Contratos internacionais da propriedade intelectual DÁRIO MOURA VICENTE Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Sumário: 1. Objecto do estudo. 2. Escolha pelas partes da lei aplicável. 3. Conexão subsidiária. 4. Cláusula de excepção. 5. Contratos celebrados com consumidores. 6. Contratos celebrados por trabalhadores assalariados. 7. Forma externa do contrato. 8. Âmbito da lex contractus; problemas de qualificação. 9. Normas internacionalmente imperativas. 10. Reserva de ordem pública internacional. 1. Objecto do estudo Propomo-nos examinar neste estudo os problemas postos pela determinação do Direito aplicável aos contratos internacionais relativos à criação, utilização e exploração de bens sobre os quais incidam direitos de propriedade intelectual. O tema é de inequívoca actualidade. O valor económico dos direitos de propriedade intelectual assenta hoje muito mais na possibilidade de o seu titular autorizar a exploração por terceiros dos bens protegidos do que no seu direito de excluílos do uso e fruição desses bens. Por outro lado, nas sociedades contemporâneas a criação literária e artística, assim como a de novos produtos de aplicação industrial, é frequentemente o resultado da actividade de trabalhadores por conta de outrem e de profissionais liberais a quem esses bens são encomendados. Além disso, em muitos casos as obras literárias e artísticas, as marcas, os inventos, etc., são explorados simultaneamente em diversos países por entidades distintas do respectivo criador ou titular originário, a quem este transmite os respectivos direitos ou concede as licenças necessárias para o efeito. Sucede que se mantêm nesta matéria diferenças muito significativas entre os sistemas jurídicos nacionais1. Ao passo que de um modo geral os sistemas de Common Law não estabelecem regimes especiais para os contratos que versem sobre a utilização ou exploração de bens intelectuais, os de Civil Law excluem a transmissão contratual de 1 Para uma análise comparativa dos sistemas jurídicos nacionais em matéria de propriedade intelectual, veja-se a nossa monografia A tutela internacional da propriedade intelectual, Coimbra, 2008, pp. 35 ss., que seguiremos aqui de perto. 1 certos direitos intelectuais (v.g., em França e em Portugal, o direito moral de autor e, na Alemanha, tanto o direito moral como o próprio direito patrimonial de autor, em conformidade com a visão monista do direito de autor que aí prevalece), bem como a transmissão de direitos sobre obras futuras, e impõem a observância nesses contratos de prescrições de forma que visam proteger a parte mais fraca. Acresce que enquanto que na maior parte dos países da Europa continental a titularidade originária do direito de autor sobre as obras criadas por encomenda ou em execução de um contrato de trabalho pertence ao respectivo criador, os sistemas de Common Law atribuem originariamente esse direito (ou pelo menos determinados direitos de reprodução da obra) ao comitente ou empregador. Daqui a importância da determinação da lei aplicável aos contratos em apreço sempre que estes apresentem conexões com mais do que um sistema jurídico. 2. Escolha pelas partes da lei aplicável De acordo com uma orientação hoje amplamente aceite, os contratos internacionais regem-se em princípio pela lei escolhida pelas partes2. Trata-se de uma projecção no campo do Direito Internacional Privado do princípio da autonomia da vontade, que como se sabe domina o regime das obrigações contratuais. Promovem-se deste modo a certeza quanto ao Direito aplicável e a segurança nas situações jurídicas plurilocalizadas: havendo escolha da lei aplicável, as partes sabem desde a celebração do contrato quais as regras por que devem pautar as suas condutas. Por outro lado, o acolhimento do princípio da autonomia privada nas situações plurilocalizadas corresponde ao reconhecimento aos interessados de uma esfera de liberdade, que é indispensável à efectivação da iniciativa económica privada. Consagra o referido princípio o art. 3.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (doravante Regulamento de Roma I)3. 2 Veja-se sobre o tema, por muitos, o estudo de Peter Nygh, Autonomy in International Contracts, Oxford, 1999. 3 Publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 177, de 4 de Julho de 2008, pp. 6 ss. É aplicável, nos termos do art. 28.º, aos contratos celebrados a partir de 17 de Dezembro de 2009. Sobre esse acto de Direito Europeu, vide: Franco Ferrari/Stefan Leible (orgs.), Ein neues Internationales Vertragsrecht für Europa, Jena, 2007; Andrea Bonomi, «The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Some General Remarks», Yearbook of Private International Law, 2008, pp. 165 ss.; Paul Lagarde/Aline Tenenbaum, «De la convention de Rome au règlement Rome I», Revue critique de Droit international privé, 2008, pp. 727 ss. ; Stefan Leible/Matthias Lehmann, «Die Verordnung über das auf vertragliche Schuldverhältnisse anzuwendende Recht (« Rom I »)», Recht der Internationalen Wirtschaft, 2008, pp. 528 ss.; Fabrizio Marrella, «The New (Rome I) European 2 Na ausência de qualquer disposição em contrário, deve considerar-se este princípio aplicável aos contratos que tenham por objecto a criação de bens intelectuais, assim como a transmissão e o licenciamento de direitos sobre os mesmos. Prevêem-no expressamente, pelo que respeita a estes últimos actos, os Princípios sobre o tribunal competente, a lei aplicável e o reconhecimento de sentenças em litígios transnacionais relativos à propriedade intelectual, publicados em 2008 pelo American Law Institute (doravante Princípios ALI), cujo § 315 (1) dispõe: «Sem prejuízo do disposto na subsecção (3), § 314 e §§ 316-317, a transmissão e a concessão de licenças relativas a direitos de propriedade intelectual regem-se pelas regras de Direito dos Contratos da lei designada por acordo das partes.» 4 Outro tanto estabelece o art. 3:501 dos Princípios para os conflitos de leis em matéria de propriedade intelectual, elaborados pelo European Max-Planck Group on Conflict of Laws in Intellectual Property (doravante Princípios CLIP), de que foi divulgado em 2010 um third preliminary draft, nos termos do qual: «Os acordos de transferência e de licença, bem como os demais contratos relativos a 5 direitos de propriedade intelectual, serão regidos pela lei escolhida pelas partes […].» Nem sempre, todavia, este entendimento foi pacificamente aceite. Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations: What has Changed?», ICC International Court of Arbitration Bulletin, vol. 19, n.º 1 (2008), pp. 87 ss.; Luís de Lima Pinheiro, «O novo regulamento comunitário sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Uma introdução», Revista da Ordem dos Advogados, 2008, pp. 575 ss. ; Eleanor Cashin Ritaine/Andrea Bonomi (orgs.), Le nouveau règlement européen «Rome I» relative à la loi applicable aux obligations contractuelles. Actes de la 20e Journée de droit international privé du 14 mars 2008 à Lausanne, Zurique, 2008 ; Benedetta Ubertazzi, Il regolamento Roma I suilla legge applicabile alle obbligazioni contrattuali, Milão, 2008 ; Tito Ballarino, «Il regolamento Roma I. Forza di legge, effetti, contenuto», Cuadernos de Derecho Transnacional, vol. I, n.º 1 (Março 2009), pp. 5 ss.; idem, «Dalla convenzione di Roma del 1980 al regolamento Roma I», Rivista di diritto internazionale, 2009, pp. 40 ss.; Alfonso-Luis Calvo Caravaca, «El reglamento Roma I sobre la ley applicable a las obligaciones contractuales: cuestiones escogidas», Cuadernos de Derecho Transnacional, vol. I, n.º 2 (Outubro 2009), pp. 52 ss.; Franco Ferrari/Stefan Leible (orgs.), Rome I Regulation. The Law Applicable to Contractual Obligations in Europe, Munique, 2009; Stéphanie Francq, «Le règlement « Rome I » sur la loi applicable aux obligations contractuelles. De quelques changements…», Clunet, 2009, pp. 41 ss. ; Hugues Kenfack, «Le règlement (CE) n.º 593/2008 du 17 juin 2008 sur la loi applicable aux obligations contractuelles («Rome I»), navire stable aux instruments efficaces de navigation ?», Clunet, 2009, pp. 3 ss. ; e Esperanza Castellanos Ruiz, El reglamento «Roma I» sobre la ley applicable al los contratos internacionales y su aplicación por los tribunales españoles, Granada, 2009. 4 Cfr. Intellectual Property. Principles Governing Jurisdiction, Choice of Law, and Judgments in Transnational Disputes, St. Paul, Minn., 2008 (tradução da nossa responsabilidade). 5 Cfr. Principles for Conflict of Laws in Intellectual Property, disponível em http://www.cl-ip.eu (tradução da nossa responsabilidade). 3 Com efeito, no decurso dos trabalhos preparatórios do Código de Conduta Internacional Sobre Transferência de Tecnologia, levados a cabo sob a égide da Comissão das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), não faltaram propostas no sentido da aplicação imperativa aos contratos de transferência de tecnologia da lei dos países receptores desta6. O que está em sintonia com o facto de em alguns dos países que apoiaram essas propostas, como o Brasil, a faculdade de as partes escolherem a lei aplicável aos contratos internacionais não ser genericamente reconhecida7. Outros mecanismos do Direito Internacional Privado – como o reconhecimento de eficácia a normas internacionalmente imperativas estrangeiras – permitem todavia acautelar os interesses daqueles países sem suprimir neste domínio a autonomia privada. Retomaremos este ponto adiante8. No Regulamento de Roma I, assim como nos Princípios CLIP, a escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato pode ser expressa ou tácita. Pode, além disso, recair sobre uma lei que não possua qualquer conexão com o contrato (conforme se infere do disposto no n.º 3 do art. 3.º do Regulamento, que ressalva, nos casos em que o contrato se encontre conexo com uma única lei, a aplicabilidade das disposições imperativas dessa lei) ou que não seja a de qualquer dos Estados-Membros do Regulamento (o que se retira do disposto no art. 2.