Ficha Técnica BOLETIM DE SOCIOLOGIA MILITAR Diretor: Coronel de Infantaria Fernando Manuel Oliveira da Cruz Periodicidade: Anual Conselho Científico: Maria de Lurdes Fonseca, Helena Carreiras, António Teixeira Fernandes, António Firmino da Costa, Gen Silvestre Porto, Francisco Moita Flores, João Sedas Nunes, Maria da Saudade Baltazar. Chefe da Redação: Tenente-Coronel de Artilharia Amílcar José Teixeira da Cunha Redação: Alferes RC Hélder Rafael dos Santos Moreira, Alferes RC Vítor Miguel Silva Gonçalves, Rui Farelo Autores: Alexandre Moura, Helena Carreiras, Isabel Ribeiro, Helena Jerónimo, Pedro Pinheiro, Adelino Costa Cabral, Thiago Moraes, Rui Eusébio, Andreia Filipa Duarte Pires, Cândido Peixoto Fernandes. Edição: Centro de Psicologia Aplicada do Exército ISSN: 2182 – 6226 BOLETIM DE SOCIOLOGIA MILITAR N.º 3 CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA DO EXÉRCITO CPAE 2012 INSTRUÇÕES AOS AUTORES O Boletim de Sociologia Militar publica artigos e notas de investigação, revisão ou discussão teórica, nos domínios da Sociologia e de outras Ciências Sociais, Humanas e do Comportamento, que de alguma forma contribuam para o estudo ou desenvolvimento da Instituição Militar. Os artigos recebidos estão sujeitos à apreciação do Conselho Científico e da Redação, sendo o seu conteúdo da inteira responsabilidade dos autores. Na apresentação dos artigos os autores devem seguir as seguintes instruções: 1. Os artigos não deverão ultrapassar as 25 páginas incluindo notas, bibliografia e quadros. 2. Os originais deverão ser enviados num ficheiro Word, Arial, tamanho 11 (espaço 1,5 cm), para o Centro de Psicologia Aplicada do Exército, Praça do Comércio, 1100-148 Lisboa, dirigido aos Coordenadores de Redação, ou através de email: [email protected]. 3. Os artigos devem ser acompanhados de um resumo em português e outro em inglês não devendo ocupar mais que 10 linhas, cada um, dessa mesma página. Deverá ser feito em letra Arial, tamanho 9, com espaçamento de 1 linha. As palavras- chave (Keywords) são obrigatórias e colocadas a seguir ao Resumo (Abstract), (mínimo 3 palavras e máximo 7 palavras). 4. Todos os artigos entregues deverão já conter o título definitivo e a referência ao(s) seu(s) autore(s) (instituição, categoria, área de especialização e elementos de contacto). 5. Os quadros e as figuras devem ser usados apenas se contribuírem fortemente para a clarificação do artigo. Devem ser representados em folhas, devidamente numerados e acompanhados de breves legendas. A sua localização no texto deve ser claramente indicada. As figuras devem possuir elevada qualidade gráfica, de modo a permitir a sua reprodução sem perda apreciável de nitidez e a sua eventual redução. 6. As referências e autores de obras devem obedecer ao seguinte: (Robinson, 1978); (Piaget & Szeminka, 1941); (Bronckart, Papandropoulou & Kilcker, 1976); (Van der Pligt et al., 1982); Freud (1924 a; 1924 b), devendo ser listadas alfabeticamente, no final do artigo, as referências bibliográficas (apenas as obras referidas no texto), obedecendo ao seguinte formato: Andersen, N. & Schalk, R. (1998). The psychological contract in retrospect and prospect. Journal of Organizational Behavior, 19, pp.637-647. Chambel, M.J. (2005). Stress e Bem-Estar nas Organizações. In A., Marques Pinto & A. Lopes da Silva (2005). Stress e Bem-Estar. Lisboa: Climepsi Editores. Lazarus, R., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal and copping. New York: Srpinger. CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA DO EXÉRCITO (CPAE) Contatos: 213 260 680, 916103247, 916103371 Correio Eletrónico: [email protected] Sítio da Internet: http://www.exercito.pt ÍNDICE Gestão do desempenho dos militares do Exército: Uma proposta de mudança ..................... 3 Alexandre Moura, Isabel Ribeiro e Pedro Pinheiro Do uniforme militar ao desvio e à reclusão – Um olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar. .......................................................................................................................................... 22 Alexandre Moura e Helena Carreiras Gestão de carreiras no Exército Português: Uma proposta de modelo aplicado .................. 66 Helena Jerónimo e Isabel Ribeiro Gestão e desenvolvimento de carreiras: O caso da Marinha Portuguesa .............................. 86 Adelino Costa Cabral Porque os homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo ............................................ 121 Thiago Moraes A incerteza do risco: ensaio relativamente ao tema sociedade de risco de acordo com Ulrich Beck e Anthony Giddens............................................................................................... 142 Rui Eusébio Dois olhares sobre a mesma perspectiva – sociedade do risco - Ulrich Beck E Anthony Giddens ..................................................................................................................................... 152 Andreia Filipa Duarte Pires O desemprego estrutural em Portugal (2001-2011): dois conceitos em conflito, devido às mudanças da economia política .............................................................................................. 163 Cândido Peixoto Fernandes Editorial Coronel de Infantaria Fernando Manuel Oliveira da Cruz Caros leitores, Trazemos até vós o número 3 do Boletim de Sociologia Militar. O terceiro número de uma publicação anual que procura reunir o que de qualidade se realiza numa área que é cada vez mais desafiante, intensa e motivadora. Tendo em conta as dificuldades financeiras que o País, o Exército e o Centro de Psicologia Aplicada atravessam, foi tomada a decisão de se efetuar a presente publicação em suporte informático. Não quisemos deixar de publicar os trabalhos que, no último ano, foram sendo realizados no âmbito da investigação em Sociologia neste Centro e noutros com os quais temos excelentes relações de amizade e cooperação. O Boletim de Sociologia Militar pretende ser um espaço de encontro e de partilha. É nossa intenção cumprir um desígnio científico e cultural no meio civil e militar, dando um contributo epistemologicamente humilde mas esforçado e honesto. A ligação à sociedade, designadamente através das Instituições de Ensino Superior e Centros de Investigação, é um desígnio e uma realidade deste Centro. Queremos cada vez mais mostrar a nossa Instituição à comunidade e interagir com ela, contribuindo, na nossa área de atividade, com tudo aquilo que estiver ao nosso alcance. É disso exemplo este Boletim de Sociologia. Termino, agradecendo a todos os Militares e Civis que tornaram possível a concretização deste Boletim de Sociologia. Aos leitores, desejamos uma agradável e proveitosa leitura. O Diretor Fernando Manuel Oliveira da Cruz Coronel de Infantaria Boletim de Sociologia Militar N.º 3 – 2012 PP. 3 a 21 GESTÃO DO DESEMPENHO DOS MILITARES DO EXÉRCITO: UMA PROPOSTA DE MUDANÇA Alexandre Moura*, Isabel Ribeiro** e Pedro Pinheiro *** RESUMO Este artigo faz parte de uma investigação desenvolvida no Centro de Psicologia Aplicada do Exército. A investigação tem como principal objetivo constituir um contributo para um sistema de avaliação e gestão do desempenho que seja adequado à especificidade militar, procurando reter a filosofia e o paradigma subjacente ao Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho da Administração Pública (SIADAP). Palavras-chave: Avaliação de desempenho; Gestão de desempenho; Competências; SIADAP; Exército ABSTRACT This article makes part of an investigation developed in Centro de Psicologia Aplicada do Exército. The research have the main goal of constitute a contribution towards an evaluation system and performance management that suits to the military specificity, seeking retain the philosophy and the underlying paradigm of Sistema de Gestão e Avaliação do Desempenho da Administração Pública (SIADAP). Keywords: Performance evaluation; Performance management; Skills; SIADAP; Army INTRODUÇÃO Em qualquer organização, a procura da excelência e do mérito devem estar sempre presentes. Neste contexto, a avaliação e gestão do desempenho constituem um suporte essencial para a gestão dos recursos humanos, contribuindo para a validação do recrutamento e da seleção, em sintonia com os objetivos organizacionais e estratégicos da Organização, possibilitando a identificação da evolução dos colaboradores, diagnosticar necessidades de formação e melhoria dos postos e processos de trabalho, tendo sempre em vista dinâmicas de evolução profissional numa perspetiva de distinção do mérito e da excelência. Todavia, estes processos não poderão ser efetuados sem o reforço da intervenção dos colaboradores no processo de avaliação dos serviços e das suas ações. A Avaliação do Desempenho (AD) é uma necessidade imperiosa em qualquer instituição. Deve ser justa, ponderada e baseada num modelo válido e actual. Deve privilegiar a excelência, a qualidade e o mérito, visando contribuir para a coerência e harmonia dos serviços/acções dos * Major de Cavalaria, Centro de Psicologia Aplicada, Sociólogo Alferes RC, Centro de Psicologia Aplicada, Socióloga *** Alferes RC, Centro de Psicologia Aplicada, Sociólogo ** 3 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército Comandantes/Dirigentes e demais colaboradores, promover a motivação e o desenvolvimento de competências. A satisfação, a motivação organizacional, o desenvolvimento de competências, o interesse, a pró-actividade, o cumprimento rigoroso dos objectivos da Organização, podem ser mais facilmente atingíveis se o Exército conseguir antecipadamente percepcionar os problemas, as aspirações, expectativas de carreira e motivações, tendo em vista a definição de um modelo de gestão de desempenho que consiga aliar as perspectivas organizacionais/institucionais, definidas pela Instituição e a carreira individual desenvolvida pelo próprio militar, promovendo-se a compatibilização dos interesses institucionais e individuais. Com a avaliação dos colaboradores procurar-se-á contribuir para a melhoria da gestão dos Recursos Humanos, desenvolver e consolidar práticas de avaliação, identificar as necessidades de formação e desenvolvimento pessoal adequados à melhoria do desempenho dos serviços, dos dirigentes e dos trabalhadores. A promoção da motivação, o desenvolvimento de competências e qualificações, a formação ao longo da vida, são factores que também não devem ser descurados. Neste contexto, procuramos investigar, discutir e propor um sistema de Gestão do Desempenho adaptado ao Exército Português e à sua especificidade, que comungue das orientações, perspectivas e filosofia do Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública (SIADAP). Este foi de uma forma sucinta, o objecto de estudo da nossa investigação, contribuindo para a constituição de um sistema que motive, avalie e desenvolva os militares na Organização. Neste sentido apresentaremos um modelo conceptual, assente na gestão por objectivos e num modelo por competências, permitindo o desenvolvimento dos recursos humanos em conjugação com os objectivos gerais e estratégicos do Exército. Esta investigação, autorizada por despacho de 24 de Maio de 2010 de S. Ex. General CEME, pretende constituir, assim, um contributo para um sistema de avaliação e gestão do desempenho. Vamos, aqui, apresentar uma proposta de um modelo conceptual, assente na gestão por objetivos e num modelo por competências, permitindo o desenvolvimento dos recursos humanos em conjugação com os objetivos organizacionais, estratégicos, de gestão e operacionais do Exército. Pretendemos um sistema de avaliação de desempenho contextualizado com a Missão e a Visão da Organização e interligado com todas as práticas de Recursos Humanos da Organização (Formação, Recompensas, Recrutamento e Selecção, Desenvolvimento de Carreiras, Gestão de Competências). 4 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO E/OU GESTÃO DO DESEMPENHO Na perspetiva de alguns autores, o desempenho pode ser concebido enquanto comportamento (meios) ou enquanto resultados (fins) (Caetano, 2007: 74), ou como um ato de cumprir (…) uma determinada missão ou tarefa aprioristicamente delineada… (Chiavenato, 2004: 98). Na perfectiva destes autores, o desempenho está intimamente relacionado com a motivação e com os conhecimentos, capacidades e habilidades demonstradas. Marras (2000) define desempenho como o acto ou efeito de cumprir ou executar determinada missão ou meta previamente traçada. Para António Caetano (1998), o desempenho pode, por um lado, ser entendido como um comportamento, sendo que nesta perspetiva de ação centra-se nas exigências das funções. Por outro lado, na perspetiva dos resultados, focaliza-se nos resultados que derivam das atividades levadas a cabo pelos colaboradores num determinado período de tempo. A avaliação de desempenho profissional constitui certamente um dos fenómenos que maior perturbação introduz no funcionamento regular de qualquer organização (Caetano, 2008). Ainda assim, vários autores têm evidenciado esta prática dos recursos humanos como um agente de sucesso nas organizações e da qual depende tanto o seu sucesso estratégico como a sua capacidade competitiva, pressupondo-se que o desempenho da organização deriva da confluência do desempenho individual de todos os seus colaboradores. O conceito de avaliação de desempenho pode ser entendido como um processo de análise metódica pelo qual uma organização identifica em que medida o desempenho de cada trabalhador contribui para atingir os objectivos estratégicos e alcançar os resultados, a fim de se identificar quais os aspectos positivos e negativos, tentando, simultaneamente, encontrar oportunidades de evolução, proporcionando ao avaliado a possibilidade de tomar conhecimento acerca do desempenho que é espectável. Quando bem conduzida, a avaliação de desempenho, pode representar mais-valias tanto para a organização, como para o avaliador, como ainda para o avaliado, uma vez que, em conjunto, as diferentes partes envolvidas podem estabelecer processos e procedimentos mais eficazes que conduzam a níveis de desempenho superior, adaptados aos diferentes departamentos e funções. Permite, também, definir objectivos claros para o futuro, avaliar o potencial de desenvolvimento e estabelecer os meios apropriados para motivar os indivíduos (Yemm, 2005). Assim, torna-se imperioso determinar como qualificar/medir/quantificar o desempenho, sendo esta uma das questões mais críticas de qualquer gestor de recursos humanos. A quantificação/medição do desempenho, segundo Rui Gonçalves (2008), é um acto de avaliação que obriga a uma comparação que aferirá o grau de concordância entre as partes em avaliação, exigindo uma recolha de indicadores que permitam realizar comparações com níveis de 5 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército desempenhos anteriores e desempenhos pretendidos. Nesta sequência, podem-se utilizar inúmeros critérios de comparação para efeitos de avaliação de desempenho numa determinada organização. Os mais frequentes alicerçam-se em objetivos e em competências. Todavia, existem situações em que é muito difícil encontrar critérios ou medidas objetivas, pelo que tem de se optar por indicadores qualitativos, os quais, na maioria das vezes, são avaliados de uma forma mais subjetiva. Consequentemente, julgamos ser consensual admitir que a componente subjetiva na medição do desempenho é difícil de excluir totalmente. De acordo com inúmeros autores, a Avaliação do Desempenho (AD) tende a ser inserida num conceito mais abrangente denominado de Gestão do Desempenho (GD). A Gestão do Desempenho poderá ser entendida como um processo societal de influência, comunicação e negociação entre avaliador e avaliado, que ocorre no âmbito de uma qualquer atividade com o objetivo de estabelecer entendimentos mútuos em relação às tarefas que o avaliado tem de efetuar, aos resultados esperados, ao contributo desses resultados para os objetivos da organização, à forma como vai ser medido o desempenho e à identificação e correção de desvios no desempenho efetivo. As componentes de um sistema de gestão do desempenho são as que se enumeram: O planeamento do desempenho; o feedback/comunicação contínua sobre o desempenho; a(s) reunião(ões) de desempenho propriamente ditas; a diferenciação; a harmonização; o diagnóstico de ensino e desempenho e, cumulativamente a todas as anteriores, o registo/observação contínua e recolha de dados. Não podemos considerar a avaliação de desempenho, conforme argumentam Cascão & Cunha (1998), um fim, mas antes um meio para melhorar os resultados dos recursos humanos na organização. Nesta perspectiva, não pode restringir-se ao julgamento superficial e unilateral das chefias a respeito do comportamento funcional dos subordinados. Consequentemente, emerge a necessidade de estabelecer perspectivas de comum acordo com o avaliado. Independentemente do que está em causa, terá de se considerar, sempre, a cultura organizacional e o contexto enquanto fatores delimitadores do desempenho, uma vez que o sujeito adota determinados comportamentos na execução de tarefas, num contexto particular, com vista na obtenção de resultados específicos (Caetano, 2008) MÉTODOS PARA A AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO O desenvolvimento de um processo de avaliação do desempenho deve ter em conta os intervenientes, internos e externos, importantes para a organização, bem como o contexto que influencia a tomada de decisão. Neste sentido, podemos identificar diferentes métodos para a avaliação de desempenho de desempenho, dos quais Caetano (2008) destaca os que se focalizam na pessoa, no comportamento, no contexto e nos resultados. 