Entre "índio", "caboclo-brabo" e "doido": pensando identidade e estigma no cotidiano de um município Carolina Barbosa de Albuquerque1 Resumo Este trabalho tem por objetivo discutir algumas categorias como sangue, raça e honra que estão presentes e são em alguma maneira constituintes nas relações entre as comunidades Caboclos, e o Centro, partes do município de Barra de Santana - PB. Utilizadas no cotidiano como atribuições e classificadores para interações, operam enquanto construtores de unidades e distinções nas classificações sociais, produzindo e reforçando hierarquias e separações em certas circunstâncias sociais da referida localidade. Este cenário ajuda a constituir, no dia a dia, identidades diferenciadas destas díspares comunidades, ao atribuir e serem atribuídas categorias que distinguem e valoram pertencimentos e características sociais. Palavras-chave: Classificação social; Estigma; Identidade e Diferença. “Às vezes não tenho tanta certeza de quem tem o direito de dizer quando uma pessoa está louca e quando não. Às vezes penso que nenhum de nós é totalmente louco e que nenhum de nós é totalmente são até que nosso equilíbrio diga ele é desse jeito. É como se não importasse o que o sujeito faz, mas a forma como a maioria das pessoas o vê quando ele faz”. (William Faulkner. Enquanto eu agonizo. São Paulo, Mandarim, 2001, tradução de Wladir Dupont). “Caboclos, faz muito tempo que o povo diz que é terra de doido” ( Morador de Barra de Santana). O objetivo deste trabalho é apresentar um campo etnográfico, realizado no município de Barra de Santana2 no estado da Paraíba, para a reflexão de como as categorias sangue, honra e raça, contribuem na construção de identidade e diferença, logo destaco que cabe aqui menos definir de modo apriorístico o que seja o significado de cada termo e mais buscar compreender a complexidade das categorias em práticas, nos jogos de retórica e situações sociais (CAPRANZANO, 2002; VIANNA, 2013). Uma análise mais precisa necessitaria de observações mais sistemáticas; aqui, procuro apenas explorar algumas possibilidades para refletir certas constatações etnográficas, desse modo me apoio na literatura que possibilite fazer um deslocamento de ponto de vista. Feita esta consideração sobre o interesse que orienta este trabalho, acredito ser necessário acrescentar como esta pesquisa vem se constituindo. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. 2 Barra de Santana está localizada na microrregião do Cariri Oriental, em um espaço geograficamente marcado pelo polígono da seca. O município é cortado pelo Rio Paraíba, e está a 189 quilômetros da capital João Pesso a. Sua população em 2011 foi estimada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 8.198 habitantes, distribuídos em 369 km² de área (Fonte: IBGE). Iguais, mas diferentes: o início de uma pesquisa Passeando por uma pequena cidade do interior da Paraíba, escuto pessoas conversando e chamando, de maneira jocosa, a outras, de “doido”, “caboclo-brabo” e “índio”. O comentário corriqueiro, com o correr dos dias, das visitas e das leituras feitas no curso de ciências sociais, repercutiu em minha percepção e atenção da recorrência de tal tratamento naquela localidade. Neste cenário, de aparente unidade e homogeneidade, chamava a atenção para as diferenças de tratamento, para as classificações locais e as formas de construção das identidades naquele lugar3. Assim de meu primeiro olhar, que indicava uma cidade homogênea foi aos poucos sendo adensado pelas percepções de estar diante de um fenômeno que indicava regularidade, enunciações sobre identidade e diferença e heterogeneidade sobre os grupos que lá vivem. Ao mesmo tempo apontando para os processos de construção simbólica de identidades culturais distintas em lugares situados na mesma região que compartilham adaptações ecológicas semelhantes (WOLF, 2002), caso, do povoado de Caboclos, em contraste com a sede do município, chamada de o Centro, todos localizados no município de Barra de Santana4. Dessa forma, como trata Pierre Bourdieu (1989) as perspectivas que tomam regiões e classificações como “naturais” não podem ser sustentadas como critérios analíticos, mesmo quando as marcas de identificação se referem a certas condições do ambiente físico (BARTH, 2000) como o “doido de Caboclos”, elas sinalizam modos de classificar e significar realizados pelos grupos que lá se relacionam. Logo, “a realidade neste caso é social de parte a parte e as classificações mais 'naturais' apoiam-se em características que nada tem de natural e que são, [...] produto de uma imposição arbitrária, de um estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima” (BOURDIEU, 1989: 114-115). Vale salientar que as marcas que um grupo social assume ou é apenas classificado por outros grupos, “não são sempre as mesmas, mas vão sendo criadas segundo as novas conjunturas que assume o jogo das relações intergrupais” (VIERTLER, 2006). Portanto, o fato de os indivíduos de Caboclos serem classificados por “caboclo brabo”, “índios”, “doido” não nos permite a falar que eles sempre foram categorizados desse modo. Portanto, ao que parece, a afirmação da identidade das pessoas de Caboclos são historicamente específicas (HALL & WOODWARD, 2000). Uma vez 3 Barra de Santana é a cidade natal da minha família materna e paterna. Nunca morei em Barra de Santana. Mas, este é um lugar que frequento em alguns momentos da minha vida de forma mais vivida. 