FISIOTERAPIA DESPORTIVA JOEL FERNANDES SOLTEM OS PRISIONEIROS por JOEL FERNANDES Ligar ou não ligar os tornozelos eis a questão? Normalmente os tornozelos são ligados por um de dois motivos: 1. O atleta encontra-se lesionado e a ligadura ajuda a diminuir ou a eliminar as dores durante os treinos ou jogos; 2. Reduzir a incidência de entorses nesta articulação; Relativamente ao primeiro motivo, se o atleta ainda não está recuperado então não tem o direito de estar a treinar ou a jogar, a não ser que o treinador e o responsável pela reabilitação do atleta cheguem a acordo e decidam “pôr a carne no assador”. Sim, esta é a expressão que eu utilizo quando observo atletas a treinar e a jogar lesionados. Os atletas muitas vezes são tratados como carne para canhão…no desporto profissional ainda aceito (não concordo mas aceito) agora num contexto amador e pior ainda em escalões de formação não há nada que o justifique. Quanto ao segundo motivo, a literatura existente demonstra claramente que ligar o tornozelo (ligaduras elásticas, ligaduras funcionais, etc) reduz a incidência de lesões nesta articulação durante a práctica desportiva. Isto é verdade tanto para desportos que envolvam muitos saltos e aterragens como para desportos onde estas acções não se verificam de forma tão regular. No entanto, vários investigadores têm sugerido que, durante as manobras de aterragem o suporte externo do tornozelo pode eventualmente ter efeitos negativos sobre outras articulações dos membros inferiores. Por conseguinte, é importante o estudo não só dos efeitos das ligaduras sobre a articulação do tornozelo, mas também sobre as restantes articulações do membro inferior. No que diz respeito aos efeitos adversos que as ligaduras nos tornozelos possam provocar, pesquisa existente1,2,3,4 tem demonstrado que a capacidade do tornozelo para absorver a energia durante as aterragens é diminuída com a utilização de ligaduras. No entanto, actualmente não há informações suficientes para determinar o impacto que a imobilização do tornozelo possa ter em outras articulações ou estruturas de tecidos moles dos membros inferiores. Dois estudos realizados por McGuine et. al, um no futebol americano 5 e outro no basket 6, não revelaram diferenças ao nível de lesões nos joelhos entre atletas que usaram ligaduras e os que não usaram. Tal facto poderá estar relacionado com o tipo de ligaduras utilizadas, a “DonJoy Ankle Stabilizing Brace” no estudo do futebol americano e a “Ankle Brace McDavid Ultralight 195” no estudo do basket, as quais permitem uma maior mobilidade ao nível da dorsiflexão do tornozelo. Tal não se verifica com outras ligaduras, nomeadamente com as ligaduras funcionais (com tape) que embora permitam a funcionalidade da articulação restringem muito mais a dorsiflexão do tornozelo. Era interessante introduzir nestes dois estudos um terceiro grupo que fosse submetido a um programa específico de redução lesões para o pé/tornozelo em que fossem trabalhadas componentes como a mobilidade e força do tornozelo, técnica de aterragem, treino neuromuscular reactivo, desacelerações, realização de exercícios descalço, etc. Assim teríamos a oportunidade de verificar se o grupo que realizou o programa de redução de lesões teria resultados melhores, piores ou iguais ao que o usou ligaduras. www.planetabasket.pt Março de 2013 FISIOTERAPIA DESPORTIVA JOEL FERNANDES As ligaduras por norma têm como objectivo limitar a inversão ou a eversão do pé mas acabam também por limitar (umas mais que outras) a flexão plantar e a dorsiflexão do tornozelo. Muitos autores defendem que quando o tornozelo perde mobilidade (nomeadamente a dorsiflexão) o nosso corpo ultrapassa essa perda através da rotação interna do fémur, valgus do joelho, rotação interna da tíbia e pronação do pé. A receita perfeita para lesões no joelho. Lembrem-se que as articulações do nosso corpo não agem isoladamente, elas agem como um todo e o facto de limitarmos a mobilidade de uma articulação pode ter repercussões no funcionamento de todas as outras, nós não somos um carro, somos um corpo humano. Dorsiflexão do tornozelo sobre carga Valgus dos Joelhos Um estudo recente 7 revela que quanto maior for a amplitude de movimento na dorsiflexão do tornozelo maior é o deslocamento ao nível da flexão do joelho e menores são as forças de reacção durante a aterragem induzindo assim um comportamento característico de um menor risco de lesão do ligamento cruzado anterior do joelho e de uma diminuição das forças que o membro inferior tem que absorver. Outra questão interessante é se o uso de ligaduras pode ter ou não impacto sobre a performance dos atletas. Um estudo 8 revelou que as ligaduras podem ter um impacto negativo na realização de actividades relacionadas com o basket e que talvez seja necessário analisar bem