6 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Os sistemas tradicionalistas procuram avaliar o desempenho focalizando-se “nas pessoas”, nas suas características ou traços de personalidade. No entanto, a validação do sistema, a sua praticabilidade e a investigação demonstraram fragilidades e alguma perversidade, pois a avaliação baseava-se em julgamentos acerca dos atributos da personalidade do avaliado, não estando alicerçado em qualquer critério relacionado com o desempenho na função. Todavia, a avaliação do desempenho através do julgamento destes atributos voltou a surgir nos últimos anos, agora sob a designação de avaliação por competências, interessando não a avaliação da competência em si mas a demonstração efetiva e indubitável dessa competência no desempenho das tarefas que estão atribuídas avaliado. Como alternativa ao sistema mencionado anteriormente, surgiu o sistema focalizado “nos comportamentos”. As escalas de observação comportamental consistem em descrições precisas de comportamentos a adotar ou adotados pelos colaboradores, os quais podem ser adequadas em certo tipo de funções pouco complexas e relativamente padronizados. Um outro sistema de avaliação e gestão do desempenho preocupa-se com a “comparação de pessoas no contexto social”. Consiste num método de avaliação que compara pessoas com cargos semelhantes para apurar quem são os melhores, procedendo-se a ordenações de avaliados. É um método que acarreta uma grande dose de subjetividade, pelo que acreditamos que apenas deve ser tomado em consideração em conjugação com outros métodos. O sistema de medição do desempenho focalizado “nos resultados”, também conhecido por avaliação por objetivos, é o que se encontra mais generalizado no presente momento. Diversos autores consideram-no como a melhor forma de avaliar o desempenho. A avaliação por objetivos mede o desempenho do colaborador de acordo com uma série de objetivos/resultados/metas negociadas individualmente para cada colaborador. Os objetivos e os resultados são definidos durante a fase de planeamento da avaliação e assumidos de forma a serem medidos objetivamente. A organização comunica ao colaborador quais são as expectativas relativas ao seu desempenho para o ciclo avaliativo que e vai seguir. O conhecimento destas metas, resultados e expectativas pode permitir ao colaborador regular a sua própria atividade, organizar o seu trabalho e estabelecer prioridades, aumentando assim a sua autonomia e responsabilidade. O conhecimento das metas a atingir possibilita-lhe a identificação dos desvios que está a cometer e, eventualmente, identificar os fatores que o determinaram e as medidas de correção a concretizar, ficando mais predisposto para aceitar feedback e/ou aconselhamento por parte do avaliador As nossas propostas, de acordo com o praticado na maioria das organizações atuais, focaliza-se em mais do que um aspeto do desempenho pelo que se pode designar de “sistema de gestão misto”. Na verdade, as propostas que mais à frente apresentaremos, combinam essencialmente dois métodos de avaliação (desempenho focalizado nos resultados e demonstração efetiva de um certo número de competências obrigatórias e complementares) e, 7 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército marginalmente, um terceiro método (comparação em contexto laboral) ao procedermos à comparação de pares. METODOLOGIA Um trabalho de investigação visa acima de tudo, compreender melhor os significados de um acontecimento ou de uma conduta, fazer inteligentemente o ponto da situação, captar com maior perspicácia as lógicas de funcionamento de uma organização, reflectir acertadamente sobre as implicações de uma decisão política, ou ainda compreender com mais nitidez como determinadas pessoas apreendem um problema e a tornar visíveis alguns dos fundamentos das suas representações (Quivy, 1992). Em termos metodológicos, efectuamos um estudo de carácter exploratório de natureza essencialmente qualitativa, utilizando técnicas documentais modernas - segundo a visão de António Firmino da Costa (1986) - recorrendo à análise de conteúdo e a revisões bibliográficas e documentais específicas quer nacionais quer estrangeiras, sobretudo na área da gestão dos Recursos Humanos, com incidência na Gestão do Desempenho. A análise documental caracteriza-se por ser uma fonte rica e segura de informação, tem um baixo custo e trata-se de um excelente utensílio para estimular o espírito crítico ajudando a perceber algumas questões. Note-se que a análise documental é uma técnica muito utilizada na maioria das investigações em Ciências Sociais, o que revela ser uma boa técnica, sempre em mudança e muito precisa (Quivy, 1992). Convém, porém, referir que nem tudo se apresenta como vantagem, dado que pode trazer alguns constrangimentos, como a falta de objectividade dos documentos ou a omissão de informação relevante. Com o intuito de sustentar ainda mais o nosso trabalho, captámos determinadas representações e narrativas, utilizando técnicas não documentais como a observação não participante, realizando entrevistas semi-directivas e directivas a Informantes Privilegiados, designadamente: ao Exmo. Chefe da Divisão de Recursos do Estado Maior do Exército, ao Exmo. Director da Direcção de Administração de Recursos Humanos, ao Exmo. Chefe da Repartição de Pessoal Militar/DARH, aos Exmos. Comandantes e Oficiais de Pessoal das três Brigadas do Exército, ao Exmo. 2º Cmdt AM e ao Exmo. Coordenador Área Ensino Específico do Exército (IESM) A deslocação de uma equipa de investigadores a outros Exércitos -Espanhol e Holandês possibilitou o contacto com a realidade avaliativa destes, permitindo obter uma maior riqueza de informação. A escolha dos referidos Exércitos deveu-se fundamentalmente a aspectos relacionados com a proximidade geográfica e a alguma comunhão/partilha de valores e modos de actuação (Exército Espanhol) e o número aproximado de efectivos (Exército Holandês). 8 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 PROPOSTA DE INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO APLICADO AO EXÉRCITO De seguida, gostaríamos de salientar alguns aspetos que, de acordo com Adalberto Chiavenato (2004), são fundamentais durante a investigação e eventual implementação de um sistema de avaliação do desempenho e que nortearam a nossa ação. O primeiro aspeto que tivemos em consideração consistiu em verificar se a organização necessitaria, efetivamente, de um novo método/sistema de avaliação. Tendo em conta as intenções do Comando do Exército, e análise das entrevistas exploratórias, julgamos que a resposta é positiva. Neste caso, passa a existir a obrigatoriedade de clarificar qual a relação do sistema de avaliação com a estratégia global da organização e com os valores organizacionais/estratégicos pretendidos, tornando-se necessário que a alta direção da organização (neste caso o Comando do Exército) esteja envolvida neste processo. O segundo aspeto que pretendemos clarificar, foi os “objetivos da avaliação”. Tentámos definir com alguma clareza qual a finalidade do sistema de avaliação a criar, uma vez que não nos foram transmitidas essas intenções. Apesar disso, acreditamos que o Exército Português terá este pormenor equacionado. De facto, julga Chiavenato (2004), é importante definir se o sistema de avaliação do desempenho se destina a justificar/fundamentar decisões sobre gestão de carreiras, escolhas, nomeações; a identificar as necessidades de formação; a promover os mais aptos; a recompensar monetariamente os que se distinguem. Os objetivos equacionados para o sistema de avaliação condicionam e influenciam o tipo de sistema a criar, nomeadamente no que se refere aos critérios e processos de medição, aos seus intervenientes, aos procedimentos e aos processos de comunicação. Neste aspeto, julgamos que existe a necessidade de definir como é que este sistema de avaliação vai interagir com os outros sistemas de gestão em uso, de forma a implementar as necessárias alterações ou ajustamentos em cada um deles. Este é um trabalho que necessitará de ser iniciado e complementado futuramente e que não mereceu a nossa atenção. Como qualquer sistema de avaliação é um meio para se gerirem os trabalhadores de uma qualquer organização de modo promover-se a sua coordenação e desenvolvimento, só se atingirá esta premissa se o sistema de avaliação e gestão do desempenho for aceite, bem conhecido e assumido como adequado pelas diversas hierarquias. Este é um facto que necessitará de uma especial atenção no caso do Exército Português. Outro aspeto que tivemos em consideração foi “o que avaliar”. Como já foi referido, existem diversos aspetos relacionados com o desempenho que podem ser, ou não, utilizados. Referimo-nos a resultados/objetivos, comportamentos, atitudes, conhecimentos, habilidades, atributos de personalidade. Após decidir o que avaliar, tivemos de decidir o que medir. Decidimos que a avaliação contemplaria critérios mistos – objetivos e competências – sendo necessário 9 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército definir eventuais combinações e respetivas ponderações para a avaliação global. Sobre estes dois pontos falaremos mais à frente. “Quem deve estar envolvido na avaliação” foi o aspeto seguinte que mereceu a nossa atenção. Usualmente, a conceção de um sistema de avaliação e gestão do desempenho deve ser liderado pelo seu departamento de recursos humanos e formado por uma equipa multidisciplinar que envolva representantes de outras unidades orgânicas – na maioria das vezes recebendo a apoio de investigadores/consultores externos à organização – de modo a acompanharem todo o processo, contribuindo-se assim para a diminuição das desconfianças e promovendo-se a adaptação do futuro sistema de avaliação às efetivas necessidades e objetivos da organização. Com esta participação “multidisciplinar e universal” de todos os departamentos estimula-se e motiva-se os colaboradores para a mudança e facilita-se a difusão e aceitação do sistema. O Comando do exército não entendeu, devido a critérios de privacidade e descrição, alargar a grupo de trabalho a mais intervenientes, apesar da nossa proposta mencionar essa intenção. Assim, o grupo de trabalho ficou apenas constituído por elementos pertencentes ao CPAE. Outro aspeto que mereceu a nossa atenção foi quais os “alvos da avaliação”. Sabendo que a filosofia do SIADAP 1, subsistema de avaliação do desempenho dos serviços da Administração pública e SIADAP 2, avaliação dos dirigentes superiores e intermédios, contribuem para o reconhecimento de que as equipas e as organizações devem ser também avaliadas, sentimos a necessidade de determinar até onde iria o nosso trabalho. Com efeito, tentámos efetuar duas Fichas de Avaliação do Desempenho (FAD para Oficiais e Sargentos e FAD para Praças) que se preocupam fundamentalmente com a avaliação do desempenho dos militares (equivalente à filosofia subjacente ao SIADAP 2 – Oficias e Sargentos e SIADAP 3 - Praças) e não tanto sobre a organização, pois seria efetuar um trabalho que não nos foi pedido. Depois preocupámo-nos com a decisão de “quem avalia, quais os avaliadores”. Para esta decisão tivemos em consideração a cultura organizacional da nossa instituição, a sua história e valores, os custos associados, a burocracia a criar, a sua futura eficácia e eficiência. Alguns destes aspetos necessitarão de ser esclarecidos futuramente, caso a nossa proposta seja aceite. Usualmente, a principal fonte de informação na nossa instituição é o chefe imediato do avaliado, apesar do RAMME apenas admitir como primeiro avaliador um Capitão. Julgamos que na avaliação dos postos mais baixos da hierarquia militar – Cabos e Soldados – o primeiro avaliador possa ser Oficial Subalterno, o Sargento de Pelotão ou mesmo um dos demais Sargentos do Pelotão, desde que tenha a maturidade organizacional para o fazer. Todavia, tendo em consideração as alterações organizacionais que têm ocorrido, é usual o próprio avaliado ser fonte de informação, o que se designa por auto-avaliação. Assim, na generalidade dos sistemas em uso são consideradas três fontes de informação: O avaliado, o chefe imediato e o chefe seguinte. Na nossa proposta, tendo em consideração a cultura 10 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 organizacional da Instituição, adicionámos o Comandante/Diretor/Chefe ao conjunto de avaliadores. Após as definições anteriores, tentámos criar o(s) documento(s) que registará(ão) o processo de avaliação – o “formulário(s) de avaliação” que designámos por FAD. Tentámos manter o formulário o mais simples possível, tomando como referência vários formulários como o do SIADAP, FAI da Marinha Portuguesa, do Exército Português, da Força Aérea Portuguesa, do Exército dos Estados Unidos da América, do Exército Espanhol, das Forças Armadas dos Países Baixos, do Exército Brasileiro, international evaluation report usado em ambiente OTAN, entre outros formulários como o do Banco Santander Totta e da Caixa geral de Depósitos. CRITÉRIOS DE ESCOLHA DAS COMPETÊNCIAS A definição de uma linha estratégica a que uma organização se compromete para levar a cabo a sua missão, permite a identificação de um conjunto de actividades e tarefas indispensáveis para a concretizar. Essas actividades são agrupadas em cargos e funções com determinada complexidade e grau de responsabilidade. É então, preocupação de qualquer organização, que os seus colaboradores detenham um conjunto de conhecimentos, capacidades, atitudes e comportamentos que permitam atingir um bom desempenho. Este conjunto de conhecimentos e comportamentos denominam-se competências. A identificação das competências numa organização deve assentar em diversos tipos de metodologias de análise e descrição de funções. Como exemplos podem ser identificados os incidentes críticos, os questionários estruturados, a observação, as descrições de funções anteriores, as entrevistas, os formulários de avaliação de desempenho, etc. (Cunha, M.P, et al, 2010, p.558). Desta forma, teremos que assumir, que para fazer correctamente o levantamento das competências seria necessário uma análise e descrição de funções de todos os cargos do Exército, que permitiria identificar o conjunto de actividades e tarefas que o integram, bem como os factores críticos do seu sucesso. No entanto, devido a limitações temporais, para a realização do presente Estudo, não foi utilizada essa metodologia. Para a identificação das competências tivemos como ponto de partida o modelo utilizado no estudo realizado sobre o Perfil do Oficial do Exército oriundo da AM no qual os autores consideraram que o modelo que o Exército Português poderia adoptar, deveria por um lado sustentar-se nos valores e características, qualidades pessoais, e incluir competências definidas como acções, mas também como processos, o que vem de acordo com Spencer e Spencer (1993), referido anteriormente, uma vez que procura representar a totalidade do iceberg. Levando em conta Cascão (2004), o autor define três aspectos essenciais em relação ao tratamento a dar às competências: 11 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército - Uma orientação prioritária para o trabalho e para as suas exigências funcionais; - Uma orientação, que embora parta das exigências do trabalho, se concentre na interacção constante entre o sujeito e a função no sentido de mobilizar as características individuais para a construção de desempenhos; - Uma orientação centrada essencialmente na pessoa e nos comportamentos evidenciados, nomeadamente os baseados em desempenhos superiores; - A necessidade de um modelo de competências, aparece na maior parte das organizações ligada à gestão e por isso muito centrada nas acções e nos desempenhos, porém o Exército como escola empresa, quando pensa em acções, pensa em simultâneo em formação e selecção. O modo de descrição das competências no Exército, deve por isso incluir as descrições comportamentais, acções concretas, mas também os processos, uma vez que é a partir destes que se podem desenhar curricula ou desenvolver requisitos para a selecção de pessoal (in Silva, et al, 2006, p.31). As competências podem ser transversais às organizações, sendo uma ferramenta poderosa ao serviço de outras práticas e políticas de gestão de pessoas. Segundo esta perspectiva procuramos identificar um conjunto de competências para os militares do Exército Português compatíveis com os valores, a missão e a estratégia da Organização combinado com outros modelos. Para tentarmos obter uma seleção o mais rigorosa e o mais criteriosa possível procuramos fazer uma análise e uma comparação entre: - As competências identificadas nos vários ramos das Forças Armadas, Exército, Marinha e Força Aérea; -As competências avaliadas no Exército Espanhol, Exército Holandês e na Ficha de Avaliação Internacional (Nato); - O perfil de competências para cada um dos grupos profissionais da Administração Pública definidos no SIADAP. - As competências requisitadas, actualmente, por outras organizações (por exemplo, resiliência e adaptabilidade). Tendo em conta a conjectura económica e social que o País atravessa, as empresas procuram-se adaptar às constantes mudanças para que possam continuar a manterem-se competitivas, as Forças Armadas também têm essa necessidade de procurar novas respostas e de se adaptar às crescentes exigências. Após o estudo, a comparação e a discussão para chegarmos ao Perfil de competências que propomos para Oficiais/Sargentos e para as Praças tivemos em consideração os seguintes aspectos: - Os valores e as atitudes por que, Oficiais, Sargentos e Praças, pautam a sua acção; - As actividades desempenhadas bem como o grau de exigência; - As competências que mobilizam na realização dessas actividades; - Os conhecimentos que necessitam de possuir; 12 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 - Em que condições ambientais ou outras e sob que exigências físicas, sensoriais ou Psico-motoras desenvolvem a sua actividade profissional. Procurámos definir um número de competências que torne possível a sua observação eficaz e objectiva. Em regra, o perfil de uma função deve ter entre 8 e 12 competências, no somatório das genéricas e específicas (Camara, P, 2007, p.359). Através da análise referida em cima, construímos um modelo de desempenho que define critérios de competências a diferentes níveis tendo em conta o grau de complexidade das tarefas e o nível de responsabilidade. Debruçamo-nos, então, sobre a identificação de competências específicas de alguns postos e as competências comuns a todos - competências transversais. As competências transversais a todos os militares (Oficiais, Sargentos e Praças) estão sobretudo, ligadas à cultura da Organização: missão, objectivos e valores, como já referimos. Para Oficiais e Sargentos identificamos o seguinte conjunto de competências comuns: resiliência, inteligência prática, trabalho em equipa e cooperação, conhecimento técnicoprofissional, comunicação, adaptabilidade, relações interpessoais, sentido de responsabilidade e autonomia e iniciativa. Contudo, as funções do Sargento e do Oficial requerem, por vezes, exigências diferentes. Desta forma definimos algumas competências específicas, complementares, que só serão observados em determinados casos e por isso escolhidas e negociadas (duas das cinco) entre avaliador e avaliado. Assim foram definidas: liderança, planeamento e organização, negociação e persuasão, capacidade de decisão, desenvolvimento pessoal. No caso das Praças foram identificadas as seguintes competências transversais: resiliência, trabalho em equipa, conhecimento técnico-profissional, relações interpessoais, adaptabilidade, sentido de responsabilidade, disponibilidade, apresentação pessoal. Também aqui, tendo em consideração algumas funções mais exigentes que outras, foram definidas as seguintes competências complementares: iniciativa, capacidade de decisão e desenvolvimento pessoal. Ainda que algumas competências sejam comuns entre Oficiais/Sargentos e as Praças, as descrições são diferentes, variando segundo o nível de responsabilidade. Diferencia-se, também, a descrição dos indicadores comportamentais observáveis para cada nível. Chegámos a um perfil de competências que deverá ser observado em todos os militares das respectivas categorias. No entanto, alguns deverão, tendencialmente, ser apoiados para conseguir o desenvolvimento pretendido: formação on the job, acompanhamento e aconselhamento pela chefia (coaching), etc. A avaliação das competências será feita numa escala de um (1) a cinco (5): 1“Competência não demonstrada ou inexistente”, 3- “Competência demonstrada”, 5- “Competência demonstrada a um nível elevado”. 