º, que consagra o princípio da aplicação universal deste acto comunitário). A escolha pelas partes da lei de certo país pode, assim, ser determinada pelo conteúdo dessa lei (incluindo a jurisprudência dos tribunais locais), que os interessados porventura tenham como mais apropriado à sua relação. O que significa que essa escolha tem a natureza de uma verdadeira electio iuris e não de uma mera localização pelas partes do contrato9. 6 Veja-se, sobre o ponto, Wolfgang Fikentscher, The Draft International Code of Conduct on the Transfer of Technology, Weinheim, 1980, pp. 137 ss. 7 Cfr. António Marques dos Santos, «Algumas considerações sobre a autonomia da vontade no Direito Internacional Privado em Portugal e no Brasil», in Rui de Moura Ramos et al. (orgs.), Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol. I, Coimbra, 2002, pp. 379 ss.; Nádia Araújo, Contratos Internacionais: Autonomia da Vontade, Mercosul e Convenções Internacionais, 3.ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo/Recife, 2004, passim; idem, Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira, 4.ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo/Recife, 2008, pp. 370 ss. 8 Ver infra, n.º 9. 9 Como sustentaram, por exemplo, Henri Batiffol e Paul Lagarde, Droit International Privé, 7.ª ed., vol. II, Paris, 1983, pp. 265 ss. 4 A autonomia da vontade constitui, assim, no Direito Internacional Privado um princípio distinto do da proximidade (do qual curaremos a seguir), prevalecendo sobre este no seu domínio próprio de aplicação. A proliferação nos últimos anos de compilações de princípios jurídicos e de usos mercantis internacionais (os quais constituiriam, segundo alguns, expressões da denominada lex mercatoria10), elaboradas por organizações internacionais e por comissões de peritos11, suscitou a questão de saber se a escolha das partes apenas pode recair validamente sobre a ordem jurídica de um Estado ou se, ao invés, pode também ter por objecto outras realidades normativas, como por exemplo aquelas compilações. Ocupou-se desta questão a proposta de Regulamento de Roma I divulgada em 12 2005 , que dispôs no n.º 2 do art. 3.º: «As partes podem igualmente escolher como lei aplicável os princípios e regras de direito material dos contratos, reconhecidos a nível internacional ou comunitário. No entanto, as questões relativas às matérias reguladas por estes princípios ou regras e que não sejam decididas expressamente mediante a aplicação dos mesmos serão reguladas de acordo com os princípios gerais em que se inspiram ou, na ausência destes princípios, de acordo com a lei aplicável na falta de escolha nos termos do presente regulamento.» Esta regra viria, porém, a ser abandonada na versão final do Regulamento. A esta opção do legislador comunitário não terão sido alheias as dificuldades que a aplicação das referidas fontes normativas extra-estaduais suscitaria sob o ponto de vista 10 Cfr., sobre a aplicação da lex mercatoria à propriedade intelectual, Jane Ginsburg, «The Private International Law of Copyright in an Era of Technological Change», Recueil des cours de l’Académie de La Haye de Droit International, t. 273 (1998), pp. 239 ss. (pp. 376 ss.); e Luigi Carlo Ubertazzi, «Introduzione al diritto europeo della proprietà intellettuale», in Direito da Sociedade da Informação, vol. VI, Coimbra, 2006, pp. 29 ss. (pp. 48 ss.). 11 Pensamos, designadamente, nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos, publicados entre 1995 e 2003 pela Comissão de Direito Europeu dos Contratos (cfr. Ole Lando e outros, Principles of European Contract Law. Parts I and II Combined and Revised, Haia/Londres/Boston, 2000; Part III, Haia/Londres/Nova Iorque, 2003); nos Princípios Unidroit sobre os Contratos Comerciais Internacionais, publicados pelo UNIDROIT (cfr. International Institute for the Unification of Private Law, Unidroit Principles of International Commercial Contracts, 2.ª ed., Roma, 2004); e no projecto de Quadro Comum de Referência («Common Frame of Reference») em matéria de Direito Privado Europeu, publicado em 2008 (cfr. Christian von Bar e outros, Principles, Definitions and Model Rules on EC Private Law. Draft Common Frame of Reference. Interim Outline Edition, Munique, 2008). 12 Documento 2005/0261 (COD), disponível em http://eur-lex.europa.eu. Para uma apreciação dessa proposta, vejam-se: Paul Lagarde, «Remarques sur la proposition de règlement de la Commission européenne sur la loi applicable aux obligations contractuelles (Rome I)», Revue Critique de Droit International Privé, 2006, pp. 331 ss.; Max-Planck Institut für Ausländisches und Internationales Privatrecht, «Comments on the European Commission's Proposal for a Regulation of the European Parliament and the Council on the Law Applicable to Contractual Obligations (Rome I)», Rabels Zeitschrift für ausländisches und Internationales Privatrecht, 2007, pp. 225 ss. 5 da certeza e da segurança das relações plurilocalizadas, bem como da tutela da parte mais fraca na relação jurídica13. Consideremos, a fim de exemplificar essas dificuldades, os contratos relativos à criação, utilização e exploração de bens intelectuais. Se fosse possível subtraí-los à lei de qualquer Estado e submetê-los exclusivamente a princípios jurídicos ou aos usos do comércio internacional, poder-se-ia verificar, pelo que respeita à respectiva disciplina jurídica, um abaixamento da protecção conferida à parte mais fraca, maxime o autor. Assim, por exemplo, num contrato de edição celebrado entre um autor português e uma editora francesa, relativo à publicação em França de uma obra do primeiro, poder-se-ia excluir do referido modo a aplicação tanto da regra do Código português do Direito de Autor e dos Direitos Conexos que atribui ao autor o direito a uma compensação suplementar se sobrevier uma desproporção manifesta entre os seus proventos e os lucros auferidos por aquele a quem o autor transmitiu os seus direitos patrimoniais (art. 49.º, n.º 1) como da regra do Código da Propriedade Intelectual francês que consagra a possibilidade de revisão da retribuição convencionada em caso de lésion (art. L. 131-5). Não se exclui todavia no Regulamento de Roma I a possibilidade de as partes incorporarem no contrato, por referência, as mencionadas compilações de princípios jurídicos e de usos mercantis, cuja aplicabilidade (como a de qualquer cláusula contratual) ficará nesse caso dependente da respectiva conformidade com as normas imperativas da lex causae, determinada com base na conexão subsidiária14. 3. Conexão subsidiária Na falta de escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato, o Regulamento de Roma I preceitua que a lei aplicável será, em princípio, a que for designada pelas regras de conflitos relativas aos tipos contratuais nele previstos, entre os quais se incluem a compra e venda, a prestação de serviços, o arrendamento, a franquia e a distribuição (art. 4.º, n.º 1). 13 Para uma crítica, sob este prisma, da referida regra da proposta de Regulamento, vide Adrian Briggs, Agreements on Jurisdiction and Choice of Law, Oxford, 2008, p. 393. 14 Veja-se, neste sentido, o n.º 13 do preâmbulo do Regulamento. A mesma solução era já permitida pela Convenção de Roma de 1980 Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais: cfr. Paul Lagarde, «Remarques sur la proposition de règlement de la Commission européenne sur la loi applicable aux obligations contractuelles (Rome I)», cit., p. 336. Cfr. ainda Stefan Leible/Matthias Lehmann, est. cit., p. 533. 6 Caso o contrato não possa ser reconduzido a um desses tipos contratuais, aplicarse-á a lei do país em que o contraente que deve efectuar a prestação característica do contrato tiver a sua residência habitual (art. 4.º, n.º 2)15. Contudo, se resultar claramente do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nas regras anteriores, será aplicável a lei desse país (art. 4.º, n.º 3). Se a lei aplicável não puder ser determinada de acordo com as referidas disposições, será também o contrato regulado pela lei do país com o qual apresentar uma conexão mais estreita (art. 4.º, n.º 4). Às regras europeias sobre a determinação da lei subsidiariamente aplicável às obrigações contratuais preside assim, em última análise, a intenção de as submeter ao sistema jurídico com que possuírem a ligação espacial mais forte – i. é, o princípio da proximidade16. A este não é estranha, como notámos noutro lugar, a preocupação de salvaguardar a confiança dos interessados17. Não é esta, porém, a única valoração subjacente às regras de conflitos em apreço. A aplicação aos contratos internacionais da lei do devedor da prestação característica visa também reduzir os custos das transacções no comércio intracomunitário, que a integração europeia de um modo geral procura assegurar. Porquanto só pela aplicação daquela lei se evitam ao vendedor, ao prestador de serviços, etc., que exportam os seus produtos ou serviços para outros Estados-Membros da União Europeia os custos e riscos inerentes à aplicação de uma lei estrangeira. Se, ao invés, se aplicasse a esses contratos a lei do credor da prestação característica, os referidos custos recairiam sobre aqueles primeiros sujeitos contratuais, que com grande probabilidade os repercutiriam sobre os adquirentes dos seus produtos e serviços, fazendo assim subir o preço destes últimos18. 15 Vide, acerca desse conceito, Eugénia Galvão Teles, «A prestação característica: um novo conceito para determinar a lei subsidiariamente aplicável aos contratos internacionais. O artigo 4.º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais», O Direito 1995, pp. 71 ss.; Marie-Élodie Ancel, La prestation caractéristique du contrat, Paris, 2002, passim; e Kurt Siehr, «Objektive Anknüpfung im Internationalen Vertragsrecht», in Gerte Reichelt (org.), Europäisches Gemeinschaftsrecht und IPR. Ein Beitrag zur Kodifikation der Allgemeinen Grundsätze des Europäischen Kollisionsrechtes, Viena, 2007. 16 Cfr., sobre este princípio, Paul Lagarde, «Le principe de proximité dans le droit international privé contemporain. Cours général de droit international privé», Recueil des cours de l’Académie de La Haye de Droit international, t. 196 (1986-I), pp. 9 ss. 17 Cfr., sobre o ponto, o nosso Da responsabilidade pré-contratual em Direito Internacional Privado, Coimbra, 2001, p. 49. 