ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: IMPACTOS DE SUA IMPLANTAÇÃO PINTO∗, Juliana da Silva – UEPG [email protected] SAVELI∗∗, Esméria de Lourdes – UEPG [email protected] Resumo Este trabalho resulta de uma pesquisa, de cunho qualitativo, que teve como objetivo investigar as representações sociais de pedagogos e gestores escolares sobre a nova legislação e forma de ampliação do Ensino Fundamental. Participaram da pesquisa educadores de quatro escolas da rede pública municipal e de quatro escolas particulares do município de Ponta Grossa - PR. Para a coleta das informações, utilizou-se como instrumento a entrevista semi-estruturada. O estudo mostra que a implantação do Ensino Fundamental de nove anos provocou e ainda tem provocado muitas inquietações, dúvidas, diferentes opiniões e interpretações diversas dos dispositivos legais, gerando posicionamentos divergentes. Este fato é evidenciado por depoimentos colhidos para este estudo que revelaram que no interior das instituições educativas as opiniões dos educadores se dividiram entre aqueles que defenderam a antecipação do ingresso da criança no Ensino Fundamental e aqueles que se posicionaram de modo desfavorável à medida. Embora a inclusão das crianças de seis anos no processo de escolarização formal não fosse uma novidade no meio educacional do município de Ponta Grossa, a pesquisa revelou que a transição dessas crianças da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, trouxe uma série de impactos nos espaços escolares. A pesquisa também verificou que ainda há muita incompreensão desta política pública de ampliação do direito social de acesso das camadas populares, à escolaridade obrigatória. O estudo desvelou que para a inclusão das crianças de seis anos (completos ou incompletos) no sistema educacional, será fundamental que gestores e pedagogos tenham maior clareza dos fundamentos legais, pedagógicos e administrativos dessa política pública, pois ela exige ações administrativopedagógicas coerentes, bem como uma mudança na estrutura e na cultura escolar. Palavras-chave: Políticas educacionais. Representações sociais. Ensino Fundamental de nove anos. Introdução Este trabalho resulta de uma pesquisa, de cunho qualitativo, que teve como objetivo investigar o que representa para os pedagogos e gestores escolares a ampliação do Ensino Fundamental e, segundo eles, quais os impactos da implantação desta política pública no Município de Ponta Grossa. ∗ Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Especialista em Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental (UEPG), membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Básica (GEPEB/UEPG), professora da Educação Básica. ∗∗ Doutora em Educação pela Unicamp, docente do Departamento de Educação e do Mestrado em Educação da UEPG, Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Básica (GEPEB/CNPq). 2480 Com a aprovação da Lei 11.274, de 06 de fevereiro de 2006, o Ensino Fundamental passa a ter nove anos de duração, sendo assegurado às crianças de seis anos o direito à educação obrigatória. Entende-se que as políticas educacionais são concretizadas no contexto das escolas através das ações de inúmeros sujeitos sociais que atuam direta ou indiretamente nesses espaços. Isto significa que as decisões tomadas nos textos legais são efetivadas, de fato, por procedimentos e ações administrativas. Ou seja, política e administração não se dissociam. Nesta perspectiva, pode-se dizer que a concretização da política educacional de antecipação da obrigatoriedade escolar está longe de acontecer apenas com a promulgação da Lei 11.274/2006. Concretizar, de fato, o direito das crianças de seis anos à educação dependerá das ações pedagógicas dos educadores e de uma política-administrativa comprometida com a real inclusão das crianças nos espaços escolares. Entende-se também que as políticas educacionais, no contexto mais amplo, desde seu processo de elaboração e aprovação até sua concretização no âmbito da prática, não se encontram livres da influência dos valores, das crenças e das opiniões dos sujeitos. Isto quer dizer que sobre as normas legais interagem múltiplos agentes, influenciando-as, modelando-as e interpretando-as, segundo seus interesses, expectativas e valores, dentro de uma determinada trama cultural, política e social. As Representações Sociais: Alicerces