13 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército O processo de desenvolvimento de competências é um processo de aprendizagem organizacional que pedirá um certo tempo até ser interiorizado pelos seus destinatários (Câmara,P., 2007, p.359). É importante referir que o Perfil de competências não é estático e definitivo, terá que ser reformulado e actualizado. CICLO DE GESTÃO DE DESEMPENHO: ADAPTAÇÃO DO SIADAP AO EXÉRCITO O novo sistema de avaliação de desempenho na função pública apresenta alguns pressupostos que poderiam ser úteis à instituição militar, no entanto, não podemos esquecer que o Exército não é um serviço público comum. Vimos que a carreira militar assenta em princípios e critérios que não são equiparáveis aos definidos para a Administração Pública comum. No entanto, não quer dizer que o Exército não se deva reger por princípios idênticos aos serviços do Estado, embora adaptados à sua medida. Aqui os princípios da transparência, da diferenciação do mérito por resultados devem ser analisados. O Exército desde cedo desenvolveu e implementou um sistema de avaliação dos seus militares (RAMME), que já contempla algumas especificidades mencionadas. No entanto, de acordo com o Comando do Exército, a precisar de uma revisão. Entende-se que a revisão do actual Sistema de Avaliação dos Militares do Exército (avaliação individual) deverá ter como referência o modelo de avaliação utilizado na administração pública, o SIADAP. De acordo com o mencionado anteriormente, podemos aludir que apenas um sistema que se baseie na GPO, modelo por competências e orientação para resultados permitirá seguir o modelo conceptual do SIADAP e, simultaneamente responder às necessidades de garantir um sistema de gestão do desempenho moderno, focado no desenvolvimento dos recursos humanos e no progresso organizacional. O SIADAP assenta numa concepção de gestão dos serviços públicos centrada em objectivos previamente fixados. Este sistema define objectivos como o “parâmetro de avaliação que traduz a previsão dos resultados que se pretendem alcançar no tempo, em regra quantificáveis” (Art.4º,alínea e). Também no RAMME, está explícito que a avaliação deve ter como principal preocupação os objectivos propostos, ou seja, deve assentar na avaliação dos resultados. Deveremos ter em conta que os objectivos a que se propõe medir devem ser flexíveis, claros e adequados aos meios disponíveis. Neste sentido, tanto a avaliação da administração pública como a avaliação militar estão em harmonia. Desta forma, insistimos num sistema de gestão do desempenho que desenvolva uma cultura de confiança e que estimule a participação de todos. Assim, consideramos essencial uma 14 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 avaliação de desempenho que envolva superiores hierárquicos, subordinados e a própria organização em todo o processo. Apresentamos um modelo misto que combine resultados do desempenho e indicadores comportamentais. Os modelos mistos “avaliam e recompensam o desempenho e a competência: aquilo que efectivamente os colaboradores fizeram no último ano e como fizeram; as características mostradas que predizem um desempenho superior no trabalho actual ou no futuro” (Cascão, F, 2005, p.93). Sabemos que o tema “avaliação de desempenho” é bastante delicado pelo que temos que ter cuidado para que o programa de avaliação não se torne mais prejudicial que benéfico, procurando não cair no erro de em vez de motivar os colaboradores, contribuir para a desmotivação e consequente quebra de rendimento. PROPOSTA DE CICLO DE GESTÃO DE DESEMPENHO DO EXÉRCITO A avaliação de desempenho individual deve estar integrada no ciclo de gestão de uma organização. Tal como se encontra previsto no SIADAP, o sistema de avaliação no Exército deve funcionar de uma forma integrada, em que os objectivos individuais resultam do desdobramento dos objectivos da organização. A literatura atribui a este método a definição de “cascata” onde os objectivos vão sendo decompostos do topo até à base. É importante que toda a organização se envolva no processo de gestão do desempenho. Cada individuo deve ter presente que para que a organização cumpra os seus objectivos é necessário que cada um, individualmente e/ou em equipa cumpra os objectivos que lhe estão atribuídos. Assim, a definição dos objectivos e resultados a atingir pelas unidades orgânicas deve envolver superiores hierárquicos e subordinados, assegurando as prioridades e o alinhamento interno da actividade de serviço. A planificação em cascata deve evidenciar o contributo de cada unidade orgânica para os resultados finais pretendidos. Podemos dizer, que neste sentido, já existe uma adaptação do Exército materializada na directiva do Exército para o Biénio 2010-2011 apresentada por Sua Ex.ª o General CEME. A partir dos objectivos operacionais, os organismos ou serviços, elaboram o seu plano de actividades para o ano seguinte, incluindo os objectivos, actividades, indicadores de desempenho do serviço e de cada unidade orgânica (UO). Com a elaboração do plano de actividades, inicia-se o ciclo de gestão do serviço, que para além do plano de actividades, e conforme o art.º 8º do SIADAP, inclui a fixação dos objectivos do serviço para o ano seguinte, elaboração e aprovação do mapa de pessoal, elaboração e aprovação da proposta de orçamento, monitorização e revisão dos objectivos do serviço e das UO e elaboração do relatório de actividades (Saraiva, 2010, p.75). 15 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército Propomos uma GD que contemple o alinhamento entre os resultados individuais e os objectivos organizacionais a par dos valores, da missão e da estratégia da organização. A avaliação do desempenho pode ajudar a perceber essa relação entre desempenho organizacional e desempenho individual. Numa organização é difícil assegurar que todos avaliem com o mesmo rigor e equidade. Desta forma, antes de partirmos para a avaliação individual devemos ter em conta uma das principais etapas do processo de avaliação, o planeamento, onde serão uniformizados e definidos os critérios de avaliação. Após todo o planeamento, o ciclo de desempenho deve, então, iniciar com a reunião de contratualização dos objetivos onde se procede à fixação, entre avaliador e avaliado, do conjunto de objectivos a atingir. Deve ainda ser acordado entre as partes o conjunto de meios de apoio de que o avaliado possa necessitar para poder atingir os objectivos. Iniciado o ciclo de desempenho, o superior hierárquico deve fazer o acompanhamento do seu colaborador, dando-lhe aconselhamento e orientação (coaching) e , pelo menos, duas vezes durante esse ciclo, através das entrevistas de feedback, fazer o ponto de situação com o colaborador acerca do seu desempenho (feedback), calibrando os objectivos, se necessário, e corrigindo desvios que tenham surgido, de forma a optimizar a contribuição do colaborador para que os objectivos sejam atingidos. O sistema de avaliação por objectivos permite que estes sejam reajustados, por diversos motivos que impeçam a concretização dos mesmos. A reformulação dos objectivos, no entanto, deve ser evitada pelo que será importante ter em conta em que circunstancias devem ocorrer. A reformulação dos objectivos decorre do processo de acompanhamento e feedback consistindo na alteração dos objectivos ou mesmo na eliminação dos mesmos. O avaliado deverá proceder à sua auto-avaliação, onde este deve indicar os seus pontos fortes e as suas necessidades de desenvolvimento. Esta realiza-se através do preenchimento de uma ficha a ser analisada pelo avaliador conjuntamente com o avaliado. Servirá apenas de apoio para a avaliação não se constituindo como um critério vinculativo na avaliação. A harmonização é outro passo a ter em conta. É difícil assegurar que, numa organização com a dimensão do Exército, todas as chefias utilizem os mesmos critérios com o rigor a que procedem. Assim, a “calibragem” das classificações deve ser feita por quem tenha uma visão global da instituição. O ciclo de desempenho é encerrado com a entrevista de avaliação que, agendada com antecedência e preparada com o devido cuidado, conduzirá à avaliação global do desempenho do avaliado. Esta etapa poderá revelar-se bastante útil para aumentar o grau de envolvimento entre avaliador e avaliado. 16 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 RECOMPENSAS No final do ciclo avaliativo não nos podemos esquecer de recompensar os melhores desempenhos. Quando discutimos um sistema de avaliação e de gestão do desempenho dos colaboradores não podemos deixar de falar do sistema de recompensas. A avaliação de desempenho tem que ter consequências. Os colaboradores devem saber que o seu comportamento será recompensado, ou punido, de acordo com seu bom ou mau desempenho. Consideramos que as recompensas intrínsecas serão as que mais se adequarão à realidade militar. Apesar de algumas já existirem como é o caso dos louvores, e outras, como já vimos anteriormente, estas devem ser atribuídas pelo desempenho meritório e digno de referência do militar e não pelo tempo de serviço que este detém. Os mecanismos de reconhecimento do mérito consistem essencialmente em formas de dar visibilidade ao contributo dos colaboradores, prestigiando, distinguindo e premiando comportamentos e acções que contribuíram para atingir os objectivos, constituindo um reforço positivo na motivação. Julgámos que o desempenho relevante (nota superior ou igual a 4) deveria ser recompensado. As recompensas poderão materializar-se em: Quadros informativos nos espaços físicos comuns da organização onde se podem incluir menções honrosas para os melhores desempenhos; Informações na intranet ou no site da internet da Organização; recompensas de carácter temporal, onde em função do desempenho, correspondem a regalias traduzidas, por exemplo, em dias suplementares de férias, isenções de horário, dias de mérito, condecorações, etc. CONCLUSÕES E PROPOSTAS A implementação de um novo sistema de avaliação não será uma tarefa fácil e exigirá o consumo de uma grande quantidade de recursos financeiros, formativos, temporais e espaciais, por parte de avaliadores e avaliados. Todavia, julgamos ser indispensável a sua execução. Desenvolver e implementar um novo sistema de gestão de desempenho implicará uma mudança nas rotinas e susceptibilidades, promovendo a adequação das acções às novas dinâmicas avaliativas. Adoptar um modelo ainda que válido e desafiante, tendo em consideração práticas anteriores, poderá ser um processo moroso necessitando de algum tempo para interiorizar os seus efeitos, exigindo-se uma nova postura para avaliados e avaliadores, induzida ou não por acções de formação que desenvolvam as necessárias competências nos intervenientes no processo. Afigura-se como primordial a consciencialização real da importância da avaliação de desempenho no percurso do militar. Esta deverá ser encarada como uma forma de medir e diferenciar o desempenho e, sobretudo, deverá ter um objectivo pedagógico. Através da avaliação pretende-se analisar a competência do indivíduo no exercício do cargo. O objectivo será o de 17 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército aferir os pontos fracos e fortes, as áreas passíveis de melhoria e as necessidades de formação prioritárias, promovendo, por um lado, o contínuo desenvolvimento pessoal e profissional, e, por outro, o progresso institucional. Deverá ter-se em consideração um requisito basilar para um sistema de avaliação de desempenho eficaz: os objectivos. Afigura-se como imprescindível a fixação clara de objectivos de desempenho. Esses objectivos deverão ser quantificáveis através de indicadores simples e fáceis de medir, devidamente calendarizados. Para que a avaliação seja o mais pormenorizada possível, os objectivos terão de ser formulados de forma individualizada para cada cargo/função o que pressupõe, desde logo, a elaboração da análise de funções para todos os cargos do Exército. Da forma como se processa a avaliação actualmente assiste-se, em determinados casos, a um distanciamento entre avaliador e avaliado. O modelo ora proposto promove a aproximação entre avaliador e avaliado. Este facto proporciona objectividade avaliativa, e o conhecimento mais incisivo acerca do desempenho e do potencial do avaliado. Para que o distanciamento diminua, principalmente no caso concreto das Praças, deveria ser formalizado na prática o que acontece informalmente: a avaliação por parte do Sargento. Tal situação permitirá uma proximidade real e efectiva entre avaliador e avaliado. A avaliação deverá ser feita por um militar com, pelo menos, 5 anos na categoria de Sargento. No sentido da uniformização/estandardização da avaliação será de todo imprescindível facultar aos avaliadores uma formação de base. Essa formação permitirá diminuir as discrepâncias avaliativas não só entre diferentes avaliadores como entre U/E/O distintas. Tal formação deverá ser ministrada ao longo da formação de Oficiais na Academia Militar e Sargentos na Escola de Sargentos do Exército. Seria importante, também, proceder a sucessivas actualizações ministrando módulos de Avaliação de Desempenho nas diferentes etapas da carreira, nomeadamente nos cursos de promoção. O CPAE está dotado de meios humanos que permitem dar o apoio técnico que se julgue necessário. A problemática das quotas que existe no SIADAP não deverá ser indiscriminadamente aplicada ao Exército, pois determinadas áreas ou cargos/funções, pela sua especificidade, implicam previamente uma escolha alicerçada no mérito e em elevados índices de motivação e realização, sendo estas características incongruentes e incompatíveis com a filosofia das percentagens e quotas. A Educação Física Militar deveria constituir-se como elemento fundamental durante toda a carreira militar e não apenas nos processos de formação. É algo inerente à dinâmica institucional e é, entre outros, um aspecto que estabelece a distinção entre o meio castrense e a sociedade civil. A aptidão física afigura-se como indispensável para o cumprimento das missões atribuídas a qualquer militar. Esta consciencialização da importância da actividade física terá de ser 18 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 assumida e valorizada, consubstanciando-se numa avaliação (com atribuição de uma “nota”) em oposição do sistema “go/no go” existente. Para facilitar o registo e a gestão da avaliação de desempenho propomos a aplicação de uma ferramenta informática para que o preenchimento das fichas de avaliação, bem como todo o processo, seja feito electronicamente. As propostas supracitadas e as que foram sendo lançadas no decorrer da investigação influenciarão, de forma marcante, a cultura e as práticas de gestão do Exército, podendo contribuir para o surgimento de determinadas resistências senão for assumida pelos líderes estratégicos, implicando que esta integração seja comunicada, assumida e interiorizada como uma ferramenta de desenvolvimento individual e, por consequência, colectivo e organizacional. Através deste estudo foi-nos possível investigar, discutir e propor um sistema de Gestão do Desempenho adaptado ao Exército Português e à sua especificidade, que, de uma forma sintética, comungue das orientações, perspectivas e filosofia do SIADAP. Procurámos contribuir para a constituição de um sistema que motive, avalie e desenvolva os militares na Organização. Julgamos que todo o conhecimento inerente a esta investigação é imprescindível para se poder constituir uma base de trabalho para a gestão, formação, selecção, recompensas e deve ser objecto de posterior actualização. BIBLIOGRAFIA Behn, R. (2003). Why measure performance? Different purposes require different measures. Public Administration Review, 63, 5: pp 588-606. Bilhim, João (1997) – Gestão por Objectivos na Administração Pública. Lisboa: ISCSP. Caetano, A. (1998). Avaliação de Desempenho: Metáforas, Conceitos e Práticas. Lisboa: Editora RH. Caetano, A. & Vala, J. (2002). Gestão de Recursos Humanos: Contextos, Processos e Técnicas. Lisboa: Editora RH. Caetano, António (2007) – Avaliação do Desempenho. Lisboa: Oeiras: Celta Editora. Caetano, A. (2008). Avaliação de Desempenho: O Essencial que Avaliadores e Avaliados precisam de saber. Lisboa: Livros Horizonte. Câmara, Pedro B., Guerra, Paulo.B, Rodrigues, Joaquim, V., 2007, Novo Humanator: Recursos Humanos e Sucesso Empresarial, 3ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote. Cascão, F. & Cunha, N. (1998). Gestão de Competências: Novas perspectivas na Gestão de Recursos Humanos. Porto: Edições IPAM. Cascão, Ferreira (2004) – Entre a Gestão de Competências e a Gestão do Conhecimento: Um Estudo Exploratório de Inovações na Gestão das Pessoas. Lisboa: Editorial Presença. Ceitil, Mário, 2006, Gestão e Desenvolvimento de Competências, Lisboa, Edições Sílabo. 19 Gestão do Desempenho dos Militares do Exército Chiavenato, Idalberto (2003) – Desempenho Humano nas Empresas: Como Desempenhar Cargos e Avaliar o Desempenho. São Paulo: Editora Atlas. Chiavenato, Idalberto (2004) – Gestão de Pessoas: O Papel dos Recursos Humanos nas Organizações. Rio de Janeiro: Editora Campus. ISBN 85-352-0427-10. Costa, António Firmino da (1986) – “A Pesquisa de Terreno em Sociologia”, em SILVA, Augusto Santos; PINTO, José Madureira (orgs.) (1986) – Metodologia das Ciências Sociais. Porto: Edições Afrontamento. Cunha, M., P.; Rego, A.; Gomes, J.F; Cabral-Cardoso, C.; Marques,C.,A.; Cunha,R.C, 2010, Manual de Gestão de Pessoas e do Capital Humano, 2ªEdição, Lisboa, Edições Sílabo. Dooren, W. (2005). What Makes Organizations Measure? Hypotheses on the Causes and Conditions for Performance Measurement. Financial Accountability & Management, 21, 3: pp 363-383. Drucker, P. F. (1954). The Practice of Management. Oxford: Elsevier Butterworth Heinemann. Fernandes, (2007). Avaliação de Desempenho por Objectivos. Recursos Humanos Magazine, Jan-Fev, 48: pp 26-34. Gonçalves, Rui (2008) – Entre a Avaliação e o Desempenho Considerações Adaptativas. Coimbra: Quarteto Editora. Marras, J. 2000, Administração de Recursos Humanos: do estratégico ao estratégico. Futura. São Paulo. Mintzberg, Henry, (2010) Estrutura e Dinâmica das Organizações, 4.ª Edição, Publicações D. Quixote, Lisboa. Peretti, J. (2001). Recursos Humanos. 3ª Edição. Lisboa: Edições Sílabo. Quivy, R, Campenhoudt, I (1992) Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa: Gradiva. Rocha, J. Oliveira (1999) – Gestão de Recursos Humanos. Lisboa: Editorial Presença. Rocha, J.A, Oliveira, Dantas, J.Costa, 2007, Avaliação de Desempenho e Gestão por Objectivos, Editora Rei dos Livros, Lisboa Silva.A., Lavado, Cruz, P. Silva, Bastos, Rosinha, Antão, 2006, Estudo do Modelo De Competências Do Oficial Do Exército Oriundo Da Academia Militar, Centro de Psicologia Aplicada do Exército. Sousa, M. T.; Duarte, T.; Sanches, P. G. e Gomes, J. , (2006), Gestão de Recursos Métodos e Práticas, Lidel, Lisboa. Vaz, Rui Pedro Ferreira Vaz, Subsistema de Avaliação do Desempenho dos Trabalhadores da Administração Pública (SIADAP3): da teoria à (boa) prática, Universidade de Coimbra, http://www.uc.pt/depacad/gee/siadap3_NPF, consultado a 3 de Fevereiro de 2011. Yemm, G. (2005). Getting the most from appraisals: from both sides of the desk. Management Services, Spring 2005: pp 36-37. 20 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 LEGISLAÇÃO Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho de 1999, Estatuto Dos Militares Das Forças Armadas (EMFAR). Decreto-Lei nº 66-B/2007, 28 de Dezembro de 2007, sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública (SIADAP). Portaria n.