4 Esta pesquisa faz parte de um projeto maior, pois envolve outro povoado de Barra de Santana, Serra de Inácio Pereira, também marcado com um olhar estigmatizante. que a partir de fontes orais nem sempre eles mantiveram algum contato como atualmente. Assim, a identidade marca o encontro de um passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais as pessoas vivem no presente (HALL & WOODWARD, 2000; FOOTEWHYTE, 2005). Pois, se os indivíduos de Caboclos são classificados como desviados atualmente (BECKER, 1977), é algo que foi produzido por meio de uma linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais eles são representados. Esta marcação da diferença que a comunidade 5 do Centro insiste em colocar com relação a Caboclos, é sustentada pela exclusão, pois se você é do Centro não é “doido”, e vice-versa (HALL & WOODWARD, 2000). Estas práticas de classificação produzem significados, salientam e reforçam relações de poder; inclusive de nomear quem é incluído e quem é excluído de tais grupos. Dessa forma, a cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, dentre as várias identidades possíveis. Assim, somos constrangidos, não apenas pela gama de possibilidades que a cultura oferece, isto é, pela variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações sociais (BARTH, 2000: 111). Ao que parece o que está presente no espaço do município de Barra de Santana são práticas que acabam tecendo as condições determinantes da vida social (BOURDIEU, 1989; CERTEAU, 2002). Logo, “o espaço assim tratado e alterado pelas práticas se transforma em singularidades aumentadas e em ilhotas separadas” (CERTEAU, 2002: 181). Ou seja, em vez de encontrar um espaço geográfico coerente e totalizador – era esta a impressão inicial que eu tinha de Barra de Santana, percebemos uma região que expressa marcas por diferenças. Sinalizadas nas conversas, Caboclos, era assim percebido pelos habitantes da sede do município como exóticos 6, logo “não seria, portanto possível reduzi-los ao seu traçado gráfico” (CERTEAU, 2002: 179). Pois, a não homogeneidade cultural parece ser fruto de relações históricas e diferenças cumulativas, assim, “o que faz a região não é o espaço, mas sim o tempo, a história” (BOURDIEU, 1989: 115). Portanto, resolvi pesquisar sobre como essas diferenças são colocadas, construídas entre estas comunidades, 5 A categoria comunidade, utilizada em alguns momentos pelos atores pesquisados, tal como sitio é aqui pensada nos termos mais abertos de Max Weber ou mesmo na definição presente no trabalho de Max Gluckman (1987) também pode nos ajudar a refletir a pesquisa no município de Barra de Santana, uma vez que o autor não trabalha o conceito de comunidade em limites espaciais bem delimitados, mas a partir da partilha de determinados padrões de interação no comportamento cotidiano dos indivíduos uns para com os outros (GLUCKMAN, 1987: 9). Além de refletirmos a partir do conceito de comunidade abordado por Weber e Gluckman, o uso do termo comunidade também se inspirou e muito, no uso proposto por Benedict Anderson em seu livro Comunidades Imaginadas (2008). Onde este um exercício mais atributivo e imaginativo para a construção de marcas identidades comunitárias, já que Anderson define que “uma comunidade política imaginada — é imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.” (ANDERSON, 2008: 33). O autor anota que ela é imaginada “por sustentar um enorme vínculo entre os seus membros”. (ANDERSON, 2008: 33). 6 Pessoas de municípios vizinhos tem a mesma visão. procurando transformar estes temas em objeto de pesquisa. Em vez de seguir e reforçar um determinado estereótipo me propus à tarefa de utilizar esse discurso estigmatizado como um instrumento que nos permita perceber como se constrói identidade e diferença, estigma e grupos pertencentes à comunidade (GOFFMAN, 1975; BECKER, 2008; MARQUES, 2002). * ** “O tema por mim abordado não busca a verdade do ser, nem verificar se os fatos são reais, mas em que consiste a política de sua interpretação e representação”. (MICHAEL TAUSSIG, 1993:20) Produzindo identidade e diferença: alguns códigos de convívio A primeira vez que fui a Caboclos, para dar início a pesquisa, seus moradores apresentaram “o povoado” como sendo um lugar composto por uma única família, “olhe minha filha, aqui é todo mundo, uma família só!”. Esta é uma maneira de ver a comunidade, uma forma contextual de falar sobre Caboclos e portanto deve ser levado em consideração, pois nos traz uma dimensão da vida social do local, visão que não se limita a fala dos seus moradores, mas que também é ressaltada nas palavras de pessoas externas que quando sabem que estou fazendo pesquisa na comunidade, proferem: “lá é um povoado pequeno no formato de um círculo, lá só tem uma família”. Assim, a situação familiar desde o princípio é um ponto que me ajuda a compreender a construção da identidade de Caboclos, porém me prendia a noção de perceber diferenças apenas quando a tomava em relação com os indivíduos de outros lugarejos do município, como por exemplo, o Centro, sede de Barra de Santana. É importante alertar que não estamos lidando com diferenças de regiões em si, “e sim com modos de articulação e separação entre práticas” (VIANNA, 2013:17). Assim, estamos diante de uma “confecção de imagens de trânsito entre as supostas fronteiras, de modo que passa a ser difícil não percebê-las como extremamente móveis e dinâmicas” (VIANNA, 2013:17). Sangue, raça e honra foram categorias bastante enunciadas pelos moradores de Caboclos que condizem a delinear distinções, diferenças e desigualdades no momento que eu estava no campo, logo são termos utilizados por eles em conversas casuais (cotidiano), indicadas quando eu perguntava sobre a história da família, mas também pronunciadas por indivíduos não residentes do povoado. Dessa maneira, reflito estas categorias em algum momento de modo externo, pensando na relação contrastante entre Caboclos e o Centro – não deixando de considerar o olhar de outros atores sociais que não moram nas localidades referidas, e interno, a partir das relações familiares dentro da comunidade. Dessa