Da Interpretação Da Realidade As representações sociais emergem na forma de pensamentos ou crenças pessoais, que exprimem formas específicas de um pensamento social mais amplo, decorrente das relações estabelecidas entre os diversos sujeitos. Há um conjunto de crenças, partilhadas pelos sujeitos que são construídas socialmente e se encontram necessariamente ancoradas no âmbito das condições objetivas dos sujeitos que as elaboram. Ou seja, refletem as condições socioeconômicas e culturais dos sujeitos que as produzem. Essas crenças constituem-se a partir de significados presentes no meio cultural e têm suas raízes em determinações econômicas, históricas e sociais. Estas crenças expressam maneiras de pensar, compreender e explicar o mundo e trazem a bagagem cultural de cada sujeito (com suas experiências subjetivas e suas características pessoais). Entende-se que todo o conjunto de crenças dos indivíduos, seus conhecimentos, imagens e percepções constituem o substrato das representações sociais. (MOSCOVICI, 2003). As representações sociais são formadas a partir das imagens provenientes de teorias científicas ou do saber cotidiano, resultados de pesquisa divulgados, ideologias difundidas nos 2481 meios de comunicação, que se generalizam entre os grupos sociais e passam a constituir um sistema de valores e informações que influenciam no modo de compreender e explicar a realidade, bem como orientam a tomada de posição e as diferentes práticas no mundo social. Como se encontram presentes no cotidiano escolar, as representações sociais influenciam as práticas realizadas no contexto da escola e, portanto, devem se tornar objeto de nossa reflexão crítica. O pressuposto básico da opção pela perspectiva das representações sociais neste estudo, é que as representações sociais são elementos importantes para a compreensão do posicionamento dos gestores e pedagogos frente ao novo contexto educacional, anunciado com a ampliação do ensino fundamental. Partindo-se do pressuposto de que os sujeitos, ao se depararem com situações sociais novas, acionam suas “teorias implícitas”, que construíram coletivamente, e que é no quadro destas teorias que procuram e estruturam suas explicações e suas ações, considera-se importante discutir a ampliação da obrigatoriedade escolar a partir da visão dos atores sociais que estão diretamente envolvidos com as escolas desse nível de ensino. A pesquisa teve como foco de investigação quatro escolas da rede pública municipal e quatro escolas particulares do município de Ponta Grossa. Participaram da pesquisa, pedagogos e gestores escolares das escolas de ambas as redes de ensino. Para a coleta das informações, utilizou-se como instrumento a entrevista semi-estruturada. Dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa foram emergindo as representações sociais que foram classificadas e agregadas em dois eixos temáticos, abordados a seguir. Concepções De Desenvolvimento Da Criança Dentre os depoimentos coletados para a pesquisa, encontram-se posicionamentos divergentes. Há aqueles que entendem a antecipação do ingresso da criança no Ensino Fundamental como uma medida negativa, que trouxe uma série de problemas para as escolas e as famílias: ”Nós vemos que têm muitas crianças que estão no Ensino Fundamental e que são muito dependentes, aqueles “bebês” ainda sabe? A criança ainda não está desenvolvida pra adiantar tanto. (C. Pedagoga). E há outros que se posicionam de modo favorável à medida: “[...] Se a escola pública tivesse condições de recolher as crianças até antes, pra você estar trabalhando com essas crianças, eu acredito que a qualidade do ensino das nossas escolas seria bem melhor”. (S. Diretora) Entre os argumentos que procuram mostrar as repercussões negativas da entrada precoce da criança no Ensino Fundamental, ou os que procuram ratificar o recorte etário, 2482 então fixado, para o ingresso da criança, tendo como referência o mês de nascimento (mês de março, no caso do Estado do Paraná), aparecem subjacentes às falas de diretoras e pedagogas, uma concepção de desenvolvimento inatista-maturacionista. Verifica-se que as educadoras apóiam-se nesta concepção, quando se referem ao desenvolvimento (“amadurecimento”), como sendo um pré-requisito para o ingresso da criança no Ensino Fundamental: “Existem crianças que entraram aí com seis anos no ensino fundamental de oito