º 1246/2002, 7 de Setembro, Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares do Exército (RAMME). 21 Boletim de Sociologia Militar N.º 3 – 2012 PP. 22 a 65 Do Uniforme Militar ao Desvio e à Reclusão – Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar. Alexandre Moura* Helena Carreiras** RESUMO O Estabelecimento Prisional Militar tem determinadas especificidades que lhe configuram uma singularidade própria no panorama nacional das prisões. Esta "micro-sociedade" possibilita que determinadas identidades exteriores sejam transpostas para o interior da prisão conferindo uma hierarquia formal que é induzida pelas instituições de origem. Por conseguinte, é nosso objetivo determinar quem é o cidadão-recluso que se encontra no EPM, em função de um conjunto de características sócio-demográficas e jurídico-prisionais, designadamente a idade, posto, habilitações literárias, situação na profissão, instituição de origem, duração e tipo de pena. Pretendemos, inclusivamente, perceber quais as condições de vida dos reclusos – tipo de tratamento dado pelo staff, horários, fardamento, rotinas, comportamentos, alojamentos e habitabilidade, alimentação. Procurámos analisar, entre outros fatores, as situações penais e prisionais, designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente militar, que comungam de orientações semelhantes. Analisámos as preocupações, avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos. Foram objeto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «staff prisional», o acesso à saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias internas decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as posições e as interações locais. Palavras Chave: Reclusão Militar, Preso Militar, Comportamentos a Atitudes. ABSTRACT The Portuguese Army Prisoner Facility has certain aspects that makes it unique in the national prisons environment. This “imprisoned micro-society” with military uniforms allows that certain exterior aspects appear inside prison walls. The present study aimed to explore and describe the military prisoners regarding their socio-demographic and juridical characteristics such as rank, age, unit, sentences and type of crime committed. We wanted to understand the military prisoner’s daily routine – kind of treatment given by Staff, internal schedules, routines, concerns, behaviors, food quality, facility conditions, criminal and imprisoned dynamics . Keywords: Military Prison, Military Prisoner, Behaviors and Attitudes. * Major de Cavalaria, Mestre em Sociologia, Chefe do Gabinete de Estudos e Formação do Centro de Psicologia Aplicada do Exército. ** Ph.D., Professora do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). 22 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 NOTA INTRODUTÓRIA O presente Artigo surge como corolário de um Mestrado em Sociologia efetuado no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), especialidade em Família, Educação e Políticas Sociais e incide sobre a população prisional encarcerada no único Estabelecimento Prisional Militar (EPM) nacional sendo, por conseguinte, um estudo de caso. Decorre da actividade profissional desenvolvida pelo autor no meio castrense desde há alguns anos a esta parte, cruzando-se com o seu interesse pelas instituições totais (em termos Goffmanianos), tendo consciência que falar de punições e encarceramentos são temas que, sobretudo no meio militar, se evitam abordar, discutir e comentar. É nossa intenção caracterizar sociologicamente o cidadão-recluso-militar que se encontra no EPM. Perceber quais as suas condições de vida, rotinas, comportamentos, o que pensam, que aspectos mais os preocupam e qual o tipo de tratamento dado pelo «Staff». Constituem o «Staff Prisional» o comando do estabelecimento e o seu estado-maior, os técnicos de saúde e reeducação, elementos constituintes do pelotão de guarnição e segurança (PGS) (não são designados de guardas pois, efectivamente, não o são. São militares com o curso de Polícia do Exército (PE), pessoal administrativo e de manutenção. A reclusão é muitas vezes entendida como um intervalo na vida dos indivíduos sendo encarada como uma suspensão, um parênteses ou uma fragmentação no tempo, representada como se de uma outra vida paralela se tratasse e que terminará dentro de algum tempo mais ou menos longo. Além de procurar responder a estas questões, a nossa pesquisa procurou conhecer a realidade de outras prisões portuguesas, de forma a comparar e tornar mais inteligíveis os resultados obtidos. São estes factores específicos e as suas interconexões que se procuram evidenciar neste trabalho. O artigo é constituído por uma nota introdutória, quatro capítulos e a conclusão. No primeiro capítulo, faremos alusão a algumas referências teóricas fundamentais que enquadram este estudo. No segundo, a par de uma explicitação metodológica sobre os procedimentos, métodos e técnicas utilizados, procederemos a uma contextualização e caracterização do objecto de estudo. No terceiro capítulo, inicia-se a apresentação dos resultados através da caracterização demográfica e social dos reclusos. Analisa-se, entre outros factores, as situações penais e prisionais, designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente 23 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar militar1, que comungam de orientações semelhantes. No quarto capítulo, são analisadas as preocupações, avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos militares. São objecto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «Staff» prisional, o acesso à saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias internas decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as posições e as interacções locais. Tendo consciência da estigmatização social provocada pela prisão, das vulnerabilidades societais que estes cidadãos-reclusos apresentam, exponenciadas pelo uniforme que usam e poderão continuar (apenas alguns, dependendo da natureza do crime) a envergar, torna-se imprescindível determinar como os internos se relacionam com estas questões, que noções orientam as suas atitudes, comportamentos e emoções. Apresenta-se, ainda, algumas notas conclusivas. 1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO PRINCIPAL 1.1. Dos Cárceres à Prisão As prisões são, de acordo com alguns teóricos, os locais que, por excelência, permitem aliar o sofrimento que a perda da liberdade implica com a possibilidade de regeneração do delinquente pelo trabalho/ocupação, pela educação e pela autoreflexão e auto-crítica. Porém, vozes discordantes afirmam o contrário, defendendo que as prisões propiciam outros riscos e ameaças. Os abolicionistas imaginam uma sociedade sem prisões, sem privação da liberdade, sem exclusões institucionais, considerando que os cárceres podem não ser a forma “...institucional ideal para cumprir os desígnios modernizadores desejados...” (Dores, 2003: 80). Desde sempre, houve registos de torturas, abusos e desrespeito pelos direitos humanos mais elementares no interior destes locais. Com efeito, mesmo no século XIX, adverte Maria João Vaz (2003), a prisão não executava o papel que lhe era atribuído e “...em vez de contribuir para a regeneração dos que eram condenados pela prática do crime, ela era antes de mais considerada como uma verdadeira “escola” do crime...” (Vaz, 2003 : 12). Foi essencialmente durante os últimos trinta anos do século XIX que se começaram a procurar concretizar as principais medidas reformadoras do sistema penal Português, transformações estas que procuraram respeitar as formulações teóricas defendidas desde o iluminismo 2. Nos finais do século XIX, os principais estabelecimentos prisionais existentes na cidade de Lisboa eram as cadeias do Aljube 1 Forças Armadas (Marinha, Exército, Força Aérea) e Guarda Nacional Republicana. Confiança nas capacidades da razão acreditando-se que era possível a regeneração dos indivíduos desviantes através do pensamento, meditação, reflexão interna, ajudado com as benéficas influências da educação e do trabalho, forças disciplinadoras de corpos e mentes. 2 24 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 e do Limoeiro. Maria João Vaz (2003) salienta que no distrito de Lisboa existiam cerca de 40 cadeias, tratando-se na sua grande maioria de pequenos cárceres e não de prisões adequadas para o cumprimento de penas de longa duração. Apenas em 1885 surgiu o primeiro estabelecimento prisional - a Cadeia Geral Penitenciária do Distrito da Relação de Lisboa - considerada como o modelo mais adequado para se alcançarem os objectivos essenciais das penas - a recuperação dos indivíduos delinquentes para o convívio em sociedade. As prisões impuseram-se, por inerência, como elementos centrais dos sistemas penais. Surgiram, neste contexto, problemas por demais conhecidos, como a sobrelotação, a falta de higiene, corrupção, promiscuidade, exploração de uns sobre os outros, inexistência de separação por idade, grau de perigosidade, tipo e duração da pena. Surgem também revoltas prisionais como a do Limoeiro em 1891, a obrigatoriedade do uso de capuz que cobria o rosto dos condenados de modo a não serem identificados nem haver diálogo entre pares, surgindo a loucura e a tuberculose como principais doenças, dando a impressão de que se contribuía mais, segundo cronistas da época, para o desarranjo mental e enfraquecimento dos reclusos do que para a sua regeneração. Quando acabavam de cumprir a suas penas (...) não pareciam mais do que cadáveres galvanizados que se restituem à sociedade, que se colocam além do portão e se mandam caminhar para a cidade... (Vaz, 2003: 18). No virar para o século XX, pouco se tinha alterado no débil estado das prisões nacionais, até que em 6 de Fevereiro de 1913 foi alterado o regime penitenciário, passando os reclusos a trabalhar em comum durante o dia, mantendo-se em isolamento nas suas celas durante a noite. Mais recentemente, no período do Estado Novo, era frequente haver a aplicação de uma outra pena denominada de transportação - o chamado «degredo» para as colónias Portuguesas em África, fundamentalmente, para o Tarrafal em Cabo Verde. Esta ocorria ora como alternativa ao insuficiente número de estabelecimentos prisionais que não conseguiam acolher toda a «população condenada», ora como complemento após o cumprimento do período da pena de prisão em território nacional. 1.2. A Prisão A investigação sobre prisões não é um campo desenvolvido das ciências sociais, em parte causada pela dificuldade no acesso a estas instituições por parte do público. Os estudos realizados por Michel Foucault proporcionaram uma maior visibilidade do panorama prisional, aliado aos inúmeros problemas mediáticos que, nas últimas décadas, têm surgido no interior e em torno destes estabelecimentos. Como salienta Pedro Dores (2003), a persistência de queixas sobre atentados aos direitos dos reclusos em todos os sistemas prisionais conhecidos, a selectividade 25 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar social que acolhe nas prisões fundamentalmente os indivíduos das classes sociais mais baixas e os mais desprotegidos socialmente - o acesso à justiça é, ele próprio, fortemente condicionado pela situação socio-económica do cidadão - os mecanismos de estigmatização eficazes e inflexíveis, as maiores taxas de doenças e mortes nas prisões do que no seu exterior, a idade precoce da população encarcerada, as elevadas taxas de reincidência, permite-nos retirar, segundo este autor, algumas ilações: a necessidade de estudos científicos mais aprofundados e alargados, o facto das prisões limitarem fortemente as condições de habitabilidade dos reclusos, não se devendo esperar que sejam elas a resolver eventuais conflitos sociais. No década de 60 do século passado, Erving Goffman debruçou-se sobre as “instituições totais 3 “ (onde os estabelecimentos prisionais se incluem) e salientou que nestes universos isolados se encontram removidas as barreiras que habitualmente separam as várias esferas da vida do indivíduo – lúdica, familiar, residencial, ocupacional, privada, íntima – estando estas submetidas a uma autoridade e a uma gestão comuns e onde existem outros participantes que partilham destas condições. Daí a faceta totalizante que contrasta com as sociedades urbanas e complexas, dotadas de diferenciação social e espacial nos mais variados domínios de relações, de pertenças e de identidades. Efectivamente, todos os aspectos da vida dos indivíduos reclusos são conduzidos no mesmo local, sob a mesma vigilância e autoridade. As rotinas diárias de cada interno são realizadas em co-execução com todos os demais companheiros de reclusão, submetidos a idêntico tratamento e exigência. As tarefas são rigidamente escalonadas, estruturadas, impostas, suportadas por um sistema rígido de normas formais (e informais, como veremos mais adiante), cujo cumprimento é legalmente fiscalizado por agentes dotados de autoridade. A iniciativa, o livre-arbítrio, a criatividade são balizadas, reguladas e delimitadas. Apesar de supostamente estas considerações pretenderem ser factos incontestáveis, o tratamento prisional é, defende Pedro Dores (2003), marcadamente diferenciado consoante o estatuto de cada cidadão. Este autor recorre a Pierre Bourdieu ao afirmar que as prisões não foram concebidas para acolher outras classes sociais que não as menos desfavorecidas – a dos marginais marginalizados. Goffman afirma que os actores sociais na qualidade de actuantes e de seres racionais dotados de razão, preocupam-se em manter a impressão de que cumprem as normas intrínsecas pelas quais são julgados (até pelo que os seus maiores ou menores «direitos reclusos», dependem desta aceitação e do cumprimento latente das 3 ”...lugar de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos, separados do mundo exterior por um período relativamente longo, levam em conjunto uma vida reclusa cujas modalidades são explícita e minuciosamente reguladas.” (Goffman, 1987: 62) 26 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 regras internas, enfim, para alcançarem o «almejado bom comportamento» que é decisivo para se implementarem as saídas precárias, o RAVI, o RAVE 4, a liberdade condicional). Reiterando estas considerações, a acção social, no sentido Weberiano, pode ser racional por relação a fins, condicionado pelas expectativas dos comportamentos de outrém, utilizando estas mesmas expectativas como condições ou meios para a prossecução de objectivos próprios, racionalmente estruturados e reflexivos, o que demonstra que, não poucas vezes, os reclusos «actuam no palco dos comportamentos», realizando acções, cumprindo normas, regras que, na ausência de controlo institucional, seriam incumpridas. Parafraseando mais uma vez Erving Goffman (1987), os actores sociais estão despreocupados com a questão moral de cumprir as normas, focalizando-se, em vez disso, com o “...o problema amoral de construir a impressão convincente de que satisfazem as normas...” (Goffman, 1987: 221). Na mesma linha de pensamento, Tom Burns (2000) salienta que toda a actividade humana é gerida, em grande parte, por sistemas de regras sociais. Todavia, os actores sociais, dada a sua inteligibilidade, interpretam e accionam essas mesmas regras de acordo com os seus intuitos. Além de um constrangimento, as regras sociais normativas são também oportunidades de acção. Articulando o pensamento à acção, o indivíduo pode permitir-se alterar as regras já existentes. De facto, é inegável que os actores sociais, no âmbito da sua acção, tentam manter ou modificar as normas que encontram estabelecidas nas instituições. Na opinião de Tom Burns (2000), se os indivíduos não tentassem adaptar ou transformar as regras com que se deparam nas instituições, não haveria possibilidade de existir inovação normativa e institucional. As prisões não constituem excepção. O intuito dos estabelecimentos prisionais é, em última análise, o da punição com o encarceramento das pessoas, garantindo a protecção dos bens jurídicos ameaçados, entendidos como essenciais à vida em sociedade dos que estão em liberdade e com a finalidade, sempre reiterada mas quase nunca cumprida, de regeneração e reinserção dos delinquentes após a pena. A prisão pretende evitar os “contactos funestos dos condenados com os modos de vida social degradados que sustentaram a sua delinquência...” (Dores, 2003: 63), procurando reunir todos os condenados em espaços de execução de penas de cariz industrializado, afastando-os de todas as tentações que a situação em liberdade estimulava, controlando-se os custos orçamentais que provêm dos impostos públicos. A prisão apresenta-se, por inerência das suas condições, como uma instituição invulgarmente abrangente, dotada de dinâmicas específicas que a constituem como 4 RAVI – Regime Aberto Virado para o Interior; RAVE – Regime Aberto Virado para o Exterior. 