18 Ver sobre esta matéria, o nosso «Liberdades comunitárias e Direito Internacional Privado», reproduzido em Direito Internacional Privado. Ensaios, vol. III, Coimbra, 2010, pp. 7 ss. 7 Mas qual a conexão subsidiária no que se refere aos contratos relativos à criação, utilização e exploração de bens intelectuais ou que operem a transmissão de direitos respeitantes a estes? A este respeito, a mencionada proposta de Regulamento de Roma I, divulgada em 2005, tomava uma posição mais nítida do que a que vingou na versão final deste acto comunitário. Com efeito, entre os contratos contemplados no art. 4.º, n.º 1, daquele texto, figuravam os que se aí se designavam por «contratos sobre a propriedade intelectual ou industrial». Estes deveriam ser regulados, nos termos da alínea f) desse preceito, pela lei do país onde quem transfere ou concede os direitos tem a sua residência habitual. Mas também esta disposição do projecto levantava sérias dificuldades. Por um lado, porque nem todos os «contratos sobre a propriedade intelectual ou industrial» implicam uma transferência ou concessão de direitos: é esse o caso, designadamente, dos contratos relativos à criação de obras por encomenda em que seja estipulada a atribuição originária do direito de autor ao comitente19, relativamente aos quais o projecto era omisso. Por outro, porque a opção feita na disposição em apreço pela aplicação, como regra geral, da lei do país onde a parte que transfere ou concede direitos tem a sua residência habitual imporia aos que exercem profissional ou empresarialmente as actividades autorizadas nos contratos em apreço (v.g. os editores) a necessidade de ajustarem os contratos por si celebrados às leis dos países onde residem habitualmente aqueles que para si transferem direitos ou autorizam a exploração das suas criações intelectuais; o que inevitavelmente acarretaria para esses sujeitos acréscimos de encargos que, uma vez reflectidos nos preços finais dos seus produtos ou serviços, seriam desconformes com a redução dos custos das transacções internacionais visada pela integração europeia. Não pode evidentemente ignorar-se a importância que assumem na resolução deste problema os interesses ligados à economia nacional: para os países exportadores de tecnologia, cujas empresas são mais frequentemente cedentes do que cessionárias de licenças, a aplicação da lei da parte que transfere ou concede direitos tem vantagens evidentes; já para os países importadores de tecnologia será a solução inversa que mais lhes convém. 19 O que é permitido, designadamente, pelo art. 14.º do Código português do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. 8 Assim se explica, por exemplo, que a Lei Federal Suíça de Direito Internacional Privado estabeleça no art. 122, n.º 1, que os contratos relativos à propriedade intelectual são regidos pelo Direito do Estado em que aquele que transfere ou concede o direito de propriedade intelectual tem a sua residência habitual20. A solução suíça dificilmente poderia, contudo, servir de modelo à unificação do Direito Internacional Privado da União Europeia, visto que nela não são tomadas em consideração as exigências relacionadas com a formação do mercado interno europeu, de que aquele país não faz parte. Foi justamente em ordem a evitar dificuldades daquele tipo, e também a fim de tornar possível uma maior diferenciação das soluções para os conflitos de leis neste domínio, que o European Max-Planck Group for Conflict of Laws in Intellectual Property preconizou, em proposta publicada em 2007, a supressão da alínea f) do art. 4.º do projecto de Regulamento de Roma I ou, em alternativa, a sua substituição por uma regra que mandasse presumir que os contratos de transmissão ou licença de direitos intelectuais têm a conexão mais estreita com a lei do país em que o transmitente ou licenciante possui a sua residência habitual, excepto se o transmissário ou o beneficiário da licença houverem aceitado o dever de explorar os direitos em questão21. Eis por que a versão final do Regulamento não contempla especificamente os contratos relativos à criação, utilização e exploração de bens intelectuais. É certo que o art. 4.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento consagra uma regra de conflitos especial para o contrato de prestação de serviços, que é aí submetido à lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual. Mas, conforme reconheceu o Tribunal de Justiça da União Europeia, não podem qualificar-se como tais os contratos mediante os quais os titulares de direitos de propriedade intelectual concedem aos respectivos co-contratantes a faculdade de explorarem esses direitos como contrapartida do pagamento de uma remuneração22. Quando muito, poderá admitir-se que certos contratos de franquia (que a alínea e) do n.º 1 do art. 4.º do Regulamento submete à lei do país em que o franqueado tem a 20 Como, de resto, preconizara François Dessemontet em «Les contrats de licence en droit international privé», in Bernard Dutoit/Josef Hofstetter/Paul Piotet (orgs.), Mélanges Guy Flattet, Lausanne, 1985, pp. 435 ss. 21 Cfr. European Max-Planck Group for Conflict of Laws in Intellectual Property (CLIP), «Intellectual Property and the Reform of Private International Law – Sparks from a Difficult Relationship», IPRax, 2007, pp. 284 ss. (p. 290). 22 Cfr. o acórdão de 23 de Abril de 2009, proc. C-533/07, Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch/Gisela Weller-Lindhorst, in Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de Justiça, 2009-I, pp. 3327 ss. 9 sua residência habitual) impliquem também uma licença de utilização de sinais distintivos do comércio ou de outros bens intelectuais de que é titular o franqueador, caso em que será de aplicar essa lei à utilização destes bens. Nos demais casos, aplicar-se-á aos contratos em apreço o disposto no n.º 2 do mesmo preceito do Regulamento, que como referimos submete os contratos não incluídos no n.º 1 à lei do país em que o contraente que deve efectuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual. O que suscita a questão de saber qual a prestação característica desses contratos. Supomos que não pode responder-se a esta questão em termos uniformes. É, na verdade, imprescindível apurar, para o efeito, se o beneficiário da licença ou o transmissário do direito assumem perante o titular deste a obrigação de explorar o direito licenciado ou transmitido ou se, ao invés, lhes cabe tão-somente pagar o preço da licença ou transmissão (admitindo que o contrato é oneroso). Na primeira hipótese, será a obrigação do beneficiário da licença ou do transmissário do direito que, por via de regra, caracteriza o contrato23; na segunda, terá de admitir-se que é antes a obrigação a cargo da parte que concede a licença ou transmite o direito que confere individualidade ao contrato e permite subsumi-lo sob determinado tipo legal ou social – portanto, a prestação característica24. Estão naquele primeiro caso, por exemplo, os contratos de edição25 e certos contratos de licença de patente26. 23 Assim Eugen Ulmer, Intellectual Property Rights and the Conflict of Laws, Luxemburgo, 1978, pp. 50 e 94; Bernd von Hoffman, «Verträge über gewerbliche Schutzrechte im Internationalen Privatrecht», Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht, 1976, pp. 208 ss. (p. 214); Haimo Schack, «Copyright Licensing in the Internet Age: Choice of Law and Forum», in Theodor Baums/Klaus Hopt/Norbert Horn (orgs.), Corporations, Capital Markets and Business Law. Liber Amicorum Richard M. Buxbaum, Haia, 2000, pp. 489 ss. (p. 492); Benedetta Ubertazzi, Il regolamento Roma I sulla legge applicabile alle obbligazioni contrattuali, Milão, 2008, p. 74; João Paulo Remédio Marques, Licenças (voluntárias e obrigatórias) de direitos de propriedade intelectual, Coimbra, 2008, pp. 174 s.; e Peter Mankowski, «Contracts Relating to Intellectual or Industrial Property Rights under the Rome I Regulation», in Stefan Leible/Ansgar Ohly (orgs.), Intellectual Property and Private International Law, Tubinga, 2009, pp. 31 ss. (p. 53). 24 Neste sentido Ulmer, ob. cit., pp. 49 e 93; Pedro de Miguel Asensio, Contratos internacionales sobre propiedad industrial, 2.ª ed., Madrid, 2000, pp. 285 ss.; Luís de Lima Pinheiro, «A lei aplicável aos direitos de propriedade intelectual», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001, pp. 63 ss., p. 73, e Direito Internacional Privado, vol. II, 2.ª ed., 2002, p. 288; João Paulo Remédio Marques, ob. cit., pp. 178 ss.; Peter Mankowski, est. cit., p. 52. 25 Neste sentido, veja-se o acórdão da Cour d’Appel de Paris, de 2 de Abril de 2003, caso Antonio Martinelli et Roberto Meazza c. Éditions Gallimard et Sté. APA, Revue Internationale de Droit d’auteur, 2003, pp. 413 ss. Na doutrina, preconizam também a aplicação da lei do editor ao contrato de edição: Kamen Troller, «Industrial and Intellectual Property», in International Encyclopedia of Comparative Law, vol. III, Private International Law, capítulo 23, p. 21; Jacques Raynaud, Droit d'auteur et conflits de lois. Essai sur la nature juridique du droit d'auteur, Paris, 1990, pp. 572 s.; Christian von Bar, Internationales Privatrecht, vol. II, Munique, 1991, p. 368 ; Muriel Josselin-Gall, Les 10 Com efeito, o autor pode autorizar a utilização ou exploração da sua obra por terceiros pelos mais diversos modos: a publicação, a representação, a adaptação cinematográfica, a disponibilização em rede, etc. A sua prestação nos correspondentes contratos será todavia sempre a mesma. Isto, quer se entenda que essa prestação é uma simples autorização ou tolerância – portanto, uma prestação de facto negativo –, quer se considere que ela consiste em colocar o bem imaterial objecto do contrato à disposição da contraparte, para que esta o utilize ou explore – envolvendo, por conseguinte, uma prestação de facto positivo. O que varia consoante o modo de utilização escolhido é, em qualquer dos casos apontados, a prestação a cargo do beneficiário da autorização. Este obriga-se, no primeiro caso, a distribuir e vender os exemplares da obra; no segundo, a promover a representação; no terceiro, a produzir a obra cinematográfica; e no quarto, a colocá-la num sítio da Internet. É esta, por conseguinte, a prestação característica do contrato. Outro tanto pode dizer-se dos contratos em que o beneficiário de uma licença de patente se obriga a explorar o invento patenteado. Com efeito, é a prestação a cargo deste sujeito que distingue esses contratos de outras categorias de situações jurídicas, como a transmissão temporária do direito de propriedade industrial. Por outro lado, é sobre esse sujeito que recai, nestes casos, o risco económico da exploração do bem intelectual; o que justifica plenamente, sob o ponto de vista da redução dos custos das transacções visada pelo art. 4.