as vantagens e desvantagens da sua utilização. Contudo a amostra deste estudo não é muito significativa, pois consistia apenas em onze atletas. www.planetabasket.pt Março de 2013 FISIOTERAPIA DESPORTIVA JOEL FERNANDES Nos EUA e mais concretamente na NBA há a cultura dos jogadores jogarem sempre com os tornozelos ligados (independentemente de já terem sofrido lesões ou não) e a tendência é cada vez mais limitarmos a mobilidade dos tornozelos em prol da sua estabilidade, basta observarmos as sapatilhas de Basket que se fabricam hoje em dia. A grande maioria está concebida para fornecer um maior suporte externo aos tornozelos. Uma investigação comparou o uso de sapatilhas com maior suporte para o tornozelo com sapatilhas mais minimalistas em diversos testes de performance. Mais uma vez foi notado que um maior suporte externo do tornozelo altera a dissipação de energia nesta articulação e observou-se uma influência negativa sobre os testes de performance. 9 A musculatura que envolve o tornozelo é bastante forte e potente, mas é a mobilidade que permite em última instância a possibilidade de utilizar toda essa força e potência. Um atleta com restrições na mobilidade desta articulação terá com toda a certeza limitações na altura do seu salto e diminuição nos seus tempos de reacção em situações de mudanças de direcção. Quanto maior for o suporte externo em torno de uma articulação, menos nós utilizamos a musculatura que a rodeia e o que nós não utilizamos o nosso cérebro (sistema nervoso central) esquece, levando a uma consequente atrofia quer ao nível da força quer ao nível dos tempos de reacção. Um estudo realizado com atletas de “netball” vai de encontro a esta teoria, demonstrando uma diminuição na acção muscular em situações de aterragem nas atletas que tinham os tornozelos ligados. 10 Sem uma boa mobilidade não é possível uma boa estabilidade, pois o input sensorial fica diminuído e se o nosso centro de comando (sistema nervoso central) não tem acesso á totalidade da informação dificilmente poderá reagir da forma mais eficaz frente às exigências que tem pela frente. Para concluir gostaria de referir que não sou 100% contra ao uso de ligaduras nos tornozelos como forma de diminuir as lesões nestas articulações, as ligaduras com certeza têm o seu lugar, mas o seu uso abusivo por longos períodos de tempo pode ser prejudicial. Outro tipo de estratégias podem ser utilizadas de forma a obter os mesmos resultados ou até melhores como demonstra um estudo 11 onde o treino técnico revelou ser mais eficaz na redução de entorses do tornozelo que a utilização de um suporte externo. Atletas que jogam constantemente ligados são atletas que estão diminuídos nas suas capacidades, estando “presos” física e mentalmente a uma estabilidade artificial. Referências: 1. Cordova ML, Takahashi Y, Kress GM, et al. Influence of external ankle support on lower extremity joint mechanics during drop landings. J Sport Rehabil 2010;19(2):136-148. 2. Gardner JK, McCaw ST, Laudner KG, et al. Effect of ankle braces on lower extremity joint energetics in singleleg landings. Med Sci Sports Exerc 2012;44(6):1116-1122. 3. McCaw ST, Cerullo JF. Prophylactic ankle stabilizers affect ankle joint kinematics during drop landings. Med Sci Sports Exerc 1999;31(5):702-707. 4. Riemann BL, Schmitz RJ, Gale M, McCaw ST. Effect of ankle taping and bracing on vertical ground reaction forces during drop landings before and after treadmill jogging. J Orthop Sports Phys Ther 2002;32(12):628635. www.planetabasket.pt Março de 2013 FISIOTERAPIA DESPORTIVA JOEL FERNANDES 5. McGuine TA, Hetzel S, Wilson J, Brooks A. The effect of lace up ankle braces on injury rates in high school football players. Am J Sports Med 2012;40(1):49-57. 6. McGuine TA, Brooks A, Hetzel S. The effect of lace up ankle braces on injury rates in high school basketball players. Am J Sports Med 2011;39(9):1840-8. 7. Fong CM, Blackburn JT, Norcross MF, McGrath M, Padua DA. Ankle-Dorsiflexion Range of Motion and Landing Biomechanics. J Athl Train 2011;46(1):5-10. 8. MacKean LC, Bell G, Burnham RS. Prophylactic ankle bracing vs. taping: effects on functional performance in female basketball players. J Orthop Sports Phys Ther 1995;22(2):77-81. 9. Brizuela G, Llana S, Ferrandis R, Garcia-Belenguer AC. The influence of basketball shoes with increased ankle support on shock attenuation and performance in running and jumping. J Sports Sci 1997;15(5):505-515. 10. Hopper DM, McNair P, Elliott BC. Landing in netball: effects of taping and bracing the ankle. Brit J Sports Med 1999;33(6):409-413. 11. Stasinopoulos D. Comparison of three preventive methods in order to reduce the incidence of ankle inversion sprains among female volleyball players. Br J Sports Med 2004;38 (2):182-5. www.planetabasket.pt Março de 2013