27 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar uma «micro-sociedade». É uma tecnologia social feita por medida, com uma finalidade delimitada e delineada. Por conseguinte, uma prisão constitui uma comunidade artificial, dada a separação que impõe à pessoa-reclusa, privando-a do seu meio natural e obrigando-a a permanecer nesse ambiente ao qual terá de se adaptar. Neste novo meio, o cidadão é submetido a um rigoroso controlo formal e informal do tempo e do espaço, onde a maioria das actividades se transformam em rotinas e se igualizam. Espaço e tempo confundem-se em adjectivações locais que restringem a autonomia individual dos internos. Anthony Guiddens (1994) refere-nos que em instituições do tipo prisional, as esferas de competência e os níveis de autoridade do Staff, além de se desenvolverem numa base regular, encontram-se claramente demarcadas e delimitadas por uma hierarquia de funções. Todavia, como o reconheceu Goffman (1987), as dinâmicas recriadas na prisão não anulam nem substituem as exteriores, permanecendo estas como referências para os internados. As cadeias não existem isoladas e, de algum modo, as lógicas internas reenviarão para dinâmicas extra-prisionais, quer nos preocupemos apenas com o núcleo recluso, quer abrangendo a instituição como um todo. Michel Foucault (2004), por seu turno, transmite-nos que ”...se conhecem todos os inconvenientes das prisões e sabe-se o quanto são perigosas quando não inúteis. E entretanto não vemos o que pôr no seu lugar. Elas são a detestável solução de que não se pode abrir mão...” (Foucault, 2004: 191). Em termos Durkheimianos, o aumento do número de prisões e prisioneiros numa determinada sociedade é um sintoma de «Anomia». A instituição prisional, segundo Pedro Dores (2003), poderá ser um refúgio de ressocialização para os actores sociais que coloquem em causa as normas societais que possibilitam a vida quotidiana. É a garantia da igualdade formal como resposta às “...transgressões e aos transgressores, através de um sistema de transformação em tempo de prisão da culpa abstracta dos crimes cometidos em concreto; (...) espaço de investimento filantrópico e de espírito de solidariedade para com os seres humanos caídos...” (Dores, 2003: 77). Loic Wacquant (2000), fala de uma sub-cultura prisional que se desenvolveria no interior das prisões e que permitiria o crescimento de ideologias desviantes, enaltecendo o tema recorrente de «prisão como escola do crime». Menciona inúmeras vezes D. Clemmer que introduziu o conceito de “Prisonization” (teoria da prisionização retomada por S. Messinger e G. Sykes em 1960), no qual todos os reclusos seriam afectados pelas influências criminosas inerentes à própria cultura prisional, ainda que este processo não ocorra de modo uniforme. Factores como a solidariedade entre 28 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 reclusos, a oposição ao Staff, a duração da pena, os laços de convivialidade afectiva com o meio exterior, a inclusão em determinados grupos desviantes, originam diferenças neste processo “tanto mais ténues e tardias quanto menos intenso e exclusivo se revele o contacto com os valores desviantes da sub-cultura penitenciária...” (Wacquant, 2000: 28). Os membros da população reclusa não constituem um mero agregado de indivíduos. Comunicam, interagem, reflectem, num quadro temporário de vida comunitário distinto do anterior. Esta sub-cultura tenderia a desenvolver-se como reacção às «pains of imprisonment» (dores da prisão), designadamente privações de ordem material, afectiva, autonómica, sexual, degradação do estatuto e papel do cidadão. A cultura penitenciária surgiria como uma adaptação às novas condições do internamento, funcionando como uma plataforma para a recuperação da auto-estima e da auto-imagem que constituiria um entrave à reintegração e regeneração societal dos delinquentes. Todavia, trabalhos posteriores como os de Stanton Weeler (1961), demonstram que no período inicial o recluso conforma-se com as normas e valores do estabelecimento prisional. No intermédio, constata-se uma adopção sustentada, voluntária e estruturada da sub-cultura prisional. Porém, nas etapas que antecedem a libertação iniciar-se-ia uma «desprisionação», abandonado-se gradualmente os valores do código-recluso, procurando retomar-se as regras, atitudes, práticas em uso no exterior. Estas três fases descreveriam uma trajectória em «U», tendo ficado conhecido como o Padrão U (Teoria U ou da privação). Outros autores colocaram em causa a ideologia de Weeler, afirmando que os “comportamentos em U» apenas foram verificados em instituições cuja tónica se baseava na segurança e disciplina, sendo diminutos nas que privilegiavam o tratamento e a regeneração. Contudo, é inegável a importância dos seus estudos para aclarar as teorias sobre as prisões. Posteriormente, surgiram várias outras perspectivas salientando-se a que ficou conhecida como o «modelo da importação directa», onde o prévio estilo de vida dos internos (em pré-reclusão) constituiria um factor fundamental para se poder compreender os comportamentos durante a reclusão, os quais seriam reflexos de várias conjugações, práticas e representações antes da condenação. Enquanto no «modelo da privação» as representações e valores dos reclusos surgiam como reacção às privações de vária ordem originadas pelo cárcere, na perspectiva do «modelo da importação directa», as atitudes e condutas dos reclusos são transpostas do meio extra-prisional para intra-muros, devendo olhar-se também para os factores extrínsecos nas abordagens institucionais sobre a prisão. 29 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar Procurámos evidenciar nas páginas anteriores algumas correntes de pensamento sobre as instituições prisionais que suportaram teoricamente o nosso trabalho. 2. O ESTABELECIMENTO PRISIONAL MILITAR 2.1. Breve Contextualização Histórica 5 O EPM foi criado pelo despacho n.º 12555/2006 de 24 de Maio do Ministro da Defesa Nacional que determinou a mudança de designação de Presídio Militar para a actual designação. Assume-se o EPM, deste modo, como herdeiro do Presídio Militar criado por Decreto-Real de 7 de Fevereiro de 1895, em Santarém, numa Cadeia Penitenciária do Ministério da Justiça então cedida à Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra para o cumprimento de pena de presídio militar, medida coerciva inovadora criada pelo Código de Justiça Militar, a qual obrigava a um regime penitenciário que envolvia segregação celular durante a noite e comunidade de trabalho durante o dia. No dia 8 de Maio de 1895 assumiu o Comando do Presídio Militar, o General de Brigada João Batista da Silva e em 25 de Maio desse mesmo ano deu entrada o primeiro condenado – o Soldado António de Campos, aprendiz de músico. O Presídio Militar funcionou em Santarém durante 105 anos, ao longo dos quais cumpriram pena 5.435 presos, sendo 484 da Marinha, 4.537 do Exército, 328 da Força Aérea e 86 da Guarda Nacional Republicana (GNR). Em 1998, as instalações foram desafectadas do domínio Militar e restituídas ao Ministério da Justiça. Por consequência, em Janeiro de 2001, o Presídio Militar foi transferido de Santarém para Tomar, instalando-se definitivamente nas instalações da Casa de Reclusão desta cidade, desactivada para possibilitar a realização de obras de remodelação e ampliação. Este facto, obrigou a que os reclusos da Casa de Reclusão de Tomar e do Presídio Militar fossem transferidos para a Casa de Reclusão de Elvas, de onde viriam sucessivamente a ser transferidos entre 2002 e 2005, ano em que também foi desactivada aquela Casa de Reclusão. Extintas as Casa de Reclusão de Elvas e de Tomar, o EPM passou a ser o único Estabelecimento Prisional Militar em Portugal. 5 Adaptado de Estado Maior do Exército (1997) – História do Encarceramento Militar Português. Lisboa: Estado Maior do Exército. 30 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 2.2. A Singularidade do EPM O Estabelecimento Prisional Militar tem determinadas especificidades que lhe configuram uma singularidade própria no panorama nacional das prisões. É dirigido e controlado única e exclusivamente por militares do Exército - e não por civis ou por militares de outro qualquer ramo - está na dependência do Ministério da Defesa apesar de alguns reclusos serem da GNR que é tutelada pelo Ministério da Administração Interna. Os presos são exclusivamente militares das Forças Armadas ou da GNR, já que a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária, os Guardas Prisionais, Florestais ou membros de outras instituições policiais de “cariz civil" são encaminhados para outros estabelecimentos. Por conseguinte, esta "micro-sociedade" dotada de uma faceta específica e totalizante, induz a que determinadas identidades exteriores sejam transpostas para o interior da prisão – até pelo que os reclusos continuam a envergar os seus uniformes 6 com as patentes militares explícitas que todos conhecem e são obrigados a continuar a aceitar – conferindo uma hierarquia formal que é induzida pelas instituições extraprisionais de origem. É interessante verificar que esta hierarquia formal é aparentemente respeitada, na maioria das ocasiões, apesar de todos terem consciência que muitos dos guardas são soldados cuja função é vigiar, controlar, estabelecer regras e emanar ordens que têm de ser seguidas e cumpridas por reclusos Sargentos ou Oficiais 7 (portanto, com um posto mais elevado na hierarquia formal militar). Deste modo, as lógicas internas reenviam (como veremos mais adiante) para realidades extra-prisionais que constrangem a diminuta liberdade dos reclusos e o seu livre-arbítrio. Do ponto de vista institucional, o universo em questão faz constantemente apelo a um referente que pode ser considerado como identitário, no qual se funda desde o início – a componente militar. Mais propriamente, uma ideologia militarista de virtudes e de honra, que se acentua e polariza quando conjugamos o desvio, a delinquência com o uso de uniforme representativo de uma qualquer instituição ou país. A relação da prisão com esta ideologia, que se manifesta em inúmeros sentidos materiais, simbólicos e organizacionais (desde as formaturas, o cabelo aparado, a barba escanhoada, os sapatos engraxados, o uso de símbolos militares, a prática da continência e da ordem-unida), nem sempre é pacífica e apaziguadora. Como afirma Pedro Dores (2003), as prisões seriam melhor “...observadas se fossem tratadas 6 Continuam a usar o seu uniforme se estiverem no activo, o que abrange a quase totalidade dos reclusos. Se os militares estiverem na situação de reserva ou reforma, trajam à civil. 7 Ver hierarquia formal militar no anexo C. 31 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar através de uma análise institucional, (...) observando os detidos mas também todos os outros agentes sociais envolvidos, como guardas, funcionários, técnicos, autoridades judiciais e penitenciárias, agentes sociais exteriores, familiares e amigos, organizações não governamentais. Observando-os não como quem observa um aquário ou uma jaula de jardim zoológico ...” (Dores, 2003: 84). Deste modo, as relações de pertença, a estratificação social, os diferentes papéis e estatutos sociais, a patente e a classe militar a que cada um pertence, a reduzida ou elevada formação académica, originam clivagens e demarcações que se acentuam com a ideologia e cultura militar. Para estes homens militares para os quais a ordem, a disciplina, o respeito, a hierarquia, os deveres cívicos sociais e militares são (ou foram em tempos) primordiais e respeitados acima de qualquer outro sentimento, é difícil aceitar e compreender o seu novo estatuto social que lhe configura um inovador papel e uma nova posição na sociedade. Com efeito, esta prisão apresenta particularidades que a demarca das demais. Não só pelos reclusos que não pertencem ao universo generalista prisional – onde as fracas qualificações abundam e a taxa de reincidência é enorme – como também eles não pertencem a profissões ou estratos da sociedade económica e socialmente pouco valorizados, nem a classes sociais mais desfavorecidas normalmente situadas na base da estrutura social. Efectivamente, há um afastamento dos padrões da população reclusa. Até a própria prisão militar não compadece de sobrelotação. Por outro lado, como se trata do único estabelecimento prisional central para militares (não existe outro local para onde se possa pedir transferência), muitos dos reclusos encontram-se demasiado afastados dos locais de residência e dos parentes o que fragiliza, ainda mais, a ligação com o meio familiar e social. Para preencher os dias e as horas, os reclusos podem efectuar, caso assim o desejem, algumas tarefas que estão ao seu dispor. Como não podem ser obrigados a trabalhar, aderem voluntariamente a serviços na lavandaria, na cozinha, jardinagem, carpintaria, mecânica automóvel, biblioteca (e outros inopinados e expontâneos). A este pseudo-voluntarismo, não será alheio o facto de contribuir para acesso a saídas precárias (evidentemente, após decisão do conselho técnico, formado pelo núcleo de apoio ao Comandante 8 (NAC), pelo Juiz responsável do Tribunal de Execução Penal 9 (TEP) e por Técnicos da Direcção Regional de Inserção Social). Todos sabem para que locais se devem dirigir após o pequeno-almoço e a formatura de início de trabalhos pelas nove da manhã, à excepção de um interno que optou por não efectuar 8 O NAC é constituído pelo Comandante, 2º Comandante, Chefe da Secção de Pessoal, Oficial de Justiça, Psicólogo, Comandante da Companhia de Comando e Serviços (em representação do Comandante do PGS) e o Sargento-mor do Estabelecimento. 9 Existem Tribunais de Execução Penal em Lisboa, Porto, Évora e Coimbra. 32 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 quaisquer actividades. Estão permanentemente acompanhados por um militar PE do PGS, caso se encontrem em Grau de Confiança limitado 10 ou se estiverem em locais que possuam materiais perigosos (contudo, todos os reclusos, por decisão do actual Comandante, são acompanhados permanentemente quando se encontram no exterior do bloco prisional). Todavia, estas tarefas efectuadas pelos internos contribuem, fundamentalmente, para a manutenção e reprodução do sistema prisional assumindo apenas uma dimensão mecânica e elementar, não se revestindo de um carácter formativo e qualificativo que seja facilitador de uma futura reinserção ou ressocialização profissional, aumentando as hipóteses de empregabilidade (para os internos que não possam ser re-inseridos nas suas instituições profissionais de origem). Deste modo, num contexto desta natureza torna-se difícil a um cidadãorecluso, dadas as vulnerabilidades sociais de que é detentor, exponenciadas pela estigmatização que a prisão confere, garantir a sua empregabilidade se, na prisão, não existir uma dinâmica direccionada para esse objectivo. Esta é uma temática que poderá gerar futuras investigações e que não será abordada no decorrer desta dissertação. O EPM está fisicamente dividido em dois grandes sectores: o bloco Prisional, onde co-habitam os reclusos e a ala do Comando, Estado-Maior e Serviços, onde funcionam todas as áreas de apoio, suporte e sustentabilidade do estabelecimento. Estas duas alas apenas têm comunicação através de uma enorme porta que se encontra vigiada presencialmente por um militar do PGS vinte e quatro horas por dia (apenas a ala do Comando, Estado-Maior e dos Serviços tem ligação aos pátios exteriores). Curiosamente, o comandante e o 2º comandante não podem estar simultaneamente no interior do bloco prisional, devido a condicionalismos de segurança. O EPM tem capacidade para 78 reclusos sem, contudo, haver qualquer sobrelotação, dividido em ala prisional para reclusos condenados e ala prisional para preventivos. Nestas duas áreas existem alojamentos específicos para Oficiais, Sargentos e Praças e, dentro destes, separação entre militares masculinos e femininos 11 . A dimensão das celas, os materiais utilizados, as camas e os armários mudam conforme visitamos cada um destes locais. Passamos de camas de ferro para 10 Os reclusos envergam junto ao galão ou divisa do ombro direito uma “braçadeira” com uma cor específica. Reclusos com “grau de confiança reservado” – cor vermelha; não podem sair do bloco prisional; “grau de confiança limitado” – cor amarela; estão autorizados a sair do bloco prisional com vigilância física permanente; “grau de confiança pleno” – verde; estão autorizados a circular sozinhos, dentro de determinados locais que não possuem materiais considerados perigosos. A alteração do grau de confiança é da responsabilidade do NAC, é proposto à consideração do Comandante e, em caso afirmativo, é publicado em Ordem de Serviço Interna. 11 A Constituição Portuguesa obriga a que haja separação física entre reclusos preventivos e condenados. Não existem militares femininos em situação de reclusão. Porém, os alojamentos destinados para este efeito estão libertos e prontos a serem ocupados a qualquer momento. Também existe uma cela preparada para receber um Oficial-general. 33 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar camas de madeira. O chão deixa de ser mosaico para passar a ser também de madeira. A alimentação, todavia, é igual para todas as pessoas, sejam elas reclusas ou funcionários do estabelecimento. É confeccionada pelos mesmos indivíduos (com auxílio de alguns reclusos), utilizando-se os mesmos géneros alimentícios e os mesmos utensílios e quantidades. Como não há necessidade de aumentar a lotação de cada cela que deverá estar sempre pronta para inspecção (pronta para revista), cada preso tem o seu próprio quarto com casa de banho, não havendo necessidade de partilha de quaisquer bens desta natureza. “...As camas devem estar sempre feitas e a área da casa de banho limpa e agradável.(...) Os reclusos devem deixar a porta da cela fechada quando se ausentam por qualquer motivo. Pode ser efectuada revista a qualquer hora do dia ou da noite...” (Estabelecimento Prisional Militar - Normas de Execução Permanente, 2004: 3). O convívio deverá fazer-se no bar dos reclusos ou nos corredores, devendo evitar-se a entrada na cela de outros internos. Encontrámos dispositivos organizacionais que marcam de maneira recorrente o seu quadro de vivência. Por um lado, há a constante preocupação com o bem-estar físico e mental dos reclusos. Consultas médicas com periodicidade no local ou no hospital militar (existe ainda a possibilidade de haver deslocamentos a clínicas privadas na área da cidade, desde que seja o recluso a suportar os seus custos), um enfermeiro que faz parte do quadro orgânico, possibilidade diária da prática de desporto, acompanhamento psicológico e jurídico. Desta forma, existiam indícios que o estabelecimento, aparentemente, tinha adoptado um modelo que se orienta por aspectos terapêuticos, tendo por objectivo o tratamento dos delinquentes, como salienta Stanton Wheeler (1991), relegando para segundo plano outra tendência que se centra na disciplina, controle e segurança. O EPM estaria mais próximo do denominado modelo terapêutico, em declínio desde os anos setenta do século passado dado não haver produzido os resultados esperados. Contudo, à medida que se desenvolvia a “observação” 12 e fomos notando um aumento considerável na quantidade e qualidade de informação contida nas pequenas conversas informais, concluímos que seria inevitável não haver uma componente de segurança, controle e disciplina que não se sobrepusesse ao teor terapêutico, ainda mais sabendo que se trata de um estabelecimento de cariz essencialmente militar. Estes argumentos servem de base a que um vasto leque de actividades quotidianas sejam sujeitas a uma gestão minuciosa que estabelece formalmente a restrição da autonomia individual dos reclusos. Mesmo no meio exterior, a fronteira que delimita o domínio privado do público é flexível e não se estabelece de maneira 12 Passagem da fase de identificação e de adaptação, à fase de integração, segundo António Firmino da Costa (1986). 34 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 idêntica para todos os indivíduos. Na prisão, ela é institucionalmente diluída e legitimada pelo argumento da segurança. A regulamentação variada e minuciosa através de “normas de execução permanente” (NEP) é um destes dispositivos que contribui para que outros regulamentos vão aparecendo a um nível inferior, procurando responder a novas situações da vida prisional. No EPM conseguimos encontrar certos aspectos apontados na literatura sobre a sub-cultura prisional de que falámos nas primeiras páginas deste trabalho. Porém, apresentam-se mais fluídos e sem organizar os quadros extremos que foram apresentados. Existe alguma coesão e formação de grupos entre alguns reclusos, havendo uma nítida demarcação de uns para com outros. Julgamos que a aproximação é fundamentalmente baseada no interesse e não induzem à constituição de grupos com grande intensidade (excepção feita a um pequeno grupo de três elementos de que falaremos mais adiante), providos de alguma identidade colectiva e funcionando em regra de forma coesa. Neste sentido, existe um fenómeno de “ausência de solidariedade generalizada” já que os reclusos pouco mais têm em comum do que serem militares e estarem recluídos. E no EPM, esta circunstância não se manifesta no sentido de os unir. Ela significa o facto de terem delinquido, avaliado de modo diverso consoante seja questão do próprio recluso ou dos restantes (todos os reclusos são sabedores, por via directa ou indirecta, do crime dos outros e da sua extensão). A desqualificação mútua é modulada pela gravidade do tipo de crimes que varia com o ponto de vista de quem os avalia (excepto pedofilia e violação que reúne a reprovação geral, não existindo nenhum recluso a cumprir pena desta natureza). Vinculado ao tipo de acto desviante cometido pela pessoa que se pronuncia sobre os de outrém, os modos de hierarquização são múltiplos e por isso nem sempre coincidem com a hierarquia formal militar ou a ordenação jurídico-penal (contudo, quando pretendem fazer chegar algum pedido especial ao comandante é respeitada a hierarquia militar e é o recluso com patente mais elevada que dirige esse pedido em nome de todos os outros). No capítulo quatro, teremos oportunidade de abordar estes condicionalismos de maneira mais pormenorizada. De seguida, iremos debruçar-nos sobre questões de índole metodológico. 