º, n.º 2, do Regulamento, a aplicação da lei do país onde ele tem a sua residência habitual. Enfim, nas situações em apreço é a prestação a cargo do licenciado que corresponde à finalidade precípua da regulamentação de interesses visada pelas partes – constituindo, nesta medida, o centro de gravidade do contrato –, razão pela qual só a aplicação da lei desse sujeito contratual permitirá, por via de regra, localizar juridicamente o contrato no país em cuja vida sócio-económica ele se destina a inserir-se. contrats d’exploitation du droit de propriété littéraire et artistique, Paris, 1995, p. 379; Aurora Hernández Rodríguez, Los contratos de edición en el Derecho internacional privado español, Granada, 2002, p. 138; Eva Inés Obergfell, in Christoph Reithmann/Dieter Martiny, Internationales Vertragsrecht, 6.ª ed., Colónia, 2004, pp. 1294 s.; Paul Katzenberger, in Gerhard Schricker (org.), Urheberrecht. Kommentar, 3.ª ed., Munique, 2006, pp. 2137; e Karl-Heinz Fezer/Stefan Koos, in Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetze und Nebengesetzen, 13.ª ed., Berlim, 2006, Einführungsgesetz zum Bürgerliche Gesetzbuche/IPR. Internationales Wirtschaftsrecht, p. 457. 26 Neste sentido, Giovanna Modiano, «Internacional Patent Licensing Agreements and Conflict of Laws», Northwestern Journal of International Law and Business, 1980, pp. 11 ss. (p. 26); e João Paulo Remédio Marques, ob. cit., p. 175. 11 Um pouco mais flexíveis mostram-se, no tocante à definição da lei supletivamente aplicável ao contrato, os Princípios do American Law Institute e do Max-Planck-Institut. Com efeito, o § 315 (2) do primeiro destes textos manda aplicar, na falta de escolha pelas partes, a lei do Estado que tiver a conexão mais estreita (closest connection) com o contrato de transmissão do direito ou de licença, devendo presumirse que este se encontra mais estreitamente conexo com o Estado em que a parte que transmitiu o direito ou concedeu a licença residia ao tempo da respectiva celebração. O princípio da conexão mais estreita figura igualmente no art. 3:502 (1) dos Princípios CLIP, segundo o qual, na falta de escolha da lei aplicável em conformidade com o art. 3:501, o contrato será regido pela lei do Estado com que se encontre mais estreitamente conexo. O art. 3:502 (2) do mesmo texto define pormenorizadamente o modo de determinar aquela conexão. Aí se dispõe, com efeito, que nos contratos que tenham como objecto principal a criação de bens susceptíveis de serem protegidos, ou a transferência ou o licenciamento de direitos de propriedade intelectual, o tribunal tomará em consideração, ao determinar o Estado com a conexão mais estreita, como factores tendentes à aplicação da lei do Estado em que o transmissário ou licenciado tem a sua residência habitual ao tempo da conclusão do contrato, os seguintes: A transferência ou licença diz respeito a direitos de propriedade intelectual concedidos para o Estado da residência habitual ou de estabelecimento do transmissário ou do licenciado; O transmissário ou licenciado tem um dever expresso ou implícito de explorar o direito; Os royalties ou outra contrapartida em dinheiro estão expressos como uma percentagem do preço de venda; e O transmissário ou licenciado tem um dever de informar sobre os seus esforços com vista à exploração dos direitos; O tribunal deverá ainda ter em consideração, como factores tendentes à aplicação da lei do Estado em que o criador, transmitente ou licenciante tem a sua residência habitual ao tempo da conclusão do contrato, os seguintes: A transferência ou licença diz respeito a direitos de propriedade intelectual concedidos para o Estado da residência habitual ou estabelecimento do transmitente ou licenciante; 12 O transmissário ou licenciado não tem qualquer dever expresso ou implícito além de pagar uma quantia fixa como contrapartida monetária; A licença destina-se a uma única utilização; e O criador do bem susceptível de protecção tem o dever de criá-lo. Omite-se assim, em ambos os textos em análise, a referência à prestação característica como critério de determinação da lei aplicável. 4. Cláusula de excepção Em certos casos, admite-se no Regulamento de Roma I a aplicação ao contrato internacional de uma lei diversa da do devedor da prestação característica. É o que estabelece o art. 4.º, n.º 3, de acordo com o qual, consoante referimos, se o contrato apresentar uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente daquele a que conduzem as regras anteriormente examinadas deverá aplicar-se a lei desse país. Por força desta cláusula de excepção, pode a lei do editor, num contrato de edição, ser preterida em benefício da do autor, caso esta apresente uma conexão mais estreita com o contrato27. Assim sucederá por exemplo se, tendo o contrato de edição sido celebrado no país da residência habitual do autor, o cumprimento das obrigações dele emergentes para o editor (maxime as de reproduzir, distribuir e vender os exemplares da obra e de pagar ao autor a remuneração que lhe é devida) for exclusivamente devido nesse país, apesar de o editor se encontrar estabelecido num país diferente. Deve também ser admitida, ao abrigo da referida cláusula, a aplicação da lei do país para cujo território é reclamada a protecção de um direito de propriedade intelectual (hoc sensu, a lex loci protectionis) aos contratos internacionais que tenham por objecto a exploração, exclusivamente nesse país, de direitos de propriedade industrial conferidos pelo sistema jurídico local28. 27 Sobre as cláusulas de excepção, consultem-se, na doutrina portuguesa, Rui de Moura Ramos, «Les clauses d’exception en matière de conflits de lois et de conflits de juridictions – Portugal», in Das relações privadas internacionais, Coimbra, 1995, pp. 295 ss.; António Marques dos Santos, Direito Internacional Privado, vol. I, Lisboa, 2001, pp. 309 ss.; Maria João Matias Fernandes, A cláusula de desvio no Direito de Conflitos, Coimbra, 2007; e Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol. I, 2.ª ed., Coimbra, 2008, pp. 397 ss. 28 Assim, Pedro de Miguel Asensio, Contratos internacionales sobre propiedad industrial, cit., p. 274; e Peter Mankowski, est. cit., p. 61. 13 Ao mesmo resultado fundamental conduz o disposto no art. 3:502 (3) dos Princípios CLIP, nos termos do qual: «Se não puder ser tomada qualquer decisão clara ao abrigo do parágrafo (2) e a transferência ou licença respeitar a direitos de propriedade intelectual para um só Estado, presumir-se-á que o contrato se encontra mais estreitamente conexo com esse Estado […].» 5. Contratos celebrados por consumidores São hoje frequentemente celebrados contratos de licença de utilização de bens intelectuais com consumidores finais. É o que acontece, por exemplo, quando um programa de computador é fornecido para uso pessoal (i. é, não profissional) do respectivo adquirente ou quando um utente da Internet procede ao download de um filme ou de uma música com o consentimento do titular dos respectivos direitos de autor ou conexos. Nestas hipóteses, as regras anteriormente examinadas sofrem certas limitações ditadas pela preocupação de proteger o consumidor, que se presume ser a parte mais fraca na relação jurídica. Nos Estados-Membros da União Europeia, vale quanto a esta matéria o art. 6.º do Regulamento de Roma I. Aí se procura garantir ao consumidor a protecção que lhe é conferida pelas disposições «não derrogáveis por acordo» da lei da sua residência habitual, as quais não podem ser afastadas pelas partes mediante a escolha de uma lei diferente (n.º 2). Não se exclui, por conseguinte, a escolha da lei aplicável, nos termos do art. 3.º do Regulamento, nem se manda aplicar, quando as partes escolham a lei aplicável, a totalidade das disposições da lei da residência habitual do consumidor, mas tão-só as que lhe confiram uma protecção superior à da lei escolhida. A aplicação das normas de protecção da lei do país da residência habitual do consumidor pressupõe ainda, nos termos do n.º 1 do art. 6.º, que: O profissional que contrata com o consumidor exerça as suas actividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual; ou Por qualquer meio, o profissional dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país. Em qualquer destes casos, requer-se também, para que seja aplicável a lei do consumidor, que o contrato em apreço se insira no âmbito das referidas actividades. 14 Não se verificando qualquer dessas hipóteses, o contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é regido pela lei designada nos termos dos arts. 3.º e 4.º do Regulamento (art. 6.º, n.º 3)29. O requisito da direcção de actividades para a aplicabilidade da lei da residência habitual do consumidor corresponde à adaptação aos conflitos de leis de uma solução que já figurava, pelo que respeita à fixação da competência judiciária, no Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial («Regulamento de Bruxelas I»)30. Em conformidade com a interpretação que tem prevalecido a respeito do art. 15.