maneira, indico está confrontada com “linhas fronteiriças que ora são reforçadas como se estáveis e nítidas fossem, ora são diluídas” (VIANNA, 2013: 19). Ou seja, a identidade aqui é pensada como relacional e situacional (BARTH, 2011). “O sangue fala mais alto” Abreu de Ovídio Filho (1980) explana que o “sangue enquanto categoria integra o elemento natural – a substância que corre nas veias – num contexto de significados, transformando-o em categoria de pensamento que, articulada com outras, organiza uma forma de percepção social” (ABREU FILHO, 1980: 170). Para Camposeri (1995), “o sangue que ferve, que desliza, que flui, torna-se símbolo e emblema da vida. Este líquido também pode ser atrelado a outros significados associado à doença, à deficiência, à fragilidade” (CAMPOSERI, 1995 apud GAMA, 2009). Portanto, o sangue pode ser significado por distintas visões, simbolizando de maneira positiva e/ou negativa, demonstrando assim o dinamismo de sua simbologia (DUARTE, 1986; MARQUES, 2002; GAMA, 2009; PEREIRA, 2008; REESINK, 2011). Acredito que o trabalho desses autores permite ampliar a análise para compreendermos como em algumas sociedades, neste caso como na realidade social de Caboclos, o sangue é definido como um vetor, um transmissor de qualidades físicas-morais hierarquizantes (DUARTE, 1986; ABREU FILHO, 1980; FONSECA, 2006; REESINK, 2011). Desse modo, esta concepção do sangue indica ser construída a partir das relações de parentesco, entretanto, essas relações asseguradas pelo sangue enquanto vetor de qualidades físicas e morais nos permite dizer que não são as relações em si que são substancializadas, mas a moral, o caráter. Pois sangue não representa simplesmente uma substância formadora do corpo, “ele também forma o caráter, recobrindo a moral. Através do sangue uma moral é transmitida e perpetuada de modo que um indivíduo tem sempre algo do outro, que em algum nível se explica por uma relação com o outro” (ABREU FILHO, 1980: 172). Desta forma, um mesmo sangue permite que se estabeleçam fronteiras que demarcam diferenças entre famílias. Observamos então uma classificação, entre os moradores de Caboclos, que distingue famílias por características próprias, o caso da família do “véi Arnaldo”: “é família de sangue ruim, gente sem juízo, gente ignorante, família sem confiança”. Neste sentido, podemos encontrar aqui a ideia de puxar características de parentes, “fulano puxou ao avô, o velho Arnaldo”. Logo, o emprego do verbo no passado “fulano puxou ao avô, o velho Arnaldo” “indica algo definitivo: o indivíduo não se forma a si próprio, é antes um produto de forças que podem ser detectadas no seu passado familiar e que reaparecem no seu sangue” (ABREU FILHO, 1980: 173). Ou seja, parece haver um raciocínio em que as ações dessas pessoas se constitui não pela “liberdade de escolha”, mas por uma força determinante que advém do sangue que circula nas veias. Esta noção também pode ser evidenciada a partir de uma conversa que tive com a moradora Marlene, que é parente (bisneta) do “velho Arnaldo”, segue o trecho abaixo. Pesquisadora: Dona Marlene me fale sobre a história da sua família? Dona Marlene: Eu sou parente de caboclo-brabo, a minha bisavó era índia, foi pegada a dente de cachorro7, era criada como se fosse animal, eles eram selvagens, é como você pegar um animal na selva e você domesticou, traz ele para o convívio né? […] eu sou da família dos toco. Sobrinho de Dona Marlene: Toco é porque é considerada braba, é um povo ignorante. Dona Marlene: É todo mundo ignorante! Filho de Dona Marlene: família de doido, eu sou! Dona Marlene: Meu pai era muito ignorante, eu sou ignorante. Sobrinho de Dona Marlene: E a nova geração é ignorante! Por isso é todo mundo assim, é tudo doido! Dona Marlene: e a nova geração até agora continua ignorante. Parece que já vem da genética, do sangue, vem tanta genética minha filha. Pesquisadora: Como é que vocês sabem que é da genética? Dona Marlene: Porque a gente sabe. A partir da conversa com Dona Marlene, podemos refletir que o sangue pode ser compreendido relacionado a uma lógica de hereditariedade, ou como chama Andréa Loyola de “predisposição” (LOYOLA, 1977 apud DUARTE, 1986:204). Cabe chamar atenção para o fato de que antes de mais nada esse diálogo com Dona Marlene nos faz refletir como mãe, filho e sobrinho assumem uma predisposição de serem “ignorantes”, “doidos” a partir dos laços genéticos, como fala Dona Marlene: “[…]. Parece que já vem da genética, do sangue, vem tanta genética minha filha”, portanto, percebemos uma predisposição que passa de um plano para outro, em outras palavras, “como passar do individual para o familiar, do familiar para o individual, do corpo para a moral e da moral para o físico” (ABREU FILHO, 1980: 173). Contudo, podemos perceber que não são apenas os que não possuem um parentesco com o 7 Segundo João Pacheco de Oliveira (1999) há um mito da avó índia caçada a laço ou a dente de cachorro, concepção presente na Amazônia e no Nordeste como também no interior paulista ou catarinense. Ele nos diz que a proximidade genealógica dos índios às famílias brasileiras – sempre pela linha materna, realça o caráter ambíguo da exclusão e levanta questões interessantes sobre o laço entre o “senso comum”, o pensamento social e a política indigenista ao longo dos últimos dois séculos (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 196). “véi Arnaldo” que classifica-os de forma negativa, os indivíduos do grupo de parentesco que descendem do “véi Arnaldo” se auto classificam do mesmo modo pejorativo. “O sangue puxa”, me dizem simplesmente, afirmando o que indica constituir, para este grupo, um valor fundamental8. Observamos, então, que o sangue está estreitamente ligado com uma série de valores, qualidades morais e enquanto