2.3. Explicitação Metodológica A finalidade deste capítulo reside na justificação do caminho percorrido no âmbito dos métodos e técnicas utilizadas no decorrer da investigação. Por conseguinte, é nosso objectivo determinar quem é o cidadão-recluso que se encontra no EPM, em função de um conjunto de características sócio-demográficas e jurídicoprisionais, designadamente a idade, posto, habilitações literárias, situação na 35 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar profissão, instituição de origem, duração e tipo de pena. Pretendemos, inclusivamente, perceber quais as condições de vida dos reclusos – tipo de tratamento dado pelo staff/guardas, horários, fardamento, rotinas, comportamentos, alojamentos e habitabilidade, alimentação. Procurámos analisar, entre outros factores, as situações penais e prisionais, designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente militar, que comungam de orientações semelhantes. Analisámos as preocupações, avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos. Foram objecto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «staff prisional», o acesso à saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias internas decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as posições e as interacções locais. Tendo consciência da estigmatização social provocada pela prisão, das vulnerabilidades societais que estes cidadãos-reclusos apresentam, exponenciada pelo uniforme que usam e poderão ou não continuar a envergar, torna-se imprescindível determinar quem é o cidadão-recluso-militar. Quais as vulnerabilidades a que estão sujeitos? Como são tratados pelo staff prisional? Quais as condições em que co-habitam? Que direitos e deveres possuem? Serão reclusos com especificidades próprias? A natureza dos seus crimes é singular? Que noções orientam as suas atitudes, comportamentos e emoções?O estudo visa a população do EPM, sendo portanto, um estudo de caso. Salientamos o facto de termos optado por uma estratégia metodológica traduzida numa pesquisa de carácter quantitativo, recorrendo fundamentalmente a técnicas de pesquisa “não documentais” como a “observação participante”. Apenas desta forma conseguimos alguma profundidade de análise ao observar os locais, os objectos, símbolos, as pessoas, actividades, comportamentos e interacções, acontecimentos, situações, ritmos e dinâmicas sociais. Assim, conseguimos alguma flexibilidade e permitiu-nos alternar de estratégia e seguir novas pistas que entretanto apareceram. Apenas deste modo conseguimos ter acesso oportuno a determinados espaços sociais que se revelaram de extrema pertinência. Procurámos sempre ter presente o risco de envolvimento do observador que algumas vezes se tornou excessivo, não se salvaguardando o necessário distanciamento científico-metodológico. Admitimos que nem sempre conseguimos manter esse distanciamento. Todavia, julgamos que as desvantagens e os riscos desta estratégia metodológica foram superados face aos resultados obtidos. 36 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Utilizámos também a “observação não participante” recorrendo à “entrevista não directiva, semi-directiva e directiva” e ao “inquérito por questionário” de modo a aumentar a intensidade de análise. Efectuámos, inicialmente, uma “entrevista nãodirectiva” ao Comandante do Estabelecimento quando ainda nos encontrávamos numa fase exploratória. Posteriormente, à medida que o conhecimento se foi intensificando, realizámos “entrevistas semi-directivas” ao Comandante do Pelotão de Guarnição e Segurança, ao Sargento deste Pelotão e à Psicóloga do Estabelecimento. Numa fase mais avançada da investigação, voltámos a entrevistar estes três últimos intervenientes, recorrendo à “entrevista directiva”, onde se intensificou o grau de directividade das questões, procurando-se estruturar e descodificar alguns sentidos. Pareceu-nos igualmente útil, para o melhor conhecimento da realidade prisional, inquirir todos os reclusos, apesar de termos consciência, como nos adverte Pedro Dores (2003), que também deveríamos inquirir outros protagonistas como o estado-maior, os elementos do posto de socorros e outros agentes sociais envolvidos como os familiares e amigos, técnicos do instituto de reinserção social e organizações não governamentais, de modo a poder compreender os comportamentos e a especificidade reclusa de uma forma mais abrangente e completa, tendo por base também factores extrínsecos que não podem ser dissociados das abordagens institucionais sobre as prisões. Todavia, tivemos consciência, desde a primeira hora, que não conseguiríamos ser tão ambiciosos. Não houve recusas, em parte devido à acção do comandante que, pessoalmente, explicou aos reclusos os objectivos que se pretendiam alcançar. Formulámos algumas hipóteses, nomeadamente: H1 - O tratamento dado pelos guardas/staff aos reclusos-militares terá especificações e orientações diferentes, tornando-se mais respeitoso, formal e cordial à medida que se sobe na hierarquia militar. Este factor será preponderante relativamente aos demais, designadamente a duração da pena e tipo de crime; H2 - as rotinas, fardamentos, alimentação, horários serão idênticos para todos os reclusos. Admitimos, contudo, que a hierarquia militar formal corresponderá à hierarquia informal/subterrânea no relacionamento entre pares; H3 - partimos do pressuposto que a quantidade de reclusos será inversamente proporcional ao seu escalão etário, ou seja, haverá uma maior percentagem de reclusos jovens e solteiros; H4 - acreditamos que os reclusos apresentam habilitações literárias baixas, sendo maioritariamente pertencentes à classe de praças. Procurámos desenvolver conversas informais com praticamente todos os reclusos em variadíssimas situações e em distintas horas do dia. Ouvimos as suas 37 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar histórias de vida, apesar de alguns não quererem abordar nem a sua vida pessoal nem a da sua família, refugiando-se na evasão e no silêncio. Alguns destes indivíduos possuem grandes conhecimentos ainda que a maioria não tenha frequentado mais do que os primeiros ciclos do ensino básico - conhecimentos que não foram aprendidos nem nas escolas nem nas bibliotecas e que nem sempre são positivos ou benéficos. As habituais preocupações de fiabilidade e validade dos dados obtidos na realização de inquéritos tiveram de ser reforçadas, garantindo de forma especialmente cuidadosa a total confidencialidade das condições de inquérito e o anonimato das respostas, bem como prevenir a utilização da informação para outros fins que não o meio académico. De realçar a fuga quase sistemática a questões abertas que requeriam a opinião dos internos, especialmente quando se referiam aos co-reclusos, ao PGS e ao comando do EPM. O meio prisional é, com efeito, um contexto muito específico, contribuindo para situações de fechamento e de defesa, a começar pelo próprio acesso a esta realidade. Todos, porém, não se inibiram de dar a sua opinião sincera, honesta, de uma forma directa ou não, sobre as instalações, comida, injustiças, mágoas, ressentimentos, resignações, meditações. 3. ANÁLISE SOCIO-DEMOGRÁFICA DOS RECLUSOS 3.1. Feminilidade Ausente, Escalão Etário Mediano A amostra é composta pela totalidade dos reclusos do EPM à data da aplicação do questionário, não tendo havido quaisquer recusas. A análise da figura 1 permite observar a dimensão verdadeiramente assimétrica que existe entre os dois sexos. De facto, a população é totalmente composta por homens não tendo havido, na Figura 1 – Sexo dos Inquiridos Sexo história das prisões militares portuguesas, a ocorrência de quaisquer encarceramentos de militares do sexo feminino. A esta ausência de mulheres militares encarceradas ao longo da história nacional não será alheio o facto do seu ingresso nas FA ter ocorrido praticamente na N=26 Masculino última década do século passado 13 . De facto, as FA têm secularmente desempenhado um papel normativo de masculinidade que tem 13 A primeira experiência militar de mulheres portuguesas ocorreu com as enfermeiras paraquedistas da Força Aérea Portuguesa (FAP) em 1961, apesar desta colaboração ter sido circunscrita ao desempenho de tarefas fundamentalmente de apoio. 38 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 vindo a sofrer alterações nos últimos anos. Com efeito, “... a presença da mulher (...)tem vindo a constituir um elemento estruturante do universo simbólico-cultural sobre o qual se desenham, em contexto militar, valores e representações sobre os papéis socialmente adequados a homens e mulheres...” (Carreiras, 1997: 49). Esta é uma matéria aliciante que poderá ser desenvolvida em futuros trabalhos. A idade dos inquiridos está compreendida entre os 26 e os 56 anos e a média de idades é de aproximadamente 46. Como podemos depreender pela análise da figura 2, a maioria dos internos situaFigura 2 – Escalões etários dos inquiridos se no escalão etário dos 46-55 anos (17 indivíduos), enquanto os restantes 26- 35 Anos 4 36- 45 Anos 4 dividem-se, sensivelmente, por categorias mais jovens (4 elementos em cada), havendo apenas um interno 46- 55 Anos 17 que possui mais de 55 anos. Ao Mais de 55 Anos 0 compararmos estes dados com os da 5 10 Frequências 15 20 população portuguesa reclusa 14 masculina que ocupa as prisões civis, verificamos que a maioria situa-se no escalão etário dos 26-35 anos (38,0%) enquanto apenas 8,7% se encontra no grupo dos 46-55 anos. Deste modo, assistimos a uma diferenciação entre os reclusos militares e os civis. Os primeiros são, de uma forma geral, mais velhos que os segundos. Esta evidência coloca em causa uma das nossas hipóteses de partida, uma vez que pressupúnhamos a existência de uma maior percentagem de reclusos militares jovens, o que não se verifica. A população do EPM apresenta baixos níveis de escolarização, apesar de todos terem completado o 1º ciclo do ensino básico. Porém, ter o 1º ciclo incompleto ou não saber ler e escrever eram factores de exclusão, mesmo na altura em que os indivíduos mais velhos passaram pelo processo de admissão na instituição respectiva. Se somarmos os que possuem o 1º e o 2º ciclos, a frequência aumenta para 13 indivíduos (50,0%). À medida que vamos subindo no escalão etário, vamos tendo uma maior frequência de indivíduos que apenas possuem o 1o ou 2º ciclos do ensino básico. Inversamente, nos reclusos mais jovens verificámos uma subida da escolarização que se situa, todavia, ao nível do secundário, havendo apenas um recluso que possui frequência universitária (pós-graduação). O facto da frequência escolar variar na razão inversa da idade, traduz o incremento da escolarização na sociedade portuguesa dos últimos anos. Estas baixas qualificações têm uma intima 14 Para mais informações consultar TORRES, Anália; GOMES, Maria do Carmo (2002) – Droga e Prisões em Portugal. Lisboa: CIES/ISCTE. p. 29. 39 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar relação com a predominância das patentes que se situam nos postos mais baixos da hierarquia militar. Apenas dois elementos não pertencem à classe de praças (1 oficial superior e um sargento). Os restantes vinte e quatro internos apresentam o posto de soldado (dezasseis), marinheiro (três) e cabo (cinco). Por consequência, uma das nossas hipóteses de partida foi corroborada, ou seja, os reclusos apresentam habilitações literárias baixas pertencendo maioritariamente à classe de praças. Quando comparamos as habilitações literárias dos presos militares com as da população reclusa civil, temos consciência que Figura 3 – Classe Social de ascendência 14 existem cerca de 11,7% de presos civis que 12 12 nunca frequentaram a escola, apesar de 4,6% saberem ler e escrever. Como Frequência destes mencionado anteriormente, os militares não 10 8 podem ser admitidos nestas condições, pelo 6 que, a efectuar 4 condições prévias 2 dissemelhantes. Todavia, excepção feita a 0 à partida, paralelismos com estamos estes, cerca de 27,3% têm o 1o ciclo e 29,3% 7 4 3 EDL TI EE OO Classe social de ascendência o 2º ciclo do ensino básico (somam 56,6% enquanto os militares se situam nos 50%), não existindo uma clara demarcação neste ponto. No que se refere ao secundário, assistimos a uma nítida desvantagem dos reclusos civis (7,5%) contra os 30,8% dos militares que possuem este nível de ensino. Os baixos níveis de escolarização atingidos pela população reclusa aproximam-se dos valores existentes na generalidade da população residente. Este reduzido capital escolar característico da população reclusa permite antecipar algumas dificuldades de re-integração social - pelo menos para aqueles que não serão re-incluídos nas suas instituições de origem - tendo em consideração as exigentes condições do mercado de trabalho em termos de competências e qualificações. A maioria dos internos militares pertence à GNR (19 elementos), seguido da Marinha (4 internos) e do Exército (3 reclusos). A Força Aérea, presentemente, não está representada neste universo recluso. 3.2. Classe Social, Nacionalidade, Residência O agregado familiar de ascendência dos reclusos pertence maioritariamente ao «Operariado» 15 , como podemos verificar na figura 4.o que se refere à nacionalidade, 15 Segundo António Firmino da Costa (1999), existem variáveis primárias de categorização de classe (profissão e situação na profissão), as variáveis primárias complementares de categorização de classe (meios de vida, situação perante o trabalho, 20 40 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 dezoito internos nasceram em Portugal, o que perfaz a grande maioria, tal como verificado nas prisões civis. Seis reclusos declararam nascer nas ex-colónias portuguesas - Angola, Moçambique e Guiné-Bissau com três, dois e um elemento respectivamente – e dois inquiridos nasceram em países da União Europeia. De salientar que por exigência de admissão às respectivas instituições, todos os militares possuem nacionalidade portuguesa. Por outro lado, relativamente ao distrito de nascimento e residência, assistimos a uma distribuição geográfica relativamente assimétrica, não havendo indícios de estarmos em presença de uma tipologia que relacione o sujeito ou acto desviante a determinada região do país. O distrito de residência mais representado é Faro com cerca de cinco indivíduos, seguido de Lisboa e Leiria, ambos com quatro e Setúbal com três internos. Esta especificidade contraria o que observamos nas penitenciárias civis, onde existe uma sobrerepresentação das regiões de Lisboa, Vale do Tejo, Porto e Algarve. Os recluídos militares não residem, de uma forma geral, em grandes centros urbanos devido à grande dispersão geográfica das unidades e postos militares, o que lhes proporciona outras alternativas de residência que não as grandes metrópoles. Neste pressuposto, as características sociais, culturais, económicas, típicas dos grandes centros urbanos e que normalmente se constituem como catalisadores para a prática de actos desviantes não parecem, neste universo militar, contribuir de forma directa para o aumento do número de prevaricadores. Outro pormenor que necessita de realce é o elevado número de presos preventivos, sendo cerca de doze num universo reduzido de reclusos militares. Esta situação penal incerta, indefinida, origina situações de alguma ansiedade pois reflecte uma indefinição jurídico-penal que poderá levar a uma eventual condenação ou libertação. Esta angústia da incerteza leva a que muitos dos preventivos se mantenham pseudo-ausentes, pensativos, abstraídos nos seus pensamentos e tarefas, preocupando-se quase exclusivamente com a sua defesa jurídica. Nas prisões civis, de acordo com Anália Torres e Maria do Carmo Gomes (2002), o número de preventivos ronda os 28% enquanto o de condenados situa-se nos 72%, havendo um grupo residual de 0,3% que acumula as duas situações. O número de condenados é substancialmente superior ao de preventivos, o que não acontece no EPM, havendo quase uma sobreposição ou replicação destas duas quantidades. escolaridade, posição hierárquica, dimensão da empresa, ramo de actividade) e as variáveis adicionais de categorização de classe (idade, sexo, residência, naturalidade, composição e dimensão do agregado doméstico). Na construção do indicador socioprofissional de análise (Costa, 1999: 276), levou-se em linha de conta as variáveis primárias “situação na profissão” e “profissão” tendo-se chegado a uma matriz de construção do indicador socioprofissional individual (ISPI) e familiar de classe (ISPF). Com efeito, no primeiro caso temos cerca de sete lugares de classe distintos: EDL (empresários, dirigentes e profissionais liberais), PTE (profissionais técnicos e de enquadramento), TI (trabalhadores independentes), AI (agricultores independentes), EE (empregados executantes), O (operários), AA (assalariados agrícolas); no segundo caso, temos a acrescentar mais três lugares de classe: os TIpl (trabalhadores independentes pluri-activos), AIpl (agricultores independentes pluri-activos) e os AEpl (assalariados executantes pluri-activos). 41 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar Os casados representam a quase totalidade da amostra com cerca de dezanove indivíduos, seguido dos divorciados/separados com cinco, dos solteiros e viúvos, ambos com apenas um caso (não existem casos de vivência em «união de facto/juntos»). Esta singularidade distancia-se da predominância de solteiros que representam quase 51% da amostra de reclusos que se encontram a cumprir pena em estabelecimentos prisionais civis. Mesmo que somemos aos casados (20,0%) a percentagem dos que declaram viver em união de facto/juntos (14,4%) obtemos apenas 34,4% diferindo substancialmente do valor percentual dos solteiros. O que sobressai de forma mais evidente é o facto dos laços formais, como o casamento, ter uma expressão elevada no EPM, o que não será alheio ao facto dos reclusos terem a vida relativamente estável, sólida e organizada, apresentando idades superiores aos 46 anos e mais de vinte e um anos de trabalho desenvolvidos na instituição respectiva. Efectivamente, dezassete internos declaram estar na instituição há mais de vinte e um anos, havendo três reclusos, inclusivamente, que ultrapassam os trinta e um anos de serviço. Por conseguinte, a realidade Figura 4. Tipo de agregado familiar medida 16 14 em que no EPM predominam os casados, enquanto 14 12 Frequência reclusa militar difere da civil na nas prisões civis os solteiros estão 10 substancialmente em maior Tendo em 8 quantidade. 