condição da mulher campista que tinha acesso à Escola Normal,
que, via de regra, estava acostumada ao mando de seus homens.
A seguir, aprofundaremos as explicações até aqui esboçadas.
Gênero e educação: as lembranças da Escola Normal
Para entender o lugar que a mulher ocupava na sociedade campista e no espaço escolar no final
do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, em primeiro lugar, devemos nos remeter
ao gênero como categoria de análise, o que nos ajuda a elucidar as relações sociais e as
diferenças dos sexos como construção eminentemente social (Scott, 1995; Louro, 1997; Catani,
1997).
Embora conscientes do perigo de realizar grandes generalizações que ocultam múltiplas e
complexas identidades, é consenso afirmar que na sociedade campista, fortemente marcada pela
presença do açúcar como fator econômico, a casa-grande de engenho se constituiu numa das
expressões do complexo “açúcar–sociedade patriarcal”, representando uma forma de expressão
arquitetônica de um tipo social de vida no qual a maior parte dos poderes se concentrava nas
mãos do senhor de engenho. Poder que extrapolava os limites de suas terras, expandindo-se pelas
vilas, dominando as Câmaras Municipais e a vida colonial.
A casa grande foi o símbolo mais marcante desse tipo de organização familiar implantado na
sociedade colonial. Para o núcleo doméstico convergia a vida econômica, social e política da
época. E junto à casa grande, ao solar e ao sobrado das grandes famílias... a senzala. A posse de
escravos e de terras determinava o lugar ocupado na sociedade do açúcar. (Freyre, 1975).
As novas abordagens historiográficas sobre a mulher e a família (Gouvêa, 2003; Faria, 1997),
demonstram a existência de uma pluralidade de arranjos familiares e de usos, pela mulher, dos
espaços público e privado no Brasil do século XIX, relativizando essa sujeição feminina aos
poderes patriarcais e ao confinamento do lar de que nos fala Freyre. Nesse sentido, é bom
lembrar que a memória campista preserva e destaca, na sua tradição cultural, a bravura das suas
mulheres12. Histórias que abordam mitos femininos regionais, como Benta Pereira e sua filha,
Mariana Barreto13 e, em época posterior, Nina Arueira.
O período que aqui nos ocupa ainda sofre os vestígios do “ciclo do açúcar”. Saindo das fazendas
e indo para os sobrados na cidade, a mulher tinha que se moldar aos “bons costumes", àquela
moral civilizada e ordeira que a escola tinha por missão difundir. Nessa mudança, embora às
mulheres da “casa-grande” 14 já tivesse sido permitido extrapolar o espaço privado do lar e
freqüentar a escola, espaço público, seu “inato instinto maternal” apregoado à época,
“determinado” ao cuidado e à educação de crianças, tinha-lhes destinado apenas um tipo de
escola: a Escola Normal. Lamego Filho (1974) observou essa mudança no comportamento
feminino, quando afirma que a guerreira e livre mulher campista do Ciclo da Pecuária e da fase
das engenhocas - referindo-se a Benta Pereira - transformou-se junto com a sociedade, através da
educação, da necessidade de conforto e do refinamento nos costumes, passando a recolher-se aos
confines do lar, às aulas de piano, canto e dança.
Esse novo papel atribuído à mulher, no entanto, era sujeito a transgressões –não muitas- algumas
das quais se materializam em outra figura, a de Nina Arueira, jornalista, defensora dos direitos da
mulher e dos oprimidos e militante revolucionária que morreu antes dos vinte anos. Carneiro
(2002) nos diz que Nina Arueira, após freqüentar um ano da Escola Normal, em 1933
abandonou-a, por considerar “inoperante a forma como a educação ali era tratada” (p. 42).
Almeida e Silva (1980) reafirmando a diferença entre Nina e o restante das mulheres campistas,
observam: “em plena adolescência, numa cidade cheia de preconceitos, onde a mulher só saía
para procissões ou saraus dançantes, Nina se lança em luta libertária” (p. 52).
