Carlos Cruz Entrevista “O objetivo da divulgação não é formar cientistas” Marcelo Gleiser Professor de Física e Astronomia no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e divulgador científico Marcelo Gleiser nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1959.Formado em física, doutorou-se no Kings College (Inglaterra). Foi pesquisador do Fermi National Accelerator Laboratory (Chicago,EUA) e do Institute for Theoretical Physics da Universidade da Califórnia (EUA). Atualmente, é professor catedrático do Departamento de Física e Astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA), onde leciona a disciplina apelidada de“Física para Poetas”.Em 1994, foi premiado pelo então presidente dos EUA com o Presidential Faculty Fellows Award, por seu trabalho de pesquisa em cosmologia e por sua dedicação ao ensino. Seus artigos são publicados no caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, e reproduzidos em outros veículos. É autor dos livros Retalhos Cósmicos, A Dança do Universo e O Fim daTerra e do Céu:O Apocalipse na Ciência e na Religião. Os dois últimos renderam-lhe o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira de Letras, respectivamente em 1998 e 2002. Em dezembro de 2001, Gleiser recebeu o prêmio José Reis de Divulgação Científica. dez|2002 Marcelo Gleiser é um dos nomes mais respeitados na área de divulgação científica da atualidade. Professor catedrático de Física e Astronomia no Dartmouth College, em Hanover (EUA),Gleiser trabalha para tornar o conhecimento mais acessível. O esforço de unir religião, poesia, filosofia, ciência, artes e história em suas obras e artigos, voltados ao público leigo, conferiram ao professor, entre outros títulos, o prêmio José Reis de Divulgação Científica, em 2001. De Dartmouth College, Gleiser concedeu esta entrevista à Univerciência,na qual trata da divulgação científica no Brasil e no mundo, da mistura de diversas frentes de estudo em seus textos, das suas obras e da necessidade de levar a ciência ao conhecimento de todos. por Fabricio Mazocco No Congresso Ibero-Americano de Jornalismo Científico, em 1977, Marco Antonio Fillipi, na época editor da seção Atualidade Científica de O Estado de S. Paulo, definiu as publicações brasileiras assim: “Sensacionalismo era a tônica, a mística imperava. Ciência e pseudociência se confudiam”.Como separar a“verdade”científica do imaginário popular sem que haja um choque entre os dois? Se o que for apresentado é realmente baseado no que cientistas estão fazendo, não vejo porque deveria haver um choque. A confusão só existe quando profissionais não especializados, incentivados mais pelo valor de mercado de suas matérias do que pela divulgação das idéias científicas, tomam o controle dos meios de comunicação. Em seus livros, você mistura religião, filosofia, ciência e artes. Como é mesclar linhas tão diferentes, como por exemplo, a ciência e as artes,“o real e a interpretação deste”,sem confundir o leitor? 9 10 Entrevista A televisão brasileira ignora a ciência Basta que a coisa seja feita com muito cuidado, onde a delineação do que é cada disciplina e a que ela se propõe seja bem clara. É muito fácil distingüir ciência de misticismo ou de religião. O que faço em meus livros é explorar as raízes históricas da ciência e como elas foram influenciadas pelo pensamento religioso da época. As questões, em muitos casos, são as mesmas, mas as respostas são muito diferentes. Na virada da primeira para a segunda década do século XX, o abismo entre o cientista e o leigo tornou-se tema corrente da imprensa americana. Em 1921, foi criada a primeira agência de notícias sobre ciência nos Estados Unidos, o Science Service. O que isso representou para a propagação da ciência nesse país e no mundo? O abismo diminuiu e as pessoas passaram a se interessar cada vez mais pelos achados científicos. Einstein tornou-se uma figura pública mundial em 1919-1921, com a confirmação da teoria da relatividade geral. Jornais do mundo inteiro celebraram esse grande acontecimento. Talvez tenha sido nessa ocasião que a virada ocorreu, quando a mídia percebeu o enorme interesse que as pessoas têm pelas descobertas científicas, especialmente aquelas ligadas a temas mais amplos, de cunho mais exótico. Somente na década de 60 o jornalismo científico começou a configurar-se no Brasil, organizando-se na década seguinte para crescer de forma sensível nos anos 80. Em relação a outros países, qual a posição do Brasil na divulgação científica? O Brasil,se comparado aos EUA,Japão ou Europa, ainda precisa trabalhar muito. São poucos os jornais que dedicam um espaço regular à ciência, como faz a Folha de S. Paulo. Mas o maior buraco está na televisão; a televisão brasileira ignora a ciência.O que existe é relegado a um horário destinado a ter pouca audiência. A TV Futura vem tentando mudar isso, mas está nadando contra a corrente. Mas o salmão também nada contra a corrente e é um peixe apreciadíssimo. Qual a sua análise sobre a divulgação científica no Brasil hoje? Fico muito feliz em ver o sucesso da National Geographic e, agora, da Scientific American no Brasil. O mesmo com a revista Galileu e, às vezes, a Superinteressante. Mas o que falta é mais espaço em jornais e, principalmente, na TV. Outro ponto é que o cientista brasileiro ainda não está se dedicando