Manifesto popular e acadêmico contra a redução da maioridade penal Das Arcadas do Largo São Francisco, do Território Livre da Velha e sempre Nova Academia de Direito de São Paulo, dirigimos, aos brasileiros e às brasileiras, este Manifesto popular e acadêmico contra a redução da maioridade penal, fruto do dever que temos, cientes e conscientes das mazelas de nossa democracia formal, de lutar pelos ideais que possam nos levar, um dia, a uma democracia real e verdadeiramente igualitária. Dito isso, não recuaremos um passo sequer. Nem mesmo quando a disputa pelo poder político coloca em risco o processo civilizatório, que demarcou a idade de 18 anos completos como requisito mínimo para o exercício da violência estatal por meio do sistema de justiça criminal. Sustentamos, hoje aqui reunidos sem qualquer sectarismo, uma luta em prol da Liberdade. À luz e à sombra dessas Arcadas, reconhecemos que as cortes, as faculdades e as tribunas são parte inseparável do povo e precisam, por isso, somar forças na luta contra o Direito Penal do terror. Reconhecemos, ainda, nossa posição privilegiada na estrutura social em relação às vítimas diárias de nosso sistema penal, o povo pobre, jovem, preto, preso. Enquanto somos titulares de direitos e de prerrogativas, a eles restam deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho de coerção do Estado, sem que contem com nenhuma condição de exercer seus direitos fundamentais declarados. A vulnerabilidade frente ao sistema penal, claramente, não se distribui de forma similar, orientando-se este a recolher os que engrossam as fileiras de setores mais marginalizados e humildes da sociedade. Não há justiça, nem igualdade. Seu desempenho, claramente antidemocrático, promove não a proteção dos direitos humanos, mas sim, a degradação e a estigmatização de vulneráveis que lhe são específicas. É, portanto, a luta incessante pela concretização dos direitos fundamentais que nos compele a condenar radicalmente qualquer tentativa de dissolver a garantia de inimputabilidade dos menores de dezoito anos, cláusula pétrea da nossa Constituição, evitando com isso o recrudescimento punitivista alheio à brutal realidade penitenciária brasileira e ao caráter intrinsecamente opressor de nosso sistema penal, e que ignora as implicações que qualquer mudança na lei criminal tem sobre a construção da já parca cidadania dos jovens brasileiros, especialmente, a juventude pobre e negra. Negamos, assim, qualquer tipo de demagogia que, sob a premissa de garrotear a liberdade, descumpra a Constituição em seus preceitos mais básicos e fundamentais - ainda que, mesmo que “protegidos”, estes sejam descumpridos todos os dias. Coexistimos em uma sociedade desigual, sem casa, comida, educação e liberdade para todos. Nela, é preciso lutar para viver. Em certos casos, lutar para não morrer. Clama tal projeto por mais segurança, e nós perguntamos: para quem? Considera esse projeto que a juventude da Nação, carente até mesmo de alfabetização digna e de condições mínimas de realização de suas vocações, seja livremente capaz de escolher entre uma chamada “vida de crimes” e o exercício exemplar da cidadania. A essa juventude, entretanto, não resta cidadania. É esse um projeto incrível em seu absurdo existencial. Citam seus autores com ignorante audácia nosso irmão Ruy Barbosa, dizendo que “é melhor educar a criança de hoje do que punir o adulto de amanhã”. Não imaginamos mais fria analogia que aquela que entende que punir é educar. Punir com a reclusão, sem projeto pedagógico, sem estrutura. Um projeto que quer erradicar a violência combatendo os efeitos, ao invés das causas. Mais, um projeto que não combate efeitos, visto que o maior rigor punitivo de nada tem a ver com a redução dos índices de violência. Para nós, esse projeto é nada mais que a expressão de um desejo de vingança social que tem como alvos jovens que, na mais tenra idade, já interiorizaram a agressão de um Estado ausente em suas obrigações sociais, mas presente através dos mecanismos de repressão. Nossas vozes dirão a esse projeto que ele não passará. Tomar como resposta a penalização desses jovens é admitir e aceitar de forma resignada que o Estado falhou em seu dever e que nossa Democracia não serve a todos. Nós nos recusamos a desistir da Democracia. Nós nos recusamos a esquecer de que esses jovens têm direitos e que é o Dever-Maior da Nação protegê-los da privação, da violência e da destruição do potencial oprimido dentro de si. Não aceitaremos jamais a condição de se impor deveres sem antes permitir o exercício de direitos. Consideramos ilegítimos os legisladores que usam de seu poder para privar seus iguais - ou não tão iguais - do amparo que lhes é devido. São esses os mesmos que fecham os olhos para as violações de direitos humanos por toda a Nação, ignorando as mortes de inocentes enquanto exercem cargos de representantes do povo. Ilegítimo é o legislar banhado no sangue dos seus. Não aceitaremos o encarceramento da juventude brasileira. Não compactuaremos com a condenação dos jovens à pena de desumanização, implicação indelével à vida de qualquer um que cumpra pena no sistema carcerário brasileiro. Não permitiremos que se exponham esses jovens a abusos físicos, sexuais, psicológicos e morais, tanto por parte de companheiros de cela como por parte das autoridades. O Projeto da PEC 171 tem propósitos claros: a manutenção da segregação econômica, a negação de nossos graves problemas sociais e a preservação de estruturas conservadoras através da desmesurada violência estatal. A nós nos repugna tão vil tentativa de se legitimar o genocídio da juventude, especialmente a negra, a perseguição à população pobre e a violência de instituições de essência inegavelmente antidemocrática contra os cidadãos. Faz-se evidente que o que entrega a juventude à violência é o descumprimento do respeito a valores soberanos, expressos em nossa Constituição, como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do direito de viver livre de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. É por esses valores que queremos que se orientem nossas instituições e as leis que as regem, pois somente assim conseguiremos dar condições para a autorrealização plena das crianças e dos adolescentes. Não queremos nada além. É nosso dever lutar pela Liberdade da juventude, ecoando na noite de hoje o libelo da Carta aos Brasileiros, cuja memória é fundamental sempre que as conquistas democráticas estiverem em perigo. Cabe à consciência jurídica cobrar isso do Brasil, junto ao seu povo, em um só clamor: NÃO à redução da maioridade penal!