6 6 5 4 consideração o tipo de agregado familiar, cerca de quatorze internos 2 1 0 família nuclear Fam.nuclear alargada Família monoparental outr modelo familiar Agregado familiar declaram viver em família nuclear e seis numa família nuclear alargada; doze assumem ter apenas um filho enquanto nove têm dois. A grande maioria habita em casa própria (vinte e um internos), apesar de dois pernoitarem na unidade onde prestam serviço e outros dois viverem em casa dos progenitores. Em termos do número de elementos que compõem o agregado familiar, dezoito indivíduos estão incluídos em agregados compostos por duas ou três pessoas (nove internos quer no primeiro quer no segundo caso). De destacar a elevada frequência de indivíduos (dezanove) que declaram viver com a sua companheira/esposa antes da reclusão. Por conseguinte, podemos concluir que a maioria dos reclusos estava inserida em redes familiares e sociais relativamente próximas e estáveis. Tal facto não difere substancialmente do que encontramos nas penitenciárias civis. Efectivamente, de acordo com Anália Torres e Maria do Carmo 42 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Gomes (2002), apenas 21,6% dos reclusos civis admitem viver sozinhos ou com terceiras pessoas não afectivas, 46% vivia em casa própria e 39% na companhia dos pais. O tempo médio de permanência na prisão militar é de 1 ano e três meses. Nove elementos encontram-se entre o primeiro e o segundo ano de reclusão, enquanto seis internos situam-se no segundo semestre da pena. Apenas um elemento se encontra no estabelecimento há mais de três anos (mais concretamente há quatro anos e um mês). Nas prisões civis, o tempo médio de permanência é 29 meses e meio, encontrando-se 38,9% entre o primeiro e o terceiro ano da pena e 31,9% recluídos há menos de um ano, perfazendo quase 71% dos internos que se encontram encarcerados há menos de três anos. No EPM, se somarmos todos os militares com menos de três anos de permanência atingimos os 96% (cerca de vinte e cinco elementos), o que comprova que as duas realidades apresentam algumas diferenças neste pormenor. 3.3. Avaliação do EPM, Adaptação, Diferenciação de Tratamento Vejamos então, como se distribuem as opiniões sobre o EPM relativamente a vários domínios. Ao serem convidados a posicionarem-se numa escala de «Mau, razoável» até ao «bom» insuficiente, 16 , verificamos pela análise das figuras que a alimentação, a saúde, o relacionamento entre reclusos, a relação com o PGS e com o comando do estabelecimento reúnem o maior desagrado por parte dos internos. Deste conjunto, destaca-se a relação com Figuras 5 e 6. Como avalia cada um dos aspectos sobre o EPM? o comando que reúne a opinião de vinte e três internos que Aliment ação 5 classificam «insuficiente 20 Desport o como ou má». O 5 22 Act ividades Saúde a 21 mesmo poderá ser dito em 4 7 Bom/ razoável Insuf icient e/ mau 19 relação à alimentação com um Visit as 26 0 rácio de vinte e um para cinco. Higiene 26 0 Em contraposição, o sistema de visitas, as condições de higiene gerais, a sala de convívio e o alojamento reúnem o consenso em torno do «razoável/bom». Ao serem interrogados sobre se estariam ou não adaptados à vida prisional, apenas três elementos responderam afirmativamente. Praticamente todos admitem ter saudades da família e não ter acesso a determinados bens materiais que lhe causam alguma necessidade, 16 Esta variável foi recodificada e aglutinou-se as respostas em «insuficiente/mau e razoável/bom». 43 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar o que seria de esperar. Todos, sem excepção, afirmam não sofrer qualquer tipo de maltrato. Contudo, é de ressalvar o elevado número que declaram «não se dar bem com outros reclusos», o que nos permite antever o ambiente vivido em co-reclusão. No capítulo seguinte falaremos mais em pormenor deste assunto. Procurámos saber se, na opinião dos reclusos, haveria diferenças de Relacão com Comando Relacão com PGS Relacão entre reclusos 3 23 10 tratamento institucional no EPM. Cerca 16 11 de vinte e três responderam Uma análise Bom/razoável 14 Insuficiente/mau Sala convívio 24 2 Alojamento 24 2 afirmativamente. de conteúdo dos questionários permitiu concluir, curiosamente, que dois dos três internos que declararam «não haver diferenças de tratamento» possuem os postos mais elevados, o que poderá proporcionar uma falsa percepção dos favorecimentos a que eventualmente estejam sujeitos. A patente e «ser graxista» são os dois factores que, na opinião dos reclusos, mais contribuem para a diferença de tratamento (ambos com vinte e três respostas afirmativas e três não-respostas), seguido da familiaridade com o PGS (dezanove) e o bom comportamento (dezassete). Em oposição, o tempo de pena, a instituição de origem e a idade, são os pontos que menos contribuem para alterações no tratamento institucional. Parece ser claro que, tendencialmente, estamos em presença de uma inequívoca analogia entre os postos dos reclusos, o modo como reagem às ordens e solicitações do PGS e as relações sociais e institucionais que daí resultam. Ao serem interrogados sobre a sua percepção de actividade/inactividade apenas um elemento se assumiu como «inactivo». Com efeito, vinte reclusos classificam-se como «activos» e dois assumem-se mesmo como «muito activos». Nas actividades de livre iniciativa desenvolvidas pelos reclusos nas horas livres, destacam-se tarefas como a leitura, a prática do desporto e a visualização de programas televisivos. O coleccionismo, o estudo e a escrita são as actividades que menor adesão têm entre os recluídos, seguido das práticas religiosas e do uso do computador. 4. SITUAÇÕES PRISIONAIS – PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES 4.1. Modos de Vida Encarcerados – a Chegada As fronteiras materiais e imateriais da prisão delimitam um quadro temporário de vida específico dotado de relativa autonomia e, cumulativamente, um corolário de relações sociais com dinâmicas próprias. A nossa própria permanência no interior dos locais de lazer e de habitabilidade causava alguns constrangimentos que foram 44 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 sofrendo alterações ao longo das semanas. Da desconfiança inicial silenciosa e quase absoluta, onde os reclusos procuraram por à prova a nossa fiabilidade, supondo que trabalhávamos de acordo com orientações do Staff, dada a nossa razoável liberdade de circulação, deparámo-nos com alguns relatos (muitas vezes próximos da calunia que na maioria das vezes, sabemo-lo agora, eram infundados) de actividades ilícitas quer de militares do PGS quer de alguns co-reclusos. Fomos ouvindo uma série de lamentos e argumentações contra a má alimentação, a falta de actividades ocupacionais mais dinâmicas, a ausência de reinserção social, saídas precárias para uns e não para outros, a repressão, o tipo de desvio de uns e de outros, as injustiças do PGS, as diferenças de tratamento e de condições, as excessivas formaturas, o desmesurado atavio, as horas de desporto insuficientes. Deste modo, as primeiras situações mais formais de entrevista foram algo desapontantes. A permanência no terreno e as sucessivas conversas individuais (ou em grupo) foram contribuindo para que a deambulação inicial, onde pouco se apurou e produziu, desse lugar a uma maior precisão das questões (e também das respostas), demonstrando algum interesse subreptício de que as suas queixas chegassem além-muros ou fossem, efectivamente, escutadas. Em praticamente todos os momentos que estivemos mais próximos, sentimos uma necessidade premente de afirmação de uma identidade não desviante e de clara demarcação face aos demais co-internos. Apesar de não se falar abertamente do teor e da duração das penas, denotámos uma inequívoca tentativa de recomposição de um carácter ou de uma identidade positiva (porventura, perdida ou enfraquecida) e de requalificação da sua ordem social legítima em que se pretendem re-inscrever. Uma das facetas preponderantes do dispositivo estigmatizante que encontrámos no interior da cadeia foi, precisamente, este processo de demarcação individual face ao conjunto de co-internados, a par de outros aspectos como o repúdio e a condenação dos crimes alheios. Quando um cidadão militar entra no EPM e se «transforma» em recluso, após decisão do TEP, é recebido pelo graduado de serviço e inicia um período de «quarentena» (que poderá durar, no máximo, até 72 horas) numa cela individual e específica para esse fim. Ali, afastado dos demais reclusos e despojado dos seus pertences que ficam à guarda do PGS, recebe apoio psicológico e médico (pela psicóloga e pelo médico do estabelecimento), tendo em vista avaliar o estado físico e mental do indivíduo. Nesse período, são-lhe transmitidas as regras básicas que lhe balizarão os próximos tempos. Horas de formaturas, refeições, fardamentos, enfim, restrições e liberdades. São lidas e relidas as NEP do EPM. 45 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar Após algum tempo de observação e de conversas informais, chegámos à conclusão que houve alguns casos em que o período de 72 horas se alargou por vários dias a mais, sob justificação de que os outros reclusos não gostavam do tipo de desvio que tinha sido cometido pelo novo interno. Com receio de algumas represálias, os responsáveis alargaram este período de clausura individual. Outros casos houve em que, devido ao mau comportamento, à revolta interior que se materializava em injúrias contra os militares do PGS e a algumas acções, porventura, irreflectidas como o próprio veio a admitir - foi tomada a decisão de perpetuar esta condição até que os ânimos esfriassem. De realçar que nesta «quarentena» inicial, é permitido ao novo recluso apenas algumas horas no pátio interior. Algumas queixas contradiziam, contudo, aquilo que me tinha sido assegurado, apesar de, no início, não se revelaram como tendo muita credibilidade. Porém, com a insistência vindo de diferentes internos, resolvi não negligenciar estas considerações:“...assim que entramos, tiram-nos tudo e põem-nos no buraco. Estive lá 5 dias e uma noite. Já estava farto. Não via ninguém, só o soldado da guarda. Queria ir-me embora, mas não podia. Chamei alguns nomes aos soldados – vinha com a cabeça perdida. Estava lixado. Nunca vi o médico nesses dias. A Alferes Drª. [referindo-se à psicóloga] vinha muitas vezes falar comigo. É boa pessoa e ajuda-nos. Só falei com o sargento-enfermeiro na 2ª ou 3ª manhã (já não me lembro bem). Só queria saber se consumia drogas ou se era alcoólico. Disse que não, que só fumava tabaco, mas ele continuava a perguntar o mesmo e a olhar-me de cima para baixo...”. Confirmámos presencialmente que o médico deveria vir ao estabelecimento um dia por semana e sempre que chegam novos reclusos. Muitas vezes não o faz. Aparece quando tem indicações do staff para o fazer. É um médico civil que exerce a profissão na cidade e que, por avença, ministra consultas na prisão. Quanto às funções de enfermeiro, previstas como permanentes no EPM, são asseguradas pelo sargentoenfermeiro de uma unidade militar das proximidades, fazendo, por inerência e em acumulação, também serviço no estabelecimento. Após o período de quarentena, é colocada a todos os novos reclusos a braçadeira vermelha no ombro direito (símbolo do grau de confiança reservado), sendo alojados na parte do bloco prisional que se adequa à sua situação jurídica-penal e à sua patente. Presos preventivos separados dos condenados e ala prisional respectiva consoante se trate de um Oficial, Sargento ou Praça. Fala-se de um caso que, todavia, já não se encontra no EPM, em que um sargento manifestou o desejo de ser alojado junto dos seus camaradas soldados, pois o desvio tinha sido consumado em conjunto. Apesar dos pedidos verbais e escritos, o comandante em exercício não autorizou a mudança de instalações, afirmando que “...não ajudaria na manutenção da 46 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 auto-imagem, postura e conduta-militar do sargento e que iria abrir um precedente que a meu ver [no do comandante] seria injustificável e imprudente...” (retirado do dossier de despachos do antigos comandantes). As alas destinadas a condenados e preventivos não diferem substancialmente uma da outra. O mesmo não poderá ser dito quando comparamos as celas de Oficiais, Sargentos e Praças. Enquanto que as destinadas a estes últimos têm camas de ferro, chão em mosaico e, caso a lotação seja máxima, poderão alojar seis reclusos dividindo a utilização da casa de banho, as clausuras destinadas a Sargentos e Oficiais possuem o chão, camas e armários de madeira. Um interno, comparando as instalações, salientava:“...o chão deles é em madeira. Eles deviam por os pés neste chão durante o inverno. A humidade é tanta que o chão nunca seca. O meu armário está empenado e não fecha há um ano. Ainda não o vieram consertar. Mas o armário do ............. foi logo arranjado...”. Em caso de lotação máxima, as celas destinadas a Oficiais e Sargentos ocupam, no máximo, dois internos 17 , diferindo apenas no seu tamanho – a de oficiais é ligeiramente maior. A ala feminina que se encontra vazia por inexistência de reclusas, é sensivelmente semelhante à destinada aos Oficiais. O bloco de Oficiais-Generais possui apenas uma cela que é composta por um quarto e uma pequena sala de estar. De salientar que as celas de praças ocupam todo o rés de chão, enquanto os restantes blocos situam-se no primeiro andar: “...é impossível não ter humidade aqui em baixo. O sol não bate aqui. Até nisso eles pensaram. O sol apenas bate nas celas deles. Porque é que não nos deixam ocupar as celas que estão vazias no 1º andar? Se entrar alguém, nós descemos. Todas as celas, sem excepção, têm televisão por cabo. Porém, queixavam-se alguns, não podem ligar qualquer tipo de aquecimento sendo difícil aquecer nos dias de inverno. Acusavam o PGS de deixar ligar aquecedores no bloco dos graduados 18 : “...eles fecham os olhos. Fazem que não vêm. Mas para nós estão sempre com má cara e não permitem nada. Os graduados têm as celas sempre quentes e nós temos de vir para a sala de convívio, se queremos aquecer...” Esta proibição, como outras, não se encontra escrita em lado algum. As NEP são omissas relativamente a este ponto. Todavia, é do conhecimento de todos que é estritamente proibido utilizar aquecedores que não seja nas salas de convívio. Apurámos junto do PGS e do estado-maior a razão de tal proibição. Disseram-nos que, antigamente (não se sabendo bem quando), alguns reclusos teriam deixado o aquecimento ligado vinte e quatro horas por dia, estando ou não na cela, originando-se gastos exagerados de electricidade. Um dos militares do PGS dizia 17 Para evitar situações do foro homossexual, é evitado a colocação de apenas dois elementos numa mesma cela. Deste modo, as clausuras são ocupadas por um só indivíduo ou por três ou mais. 18 Oficiais e Sargentos. 47 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar “...trabalho aqui há seis anos e já existia essa proibição. Eu não deixo ligar os aquecedores mas nunca ninguém me disse para fazer isso. Eu faço aquilo que ouço dizer e não quero problemas com ninguém. Ao princípio, eu perguntava e os meus colegas não me diziam nada. Brincavam comigo. Agora já sei como é que isto funciona. São os outros que me vêm perguntar a mim”. Depois de constatarmos que um dos aquecedores estava muitas vezes ligado na cela do recluso mais graduado, questionámos o PGS sobre esta alegada irregularidade: “...não queremos arranjar problemas com o ....Ele fala muitas vezes com o comandante e não sabemos do que falam. Como ele está noutra ala, os outros presos não sabem disso. Ninguém deles lá pode ir. É melhor assim. Ninguém sabe e não há problemas com ninguém.” Para além das normas e regulamentações reunidas nas NEP e das inúmeras ordens de serviço interno que anulam outras ordens anteriores, são produzidas outras proibições a outros escalões inferiores que vão reduzindo o livre-arbítrio e as liberdades individuais dos reclusos. Assim, por exemplo, a existência de um recluso com uma doença terminal obrigou a que a quantidade de medicamentos consumidos fosse exponencialmente maior do que até então. Havendo a necessidade de se tomar mais medicamentos, a quantidade de dinheiro semanal gasto por este interno foi maior. Foi dada autorização para se aumentar a cedência de dinheiro para este indivíduo. O sentido desta ordem é claro para todos mas o mesmo não acontece quando é descoberto um telemóvel no interior de uma cela (é proibida a posse de equipamentos desta natureza pois os internos têm cabinas telefónicas no interior do bloco prisional que funcionam com cartões pré pagos) o que justificou o aumento exponencial de revistas exaustivas a todas as clausuras, especialmente aos internos que não adquiriram cartão pré-pago. A interdição de dispor de um telemóvel é também objecto de especulação, dividindo-se as opiniões quanto ao seu sentido: impedir que a bateria e fios sejam utilizados para outros fins ou que seja usado para comércio interno e favorecimentos. Estas e outras especificações não constam das normas internas, fazendo com que os reclusos (e também os militares mais novos do PGS) se vão inteirando das normas à medida que as infringem. Em contrapartida, o conhecimento da rotina, a antiguidade, a velhice, proporcionam estratégias para contornar algumas delas. Por conseguinte, a proliferação de normas e regulamentos constrangem tanto os internos como os militares do PGS, ainda que de forma distinta. Para estes, a margem de conhecimento dos regulamentos, as ilações que retiram deles e a própria experiência pessoal aliada à maior ou menor capacidade de improvisação e decisão, originam situações de alguma imprevisibilidade e flexibilidade, de modo a que se cumpra o que está escrito e não se contradiga o que não está. A inexistência de um código ou regulamento que descreva todas as regras e normas em 48 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 uso, faz depender do «costume e do hábito» a gestão, decisão e resolução de muitos dos problemas diários, pelo que a autoridade dos militares do PGS mais antigos e «com mais tempo de casa» é inequivocamente superior. 