à divulgação científica como fazem os europeus e americanos. Mas espero que essa tendência mude. No Brasil, a questão da disseminação do conhecimento ganha cada vez mais espaço em debates nos mais diversos fóruns. Porém, geralmente, estratégias distintas (editorias ou veículos especializados, museus de ciências etc.) são tratadas separadamente. O que fazer para estabelecer uma relação entre elas? Eu acredito que o Ministério da Educação e o Ministério de Ciência e Tecnologia deveriam trabalhar juntos nessa área; o interesse é de ambos. Seria fácil desenvolver um plano nacional de divulgação da ciência; eu mesmo já sugeri isso ao ministro Sardenberg (Ronaldo Sardenberg, ministro de Ciência e Tecnologia). Mas, como sempre, o maior problema desses ministérios é a absoluta falta de verbas. Fica difícil inovar sem dinheiro. Um dos desafios enfrentados por aqueles que se dedicam a disseminar o conhecimento acadêmico por meio da imprensa é a linguagem. Jornalistas e pesquisadores desentendem-se freqüentemente quando o assunto é como escrever sobre ciência. Qual o caminho a ser seguido? Sinceramente, acho que esse problema é inexistente. É óbvio que o público não especializado tem de receber a informação através de uma linguagem simples, sem jargão. O objetivo da divulgação científica é informar as pessoas sobre ciência e não formar novos cientistas. Portanto, como em qualquer tradução, vai haver uma perda de significado que é inevitável. Aí entra o talento do divulgador (e o seu conhecimento), em ainda assim preservar o essencial da mensagem. Outro grande desafio é a divulgação da ciência básica. Os resultados das pesquisas aplicadas geralmente têm um apelo muito maior, tanto nas redações dos veículos de imprensa quanto entre seus leitores. dez|2002 Entrevista Como tornar a ciência básica atraente para o público leigo? Acho que não concordo com a premissa dessa pergunta. Na minha experiência, são as questões mais fundamentais que atraem mais a atenção das pessoas. Por exemplo, problemas relacionados com origens (do cosmo, da vida, da mente), ou fins (do mundo, da vida, do cosmo). Veja que os maiores bestsellers de ciência não são livros sobre ciência aplicada, mas sobre ciência básica. Concordo que a ciência aplicada deva ser divulgada diariamente nos jornais, pois ela tem um impacto muito mais imediato na vida das pessoas; mas a ciência básica responde a uma curiosidade mais profunda de quem somos nós e por que estamos aqui. Ao receber o prêmio José Reis de Divulgação Científica no final do ano passado, você disse que Carlos Cruz A ciência faz parte do acervo cultural da humanidade e deve ser dividida com todos. Ela não é propriedade dos cientistas como um ser humano participando de uma grande peregrinação em direção ao conhecimento sobre o cosmo – essa busca é cercada de desafios e dúvidas, de certa forma como o trabalho de um artista. Afinal, a ciência é uma expressão da criatividade humana. “ampliar a divulgação científica é uma obrigação de cientistas e pesquisadores que, financiados pela sociedade, devem prestar contas sobre o que estão fazendo.” Como fazer com que os cientistas tenham essa “obrigação”,o que não é comum? Com a utilização da religião, poesia, filosofia, artes e história nos seus livros como forma de disseminar o conhecimento, não há o perigo de “popularizar” a ciência, confundindo-a com as pseudociências? Acho que é a consciência de cada um que deveria agir aqui. Os pesquisadores têm de se convencer que o dinheiro de suas pesquisas vem da sociedade e, portanto, que eles devem justificar os seus trabalhos. A ciência faz parte do acervo cultural da humanidade e deve ser dividida com todos. Ela não é propriedade dos cientistas. Você utiliza recursos ficcionais para narrar a ciência e, assim, torná-la acessível ao público leigo. Por outro lado, a literatura relacionada à fantasia o influenciou mais que a ficção científica. E você tem formação em ciências exatas. Em que cada um desses aspectos contribuiu com o seu trabalho? O uso de recursos ficcionais vem da minha convicção que as pessoas têm um enorme interesse em ouvir histórias; e por que não histórias que possam também educar, ao mesmo tempo que divertem e emocionam? Acho que o meu trabalho é um espelho da minha personalidade; eu vejo o cientista dez|2002 Só se a disseminação fosse feita de forma errada, aproveitando-se da inocência do leitor para empurrar pseudociência como se fosse ciência. Eu tento fazer exatamente o oposto, mostrando de forma clara onde uma começa e a outra termina, e como existe uma complementaridade natural dessas linguagens. Não vejo como disseminar a ciência de forma eficaz separando-a do resto da cultura humana. Qual a sua visão do futuro da divulgação científica e até que ponto ela pode ser decisiva para mudanças na sociedade? Acredito que cada vez mais haverá a necessidade de transmitir a ciência para a sociedade. Mais do que nunca, nossas vidas dependem de nossa compreensão de temas científicos: efeito estufa, clonagem e célulastronco, alimentos transgênicos, inteligência artificial, fontes de energia alternativas… O cidadão do futuro terá de optar por qual direção a pesquisa deverá tomar. Apenas uma sociedade bem informada em ciência será capaz de fazer as escolhas certas.O futuro de nossa espécie pode depender disso. 11