º deste Regulamento, aquele requisito tem-se por verificado sempre que o sítio em questão «convide à celebração de contratos à distância e tenha efectivamente sido celebrado um contrato à distância, por qualquer meio». A mera acessibilidade de um sítio Internet não é, assim, suficiente para que se tenha por verificado o referido requisito; mas a circunstância de ter sido celebrado um contrato na sequência de uma oferta de bens ou serviços através desse sítio constitui um importante indício de que o profissional dirigiu as suas actividades para o país do consumidor31. O futuro dirá qual o impacto de semelhante solução sobre o comércio electrónico no mercado interno europeu, que alguns receiam possa conhecer certa retracção caso as pequenas e médias empresas tenham de conformar sistematicamente a sua actividade com as exigências de uma multiplicidade de leis estrangeiras em matéria de protecção do consumidor32. Um reconhecimento mais amplo da autonomia privada na definição da lei aplicável aos contratos de consumo poderia, por isso, justificar-se. Neste sentido pode ainda aduzir-se que na União Europeia o regime dos contratos celebrados por consumidores se acha hoje em larga medida harmonizado – nomeadamente por força 29 Para uma apreciação destas soluções, com referência à proposta de Regulamento, veja-se Peter Mankowski, «Art. 5 des Vorschlags für eine Rom I-Verordnung – Revolution im Internationalen Verbrauchervertragsrecht?», Zeitschrift für vergleichende Rechtswissenschaft, 2006, pp. 120 ss. 30 Ver, sobre as incidências deste acto comunitário em matéria de propriedade intelectual, o nosso A tutela internacional da propriedade intelectual, cit., pp. 363 ss., e bibliografia aí citada. 31 Vide sobre o ponto o nosso «Comércio electrónico e competência internacional», in Direito Internacional Privado. Ensaios, vol. II, Coimbra, 2005, pp. 263 ss. 32 Cfr., por exemplo, Josef Drexl, «Which Law Protects Consumers and Competition in Conflict with Intellectual Property Rights?», in Jürgen Basedow/Josef Drexl/Annette Kur/Axel Metzger (orgs.), Intellectual Property in the Conflict of Laws, Tubinga, 2005, pp. 79 ss. (pp. 89 ss.). 15 das Directivas sobre os contratos à distância, as cláusulas abusivas e a venda de bens de consumo –, o que permite duvidar de que no âmbito da União o consumidor careça efectivamente da protecção que lhe é dispensada pela lei da sua residência habitual. Pelo que respeita aos contratos de consumo celebrados por adesão a cláusulas contratuais gerais (como é o caso da maior parte das licenças de utilização de programas de computador), haverá ainda que ter em consideração, na União Europeia, o art. 6.º, n.º 2, da Directiva 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores33, e as regras nacionais de transposição deste acto comunitário34, as quais, nos termos do art. 23.º do Regulamento de Roma I, têm primazia sobre as disposições deste último. Assim, se o contrato apresentar uma conexão estreita com o território de um Estado-Membro da União Europeia, aplicar-se-ão, independentemente da lei escolhida pelas partes a fim de regê-lo, as normas desse Estado que visam transpor a referida Directiva, maxime as que estabelecem proibições de certas cláusulas contratuais gerais nas relações com consumidores finais. Aquela conexão deve ter-se por verificada, a nosso ver, nomeadamente quando o consumidor tiver residência habitual num Estado-Membro da União e o contrato seja aí proposto, concluído ou executado35. Uma maior abertura à autonomia privada nos contratos de consumo é preconizada nos Princípios do American Law Institute. Prevê, com efeito, o § 302 (5) deste texto, aplicável aos contratos de transmissão de direitos e de licença por força do disposto no § 315 (3) (a), que as cláusulas de escolha da lei aplicável constantes de mass-market agreements (i.é, aqueles cujo clausulado é preparado por uma das partes no contrato, destinando-se a serem utilizados repetidamente, sem que a outra parte tenha qualquer oportunidade significativa de negociá-lo) apenas serão válidas se: Forem razoáveis; Estiverem prontamente acessíveis, ao tempo da respectiva conclusão, à parte que não as redigiu; e Estiverem disponíveis para ulterior utilização pelo tribunal e pelas partes. 33 34 In Jornal Oficial da Comunidade Europeia, n.º L 95, de 21 de Abril de 1993, pp. 29 ss. Entre as quais se inclui, em Portugal, o art. 23.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais. 35 Ver o nosso estudo «Lei reguladora dos contratos de consumo», in Direito Internacional Privado. Ensaios, Coimbra, vol. II, 2005, pp. 187 ss. (pp. 198 ss.). 16 Na aferição da razoabilidade das cláusulas de escolha da lei aplicável constantes dos contratos em apreço, atender-se-á, segundo o mesmo preceito: À proximidade da conexão entre as partes, a substância do contrato, o Estado cuja lei é escolhida e o foro; À localização das partes, aos seus interesses e aos seus recursos, tendo especialmente em conta os recursos e a «sofisticação» do aderente. Não basta, pois, que o consumidor ou aderente resida em país distinto daquele cuja lei foi escolhida para que se apliquem as regras de protecção da lei local; é ainda necessário que, à luz das circunstâncias do caso e dos interesses em jogo, não fosse razoável a escolha dessa lei. Neste caso, aplicar-se-á a lei competente a título subsidiário, nos termos do § 315 (2) dos Princípios36. 6. Contratos celebrados por trabalhadores assalariados Sendo o criador do bem intelectual, como frequentemente sucede, um trabalhador por conta de outrem, aplicam-se ao contrato por si celebrado as regras de conflitos referentes ao contrato individual de trabalho. Estas figuram, designadamente, no art. 8.° do Regulamento de Roma I, que consagra a este respeito duas soluções fundamentais: A aplicabilidade da lei escolhida pelas partes; e A competência subsidiária da lei do lugar da execução habitual da actividade laboral pelo trabalhador. A primeira destas regras sofre todavia uma importante limitação, constante do n.º 1 do citado preceito, nos termos do qual a escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por força dos n.°s 2 a 4 do mesmo artigo. Visa-se assim evitar que, por força de uma escolha da lei aplicável, o trabalhador fique desprovido da protecção que lhe confere a lei que tem a conexão estreita mais estreita com o contrato. A aplicação da lex loci laboris é a solução consagrada a título subsidiário no n.º 2 do mesmo preceito, segundo o qual: 36 Sobre esta disposição, veja-se supra, n.º 3. 17 «Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato de trabalho é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver temporariamente empregado noutro país.» Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do n.º 2, o contrato é regulado, segundo o n.º 3, pela lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador. A opção, como conexão subsidiária, pela lei do país onde é habitualmente devida a execução do contrato trabalho justifica-se por diversas ordens de razões37. Desde logo, ela funda-se na particular correlação de interesses em jogo nestes contratos e na proeminência que entre eles assumem o interesse do trabalhador, enquanto parte mais fraca, e os interesses sociais que presidem a muitas normas imperativas em matéria laboral, como as que regulam o salário mínimo, a duração do trabalho, etc.: tais normas, a fim de realizarem as suas finalidades precípuas, têm de ser aplicadas territorialmente – i. é, têm de valer para todos os contratos de trabalho executados no território do país onde vigoram. A aplicação da lei do locus laboris é, por outro lado, uma forma de assegurar a igualdade de tratamento entre trabalhadores nacionais e estrangeiros. Finalmente, a referida regra justifica-se pela necessidade de assegurar que todas as empresas que actuam em certo mercado fiquem sujeitas às mesmas condições jurídicas de funcionamento. No n.º 4 do art. 8.º do Regulamento estabelece-se uma cláusula de excepção, nos termos da qual a lei aplicável por força das regras de conflitos constantes dos n.ºs 2 e 3 pode ser afastada pelo julgador «[s]e resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente», sendo em tal caso «aplicável a lei desse outro país». No domínio que aqui nos interessa, esta regra será aplicável, por exemplo, se o autor de uma obra literária ou artística (v.g. um jornalista assalariado) prestar habitualmente o seu trabalho em país estrangeiro, onde se encontra domiciliado, mas a 37 Ver, sobre esta matéria, Rui de Moura Ramos, Da lei aplicável ao contrato de trabalho internacional, Coimbra, 1991, pp. 908 ss., com mais referências. 18 empresa para a qual trabalha tiver a sua sede noutro país, onde foi igualmente celebrado o contrato de trabalho, onde é pago o seu salário e onde é publicado o órgão de comunicação social em que são inseridos os trabalhos jornalísticos por ele produzidos. Os Princípios CLIP consagram no art. 3:503 regras que não se afastam substancialmente das que acabamos de referir. À lei determinada nos termos examinados compete disciplinar, além da formação, do conteúdo e dos efeitos obrigacionais do contrato de trabalho, o eventual direito do trabalhador a uma remuneração suplementar em virtude da obra criada ou da invenção realizada no cumprimento de um contrato de trabalho. A competência da lex contractus deve ainda estender-se à determinação da titularidade do direito patrimonial de autor e do direito à patente sobre tais obras ou invenções38. A conexão acessória que assim se preconiza é a solução mais adequada à preservação da harmonia jurídica material, pois evita a aplicabilidade de disposições contraditórias do estatuto do contrato e da lei reguladora dos direitos intelectuais. Ela é, além disso, condizente com a circunstância de que, regra geral, a titularidade desses direitos pode ser regulada pelas partes no contrato de trabalho39. Já o conteúdo da protecção conferida à obra ou invenção criada por conta da entidade patronal deve, em princípio, ser disciplinado pela lex loci protectionis40. 7. Forma externa do contrato O art. 11.º, n.º 1, do Regulamento de Roma I consagra o princípio, com larga tradição no Direito Internacional Privado, da aplicabilidade alternativa à forma externa dos contratos da lei do lugar da celebração ou da lei reguladora da substância do 38 Nesta linha de orientação se inserem os §§ 311 (2) e 313 (1) (c) dos Princípios ALI, que estabelecem respectivamente: «Quando o objecto do direito registado resultar de uma relação contratual ou outra preexistente entre as partes, a titularidade inicial é regida pela lei aplicável ao contrato ou outra relação»; «Se o objecto protegido tiver sido criado em execução de uma relação de emprego, [aplicar-se-á à titularidade inicial do direito] a lei do Estado que rege esta relação». É susceptível de conduzir ao mesmo resultado o disposto no art. 60.