elemento submerso numa lógica da hereditariedade/predisposições que sinaliza demarcações familiares hierárquicas, entre aqueles de “sangue ruim”, e os que não tem o sangue ruim. Ou seja, podemos refletir a princípio que esta classificação social, “sangue ruim”, refere um status social à genealogia. Neste sentido, a hierarquia social parece está baseada em linhas de descendência, embora os moradores de Caboclos atribuam a uma transmissão do sangue (MARQUES, 2002; STOLCKE, 2006). No entanto, podemos vislumbrar que do mesmo modo que o sangue demarca diferenças internas na comunidade, ele possibilita um processo de diferenciação identitária entre os moradores de Caboclos e os do Centro. Algumas vezes vi, no Centro, moradores de Caboclos expressarem “meto a faca e bebo o sangue, esqueceu que sou da família dos Arnaldos”. Ou seja, a representação de algum familiar, neste caso ser parente do “velho Arnaldo”, indica retraçar um pertencimento ao mesmo tempo consanguíneo e local. E como nos fala Luíz Duarte (1986), se for um pertencimento que passa ao longo de mais de duas gerações. Essa identidade não remete apenas a uma afirmação de diferença das famílias, mas também da sua relação com a identidade local (DUARTE, 1986: 203). Ou como retrata Edwin Reesink, podemos “apontar o sangue como operador de identidades sociais” (REESINK, 2011: 263). Neste contexto situacional podemos perceber um núcleo de identidade ser acionado – representado como família do “véi Arnaldo”, e que se apresenta como uma evidente representação interna/externa, traduzida “como moeda corrente para os mapas de relações ali articulados. Essas representações, enfim, constituem o pano de fundo para que se observe a diferenciação pela qualidade do sangue” (DUARTE, 1986: 2014). Logo, esse sangue herdado nos indica ser um elemento que exprime pertencimento à família, o que ele carrega porém, é toda uma herança moral dessa família9. Expressões como “é porque é do mesmo sangue”, “puxou ao”, “sou da família do 8 É importante salientar, que não é apenas pelo sangue que eles respondem as maneiras de ser “doido”, “ignorante”, falam que “pode ser bruxaria”, “o espírito de comadre florzinha incorporou”, “como se fosse uma obra malígna”. Ou seja, há também uma explicação sobrenatural. 9 É interessante saber que alguns pesquisadores citam exemplos como o dos Piró da Amazônia, em que o vínculo de parentesco é constituído no ato de alimentar a criança. Do ponto de vista dos Piró, é a memória do processo alimentício que informa a definição de vínculos. Nesse contexto, a informação sobre origens fisiológicas traz um conhecimento de interesse secundário. Não é essa a informação que vai informar a percepção do indivíduo sobre seu lugar no mundo, “velho Arnaldo”, “isso é culpa da família dos Arnaldos”, podem certamente referir-se a associações morais. E a este pressuposto podemos associar como nos fala Abreu Filho que, o nome de família define socialmente uma pessoa. Se o sangue explica o físico e a moral de uma pessoa, a noção de nome de família permite a tradução desta operação para o domínio das posições sociais. Compõe-se assim um código de leitura possível e significativa (ABREU FILHO, 1980; DUARTE, 1986; FONSECA, 1995). Podemos observar a complexidade de que se reveste a categoria sangue10 nesta formação cultural (DUARTE, 1986, 201). O sangue também aparece como uma categoria que representa um tipo de controle sobre a mulher11. É comum escutarmos das mulheres de Caboclos que os seus maridos ou pais falam que, se elas cometerem alguma violação da regra – como, “andar só com o namorado”, “ser mulher antes de casar”, “trair o marido”, “deixar o marido” – “ eu bebo o seu sangue”, nas entrelinhas, a vida delas estão comprometidas com um derramamento de sangue, ou seja, com a morte12. Diante desta situação nos deparamos com uma “questão de honra” ou “questão de heresia”, como abertamente expressam. Logo, há aqui uma simbolização da honra no sangue (BAROJA, 1971). “Questão de honra” Segundo Carla Teixeira (1999) quando analisamos princípios e mecanismos de honra e desonra estamos, em verdade, observando como determinados grupos ou círculos sociais avaliam o grau de adequação do comportamento de seus membros aos valores e normas estabelecidas. Logo, olhar para o comportamento em Caboclos parece passível de uma reflexão que incorpore, ao mesmo tempo, o conjunto dos padrões de interação verbal, associado ao conjunto dos valores e representações sociais, tal pressuposto se traduz na expressão pronunciada por homens, “eu bebo seu sangue”, caso as mulheres transgridam alguma regra. Portanto, parece que existe em Caboclos uma “ideologia de gênero que atribui aos homens o direito e a responsabilidade de controlar os corpos e a sexualidade de suas mulheres” (STOLKE, 2006: 30). Ou seja, a sexualidade feminina em Caboclos se apresenta sob as circunstâncias de encarregar as mulheres o papel crucial de honrarem sobre as relações que serão mais significativas para sua identidade (PETER GOW apud FONSECA, 2004: 29). 10 Segundo Duarte (1986) “é na verdade bastante difícil a análise de categorias desse tipo, que à semelhança do mana, talvez sejam antes, como diz Mauss, “as ideias dessas ideias”, do que uma categoria 'racionalmente' quadriculável. É, porém possível e necessário construir os limites de sua mediação, o modo como oferecem ao pensamento recursos de organização e operação de mundo” (DUARTE, 1986, 201). 11 Não sei se é algo restrito a família do “velho Arnaldo”. 