As mulheres que, em diferentes épocas e em distintos espaços sociais, se destacaram na luta
contra a opressão e (re)alimentam, pela sua valentia, o imaginário da cidade e o da baixada15 não
se constituem, contudo, no “modelo” da mulher campista da época que nos ocupa.
Seguindo as considerações de Sousa, Catani, Souza e Bueno (1996) “apesar das diferentes
modalidades de análise sobre o que venha a ser e como funciona a memória feminina, no
passado e no presente, existe consenso de que ela está intrinsecamente ligada ao lugar que a
mulher ocupa e aos tipos de atividade que ela desempenha no espaço social” (p. 63).16 Fica
reforçada, assim, a hipótese de que as escassas lembranças acerca da Escola Normal e, portanto,
da história do magistério na região, estão relacionadas a esse lugar reservado que a maioria das
moças da sociedade da época ocupava, minuciosamente registrado por Lamego Filho, em sua
obra.
Outra das causas encontradas que contribuíram para o “apagamento” da memória da Escola
Normal, fortemente vinculada à que acabamos de apresentar, foi localizada no forte processo de
“culto” à memória do Liceu que se mantém vivo até hoje, materializado em encontros anuais de
ex-alunos, nas entrevistas e em diversas publicações. Por exemplo, no Boletim Histórico do
Liceu de Humanidades de Campos, publicado em 1981 pelo historiador campista Sofiatti Netto,
o registro da passagem da Escola Normal pelo Liceu resume-se a uma vaga frase: “No Liceu já
funcionou uma Escola Normal, já funcionou uma Faculdade de Direito e uma de Farmácia ...”
(p. 7, grifo nosso). Outras publicações nos remetem à História do Liceu já em seus títulos.
Centenário do Liceu de Humanidades de Campos 1880-1980. Poesia e Prosa para uma
homenagem.17 História do Liceu de Humanidades de Campos 1880-198018 e o Jornal “Liceu em
Foco”, para citar apenas algumas. No interior de outras obras de escritores locais é possível se
encontrar páginas e páginas que fazem referência à história do Liceu. À da Escola Normal a ele
anexa, apenas são dedicadas algumas linhas.
Em relação à memória preservada daquela época pudemos observar que, enquanto nos
depoimentos das mulheres normalistas, as lembranças da Escola Normal afloram
vivamente entremeando histórias que envolvem as duas escolas, os relatos dos homens
liceistas reportam-se, vagamente, àquele cotidiano compartilhado, teimando em direcionar
suas memórias apenas a uma das instituições: o Liceu.
Espaço e Cultura: Atrás da Casa-Grande
Uma das principais indagações que fizemos, inicialmente, ao tentar entender o cotidiano
daquelas duas escolas, se refere à distribuição do espaço escolar e às relações –constituintes da
cultura escolar- que nele se estabeleciam. Como funcionavam ambas as escolas? Juntavam-se
meninos e meninas nas salas de aula? E nos recreios? E ao redor da escola, no Jardim? Todos
entravam e saíam no mesmo horário, pelos mesmos portões? Existiam relações de conflito entre
os alunos de ambas as escolas? Que normas eram transmitidas pelos professores e diretores?
Em relação à cultura escolar é Julia (2001) quem a explica como “um conjunto de normas que
definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem
a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (p. 9).
A importância de desvendar essa distribuição do espaço escolar foi trabalhada por vários autores.
Faria Filho (2002, p.17) afirma que
“a respeito dos espaços escolares uma primeira dimensão que observamos é que o espaço
educa. Não apenas acontece educação dentro de um espaço determinado, o escolar, mas
também que este, em sua projeção física e simbólica, cumpre uma função educativa
fundamental. Nessa perspectiva, a ocupação do espaço escolar, sua divisão interna, suas
aberturas para o espaço exterior, a delimitação de fronteiras entre o interno e o externo (...)
tudo isso cumpre um papel educativo da maior importância”.