e essas crianças são extremamente dependentes do professor porque são novas [...] a gente sabe que a criança sofre com isso, é forçada a sua maturação. Nós sabemos assim, que a criança precisa estar bem amadurecida [...] Então, eu acho que deveria ser pensado melhor nessa questão da idade, ter uma criança mais madura, mas existe a lei, vamos respeitar”. (V. Diretora). A concepção inatista-maturacionista parte do princípio de que fatores biológicos (hereditariedade e maturação) desempenham um papel central no desenvolvimento humano e tem importância maior do que os fatores que se relacionam à experiência e a aprendizagem do sujeito. Esta abordagem considera que o patrimônio biologicamente herdado é que determina o desenvolvimento dos sujeitos. Assim, o processo de aprendizagem não interfere no desenvolvimento cognitivo da criança, pelo contrário, é dependente dele, “[...] Ou seja, o que a criança é capaz ou não de aprender é determinado pelo nível de maturação de suas habilidades e do seu pensamento ou, ainda, pelo seu nível de inteligência.” (FONTANA, R.; CRUZ, N., 1997. p. 20). Apoiadas nesta concepção inatista-maturacionista, as educadoras afirmam: “[...] O mês de março está bom, é um prazo bom, eu acho que eles têm que completar seis anos, por causa da maturidade, eu acho que interfere a idade”. (M. Diretora). “Dá muita diferença a questão da maturidade. Acho positivo o recorte etário em março porque sabemos que é necessário o amadurecimento da criança para determinados conteúdos”. (R. Diretora). Esses depoimentos revelam que ainda está muito presente nas representações sociais dos profissionais da educação a crença de que para aprender a criança deve já ter desenvolvido certas capacidades. Esta concepção alimenta a crença de que existe uma idade precisa para a aprendizagem de determinados conteúdos. Ou, ainda, que aquilo que a criança é capaz ou não de aprender depende do nível de “maturação” das suas capacidades. Nesta perspectiva, as educadoras entendem que, as crianças que completam seis anos nos meses subseqüentes ao mês de março não tem “maturidade” para o ingresso no Ensino Fundamental. No entanto, quando questionadas a respeito do processo de alfabetização, que é facilitado pela entrada da criança mais nova no universo da escola, as educadoras se contradizem, ao afirmarem num 2483 primeiro momento: “Acho positivo o recorte etário em março porque sabemos que é necessário o amadurecimento da criança para determinados conteúdos”, e, num segundo momento, que a alfabetização tem seu início antes mesmo do ingresso no Ensino Fundamental, como ilustra o depoimento abaixo: A nossa classe de Educação Infantil trabalha a alfabetização e começa o letramento né, nós vamos trabalhar nessa linha mais ou menos, procurando avançar um pouquinho mais [...] É a proposta da Educação Infantil mesmo, é o brincar, é o cuidar, é o estar deixando a criança no seu momento, aprender dentro de um processo natural. (A. C. Pedagoga) Diante destes depoimentos cabe questionar: se há o entendimento de que o trabalho no primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos, deverá ser este trabalho de alfabetização, entendido numa perspectiva lúdica, de imersão da criança em um ambiente alfabetizador que vai muito além da aquisição do código escrito, e que muito mais que o produto final, interessa o “processo”, por que essa criança de cinco ou seis anos é considerada, por alguns profissionais da educação como sendo “muito nova”, “muito infantil” para ingressar no Ensino Fundamental? Se o trabalho é o mesmo, qual a diferença da criança estar na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental? Kramer (2003, p. 70), ao abordar essa questão da inserção das crianças na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental, deixa claro seu posicionamento dizendo que: [...] tanto faz, se existe articulação do trabalho pedagógico realizado. A partir da ótica da criança, tanto faz se o trabalho realizado leva em consideração a especificidade das ações infantis e o direito à brincadeira. Só é problema porque não temos conseguido, ainda, articular a educação infantil com o ensino fundamental. O problema, portanto, do ponto de vista pedagógico, não é onde incluir, mas a garantia de que as crianças sejam reconhecidas nas suas necessidades (em especial a de brincar) e que o trabalho seja