Transcrição curta-metragem Cortejo Negro
O caminho era lento praqueles todos. Todos negros, se arrastando num bolo de
negrura em movimento. Bandeiras Negras. Camisas negras. Cheiro de morte e
tristeza. Aroma de incenso velho. O compasso de marcha: tum, tum tum de tambor.
Todos em fila. Ia o Padre, grande homem negro; o carro novo e negro; a Viúva,
jovem negra; as filhas, pequenas flores negras; os outros, todos negros; e alguns
nem sei bem. Negros? Negros? Eu também.
Os troncos secos da mata há muito morreram. Névoa grossa cegava além do
estreito caminho que cruzava o lugar. O açude secara naquele tempo de pouca
chuva. Tinha eu poucos anos. O balde com água embarrada mal dava pra beber.
Hoje, nem parece estreito d'água, e sim campo seco.
Creio que há dois dias ando pelo costado da estrada, nesse imenso matagal morto,
carbonizado e negro. Na hora que perdi os sentidos me veio a cabeça esse lugar
desolado. A medida que a vista nublava, a ferida queimava e o corpo tremia, não sei
porque me lembrei dessa horrorosa assombração de tudo morto.
Os poucos troncos ainda em pé desmoronaram com o tempo. Primeiro a casca, que
firmava o oco pilar de mato morto. Depois o resto, que era o todo pois nada havia
além do tronco. Eu era o tempo. Minha mão raspava a superfície. As unhas
cravavam no caule derrubando pequenos fragmentos podres. Esfarelava o tronco.
Era tão fatal quanto o fogo que queimara tudo. Mato Negro. Açude seco. Isso
quando tinha poucos anos.
Nem conhecia ela e ela não me conhecia. Pelo menos acho eu. Mas todos eram
próximos, só não se falavam. Creio que era uma tal de Madissinéia. Nome estranho,
difícil. Filha minha terá nome de santa. Filha minha terá nome de santa. Filha minha
terá nome de santa. Então Maria e Maria. Vieram logo, todas de branco. Muito
pouco tempo, já não as tenho.
Não devia ter ido em casa. Nem saber eu queria. Se soubesse pedia pra não saber.
Não sabendo ninguém saberia. Tum, tum, tum de tambor. O sol daquela manhã
transparecia o branco e a deixava nua, suada. Estava envolta pelo sol intruso que
lhe silhuetava. Quase aura, tipo santa. A Maria ao meu lado chorava. A outra
escondia o rosto na cintura da mãe que se bem me lembro não chorava, não ria,
não cegava, nada. Estava com um olhar firme, num expectativa de "quase".
Já iam longe na estrada que cruzava o mato. Todos em fila. Eu não conseguia ir
além. Eles pisoteavam os galhos numa sincronia de pisar, estalar, pisar. Todos no
mesmo galho. Todos negros. Ela enxugava o suor feito lágrima. Devia estar
cansada. Era difícil para uma jovem vestir negro. De longe ainda sentia o azedo
cheiro do Cortejo Negro. Via pequenos pontos negros em fila. Um grande homem
negro ponteando os outros. Uma negrura jovem com mais duas outras. Outros
negros, juntos numa massa triste. Também alguns que nem sei bem se de negro
iam. E eu fiquei no mato, recostado ao tronco. Vazio, oco, morto. Rodeado de
outros, todos negros, muitos outros.
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