12 Ouvi várias histórias sobre homicídio envolvendo a quebra dessas regras. o seu pai e marido. Logo, não podemos deixar de levar em consideração que a noção de honra envolve e desenvolve relações de poder (TEXEIRA, 1999; FONSECA, 2004), pois ao pai ou marido enunciarem a uma mulher, “eu bebo seu sangue”, cogito que “não se trata de ciúme, mas de poder e autoridade” (WIKAN, 2010: 32). Assim, “isso tem a ver com os direitos da coletividade sobre o indivíduo e o dever do indivíduo de sujeitar-se. Tem a ver com estruturas e sistemas, categorias sociais de pessoas doutrinadas a acreditar que elas existem para servir e satisfazer o sistema” (WIKAN, 2010:32).13 Portanto, em Caboclos a honra torna-se uma questão de sobrevivência para as mulheres, pois a honra de seu pai e marido depende dela (WIKAN, 2010). Parece haver um código de honra em Caboclos em que a moralidade sexual das mulheres aparecem como o valor maior (STOLCKE, 2006). Pois, através de suas ações ou comportamentos, os homens podem ter a sua honra maculada, ou perdida. Diante disso tudo, podemos acrescentar que a honra tem também um aspecto coletivo: ela pertence a família (WIKAN, 2010), como podemos perceber na história que muitos moradores de Caboclos me falaram, mas vou transcrever nas palavras de dona Marlene: “Hoje em dia, no tempo de hoje, acham que ser virgem é a maior caretice do mundo, a gente vê na televisão como se fosse besteira, mas não é, é questão de honra! […] teve um parente meu, só ele mesmo que sabe! Matou a sogra, matou a filha, matou a esposa e se matou, só não matou um filho que não estava aqui”. Portanto, no instante em que a filha do parente de dona Marlene soube que a filha “tinha deixado de ser moça”, o que para o pai houve uma clara transgressão da regra, ele considerou que a sua honra, a honra da família tinha sido perdida14. Portanto, é interessante observar como em Caboclos a honra parece está firmemente vinculada a um comportamento decente das mulheres. Neste caso, os homens surgem como guardiães da moral/honra das mulheres da família, logo, eles exercem esse papel por meio do controle estrito da sexualidade das mulheres. (STOLCKE, 2006; FONSECA, 2004; WIKAN, 2010). Logo, A honra é um prisma cultural (diz que ela é sua maneira de ver, e não o que se vê) é um par de óculos, vendo através das lentes, você enxerga circunstâncias específicas nas quais a honra é mais importante para você do que a vida de sua filha ou de sua irmã ou esposa. Esse é um modo de estar no mundo que tem 13 Acredito ser relevante destacar que não quero criar a impressão de que todas as pessoas pertencentes à comunidade Caboclos reagirão de uma maneira específica. 14 Podemos refletir que o homicidio de honra não é uma saída cômoda (18). uma lógica interna própria (WIKAN, 2010: 118).15 Seguindo este raciocínio, podemos refletir que há um tipo de racionalidade em Caboclos que faz distinguir esse povoado das demais localidades. É comum as pessoas do município falarem que eles tem “as suas próprias leis”, “vivem num tempo incomum”, “não procuram uma delegacia, resolvem com as suas mãos”. Esses comentários são geralmente ressaltados num tom de gozação quando me contam sobre os homicídios no povoado de Caboclos. Neste sentido, poderíamos ponderar que a honra em Caboclos passa a “perna na lei”, pois “o Estado não tem condições de intervir e é mais propenso a ser um obstáculo ou inimigo. O grupo ao qual você pertence – sua família – tem de demonstrar força para defender a sua própria honra e tomar conta dos interesses dos seus membros” (WIKAN, 2010: 89). Então, podemos sugerir que a honra aqui pode figurar “como elemento simbólico chave que, ao mesmo tempo, regula o comportamento e define a identidade dos membros do grupo” (FONSECA, 2004: 39). Ou seja, há para eles uma diferença de comportamento que é acionada para delimitar uma fronteira entre eles (BARTH, 2000; WEBER, 1998). A pertença a uma comunidade se constitui, enquanto, um tipo particular de grau social que se alimenta de características distintivas e de oposições de estilos de vida, utilizadas para avaliar a honra e o prestígio segundo um sistema de divisões sociais verticais (WEBER apud POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998, p. 38). Portanto, aos indivíduos de Caboclos por serem vistos como pessoas que tem um comportamento que diverge daqueles que enunciam (WIKAN, 2010) é uma característica distintiva que contribui na formação dessas comunidades, como também implica conhecermos a identidade por meio desse processo dialético entre a “separação”, de quem é doido e aquele que não é doido a “reintegração” ao grupo dos ditos civilizados – a honra aqui tem uma aura primitiva (WIKAN, 2010: 222), diante das classificações dos habitantes do Centro, por exemplo. A questão não é, portanto, delimitar uma comunidade pensada estritamente em termos culturais, mas refletir a maneira como tais tipos organizacionais são socialmente construídos e mantidos pelas fronteiras sociais (BARTH, 2000)16. Já podemos perceber aqui sinais de que a fronteira constitui-se pela presença fundadora de diferentes perspectivas de perceber e organizar a diferença social entre Caboclos e as demais localidades do município, o que não exclui, por sua vez, uma leitura múltipla dos mesmos critérios 15 Wikan (2010), ao expressar tal pensamento nos chama atenção para não acreditarmos que ela vê o comportamento apenas como sendo produto da cultura, mas sim, como consequência da participação ativa das pessoas. 