Por sua vez, Escolano (2000) fazendo referência ao programa arquitetônico, inclusive o escolar,
afirma que este “introduce sentido en sus estructuras y en su semiología, condicionando las
lecturas y apropiaciones que los usuarios hacen de estas significaciones a través de las prácticas
que se escenifican en los espacios en que se materializan.” (p. 102).
A partir dessas leituras e na medida em que fomos colhendo os depoimentos orais, as respostas
aos nossos interrogantes foram se elucidando. A distribuição espacial19 foi tomando contornos
mais definidos e assim, pudemos entendê-la melhor: às mulheres era reservada a entrada pelo
lado esquerdo do prédio da escola. Aos homens, pelo direito. Aos secundaristas do Liceu, o
prédio principal, o sobrado; às normalistas, o prédio que ficava atrás da “casa-grande”, a antiga
senzala.20
Os depoimentos a seguir21 desvelam, com palavras, o que as letras dos documentos silenciam:
“Nossas salas de aula eram todas ali (na parte de trás do prédio principal), mas eu nunca
soube que aquilo chamava senzala, eu fui saber agora há pouco tempo. Aquele prédio era de
um Barão, não é? Então, naturalmente ele tinha escravos. Aí, o Liceu, os meninos, tinham
aula na parte de cima, entendeu? O Liceu funcionava na parte de cima, e na parte de baixo
éramos nós, as salas quase todas eram na senzala, não é, que hoje eu sei que era senzala, mas
naquele tempo não sabia”. (Depoimento de nº 1).
Por último, e sem necessidade de fazer comentários adicionais, nos depoimentos podemos
observar como os conceitos de gênero e espaço se misturam:
“Não podíamos freqüentar o Jardim. Era só menino que ficava ali. Menina de Escola Normal
não ia lá não. No Jardim eram só os meninos. A gente ficava lá dentro, no pátio, na senzala”
(Depoimento de nº 1).
“A escola funcionava (...) lá nas salas onde eram as senzalas dos escravos, que se
transformaram em sala de aula, entendeu?” (Depoimento de nº 2).
“As salas de aula eram as mesmas para as alunas do Curso Normal, mas em geral as aulas do
Normal eram dadas naqueles salões de sala de aula da parte de baixo, ao invés do sobrado.
Não usavam o sobrado, que era só para o Curso Secundário. Aquele sobrado da frente, bonito,
e tal, que foi do Barão, do Barão da Lagoa Dourada...”. (Depoimento de nº 3).
“Na entrada, os rapazes entravam de um lado e nós entrávamos do outro. O portão era com
chave, então a gente não tinha contato com eles, nenhum.” (Depoimento de nº 4).
“Mas não era junto não. A parte de cá, não tem uma entradazinha? Subia, não tem uma
partezinha alta? Lá tinha um pavilhão, aberto, e depois aquela parte dos fundos do Liceu era a
Escola Normal”. (Depoimento de nº 5).
“Ah... ali tudo era separado. O lado de lá é dos meninos e o de cá era das meninas”.
(Depoimento de nº 6).
Considerações finais
Em forma breve, foi feita nestas páginas uma incursão nas memórias de outrora referentes às
lembranças sobre a Escola Normal e ao Liceu de Humanidades de Campos, em que pretendemos
desvendar parte da cultura escolar -aquela que diz respeito à distribuição espacial no recinto
escolar e ao lugar que a mulher normalista nele ocupava.
Vimos, com a ajuda de alguns autores, que a educação não acontece apenas dentro do espaço
escolar, mas que também este, em sua projeção arquitetônica e simbólica, cumpre uma função
educativa. Observamos, ainda, a partir dos depoimentos, a falta de questionamento dos/as
alunos/as em relação à distribuição espacial que cabia a cada um dos gêneros dentro da escola e,
em particular, às normalistas.