pensado, planejado, discutido, acompanhado, pelos adultos, nas duas instâncias. Mas ao que parece, o significado da antecipação da obrigatoriedade escolar para seis anos de idade, ainda não está bem claro para os profissionais da educação. Nas falas das educadoras a contradição aparece novamente: verifica-se que ora defendem a alfabetização como um processo natural, que acontece paralelamente ao desenvolvimento do letramento, ora, apoiadas na concepção inatista-maturacionista, acreditam que as tentativas de ensino precoce podem atrapalhar futuras aprendizagens: “[...] A criança não está bem desenvolvida para adiantar. Têm muitos que querem ganhar tempo, mas não entendem que determinados 2484 conteúdos precisam do amadurecimento da criança, que não dá para adiantar, se pensa em ganhar tempo agora, pode ter reprovação lá na frente [...]” (R. Diretora). No entanto, se por um lado há no discurso de um grupo de diretoras e pedagogas uma concepção de que o desenvolvimento é que comanda a aprendizagem, por outro, há educadoras que defendem a antecipação do ingresso da criança no Ensino Fundamental: “Quanto mais cedo a criança ingressa na escola, quanto mais cedo você começa a sistematizar esse processo de leitura, de escrita, a qualidade do ensino tende a melhorar”. (S. Diretora). O relato desta educadora revela uma concepção de desenvolvimento oposta àquela mencionada anteriormente. Quando a diretora diz que “Quanto mais cedo a criança ingressa na escola, a qualidade do ensino tende a melhorar”, está revelando a sua crença de que quanto mais condições são oferecidas pelo meio social, quanto mais interações são propiciadas melhor sucedida será esta criança no processo de aprendizagem e de escolarização posterior. Esta idéia vai ao encontro da abordagem teórica vygotskyana, a qual defende desenvolvimento e aprendizagem como processos interdependentes, em que o desenvolvimento cognitivo interage constantemente com a aprendizagem, sendo que a aprendizagem tem a função de estimular e desencadear avanços do desenvolvimento para um nível superior, mais complexo. Como afirma Vygotsky (1984, p. 101): “o bom aprendizado é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento”. Nessa perspectiva, o bom ensino puxa o desenvolvimento do sujeito, de maneira a permitir novas aprendizagens. Em sua elaboração teórica, Vygotsky, inaugura um olhar prospectivo do desenvolvimento humano, direcionando o olhar para o futuro, uma vez que se dirige aos processos psicológicos que estão em construção, em vias de se completarem, e esse novo olhar permite o entendimento de que as ações pedagógicas, realizadas mais cedo com as crianças, podem propiciar avanços significativos no desenvolvimento cognitivo dos alunos. Este posicionamento ratifica as razões pedagógicas pelas quais o Ensino Fundamental passa a ter nove anos de duração, com a antecipação do ingresso das crianças nesse nível de ensino, e vai ao encontro das afirmações presentes nos documentos do MEC (2006), que destacam a entrada das crianças um ano antes na escola, como uma oportunidade de maior vivência escolar, ampliando as possibilidades de aprendizagem, bem como outras produções recentes (Batista (2006), Vieira e Santos (2006)) que ressaltam que o ingresso mais precoce da criança na escola tem revelado maior sucesso na escolaridade posterior, uma vez que a entrada antecipada tem oportunizado melhores condições para o processo de alfabetização das crianças. Segundo Batista (2006, p. 2): 2485 [...] pesquisas vêm mostrando que uma entrada mais precoce tem repercussões positivas na continuidade da escolarização. A criança que entra mais cedo na escola – seja na educação infantil ou fundamental – tende a alcançar pelo menos dois anos a mais de escolaridade do que aquela que entra mais tarde. A criança mais nova está vivendo um acentuado processo de desenvolvimento lingüístico e cognitivo e pode, por isso, permitir à escola alcançar melhores resultados. (Re) Organização Do Tempo E Do Espaço Da Escola Nos depoimentos de alguns educadores entrevistados, evidencia-se um posicionamento de que é necessário, no Ensino Fundamental, pensar e planejar um “espaço da criança”, ou seja, um espaço educativo que reconheça e atenda as especificidades infantis, que preserve o direito à brincadeira, que conceba esse primeiro ano como uma ampliação das possibilidades de aprender, a partir da criação