16 É importante frisar que abordo o conceito de honra para refletir um código de honra em Caboclos, e outro que é elegido como aquele que difere comportamentos identitários, contudo, ao falar dessa segunda condição não quero delimitar a diferença da noção de honra apenas no sentido do código de honra de Caboclos, mas que surge como um tipo de reação a um determinado valor de honra. e características demarcadores da fronteira (BARRETO FILHO, 1999). Logo, referir a Caboclos como “lugar de gente doida”, como fala dona Catarina que é uma noção que o povo de Alcantil 17 também têm, diz respeito às informações estereotipadas e depreciativas transmitidas nessa relação de reconhecimento que configura as identidades. Pois como diz Pierre Bourdieu, A capacidade de fazer existir em estado explícito, de publicar, de tornar público, quer dizer objectivado, visível, dizível, e até mesmo oficial […] representa um considerável poder social, o de constituir os grupos, constituindo o senso comum, o consenso explícito, de qualquer grupo. De facto, este trabalho de categorização, quer dizer de explicitação e de classificação, faz-se sem interrupção, a cada momento da existência corrente, a propósito das lutas simbólicas que opõem os agentes acerca do mundo social, da sua identidade social, por meio de todas as formas de bem dizer e do mal dizer, da maledicência, elogios, insultos, censuras, críticas acusações, calúnias (BOURDIEU, 1989: 142). Desse modo, proferir acusações, maldizer publicamente, é também um tipo representação e classificação social; “oficializado na manifestação, ato tipicamente mágico através do qual o grupo […] negado, reprimido, torna-se visível, manifesto, tanto para os outros grupos como para si mesmo, atestando sua existência enquanto grupo conhecido e reconhecido” (BOURDIEU, 2008: 112). Dessa maneira, quando alguém usa “doido”, “incivilizado” como termo de referência, de tratamento, ou de chamamento – em determinadas circunstâncias e com uma certa entonação, como deixam transparecer vários recorrentes comentários testemunhos nos relatos de campo 18, para com os moradores de Caboclos. Assim, aos indivíduos de Barra de Santana, como também de municípios vizinhos, fizerem referência aos moradores de Caboclos com essas categorizações “caboclo-brabo”, “doido”, “incivilizado”, se está demarcando características diferenciadoras. As categorizações acionadas nos comentários de algumas seria “uma maneira de estigmatizar desviantes, tendo como consequência o reforço da norma vigente” (FONSECA, 2004,156). Ou seja, As distinções, enquanto transfigurações simbólicas, são produto da aplicação de esquemas de construção que, como por exemplo os pares de adjetivos empregados para enunciar a maior parte dos juízos sociais, são produto da incorporação das estruturas a que eles se aplicam, e o reconhecimento da legitimidade mais absoluta não é outra coisa evidente, natural, que resulta da consciência quase perfeita das estruturas objectivas e das estruturas incorporadas (BOURDIEU, 1989: 145). É comum alguns moradores de Caboclos assentirem em alguns elementos desse reconhecimento negativo de que são objeto, como definidores das características singulares que os distinguem, como podemos relembrar nos comentários da família de dona Marlene, em que eles se classificam como “doidos”, “ignorantes”. Porém, há aqueles no povoado de Caboclos que negam 17 18 Alcantil é um município vizinho de Barra de Santana. Ser chamado de Caboclo funciona – em certos círculos e contextos como um insulto e um xingamento. essa identidade, como por exemplo, Eduardo. Certo dia, ele me perguntou o que eu já sabia sobre a história do lugar, então fui relatando, contudo, ao falar que algumas pessoas me contaram da sua ascendência indígena, simultaneamente, ele declarou que não – “eu não tenho”, e acrescentou “eu tenho a pele branca, não sou” então, ele silenciou em palavras e em seguida fez o gesto que informava que não era “doido”, gesticulando os dedos indicadores de modo circular próximo as orelhas19. Nesse sentido, poderíamos fazer a leitura que ao se negar ter uma fisionomia de índio, se nega também uma herança genealógica em termos morais (STOLKE, 2006: 28). “Raça de índio” De acordo com Kabengele Munanga (2006) o conceito de raça no qual se usa nos dias de hoje nada tem de biológico. Mas, sim um conceito carregado de ideologia, de modo que como qualquer ideologia, ele esconde uma coisa que não é anunciada, no caso, a relação de poder. Para o autor, A raça sempre apresentada como categoria biológica, isto é natural, é de fato uma categoria etno semântica. De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Os conceitos de branco, negro e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, Brasil, etc. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico. Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a raça não existe, no imaginário e na representação coletiva de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas (MUNANGA, 2006)20. É importante salientar que, não tenho a intenção de fazer uso de um conceito de raça como um termo que carrega um conteúdo único, ou remetê-lo a um essencialismo de cunho biológico. Mas considerar esta categoria a partir de uma concepção prática que adquire significados distintos de acordo com os contextos sociais em que está inserida, portanto como nos fala Claudia Rezende e Yvone Maggie, “mais do que tê-la como uma categoria monolítica e substantiva, a raça tomaria a forma de uma categoria adjetiva e relacional” (REZENDE & MAGGIE, 2002: 21), e elas acrescentam que refletir desta maneira significa “que a ideia de raça não desaparece de discursos que procuram construir e afirmar identidades e alteridades, logo, ela continua atuante introduzindo ou realçando desigualdades, delineando relações de poder” (REZENDE & MAGGIE, 2002: 21). Desse modo, usamos a categoria raça com base para a construção de certo tipo de diferença entre as pessoas. 19 Acredito ser importante relatar, para se ter uma melhor compreensão do universo social de Caboclos, que a avó dele foi declarada por tias dele que era cabocla, índia no instante em que fazia a árvore genealógica da família. 