A memória da Escola Normal, eminentemente feminina, foi ofuscada por vários fatores: o
primeiro nos remete ao lugar que a mulher campista ocupava, nesse período, na sociedade,
articulado ao “culto” extremado à memória do Liceu exercido até hoje, através de
comemorações anuais, publicações, reverência a grandes personalidades políticas que ali
estudaram, dentre elas Nilo Peçanha 22 , estando ausentes das lembranças as grandes
mulheres normalistas do Liceu.
Outro aspecto analisado é que as ex-alunas da Escola Normal nunca questionaram o espaço
que lhes era determinado na distribuição das salas de aula, a antiga senzala nos fundos do
solar. Analisando o “ambiente” escolar como um “programa” invisível que educa e
colabora na constituição de identidades (Viñao Frago, 1998), argumentamos que estudar
em área menos nobre do prédio era considerado fato natural pelas moças normalistas. Ter
estudado “naquelas salinhas que ficavam atrás do prédio principal” (depoimento de exliceísta, homem) nunca foi questionado por elas.
Por último, atribuímos esse esquecimento à mudança de prédio, onde uma nova cultura
escolar foi-se construindo. Com a transferência da Escola Normal para o Grupo Escolar
Saldanha da Gama, para constituir o Instituto de Educação de Campos, os sessenta anos de
história da formação de professores oficial da região foram se apagando. As lembranças da
“antiga” Escola Normal perduraram apenas naqueles que a freqüentaram. Morrem, porém,
com cada velho aluno ou mestre que se vai. Poucas pessoas sabem, hoje, que o atual Instituto
Superior de Educação Prof. Aldo Muylaert é herdeiro da Escola Normal do Liceu.
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Depoimentos
Depoimento de nº 1. Aluna da Escola Normal do Liceu de Humanidades de Campos no período de 1928 a
1931.
Depoimento de nº 2. Professor aposentado do Liceu de Humanidades de Campos e Presidente da
Associação dos ex- liceistas. Estudou no Liceu em 1938.
Depoimento de nº 3. Em 13/05/1939 assumiu o cargo de Professor de História Natural do Liceu. Foi
Diretor do Liceu e da Escola Normal e o primeiro diretor do Instituto de Educação de Campos. Estudou no
Liceu.
Depoimento de nº 4. Terminou o curso normal no Liceu em 1936. Em 1952 passou a ser professora de
Matemática do Liceu e da Escola Normal.
Depoimento de nº 5. Tem 90 anos, não soube precisar exatamente a data em que cursou o Liceu.
Depoimento de nº 6. Estudou na Escola de Professores em1939.
Notas
1
Seu antecessor, o Lyceo Provincial, tinha sido criado em 1844 e funcionado até 1858.
2
Faria (op. cit.) explica a mudança de uso dos solares urbanos dos proprietários de terra, “que, por suas
grandes dimensões e organização baseada na utilização do trabalho escravo, não são mais compatíveis com
o novo modo de vida e adquirem novas funções.” (p.790).
3
Na década de 1880 o grupo dos abolicionistas conseguiu eleger três deputados para a Assembléia
Provincial: Francisco Portela, José Heredia de Sá e Cândido de Lacerda (Almeida, N.; Silva, O., 1980).
4
Ofício do Director de Instrucção da Província do Rio de Janeiro, M. Ribeiro de Almeida, ao Director do
Lyceu de Humanidades de Campos, Homero Moretzsohn. Nictheroy, 6 de dezembro de 1887.
5
No ato de criação da Escola Normal de Campos foi criada outra, em Barra Mansa, que, se chegou a
funcionar, não teve vida longa, posto que nos muitos documentos analisados e ao longo do período em
questão, apenas duas escolas normais públicas funcionaram no Estado do Rio de Janeiro: a de Niterói e a de
Campos.
6
Ofício recebido, pelo Director da Escola Normal de Campos, Dr. Joaquim Ribeiro de Castro, expedida pela
Directoria de Instrucção Publica. Petrópolis, em 5 de Abril de 1895, com assinatura do diretor, Alberto de
Oliveira. Arquivo histórico do Liceu.