de um ambiente alfabetizador que promova a inserção das crianças ao mundo letrado, a partir de um contexto de socialização sadio, com músicas, jogos, brincadeiras, práticas de leitura... Nesta perspectiva uma pedagoga entrevistada afirma: “[...] Eu vejo que nesse 1º ano, a criança tem que ter contato com a alfabetização, sem sombra de dúvida, mas não pode esquecer o brincar, o lúdico né [...] Então, realmente a criança deve ser respeitada, é direito que ela tem de vir para o 1º ano do 1º ciclo, mas a escola tem que ter esse cuidado com o trabalho pedagógico, porque tem que ter esse cuidado com o brincar tem que ser respeitado”. (V. Pedagoga). Entretanto, se por um lado há o entendimento de que a escola precisa (re) organizar a sua estrutura, os seus espaços e tempos, os conteúdos, a metodologia, de modo que venha acolher as crianças num ambiente prazeroso (onde elas possam viver plenamente a sua infância), por outro, há educadores que acreditam que a antecipação do ingresso da criança no Ensino Fundamental deve ampliar o compromisso com a alfabetização (exigindo-se mais das crianças, das professoras e das famílias), entendendo que, ao final do 1º ano do Ensino Fundamental, “a criança tem que sair lendo e escrevendo”, como mostram os depoimentos a seguir: [...] Se existia alguma escola que não se importava com essa questão de a criança sair do Pré III já lendo e escrevendo, agora ela tem que fazer, a criança tem que sair lendo e escrevendo, tem que ter esse contato com a alfabetização. E também vai exigir mais dos pais, com certeza, um comprometimento maior, porque é um ano que é obrigatório, a criança tem que vir pra escola. Exige mais da escola também porque vai ter uma cobrança um pouco maior né. (F. Pedagoga). 2486 [...] Com a implantação a gente vê mais a questão da alfabetização, uma responsabilidade maior por parte dos pais e das professoras também com a alfabetização. A gente vê no planejamento das professoras uma responsabilidade maior, não é só brincar, só desenhar, é mais trabalhado, dedicação maior. (M. Diretora). É inegável que o trabalho dos anos iniciais do Ensino Fundamental, é essencialmente, o trabalho com a alfabetização, considerando-se, sobretudo, que esse processo se inicia, em muitos casos, antes dos seis anos idade, ou seja, o fato de as crianças serem alfabetizadas formalmente antes dos sete anos não se constitui uma questão nova no meio educacional. No entanto, é necessário que as instituições estejam atentas às formas de acolhimento e inserção das crianças de seis anos no Ensino Fundamental, lembrando que o trabalho com a alfabetização é um processo, e que esse 1º ano é apenas a 1ª etapa desse trabalho. Além disso, o ingresso desses alunos precisa ocorrer de modo natural, sem rupturas com o processo anterior, constituindo-se como continuidade e ampliação das experiências vividas anteriormente pelas crianças no ambiente familiar ou na instituição de Educação Infantil. Isto significa que não deve haver fragmentação entre o trabalho da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, e também que para as crianças de seis anos precisam ser pensados espaços e tempos que garantam aprendizagens, trocas de experiências, num ambiente que considere as singularidades e necessidades dessa faixa etária e o “direito à brincadeira e à produção cultural”, tão enfatizados por Kramer (2003). De acordo com Kramer (2006, p. 810-811): [...] o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educação infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das ações infantis e o direito à brincadeira, à produção cultural, na educação infantil e no ensino fundamental. Isso significa que as crianças devem ser atendidas nas suas necessidades (a de aprender e a de brincar) e que tanto na educação infantil quanto no ensino fundamental sejamos capazes de ver, entender e lidar com as crianças como crianças e não só como alunos. A inclusão de crianças de 6 anos no ensino fundamental requer diálogo entre educação infantil e ensino fundamental, diálogo institucional e pedagógico, dentro da escola e entre as escolas, com alternativas curriculares claras. Nos depoimentos das educadoras, evidencia-se o entendimento de que é no Ensino Fundamental que se inicia o trabalho “sério”, o “compromisso”, com a aprendizagem das crianças, “não é só brincar, só desenhar”. Como se nas instituições de