20 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem Conceitual das Noções de Raça, Racismo, Identidade e Etnia. Palestra, proferida no 3° Seminário Nacional de Relações Raciais e Educação. o.PENESB-RJ,05 NOV.2003.P.27. In: COSTA,D.M.,OSÓRIO,A.B & SILVA,A. DE O. Gênero e Raça o orçamento Municipal: um guia para fazer a diferença, vol.I, Orientações Básicas,IBAM/DES, Rio de Janeiro, 2006. Ao falar de sangue falei que esta categoria recobre tanto qualidades físicas como morais. Qualidades estas transmitidas de modo hereditário. No entanto, apesar de a noção de sangue ser utilizada para definir a moral onde são definidas pessoas e família, ela ganha mais sentido acompanhada da categoria raça. Uma das formas que a categoria raça aparece em alguns momentos em Caboclos é como sinônimo de família, como, por exemplo, usam a expressão, “fulano é de raça ruim” acionando que determinadas pessoas pertencentes a família do “véi Arnaldo” não têm prestígio. Assim, raça indica aparecer em Caboclos como uma categoria que implica em distinções e hierarquizações naturalizadas por uma lógica de hereditariedade, a isso, podemos relembrar da reação que Eduardo teve ao ter o conhecimento que algumas pessoas tinham relatado que eram descendentes de índios. Eduardo fez a associação de que se fosse descendente de índio seria “doido” e o colocaria numa posição de inferioridade, no entanto, a operacionalização de pensamento de Eduardo me parece lógica pensando no contexto social de Caboclos, em que sentido? Estamos falando que há uma correlação entre raça e um grupo de parentes e simultaneamente correlacionamos a uma atribuição moral negativa. Em Caboclos o grupo de parentes que recebem as referências de “doido”, “família de sangue ruim”, “raça ruim”, é a família do “véi Arnaldo”, logo se Eduardo não pertence a família do “véi Arnaldo” como ele pode ser descendente de índio, se “a família de seu Arnaldo é que é descendente de caboclo-brabo” como me falam, e consequentemente como pode ser “doido” se não tem o sangue do “véi Arnaldo”. Nesse sentido Abreu Filho (1980) nos ajuda a reforça tal reflexão, pois, O fato de se pensar uma família como raça, de se tratar a família como um microcosmos, como o equivalente de uma raça, no sentido em que o termo aparece nas ideologias racistas […] acredito poder afirmar que o emprego da categoria raça para designar um conjunto de parentes mantem relação com o significado da noção de raça na ideologia racista. Trata-se de analogicamente correlacionar uma família com uma raça, através de analogias entre os processos de manutenção de uma raça e os de manutenção de uma família através dos tempos. Raça portanto confere uma perspectiva de continuidade de uma família, ao mesmo tempo que impõe uma lógica da hereditariedade no que se refere a produção da conservação da identidade de uma família (ABREU FILHO, 1980: 180). Contudo, essa lógica de pensamento é afirmada pela própria família do “véi Arnaldo”. Como podemos inferir a partir dos comentários realizados por dona Marlene acima, como também na narrativa de dona Giselda que ao me falar sobre a história de vida do seu pai ressaltou: “as vezes dava uma veneta nele, uma doidice, o pai dele era assim, o véi Arnaldo, já é do gene”. Nessa mesma conversa com Giselda ela acionou mais elementos que contribui para a nossa reflexão da categoria raça no contexto dessa pesquisa, vejamos: Giselda: O pai de João era matador de onça. Ele era parente de índio, João? João: Era de caboclo-brabo. Giselda: Ele sumia quando via gente, tem uma menina minha que é assim, são umas pessoas cismadas que não confiam. Isso é do gene, sou parente de índio. Portanto, raça em Caboclos parece designar que um conjunto de ascendentes e descendentes é diferenciado por qualidades que se perpetuam hereditariamente. Aqui também é o sangue/gene/genética o vetor das qualidades que definem uma família. Ou seja, o uso da categoria raça é uma maneira de operar diferenciações internas ao conjunto de raça – seria o fato da família do “véi Arnaldo” ser colocado com frequência, como a família de caboclo-brabo, de modo a produzir internamente diferenças/distinções hierárquicas (ABREU FILHO, 1980; DUARTE, 1986; REESINK, 2011). Raça também é associado ao fenótipo, como já devem ter percebido. Dona Marlene fala “meu pai era caboclo-brabo, você precisava ver o cabelo dele, era o cabelo bonito, liso, preto, assim o povo também conta”; dona Giselda, “eu sou morena dos cabelos bom, porque a minha bisavó é parente de índio”; dona Maria Perlim, “meu cabelo é assim, tenho raça de índia” 21. Contudo, essa associação de características físicas a raça não se restringe a Caboclos. Na visão de muitos indivíduos de Barra de Santana, a cor da pele, dos olhos revela um tipo físico dos moradores de Caboclos, escutei muitas vezes comentários que faziam essa associação, “moreno e do olhinho verde, é de Caboclos”, “aqueles olhos, só podia ser de Caboclos”, “eles são muito diferentes fisicamente, são índios”, também parece que a este fenótipo correlacionam a maneiras de comportamento, “não tire foto deles, eles não gostam, são índios”, “são caboclos brabos”, “raça de doido”, portanto, mesmo que raça não seja uma realidade biológica, padrões de percepção sobre as características físicas valem-se de referenciais de classificação no cotidiano de Barra de Santana (SANTOS, 2012: 149). Isso se liga, ao que João Pacheco de Oliveira (1999) fala sobre a concepção naturalizada de cultura relacionada com “a representação do senso comum sobre os índios, formando um complexo ideológico de difícil desmontagem” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 41). A representação cotidiana sobre o índio, é a de um indivíduo morador da selva, pertencente a natureza. E estes traços são característicos do imaginário das pessoas de Caboclos de Barra de Santana, “era caboclo-brabo, matador de onça”, “meu pai era caboclo-brabo, selvagem, como bicho”. Tal representação traz imbricada consigo a suposição