7
A transição da Escola Normal para o novo endereço; as lutas e resistências das alunas à mudança, as
estratégias de integração e as mudanças de princípios, normas, currículo e funções que ocorreram, foram
questões abordadas em pesquisa anterior. Martinez, S.; Boynard, M.A. Memórias de 1955: O (re)nascer do
Instituto de Educação de Campos. In Gantos, M. (org.), 2004.
8
A cultura do Instituto de Educação de Campos, historicamente forjada pela junção do “espírito liceísta”
com o “ideário escolanovista”. (Boynard; Martinez, 2004).
9
Le Goff (1996) e Nora (1993) são referências importantes que fundamentam a pesquisa, embasando todo o
trabalho com as fontes orais.
10
Por não se constituírem no foco deste trabalho não aprofundaremos as explicações acerca da feminização
do magistério, embora sejam vários os autores que abordem este processo. Dentre eles encontra-se Marisa
Vorraber Costa, com “Trabalho docente e profissionalismo. Uma análise sobre gênero, classe e
profissionalismo no trabalho de professoras e professoras de classes populares”, Porto Alegre, Ed. Sulina,
1995, Cap. IV: Trabalho docente e gênero.
11
“Possuía o prédio grande senzala anexa, hoje transformada em salas de aula, chamada agora por
estudantes e professores de“senzala”(Almeida, N.; Silva, O.,1980, p. 23).
12
A legenda de Campos é: Ipsae matronae hic pro jure pugnant (Aqui, até as mulheres lutam pelo direito).
13
Benta Pereira de Sousa, grande fazendeira nascida na segunda metade do século XVII, é quem recebe os
conspiradores e planeja o levante contra os Assecas. Ela e sua filha Mariana Barreto são quem o chefiam
pelas ruas de Campos, à frente dos motins (Lamego Filho, 1974, p. 169).
14
Neste contexto, não estamos analisando aquelas mulheres escravas e de origem popular, que possivelmente
não tivessem tido acesso, à época e nesta região, sequer ao ensino elementar.
15
Região onde se situa o Solar Fazenda do Colégio, onde residiu Benta Pereira e onde é hoje o Arquivo
Histórico Municipal.
16
Não queremos, ao falar da memória feminina, reforçar teses conservadoras sobre a condição feminina, nem
afirmar a existência de determinantes biológicos para a memória de cada um dos sexos. Afirmamos, seguindo
ainda as autoras, que são as experiências e as trajetórias de vida de cada sexo que determinam o tipo de
memória.
17
Venancio, Maria Thereza da Silva (Org.). Centenário do Liceu de Humanidades de Campos 1880-1980.
Poesia e Prosa para uma homenagem.1 Textos de autoria de professores e ex-alunos. Campos, Liceu de
Humanidades de Campos, 1980.
18
Almeida, Nilton Manhães; Silva, Osório Peixoto. História do Liceu de Humanidades de Campos 18801980. Campos: Editora Planície LTDA, 1980.
19
A distribuição espacial descrita se refere, principalmente, às três primeiras décadas do século XX. Após a
Reforma do Ensino Secundário de 1931, o(s)/a(s) normalistas, obrigado(s)/a(s) a fazer o curso secundário,
passaram a utilizar, em aulas comuns a todos, as salas de aula do Solar do Liceu.
20
A maioria dos solares de Campos apresenta a seguinte característica: as dependências reservadas aos
escravos, as senzalas, eram construídas imediatamente atrás do casarão principal. O prédio do Liceu não foge
a essa regra.
21
Os depoimentos fazem referência ao período que data até os primeiros anos de 1940. Legislações várias
reformularam tanto o Ensino Secundário como o Normal, o que provocou alterações na dinâmica e
funcionamento das escolas, inclusive, na redefinição dos espaços.
22
Deputado, Senador, Presidente do Estado do Rio de Janeiro por duas vezes, Vice-presidente da República,
Presidente da República e Chanceler da Guerra.
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MEMÓRIA, GÊNERO E ESPAÇO ESCOLAR DA ESCOLA NORMAL