º, n.º 1, da Convenção Sobre a Patente Europeia. 39 Ver, sobre o ponto, Ulmer, Intellectual Property Rights and the Conflict of Laws, cit., pp. 38 s. e 73; Rolf Birk, «Der angestellte Urheber im Kollisionsrecht», Archiv für Urheber- Film- Funk- und Theaterrecht, vol. 108/1988, pp. 101 ss.; Paul Torremans, «Authorship, Ownership of Right and Works Created by Employees. Which Law Applies?», European Intellectual Property Review, 2005, pp. 220 ss. (p. 223 s.); Tristan Azzi, «Les contrats d’exploitation des droits de propriété littéraire et artistique en droit international privé : état des questions», Revue Internationale du Droit d'Auteur, 2007, vol. 214, pp. 3 ss. (pp. 77 s.) ; e Jürgen Basedow, «Foundations of Private International Law in Intellectual Property», in Jürgen Basedow/Toshiuki Kono/Axel Mezger, Intellectual property in the Global Arena. Jurisdiction, Applicable Law, and the Recognition of Judgments in Europe, Japan and the US, Tubinga, 2010, pp. 3 ss. (pp. 22 s.). 40 Retomaremos este assunto adiante, no n.º 8. 19 contrato; princípio esse que abrange também os contratos que tenham por objecto direitos de propriedade intelectual41. À forma dos contratos entre ausentes será ainda aplicável, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, a lei de qualquer dos países onde as partes ou os seus representantes se encontravam aquando da conclusão do contrato ou onde as partes tinham a sua residência habitual nesse momento. Na mesma linha fundamental de orientação, dispõe o art. 3:504 dos Princípios CLIP: «A transferência ou o licenciamento de um direito de propriedade intelectual, um contrato relativo a tal transferência ou licenciamento e qualquer acto destinado a ter efeitos jurídicos relativamente a um contrato existente ou projectado será formalmente válido desde que satisfaça as exigências formais (a) da lei que regula a substância do direito de acordo com estes Princípios, ou (b) da lei do Estado em que qualquer das partes ou o seu representante está presente no momento da conclusão do contrato, ou (c) da lei do Estado em que qualquer das partes reside habitualmente no momento da conclusão do contrato.» Fundam-se estas regras numa ideia de favor negotii: procura-se através delas promover o aproveitamento dos negócios jurídicos nas situações plurilocalizadas, em ordem a facilitar a contratação internacional e a tutelar a confiança dos interessados. Da validade formal do contrato importa distinguir a sua oponibilidade a terceiros. Esta depende, em certos países, da observância de formalidades tendentes a assegurar a publicidade do contrato – como, por exemplo, o averbamento das transmissões de direitos e das licenças de exploração num registo público da propriedade industrial42. Quando assim suceda, será exigível, independentemente do que dispõem as aludidas regras de conflitos sobre a forma do contrato, o cumprimento de tais formalidades, a fim de que o contrato possa produzir efeitos erga omnes43. 41 Neste sentido se pronunciou a Cassação francesa, a respeito de um contrato de transmissão do direito de autor, no acórdão proferido em 28 de Maio de 1963, relativo ao caso Société Les Films Richebé c. Société Roy Export et Charlie Chaplin, Revue critique de Droit international privé, 1964, pp. 513 ss. 42 É o que ocorre, por exemplo, em França e em Portugal: cfr., respectivamente, os arts. L. 613-9 do Código da Propriedade Intelectual francês e 30.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial português. 43 Neste sentido, veja-se Joanna Schmidt-Szalewski/Jean-Luc Pierre, Droit de la proprieté industrielle, cit., p. 437. À mesma conclusão chega, perante o Direito Internacional Privado alemão, Axel Metzger, «Transfer of Rights, License Agreements, and Conflict of Laws: Remarks on the Rome Convention of 1980 and the Current ALI Draft», in Jürgen Basedow/Josef Drexl/Annette Kur/Axel Metzger (orgs.), Intellectual Property in the Conflict of Laws, Tubinga, 2005, pp. 61 s. (p. 65). 20 8. Âmbito da lex contractus; problemas de qualificação A lei determinada nos termos das regras acima analisadas rege um vasto leque de matérias, que o art. 12.º do Regulamento de Roma I enuncia exemplificativamente: a interpretação do contrato; o cumprimento das obrigações dele decorrentes; as consequências do incumprimento dessas obrigações; as causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade; e as consequências da invalidade do contrato44. Fora do escopo da lex contractus ficam, no domínio dos contratos referentes a direitos sobre bens intelectuais, as questões relacionadas com a constituição, a duração e a extinção desses direitos, o conteúdo destes, as excepções e os limites aos mesmos, bem como a admissibilidade e as condições da sua transmissão e oneração, às quais terá de ser aplicada, na generalidade dos casos, a lei do país para cujo território é solicitada a protecção (a lex loci protectionis)45, sob pena de se quebrar a unidade de sentido da regulação substantiva dos direitos intelectuais46. Outro tanto pode dizer-se das licenças obrigatórias e das utilizações livres de bens protegidos por direitos intelectuais47. Em razão do exposto, a transmissão e a oneração de direitos intelectuais implicam frequentemente, nas situações com carácter internacional, a conjugação de diferentes leis. Assim, por exemplo, se um dos co-autores de um livro publicado em França transmite os seus direitos ao outro co-autor, a questão de saber se a transmissão compreende o direito à paternidade da obra (e portanto a questão da admissibilidade da 44 Os Princípios CLIP consagram uma disposição paralela no art. 3:506 (1). Sobre a qual pode ver-se o nosso A tutela internacional da propriedade intelectual, cit., pp. 212 ss., com mais referências bibliográficas. 46 No sentido do texto, veja-se, por último, Peter Mankowski, «Contracts Relating to Intellectual or Industrial Property Rights under the Rome I Regulation», cit., p. 43. 47 Neste sentido, vejam-se o § 316 dos Princípios ALI e o art. 3:507 dos Princípios CLIP. Esta orientação é também perfilhada pelos tribunais ingleses e alemães pelo que respeita à transmissão de direitos: cfr., respectivamente, as decisões do High Court of Justice, Chancery Division, de 13 de Novembro de 1962, caso Campbell Connelly & Co. Ltd. v. Noble [1963] 1 All England Reports 237; e do Bundesgerichtshof, de 2 de Outubro de 1997, caso Spielbankaffaire, Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht Internationaler Teil, 1999, pp. 152 ss. (em que se afirma expressamente que a susceptibilidade de transmissão de faculdades jusautorais é determinada pelo Direito do país de protecção), e de 2 de Maio de 2002, caso FROMMIA, Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht Internationaler Teil, 2003, pp. 71 ss. (na qual se declara que o Direito alemão é aplicável, em conformidade com o princípio da territorialidade, à transmissão de uma marca alemã, ainda que realizada entre partes estrangeiras). 45 21 omissão do seu nome nos respectivos exemplares) terá de ser decidida pela lex loci protectionis (na espécie, a lei francesa, que não permite a transmissão do direito moral de autor) e não pela lei escolhida pelas partes a fim de reger o contrato (por hipótese, a lei do Estado de Nova Iorque, perante a qual semelhante transmissão seria válida). Analogamente, a questão de saber se um dos co-autores de uma obra literária pode, ao abrigo de um contrato, licenciar a sua exploração por terceiros sem o consentimento do outro ou dos outros co-autores, como permite o Direito norteamericano, terá de ser aferida perante a lei do país onde essa exploração foi autorizada e não pela lei reguladora do contrato48. Nem sempre, todavia, é isenta de dúvida a qualificação das normas materiais relevantes nas situações em apreço. Assim sucede relativamente às normas que, em alguns sistemas jurídicos (entre os quais o francês49 e o português50), fazem depender a validade dos negócios de transmissão e oneração de direitos intelectuais da observância de certos requisitos formais, nomeadamente a sua redução a escrito. Como se viu acima, a propósito do art. 11.º do Regulamento de Roma I, a forma do contrato tem, no Direito Internacional Privado, um estatuto próprio. Porém, as regras que estabelecem exigências especiais de forma para os referidos negócios acham-se, até do ponto de vista sistemático, estreitamente ligadas ao regime substantivo desses direitos – o qual se subordina, como notámos, a uma lei autonomamente determinada. Sempre que sejam divergentes as exigências feitas nesta matéria pela lei reguladora da forma do contrato e pela lei reguladora do direito intelectual, haverá que determinar qual delas disciplina a situação sub judice. É o que ocorre, v.g., num contrato de licença de uma marca registada em Portugal celebrado entre uma empresa sedeada na Alemanha, que intervém como licenciante, e uma empresa sedeada em Portugal, beneficiária da licença: enquanto que o Direito alemão consagra nesta matéria o princípio da liberdade de forma, o Direito português exige para o mesmo efeito a observância da forma escrita. Para alguns autores, as normas sobre a forma dos contratos relativos à transmissão ou ao licenciamento da exploração de direitos de propriedade industrial sujeitos a registo não seriam reconduzíveis às regras de conflitos comuns sobre a forma 48 Cfr. Melville B. Nimmer/David Nimmer, Nimmer on Copyright, s.l., s.d., § 17.07. Cfr. os arts. L. 131-2 e L. 613-8 do Código da Propriedade Intelectual. 50 Cfr. os arts. 41.º, n.º 2, 43.º, n.º 2, e 44.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e 31.º, n.º 6, e 32.º, n.º 3, do Código da Propriedade Industrial. 