de primitividade (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 41). Esta representação parece está articulada com “classificações sociais e padrões de dominação estabelecidos ainda nos primórdios da colonização portuguesa, resultando em um longo processo 21 As falas que coloquei das moradoras de Caboclos em que valorizam de maneira positiva a herança fenótipica foi propositado. histórico que se estende até o presente” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 130). E já que estamos falando de raça como fenótipo associado a maneiras de comportamento, acredito ser relevante contar a seguinte situação. Quando estava conversando com Giselda ela me disse “se eu não fosse com a sua cara eu não conversava não, se fosse negra, não é preconceito não viu mulher, isso é de família, se a família é assim. Eu sou a mais bronzeada, sou morena bem bronzeada do cabelo bom, eu sou parente de índia, mas eu não tenho culpa de ser assim, culpa é que nem doença, porque já é de família isso, a coisa já vem né”. Nesse momento, eu fiquei pasma, no entanto, depois disso passei a relacionar aos comentários que eram tecidos quando eu me relacionava com eles, “mas é bonita, bem branquinha”, “você é rica, a sua pele, branca”, “você parece artista, bonita”, me dei conta que a cor da minha pele contribui de modo positivo para a construção da minha relação com eles. Assim, como já indiquei acima, as características físicas de uma pessoa pode indicar para eles o comportamento moral de uma pessoa. Dessa maneira “os modos de classificação e identificação social que estruturam uma sociedade determinam também a forma pela qual sua reprodução social é organizada” (STOLCKE, 2006: 26). Portanto, a minha intenção em relatar o que ocorreu comigo é para reforçar a noção de que a identidade não é, portanto, atemporal e imutável. Ela resulta da ação e reação entre pessoas/grupos, num tipo de jogo que não para de se alterar (SCHWARCZ, 1999: 295). Ou seja, as demarcações de diferenças entre os classificadores e os classificados, ambos são construídos no mesmo processo (REZENDE & MAGGIE, 1991). Não importam as diferenças, mas sobretudo como se faz das diferenças reais. A identidade é construída pela tomada de consciência das diferenças e não pelas diferenças (CUNHA, 1985 apud SCHWARCZ, 1999: 295) ou como diz Pierre Bourdieu “existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto” (BOURDIEU, 2008: 112). Portanto, pensar a questão nesses termos significa investir na concepção de que não há uma identidade essencial, entendida como gênese, e que ao contrário, a identidade seria um 'construto social' ( SCHWARCZ, 1999: 296-297). À guisa de conclusão Tomando as narrativas dos moradores de Caboclos e de atores sociais externos ao lugarejo, nelas encontramos sinais que nos permitem “identificar significados subjacentes ao imaginário e às simbolizações dos nativos […] que não estão presentes no seu discurso conscientemente manipulado” (Maley, 1993: 57 apud FONSECA, 2004: 124). Desse modo, na relação social daquilo que é falado e daquilo que é publicado, do que é boato sobre os moradores de Caboclos – tanto pensando nas relações internas como externas, parece ter chegado a um momento em que estes últimos não “apenas dignificam, enquadram, condensam, generalizam e afirmam, mas, graças a isso, apresentam um espelho para a comunidade como um todo – é um meio de gerar e fixar a autoconsciência” (TAUSSIG, 1993: 51). Assim, podemos perceber a “eficácia de discursos performativos” (BOURDIEU, 2008)22 nas expressões e discursos que procuramos apresentar a partir da operacionalização das categorias sangue, honra e raça. Logo, sangue, honra e raça, são termos que na prática cotidiana indicam operar – no contexto desta pesquisa, como princípio organizatório, pois classifica pessoas, famílias, de acordo com alguns critérios morais. Dessa maneira, os significados dessas palavras mudam de simples descrições a categorias hierarquicamente organizadas em certas circunstâncias (BRAH, 2006: 1718). Nesse sentido, as categorias sangue, honra e raça acendem como instrumentos através do qual, paradoxalmente, grupos/pessoas definem-se. Em outras palavras, estamos diante, de um processo complexo de definições socioculturais e de atribuição de características de semelhanças e diferenças as pessoas (REESINK, 2004:245). Ou, de um sistema de representações que buscam dar visibilidade a produção de formas identitárias. Contudo, a intenção aqui foi a de estabelecer um dialogo entre as contatações etnográficas que tive e fazer uso de uma literatura que me desse suporte para refleti-las, desse modo esta pesquisa se encontra em debate. 22 A eficácia do discurso performativo que pretende fazer acontecer o que enuncia no próprio ato de enunciá-lo é proporcional à autoridade daquele que o enuncia […]. Mas o efeito do conhecimento exercido pelo fato da objetivação no discurso não depende apenas do reconhecimento concedido àquele que o detém; depende também do grau com que o discurso anunciador da identidade do grupo está fundado na objetividade do grupo ao qual está endereçado, ou seja, tanto no reconhecimento e na crença que lhe atribuem os membros desse grupo como nas propriedades econômicas ou culturais por eles partilhadas. (BOURDIEU, 2008: 111). Referência Bibliográfica ABREU FILHO, Ovídio de. Raça, Sangue e Luta – identidade e parentesco em uma cidade do interior. Rio de Janeiro: Dussertação de Mestrado. PPGAS/MN/UFRJ, 1980. BAROJA, Júlio C.. Honra e Vergonha: exame histórico de vários conflitos. In J.G. Peristiany (org.). Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971. BARRETO FILHO, Henyo Trindade. Invenção ou renascimento? Gênese de uma sociedade indígena contemporânea no Nordeste. 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