Educação Infantil, as crianças não aprendessem através das brincadeiras e do contato com a produção cultural. É como se separassem: nas escolas de Educação Infantil, as crianças “só brincam”, no Ensino 2487 Fundamental, é o trabalho sério com o conhecimento, “um ano válido”. Assim, revelam-se subjacentes às falas das entrevistadas a dicotomia entre a escola de Ensino Fundamental e a de Educação Infantil, sugerindo que “[...] na educação infantil temos crianças e no ensino fundamental temos alunos!” (KRAMER, 2003, p. 62) Verifica-se assim que a implantação do Ensino Fundamental de nove anos precisa vir acompanhada de uma mudança, sobretudo, na cultura escolar. pois essa instituição, [...] ao longo de sua história, não tem considerado o corpo, o universo lúdico, os jogos e as brincadeiras como prioridade. Infelizmente, quando as crianças chegam a essa etapa de ensino, é comum ouvir a frase ‘Agora a brincadeira acabou!’ Nosso convite, e desafio, é aprender sobre e com as crianças por meio de suas diferentes linguagens. Nesse sentido a brincadeira se torna essencial, pois nela estão presentes as múltiplas formas de ver e interpretar o mundo. (NASCIMENTO, 2006, p. 32). Outro aspecto importante, levantado nos relatos dos educadores entrevistados refere-se à questão dos critérios etários para o ingresso no Ensino Fundamental. Nas instituições particulares, os profissionais apontam os critérios adotados no Estado do Paraná e a convivência com diferentes critérios etários para a entrada no Ensino Fundamental1 como causador de muitos problemas nas escolas: “Em Ponta Grossa está bem complicado pela questão da prefeitura que liberou até o dia 31 de março. Então veja, Ponta Grossa é um município paranaense, como é que pode dois pesos e duas medidas? Para as escolas particulares tem que ser até dia 1º e para as públicas pode ser até dia 31? [...] Eu acho que deveria ser uma mesma data tanto para as particulares quanto para as escolas públicas”. (V. Diretora). No âmbito das escolas municipais, que já acolhiam grande contingente de crianças de seis anos em seus espaços2, as repercussões do critério adotado para o ingresso dos alunos no 1º ano do Ensino Fundamental de nove anos foram, segundo relatos, muito negativas, gerando “atraso escolar”, “exclusão” e “salas ociosas” em muitas escolas do município: “Ficamos este ano com salas ociosas, porque daí como diminuiu né, de dezembro pra março, reduziu o 1 No momento em que esta pesquisa foi realizada, a política de antecipação da obrigatoriedade escolar estava em processo de implantação e o contexto deste momento contava com o documento legal – Deliberação nº 03/06 de 09/06/06 – que fixava para o estado paranaense que para a matrícula no 1º ano do Ensino Fundamental de nove anos, a criança deveria ter seis anos completos ou a completar até o dia 1º de março do ano letivo em curso. No entanto, o município de Ponta Grossa, que conta com sistema próprio de educação havia fixado a data 31 de março para a matrícula das crianças no Ensino Fundamental das escolas da rede municipal de ensino. 2 Com a implantação dos ciclos de aprendizagem, em 2001, a Rede Municipal de Ensino de Ponta Grossa já havia ampliado o Ensino Fundamental, de oito para nove anos, com o ingresso das crianças de seis anos completos ou a completar até o mês de dezembro. 2488 número de alunos e esse é um fato que aconteceu em todas as escolas, tanto que esse ano no 1º ano do 1º ciclo a gente tem uma turma de 24 e uma turma com 20, então veja, nós sempre tínhamos 60, até 90 alunos, esse ano diminuiu pra 44, então é pouco. (A Pedagoga) Outro aspecto que merece ser discutido e que foi destacado pelas diretoras e pedagogas das escolas municipais é a prática, muito presente, na cultura brasileira de uma gestão que sucede a outra desconstruir as políticas implementadas pela gestão anterior. A indignação da diretora quando diz: “[...] No nosso caso, que já tinha, que estávamos acolhendo um número maior de crianças, que as crianças já estavam na escola, agora, de repente, haver esse recorte, as crianças ficarem de fora, eu vejo um retrocesso muito grande dos dirigentes! (S. Diretora), denuncia a presença desta prática na gestão atual do município de Ponta Grossa. Essa “operação desmonte” que se instaura a cada início de gestão municipal ou estadual gera como conseqüência à impossibilidade de se avaliar as