49 22 dos contratos, atenta a circunstância de que a própria aquisição de tais direitos se encontra sujeita a registo e de que estão em jogo interesses do tráfico jurídico. Nesta matéria, aplicar-se-ia antes a lei reguladora do direito a que se refere o contrato51. Supomos, porém, que não há razão para afastar aqui liminarmente a aplicabilidade das regras de conflitos comuns52. Assim, sempre que a forma do acto não seja exigida em vista de qualquer interesse geral, mas tão-só a fim de tutelar o disponente contra a sua própria precipitação ou imprevidência, a norma que a estabelece será subsumível à regra de conflitos constante do art. 11.º do Regulamento de Roma I e será aplicável se pertencer a uma das leis aí designadas. É o caso, por exemplo, das prescrições de forma constantes dos arts. 41.º, 43.º e 44.º do Código português do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Se assim não fosse, quando o direito transmitido ou onerado houvesse de ser exercido em diversos países, onde o bem intelectual se destinasse a ser explorado, o acto de transmissão ou oneração teria de conformar-se, a fim de ser plenamente válido e eficaz, com as regras de forma vigentes em todos eles; o que dificultaria sobremaneira o tráfico jurídico sobre-fronteiras. Não pode todavia excluir-se que certas prescrições de forma da lex loci protectionis pretendam aplicar-se, atento o seu objecto e fins, sempre que o contrato se refira a um direito intelectual conferido por essa lei53. Ora, o Direito Internacional Privado vigente tende a atribuir primazia às normas da lei da substância do acto jurídico que imponham a observância de certa forma, ainda que o mesmo haja sido celebrado no estrangeiro54. Constitui expressão desta doutrina, em matéria de contratos que tenham por objecto direitos reais e de arrendamento de imóveis, o art. 11.º, n.º 5, do Regulamento de Roma I. 51 Cfr. Ulmer, Intellectual Property Rights and the Conflict of Laws, cit., pp. 88 ss.; FriedrichKarl Beier, «Das auf internationale Markenlizenzverträge anwendbare Recht», Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht Internationaler Teil, 1981, pp. 299 ss. (p. 306); Lima Pinheiro, «A lei aplicável aos direitos de propriedade intelectual», cit., p. 74, e Direito Internacional Privado, cit., vol. II, p. 289; e Fezer/Koos, in Staudingers Kommentar, Einführungsgesetz zum Bürgerliche Gesetzbuche/IPR. Internationales Wirtschaftsrecht, cit., pp. 462 s. 52 Neste sentido também James Fawcett/Paul Torremans, Intellectual Property and Private International Law, Oxford, 1998, p. 589. 53 Será esse o caso, segundo Pedro de Miguel Asensio, Contratos internacionales sobre propiedad industrial, cit., p. 173, do art. 74, n.º 2, da Lei de Patentes espanhola. 54 Cfr. Isabel de Magalhães Collaço, Da qualificação em Direito Internacional Privado, Lisboa, 1964, p. 292; António Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Coimbra, 2000, pp. 228 ss. 23 Aplicando esta doutrina à questão em apreço, diremos que, se o contrato de transmissão do direito ou de licenciamento de exploração se conformou com as exigências de forma da lei do lugar da celebração, mas não com as da lex loci protectionis, qualquer que seja o lugar da celebração, devem prevalecer estas últimas. O contrato deverá neste caso ser tido por inválido. Os problemas de delimitação entre o estatuto contratual e o do direito intelectual e de qualificação sob eles de situações concretas podem, em todo o caso, ser eficazmente prevenidos através da sujeição ao primeiro, por conexão acessória, de certas matérias, como a titularidade originária do direito, quando a criação intelectual ocorra em cumprimento de contrato de empreitada ou de trabalho55. Naturalmente que esses problemas não se colocam no que respeita aos contratos que tenham por objecto a transmissão de know-how. Dado que nestes casos não está em jogo o exercício de um direito de exclusivo, mas tão-só de uma posição fáctica tutelada pelas regras da concorrência desleal, o âmbito da lex contractus não é limitado pelo estatuto dos direitos intelectuais56. 9. Normas internacionalmente imperativas Há, em todo o caso, limites à aplicação da lei do contrato, quer esta tenha sido escolhida pelas partes ou não. Esses limites podem decorrer, desde logo, das normas internacionalmente imperativas, ou de aplicação imediata, de outros sistemas jurídicos, cuja eficácia se encontra disciplinada, pelo que respeita às obrigações contratuais, no art. 9.º do Regulamento de Roma I57. Observe-se que nem todas as normas imperativas cabem nesta categoria. Tratase apenas, consoante esclareceu o Tribunal de Justiça da União Europeia58, das «disposições nacionais cuja observância foi considerada crucial para a salvaguarda da organização política, económica, social ou económica do Estado-Membro em causa, a 55 Cfr. supra, n.º 6. Neste sentido, veja-se Pedro de Miguel Asensio, Contratos internacionales sobre propiedad industrial, cit., p. 188. 57 Cfr., sobre essa disposição, além dos estudos citados supra, na nota 3, Ivana Kunda, Internationally Mandatory Rules of a Third Country in European Contract Conflict of Laws. The Rome Convention and the Proposed Rome I Convention, Rijeka, 2007. 58 Cfr. o acórdão de 23 de Novembro de 1999, caso Arblade, Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1999-I, pp. 8453 ss. 56 24 ponto de impor o seu respeito a qualquer pessoa que se encontre no território nacional desse Estado-Membro ou a qualquer relação jurídica neste localizada». Foi esta noção que o art. 9.º, n.º 1, do Regulamento de Roma I acolheu, ao definir as normas em apreço como: «disposições cujo respeito é considerado fundamental por um país para a salvaguarda do interesse público, designadamente a sua organização política, social ou económica, ao ponto de exigir a sua aplicação em qualquer situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei aplicável ao contrato, por força do presente regulamento.» Uma definição análoga consta do art. 3:801 (2) dos Princípios CLIP. O problema da eficácia destas normas tende a ser resolvido de modo diverso consoante se trate de normas do Estado do foro ou de terceiros Estados. Refere-se às primeiras o n.º 2 do art. 9.º do Regulamento de Roma I. Por força deste preceito, o julgador deve aplicar as disposições em apreço pertencentes ao Direito do Estado do foro sempre que as mesmas regulem imperativamente o caso concreto, qualquer que seja a lei aplicável ao contrato nos termos daqueles instrumentos jurídicos. Outro tanto resulta do disposto no art. 3:801 (3) dos Princípios CLIP, segundo o qual: «Nada nestes Princípios restringirá a aplicação das normas imperativas derrogatórias da lei do foro.» A aplicabilidade imperativa destas disposições pode resultar de uma regra de conflitos unilateral que expressamente se lhes refira; e pode também ser inferida das finalidades, v.g. de política económica ou social, por elas prosseguidas. Às normas internacionalmente imperativas de ordenamentos jurídicos estrangeiros reporta-se o n.º 3 do art. 9.º do Regulamento, segundo o qual pode ser-lhes dada prevalência se pertencerem à lei do país em que as obrigações decorrentes do contrato devam ser ou tenham sido executadas e, por força delas, a execução do contrato for ilegal. O problema da eficácia dessas normas assume particular relevância na matéria de que nos ocupamos neste estudo. Entre outras razões, pela circunstância de, nos Estados partes do Regulamento de Bruxelas I, os tribunais poderem, com relativa frequência, ter de julgar litígios relativos 25 a contratos que tenham por objecto direitos de propriedade intelectual constituídos à sombra de um ordenamento jurídico estrangeiro, ou que devam ser executados num país estrangeiro, cujas normas internacionalmente imperativas reclamam aplicação ao caso, ainda que seja outra a lei aplicável ao contrato segundo as regras de conflitos do Regulamento de Roma I. Na base daquela regra do Regulamento de Roma I, haverá, designadamente, que reconhecer efeitos às normas de defesa da concorrência do Direito interno dos EstadosMembros da União Europeia, bem como de Direito Comunitário, que proscrevem os acordos entre empresas (ainda que sujeitos à lei de um terceiro país por força de uma electio iuris) pelos quais estas visem repartir mercados entre si59. Dessas normas poderá resultar, por exemplo, a invalidade de um contrato de edição que conceda ao editor o exclusivo da comercialização de uma obra literária no território de determinado país, obrigando-se esse sujeito a não exportar os exemplares da obra por si produzidos para o território de outro ou outros países, que o titular dos direitos reserva para si ou para outro editor60. Análoga eficácia deve ser reconhecida, v.g., às normas de Direito Internacional vigentes no país de execução de um contrato de licença de utilização de patentes, que cominem de nulidade as cláusulas nele contidas que imponham ao beneficiário da licença, no que toca à produção ou comercialização dos produtos patenteados, restrições que não resultem dos direitos conferidos pela patente nem sejam necessárias à preservação desses direitos61. Seria esse o caso, por exemplo, de uma proibição contratual da exportação de produtos fabricados ao abrigo da patente para certo ou certos Estados. A circunstância de o art. 9.º, n.º 3, do Regulamento de Roma I apenas prever, como referimos, a possibilidade de ser dada prevalência às normas internacionalmente 59 Haja vista ao art. 101.º, n.º 1, alínea c), do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia. No sentido da aplicabilidade a um contrato regido pelo Direito de um terceiro Estado das disposições imperativas de Direito da União Europeia tidas por «essenciais para a ordem jurídica comunitária» numa situação estreitamente conexa com a União, veja-se o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 9 de Novembro de 2000, caso Ingmar GB Ltd. c. Eaton Leonard Technologies Inc., Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça, 2000-I, pp. 9305 ss. 60 Ver, neste sentido, James Fawcett/Paul Torremans, Intellectual Property and Private International Law, cit., p. 583; Aurora Hernández Rodríguez, Los contratos de edición en el Derecho internacional privado español, Granada, 2002, pp. 158 ss.; Josef Drexl, «Which Law Protects Consumers and Competition in Conflict with Intellectual Property Rights?», in Jürgen Basedow/Josef Drexl/Annette Kur/Axel Metzger (orgs.), Intellectual Property in the Conflict of Laws, Tubinga, 2005, pp. 79 ss. (pp. 97 s.). 