políticas implementadas na gestão anterior. Uma vez que as políticas educacionais só materializam os seus efeitos depois de serem implementadas como práticas pedagógicas no interior da escola e isso demanda mais de uma gestão. Considerações Finais O estudo verificou que a implantação do Ensino Fundamental de nove anos provocou e ainda tem provocado muitas inquietações, dúvidas, diferentes opiniões e interpretações diversas dos dispositivos legais, gerando posicionamentos divergentes que conduzem a diferentes decisões e ações administrativo-pedagógicas no interior dos espaços escolares. O estudo mostrou, com base nos relatos dos profissionais entrevistados, que a falta de compreensão da política pública e as interpretações dos dispositivos legais foi fator que gerou uma série de impactos no interior das escolas. De modo geral, tanto as escolas particulares quanto as municipais apontaram os critérios adotados para matrícula das crianças de seis anos no Ensino Fundamental como um fator que limitou o ingresso das crianças, impedindo que um número maior de alunos fossem beneficiados com a política pública: “[...] Quando te digo que você pegava as crianças, que completavam a idade no decorrer do ano, isso quer dizer que elas já estavam na escola, que já havia vaga pra essas crianças, que não haveria motivos pra barrar que essas crianças entrassem, a não ser motivos de ordem de gestão, de concepção, de sistema, que vê de forma diferente. Mas se as crianças já estavam na escola, por que tirá-las? Por que não deixar ingressar mais cedo?[...] Ao invés da escola estar 2489 acolhendo, a escola está excluindo! [...] Então isso tem que ser realmente revisto [...]”(S. Diretora) Esses depoimentos apontam que as políticas públicas não se encontram livres da influência dos valores e crenças dos sujeitos. Pode-se dizer, que os processos de interpretação dos textos legais pelos indivíduos podem induzir a diferentes decisões e ações no contexto educacional, tal como aponta a educadora entrevistada: “[...] Cada governo age conforme pensa, conforme a concepção e quando muda a gestão de um governo mais progressista pra um governo de direita, aí você vê essas mudanças nitidamente. Volta aquela concepção de escola pobre pra pobre, que não precisa de muita coisa. Tomara que as pessoas parem para pensar nisso”. (S. Diretora). A pesquisa revelou que ainda falta, para muitos gestores e pedagogos compreender a lógica da ampliação do Ensino Fundamental. Esta lei constitui-se como um instrumento que possibilita a todas as crianças usufruir as mesmas igualdades de oportunidades, se considerarmos que as crianças das classes sociais mais privilegiadas já estavam, majoritariamente, nas escolas, seja em classes de alfabetização, pré-escolas ou primeira série. A pesquisa apontou ainda que é necessário um trabalho com pedagogos e gestores para entender que a inserção dessas crianças na escolaridade obrigatória deve vir acompanhada de preocupação em redimensionar o trabalho pedagógico para que a criança tenha a garantia de uma educação de qualidade, num espaço que as reconheça e respeite, como nos lembra Kramer (2003), “como sujeitos históricos e culturais”. É preciso que a implantação do Ensino Fundamental de nove anos seja acompanhada de uma mudança, sobretudo, na cultura escolar, que infelizmente ainda fragmenta as ações das escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, tratando como “crianças” apenas aquelas que freqüentam a Educação Infantil, e como “alunos”, as que ingressam no Ensino Fundamental. Além disso, o estudo mostrou que para que a política de antecipação da obrigatoriedade escolar venha beneficiar um maior contingente de crianças é necessário maior clareza a respeito dos significados da política pública, ações administrativo-pedagógicas coerentes, bem como uma gestão comprometida, que dê continuidade às políticas implementadas, para, assim, dar cumprimento à legislação e fazer “sair do papel” um direito social e humano tão importante: o direito à educação. 2490 REFERÊNCIAS BATISTA, A.A.G. Ensino Fundamental de 9 anos: um importante passo à frente. Boletim UFMG, Belo Horizonte, v.32, n.1522, mar.2006. BRASIL. Lei 11.274, 6 de fevereiro de 2006. Altera a redação dos arts. 29, 30,32 e 87 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 de fev.2006. 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