61 Veja-se, neste sentido, o art. 37, n.º 1, do anexo I ao Acordo de Bangui de 1977, que criou a Organização Africana da Propriedade Intelectual. 26 imperativas do país em que as obrigações decorrentes do contrato devam ser ou tenham sido executadas, e desde que por força delas a execução do contrato seja ilegal, levanta a questão de saber qual a eficácia a reconhecer às normas da mesma índole pertencentes a outras leis ou que tenham outro objecto. Estão neste caso, na Alemanha, os §§ 32 e 32a da Lei de Direito de Autor, que conferem ao autor o direito a uma «remuneração adequada» (angemessene Vergütung) e a uma «participação adicional» (weitere Beteiligung) nos lucros extraordinários da exploração da obra, bem como, se for caso disso, à modificação do contrato em ordem a assegurar aqueles direitos62. Segundo o § 32b da mesma lei, os referidos preceitos são imperativamente aplicáveis quando ao contrato de licença fosse aplicável o Direito alemão, na falta de escolha pelas partes da lei aplicável (ou seja, quando o beneficiário da licença tenha na Alemanha a sua administração central); e na medida em que constituam objecto do contrato licença actos de exploração compreendidos no âmbito espacial de aplicação da lei (ou seja, quando esses actos tenham lugar na Alemanha). Através desta regra de conflitos, o legislador alemão delimitou unilateralmente o âmbito de aplicação espacial das normas referidas, tendo em vista assegurar ao autor, nas situações internacionais, independentemente do estatuto contratual, a protecção que as mesmas lhe conferem. Tais normas podem, a esta luz, ser qualificadas como internacionalmente imperativas ou de aplicação imediata. Outro exemplo de disposições deste tipo é-nos dado pelas normas do Patent Act inglês de 1977 (revisto em 2004) que conferem ao trabalhador por conta de outrem o direito a uma compensação pelas invenções feitas in the course of his employment. Essas disposições são aplicáveis, qualquer que seja a lei reguladora do contrato, quando o trabalhador tenha sido «principalmente empregado» (mainly employed) no Reino Unido ou, não podendo ser determinado o lugar do emprego principal, quando o empregador ali possua um estabelecimento a que o trabalhador se encontre ligado63. Observe-se que, no nosso modo de ver, não obsta à qualificação destas normas como internacionalmente imperativas a circunstância de visarem em primeira linha proteger um interesse privado (o do autor, tido como a parte mais fraca do contrato). Pois estão também em causa nelas – como na generalidade das regras de Direito de 62 Ver Marcus von Welser, «Neue Eingriffsnormen im internationalen Urhebervertragsrecht», IPRax, 2002, pp. 364 ss.; Haimo Schack, «Internationally Mandatory Rules in Copyright Licensing Agreements», in Jürgen Basedow/Josef Drexl/Annette Kur/Axel Metzger (orgs.), Intellectual Property in the Conflict of Laws, Tubinga, 2005, pp. 107 ss.; e Silke Pütz, Parteiautonomie im internationalen Urhebervertragsrecht, Frankfurt a. M., etc., 2005, pp. 153 ss. 63 Cfr. Dicey, Morris & Collins on the Conflict of Laws, 14.ª ed., Londres, 2006, vol. 2, p. 1680. 27 Autor – interesses públicos, maxime o de promover a criatividade: o direito de autor, na medida em que proporciona ao seu titular uma remuneração do seu esforço ou investimento, constitui, como se sabe, um estímulo à produção de obras literárias, científicas e artísticas64. Pergunta-se, pois: serão estas normas aplicáveis nos restantes Estados-Membros do Regulamento de Roma I, apesar de não pertencerem à lei do país de execução do contrato e de não resultar delas a ilegalidade deste? Admite-o expressamente o art. 3:801 (1) dos Princípios CLIP, nos termos do qual: «Ao aplicar-se, ao abrigo destes Princípios, a lei de determinado país, poderão ser atribuídos efeitos às normas imperativas derrogatórias de outro país com o qual a situação possua uma conexão estreita. Ao ponderar-se a atribuição de efeitos a tais normas, ter-se-ão em conta a sua natureza e finalidade e as consequências da sua aplicação ou não aplicação.» Mais longe vão os Princípios ALI, que não estabelecem qualquer distinção, quanto à respectiva eficácia, entre as normas internacionalmente imperativas do Estado do foro e de terceiros Estados. Dispõe, com efeito, o § 323 desse texto: «O tribunal pode atribuir efeitos às normas imperativas de qualquer Estado com que o litígio tenha uma conexão estreita.» Faltando na ordem jurídica interna um preceito de Direito positivo que regule em termos gerais o reconhecimento de efeitos às normas internacionalmente imperativas de terceiros Estados, terá de se buscar uma solução para o problema nos princípios gerais do Direito Internacional Privado. Entre estes sobressaem a tutela da confiança nas situações plurilocalizadas e a harmonia internacional de julgados, que, conforme notámos noutro estudo, podem justificar o reconhecimento de tais efeitos65. Na decisão sobre o reconhecimento de efeitos às normas em apreço devem, outrossim, ser tidos em conta o respectivo objecto e fins e a existência de uma conexão suficientemente estreita entre a situação a regular e a ordem jurídica a que tais normas pertencem. 64 Cfr., sobre o ponto, o nosso estudo «O equilíbrio de interesses no Direito de Autor», em curso de publicação in Direito da Sociedade da Informação, vol. IX (2010). 65 Ver o nosso Da responsabilidade pré-contratual em Direito Internacional Privado, cit., pp. 648 ss. 28 Além disso, uma vez que tais normas constituem frequentemente instrumentos da política económica do Estado que as edita, não parece defensável o reconhecimento de eficácia às mesmas no Estado do foro se as finalidades por elas visadas forem contrárias a valores fundamentais tutelados pelo sistema jurídico local. Eis por que, a nosso ver, pode ser recusado o reconhecimento de tais efeitos, designadamente, às normas internacionalmente imperativas estrangeiras que neguem ao autor o direito à exploração económica da sua obra com fundamento na violação pelo mesmo de restrições impostas no país de origem da obra à liberdade de expressão ou ao comércio externo. Foi desta índole o problema que se suscitou no caso que, nos anos 70, opôs as editoras alemãs Müller e Luchterhand a respeito dos direitos de publicação do romance 14 de Agosto, de Alexander Solzhenitsyn66. Discutia-se, na espécie, a validade da cessão dos direitos de publicação desta obra, feita por aquele autor russo à Luchterhand por intermédio de um advogado suíço que o mesmo constituíra seu procurador. A cessão violava normas imperativas ao tempo vigentes na Rússia, que conferiam ao Estado o monopólio do comércio externo. Todavia, segundo o Tribunal Federal alemão, tais normas apenas produziriam efeitos no território do Estado de que emanavam, não sendo por conseguinte aplicáveis na Alemanha. Mais recentemente, coube ao Court of Appeal inglês julgar outro caso em que se suscitou a questão da aplicabilidade no Estado do foro de normas imperativas estrangeiras susceptíveis de privarem de efeitos uma transmissão contratual de direito de autor67. Em causa estava, na espécie, a titularidade dos direitos sobre certas obras musicais da autoria de compositores cubanos, que estes haviam cedido à demandante por contratos celebrados entre 1930 e 1945. Uma lei cubana de 1960 sujeitara à aprovação de um instituto público os contratos que tivessem por objecto a cessão de direitos sobre obras de cidadãos nacionais. Como os contratos celebrados pela demandante com os referidos compositores não foram submetidos a essa aprovação, a demandante ficara, por força da mesma lei, privada dos seus direitos sobre as mencionadas obras. Subsequentemente, a Editora Musical de Cuba, que se arrogava a titularidade do direito de autor sobre as referidas obras, concedeu à demandada uma licença exclusiva de exploração destas. O tribunal inglês recusou, no entanto, quaisquer 66 Cfr. Bundesgerichtshof, sentença de 16 de Abril de 1975, caso August Vierzehn, Entscheidungen des Bundesgerichtshofes in Zivilsachen 64, pp. 183 ss. 67 Cfr. Peer International Corporation v. Termidor Music Publishers Limited, Reports of Patent, Design, and Trade Mark Cases, 2004, pp. 23 ss. 29 efeitos à referida lei cubana, que considerou confiscatória, na medida em que privara a demandante dos seus direitos sem qualquer indemnização. Em consequência disso, declarou válidos os mencionados contratos. A eficácia das normas imperativas estrangeiras não decorre, pois, exclusivamente da sua «vontade de aplicação» ao caso singular. Observe-se, por último, que os efeitos a reconhecer às normas em questão tanto podem traduzir-se na sua aplicação propriamente dita como na mera tomada em consideração das situações jurídicas constituídas com base nelas enquanto elementos de facto a valorar à luz da lex contractus. 10. Reserva de ordem pública internacional Outro limite à aplicação da lei determinada nos termos das regras de conflitos acima examinadas deriva da reserva de ordem pública internacional do Estado do foro, consagrada, quanto a esta matéria, no art. 21.º do Regulamento de Roma I, no § 322 dos princípios ALI e no art. 3:802 dos Princípios CLIP. Por força destes preceitos, poderá ser afastada a aplicação de uma disposição da lei designada nos termos destes instrumentos jurídicos, se essa aplicação conduzir a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública do foro. Estariam neste caso, por exemplo, as disposições da lex contractus que permitissem ao editor fixar unilateralmente as remunerações devidas ao autor pelo que respeita às reimpressões ou às novas edições das suas obras literárias. Ainda assim, para que o afastamento das normas aplicáveis possa concretizar-se, é exigível a existência de uma conexão espacial com o Estado do foro (Inlandsbeziehung), consistente, por exemplo, na circunstância de o autor ser nacional desse Estado ou de a exploração da obra ter aí lugar. 30