4.2. A Cadeia de Comando e os Grupos Sabendo das diferenças de atitude e de resposta às solicitações, os internos dirigem-se a determinados militares da vigilância para fazerem alguns pedidos ou aguardam que certa pessoa esteja de serviço para executar determinadas acções que não fariam com outros. Por conseguinte, a tradição, o hábito e o costume não uniformizam os métodos utilizados, havendo discrepâncias entre diferentes militares do PGS que, desconhecendo uma ordem prévia de um colega, permitem o que anteriormente já havia sido interditado. Para os pedidos de maior envergadura, que englobam o bem estar de todos (ou pelo menos o da maioria), os reclusos utilizam a cadeia de comando formal e dirigem-se verbalmente e numa primeira fase ao comandante do PGS que, por norma, consulta o comando do estabelecimento. Se as intenções não forem satisfeitas, procuram comunicar directamente com o comandante (muitas vezes modificando o teor do pedido ainda que o produto final seja o mesmo) que, de uma forma geral, sempre se mostrou comunicativo e receptivo. Nas alturas em que houve necessidade de dar resposta a estes pedidos mais formais, o comandante utilizou sempre a cadeia de comando reclusa: solicitou a presença do interno com maior patente ao seu gabinete, na companhia do estado maior e do comandante do PGS e transmitiu-lhe as considerações que julgou pertinentes, sabendo que seriam relatadas aos demais. Contudo, verificámos que a cadeia de comando entre os presos era quase sempre desrespeitada, apesar dos reclusos o negarem e não o assumirem abertamente É um facto que eles encontram-se sujeitos ao Código de justiça Militar (CJM) e ao Regulamento de Disciplina Militar (RDM), como se permanecessem no serviço activo. E eles sabem-no perfeitamente. Como tal, para evitar problemas do foro disciplinar, afirmam respeitar a hierarquia esquecendo que os seus actos não estão em sintonia com as afirmações. Em primeiro lugar, existem pequenas conversas, mexericos, relatos, novidades que não são transmitidas entre ramos das Forças Armadas e, mais especificamente entre os diferentes grupos, o que contraria a lealdade e a frontalidade que deve existir entre militares quer da mesma patente, quer de patentes distintas. Os elementos da GNR guardam para si algumas informações e não as transmitem aos militares da marinha. O mesmo se passa com os do exército e vice-versa. Um pequeno sub-grupo de 3 fuzileiros que prevaricaram em conjunto e que 49 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar se encontram no estabelecimento há apenas dois meses, evitam mesmo falar com todos os restantes - inclusive com o interno mais graduado que pertence ao mesmo ramo - apenas executam os cordiais cumprimentos «obrigatórios». Um destes três elementos dizia: “não tenho vontade de falar com ninguém. Aqui somos todos iguais. Somos todos presos. Apenas confio nos meus dois amigos. Fiz a recruta com eles. Sei quem são e o que valem. O ...........[referindo-se ao interno mais antigo 19 ] está na sua cela a ler e eu estou aqui a ver televisão. Ele é intelectual [sorriso em tom jocoso] e eu sou do povo. Não gosto dele. Já o conheço do Alfeite. Tem a mania; mas aqui somos iguais. Não tenho de falar com ele. Digo bom dia e mais nada”. Um dos fuzileiros destaca-se nitidamente quando o comparamos com os outros dois. É excessivamente educado, cordial e protocolar. Tem habilitações literárias mais elevadas e preocupa-se com a imagem e com as respostas que fornece. Reflecte muito, “mede” as suas palavras ao milímetro, sabendo o que deve e não deve dizer. Os outros dois estão dependentes do que este decide sendo facilmente manipuláveis, o que os leva a aceder às suas orientações. Antevemos uma eventual competição com o recluso considerado como líder. Seria interessante, caso o tempo disponível o permitisse, verificar a alteração de identidades, representações, rotinas, diálogos e os focos de tensão que certamente se processarão entre estes dois protagonistas. Outros elementos deixaram transparecer que não confiam no interno mais graduado para defender os seus interesses junto do comando do estabelecimento, afirmando que este apenas está preocupado em defender a sua imagem junto do comando e do estado maior, não se preocupando com os outros. Realçam que preferiam que fosse o ............. a dirigir-se ao comando em nome de todos eles mas o comandante não permite, pois só recebe o mais antigo. Referem-se a um elemento da GNR que já havia sido referenciado pela psicóloga e pelos militares do PGS, como sendo o recluso que domina todos os outros. Calmo, sereno, ponderado, reservado, perspicaz, observador, confiante, foram alguns dos termos utilizados para o descrever. A este propósito, a psicóloga salientava: “ele é meticuloso, frio, calculista e os outros seguem-no quase inconscientemente. Ele é o verdadeiro porta-voz do grupo pelo àvontade e pela maneira como se exprime. Consegue manipulá-los e eles, cordeirinhos, seguem-no”. De facto, apurámos que os outros elementos, de uma forma geral, aceitam as suas ideias à excepção do recluso mais antigo que se mantém neutro, refugiando-se nas leituras e na meditação no interior da sua cela. O nível de habilitações do recluso considerado como líder situa-se ao nível do secundário, sendo superior à média da classe de praças. Tem um negócio legal, na área hoteleira, que gere à distância através do telefone, sendo alvo de alguns comentários que envolvem 19 Militar com patente mais elevada. 50 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 um misto de admiração e inveja. Não se expõe demasiadamente. Conversa com os outros internos, sobretudo nas áreas de lazer e em períodos de actividade reduzida 20 , quando o estabelecimento tem menos militares de serviço e poucos «olhares indiscretos», mantendo o silêncio quando subitamente aparecem elementos do PGS em redor. Esta atitude, juntamente com outras, levou a que um outro recluso o apelidasse de cobarde, originando-se algumas agressões verbais (e alguns empurrões) que foram interrompidos pela entrada do graduado de serviço. Transmite as suas opiniões, procura convencê-los através da persuasão e da argumentação e geralmente consegue-o. Porém, na hora de se empregarem medidas que envolvam a consciência colectiva, ele permanece calado na retaguarda deixando que os outros se envolvam, a não ser que os motivos sejam remuneradores para a conservação do status e do poder acumulado. Por conseguinte, podemos assumir que a hierarquia formal militar é respeitada pelo comando do estabelecimento. Porém, o mesmo não acontece com os reclusos que preferem, ainda que de uma forma não assumida e camuflada, valorizar uma outra hierarquia informal e subterrânea no relacionamento entre pares, privilegiando outros valores que não a antiguidade ou o posto. Após uma observação mais cuidada, conseguimos apercebermo-nos de alguns grupos que se mantém a uma «distância de segurança» dos outros. Não partilham informação (a não ser que ela seja desprovida de qualquer valor de troca), praticamente não dialogam e evitam permanecer muito tempo sem estar na companhia dos que têm afinidades. Julgamos que não se sentem seguros quando estão isolados e não há outro elemento do grupo à vista, apesar de não se conhecerem episódios de agressões violentas no EPM. Os três fuzileiros são os que mais se isolam, não procurando esconder essas intenções solitárias mesmo na altura das refeições em que o espaço é exíguo e há a necessidade obrigatória de partilha de mesas. Os militares da GNR, enquanto grupo mais numeroso e provavelmente o menos coeso, não procuram problemas tentando, de uma forma geral, apaziguar certos focos de tensão. Assim, por exemplo, um dos elementos deste grupo está a ser acompanhado clinicamente no sentido de deixar de consumir álcool, estando autorizado a beber apenas uma pequena porção a cada refeição. Ao princípio verificámos que essa proibição não era cumprida e que procuravam esconder esse facto da nossa observação. Porém, quando finalmente concluíram que não trabalhávamos ao serviço do estabelecimento, multiplicaram por três ou quatro o número de copos permitidos, chegando mesmo a oferecer-nos uma garrafa de vinho 20 Nas Unidades Militares e relativamente ao teor das tarefas, existem dois períodos, designadamente os de actividade plena (normalmente coincidente com os dias úteis) e os de actividade reduzida (fins de semana e feriados). 51 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar do estabelecimento que se encontrava sub-repticiamente escondida no interior de um blusão do uniforme. A embriaguez originou alguns desacatos envolvendo, especialmente, o interno que se encontrava em recuperação alcoólica, chegando a haver injúrias e empurrões contra elementos de outros grupos. Alguns reclusos da GNR separaram os militares em disputa e pediram prontamente desculpa aos demais em nome do seu camarada que não se encontrava nas «melhores condições», não necessitando de haver intervenção formal do PGS. Este incidente originou que todas as celas fossem inspeccionadas minuciosamente e todos os presos consumissem apenas um copo a cada refeição, estando ou não em abstinência alcoólica. Este facto contribuiu para esfriar, ainda mais, as fracas relações entre grupos. No interior dos internos da GNR, há um relacionamento relativamente forte entre aqueles que provêm do Algarve (cerca de cinco elementos), chegando mesmo a haver algumas famílias que trazem alimentos e outros bens para entregar a terceiros. Este pormenor apenas acontece neste sub-grupo. Não é algo que seja considerado usual, já que os internos não partilham os artigos que são trazidos pelas famílias, nem mesmo dentro de cada grupo. Um dos reclusos é, de certa maneira, discriminado pelos outros, não por ser o mais velho ou ter a pena com maior duração mas por ter cometido um «crime de sangue», como alguns resolveram denominar. Este interno vive para ser reconhecido socialmente pelo staff prisional. Deseja ser visto como um elemento apaziguador, respeitador das normas e regulamentos. Aparenta ser educado, cordial, simpático, formal, humilde, muitas vezes aproximando-se do exagero. É voluntário para tudo o que é sugerido, desde pintar alguns compartimentos do estabelecimento até cuidar dos animais e das plantas que preenchem os espaços tornando-os mais aprazíveis e acolhedores. Por estas razões é apelidado de «graxista e lambe-botas» pelos coreclusos. É um indivíduo excessivamente meticuloso apresentando, segundo a psicóloga, elevados índices de psicopatia. É apontado como tendo a «mania das limpezas». Tem a cela sempre arrumada e ordenada, sendo dos poucos que tem a roupa da cama impecavelmente esticada e engomada, chegando a tomar vários banhos por dia. Não cria conflitos com os restantes internos nem com o staff. Procura dar igual atenção a todos os que o rodeiam. Respeita as ordens sem murmurar e apresenta-se sempre com um dinamismo e uma energia interior que incomoda os internos que o observam. Cumprimenta todos com igual consideração, apesar de poucos lhe devolverem igual sinergia. É um dos principais denunciantes. Comenta com o staff que os outros internos não limpam convenientemente os corredores e as celas, discriminando os nomes de quem prevarica. Numa ocasião, ao ver passar o comandante e após pedir para falar em particular, queixou-se que não suportava tanto 52 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 fumo nas salas e nos corredores, o que ia contra as normas internas (só se pode fumar no pátio). Esta faceta denunciante é sobejamente conhecida pelos demais, o que lhe exponencia o abandono a que é sujeito. Porém, com o passar do tempo não demonstrou indícios de estar afectado por este pseudo-isolamento, mantendo-se convicto nas suas decisões. No interior do estabelecimento, desaparecer um pouco de manteiga ou algumas bolachas é motivo para zangas e amuos. Ali dentro, os mais pequeno incidente assume proporções gigantescas e não é esquecido com facilidade. A diminuição da autonomia individual, tendo em consideração as restrições directas de determinados bens por imposição do sistema (restrições que não existem além-muros) originam perturbações e obsessões por pequenos pormenores. Um dos militares mais novos do PGS dizia-nos: “não sei porque é que eles são tão invejosos. Não partilham nada uns com os outros. Contam as bolachas que têm no pacote, põem marcas na manteiga para saberem se alguém a utilizou. Estão sempre a ver o que cada um tem; o que as visitas trouxeram. Não percebo...” Acreditamos que a pseudo aproximação entre indivíduos não é desprovida de interesse, a não ser a do pequeno sub-grupo de três fuzileiros que confiam e protegem-se mutuamente. Julgamos que estamos perante um fenómeno de «ausência de solidariedade generalizada e abrangente» já que os reclusos pouco mais têm em comum do que envergarem um uniforme - que até difere consoante o ramo das FA a que pertencem - e estarem recluídos. Paradoxalmente, esta ausência de camaradagem e solidariedade viola um dos princípios militares. À medida que os reclusos interiorizam os limites e os detalhes da rotina, zelam por ela de maneira minuciosa. Qualquer facto susceptível de a alterar gera perturbação e ganha uma importância inusitada, produzindo comentários para vários dias. O anúncio de mudanças nos modos de vida - como a alteração da hora das formaturas e do uniforme – são recebidas com desconfiança e receio, pondo em risco a «segurança e a previsibilidade» que a rotina proporciona. 4.3. Os objectos, as Visitas, a Correspondência Existem dois bares e duas salas de estar onde os reclusos podem conviver (bar e sala para preventivos e condenados). Nestes locais, existe uma convivência, à primeira vista, salutar entre reclusos. Nos primeiros dias, chegámos a pensar que não haveria quaisquer atritos ou diferenças de opinião e que estes reclusos seriam um exemplo de tolerância e de gratidão. Alguns viam televisão, outros liam os jornais, jogavam às cartas ou às damas. Um deles bordava e mostrou-nos, prontamente, alguns trabalhos que já havia concluído. O bar e a sala são geridos pelos próprios 53 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar presos, exceptuando os materiais à responsabilidade do estabelecimento (móveis, cadeiras, jogos, computador sem acesso à internet, aquecedores). Os jornais, o leite, o café, as revistas, as bolachas, enfim, tudo o que é material de consumo, é comprado com o dinheiro dos reclusos ou então trazido pelas visitas. Como já foi referido, os internos não mexem nos artigos de outros, apesar de estarem reunidos no interior do mesmo armário ou frigorífico. Verificámos que durante alguns períodos de actividade reduzida havia uma completa convivência entre preventivos e condenados. O «muro» que separa os dois bares podia, afinal, ser «facilmente transposto», bastando para isso que os militares de serviço o permitissem. E esta permissão era dada quase todas as noites. Um dos graduados de serviço do PGS dizia-nos: “...é melhor deixá-los estar assim. Falam uns com os outros e aliviam a cabeça. Dão-nos menos problemas, andam mais calmos...” As visitas decorrem no horário fixado para o efeito, havendo uma diferenciação entre os preventivos e os condenados. Dizem as NEP que os primeiros podem ter visitas todos os dias das 10h00 às 12h00 e das 14h00 às 16h00, enquanto os segundos apenas recebem familiares e amigos às quartas-feiras, sábados, domingos e feriados no mesmo horário. Porém, constatámos que esta diferenciação não se efectua na realidade. Todos os presos estão autorizados a receber visitas todos os dias, mesmo fora destes horários. Algumas vezes verificámos que era permitido aos reclusos almoçar com os familiares numa sala para o efeito, desde que a refeição ficasse a seu cargo e fosse solicitada autorização nesse sentido. Todos os visitantes estão sujeitos a uma revista pessoal efectuada através de um detector de metais, de palpação ou, no limite, por desnudação. A sua não colaboração inviabiliza a concretização da visita. Os seus objectos pessoais ficam guardados num cacifo próprio existente na sala de revista cuja chave apenas é manuseada pelo próprio. Todos os produtos oferecidos pelos familiares (existe uma lista que discrimina os alimentos autorizados e a sua quantidade – ver anexo E) não podem ser entregues directamente ao recluso, pois necessitam de ser inspeccionados pelos militares do PGS. Alguns presos manifestaram o seu desagrado ao lhes serem entregues, alegadamente, alguns artigos completamente destruídos após a inspecção. Um deles afirmava: “...eles fazem de propósito. Se um queijo tem bom aspecto, eles amassamno e cortam-no. (...) Desaparece metade dos bolos. O mel fica com um sabor estranho. Não vale a pena dizer nada...” Ao ser confrontado com estas acusações, o comandante do PGS, mostrando-se indignado, transmitiu-nos que antigamente teriam havido alguns abusos. Disse-nos que as revistas aos alimentos passaram a ser feitas na presença dos reclusos que observam o modo como são inspeccionados. Frisou que não tem havido queixas, não percebendo como essa informação teria chegado até 54 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 nós. Presenciamos as inspecções aos alimentos e, efectivamente, os reclusos estavam presentes e verificavam in loco, o que era efectuado. Após algum tempo, soubemos que o recluso que se tinha lamentado sobre o mau tratamento dos alimentos, tinha tentado que entrasse, algumas semanas antes da nossa conversa, uma quantidade de alimentos superior ao permitido. Por consequência, tiveram que diminuir as quantidades recorrendo ao corte de bolos e de queijos pela metade, tendo o resto sido devolvido às visitas, o que deixou o interno profundamente revoltado. Após a revista pessoal, os visitantes são dirigidos à sala de visitas. Sala ampla, arrumada, com mesas e cadeiras de madeira onde as famílias podem conversar com alguma privacidade. Os soldados do PGS aguardam no exterior, apesar de poderem visualizar e controlar as interacções através dos vidros. Nesta sala também existem alguns brinquedos e um pequeno escorrega (material oferecido pelos militares que ali prestam serviço) para que as crianças, durante o período da visita, possam brincar e divertir-se, tornando o ambiente mais descontraído e relaxante. Se o recluso assim o entender, pode solicitar autorização para dar um passeio nos jardins do estabelecimento, apesar da vigilância, neste caso, passar a ser mais estreita e rígida. Se o interno for casado ou viver em união de facto, pode receber a sua companheira numa «visita íntima», havendo um alojamento para esse efeito. Namoradas, «ligações extra-conjugais 21 » ou outro tipo de conquistas não estão autorizadas a ser consideradas como «íntimas». A este propósito, um dos internos dizia-nos:“...nunca colocarei a minha esposa numa situação deste género. Não há intimidade nenhuma. Os soldados olham para as mulheres dos reclusos e sabem para o que vêm. Falam, comentam. Não quero que a minha mulher se sujeite a isso...” Como se trata do único estabelecimento prisional para militares, muitos reclusos encontram-se afastados dos seus locais de residência e dos seus familiares para que possam receber, com regularidade, a sua visita. Este constrangimento de ordem geográfica foi largamente mencionado no decorrer das entrevistas e das conversas informais. Todos os reclusos que não recebem visitas regulares encontramse privados de um fundamental suporte afectivo e material. A inexistência de visitas repercute-se nas relações sociais internas e na maior ou menor dependência de uns reclusos em relação a outros. A própria reinserção social é enfraquecida por este afastamento familiar e comunitário. As visitas trazem produtos que, de outro modo, teriam de ser comprados com dinheiro de cada recluso que é administrado por um graduado do PGS. Os internos estão autorizados a levantar da instituição de crédito onde têm dinheiro depositado, 21 Entende-se por relações extra-conjugais como sendo as ligações amorosas que são mantidas em paralelo com a da esposa ou da companheira com quem se vive. 55 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar cerca de 50€ por mês 22 . São levados sob escolta a um multibanco, levantam a quantia autorizada e entregam-na na totalidade à guarda de um graduado do PGS que anota num registo a quantidade de dinheiro que cada preso possui. É estritamente proibido a posse de qualquer tipo de valores no interior do bloco prisional (dinheiro, ouro, anéis – excepto aliança – fios, etc). Quando o interno pretende adquirir um jornal, tabaco, um medicamento que não seja da responsabilidade do posto de socorros ou comprar alimentos para saborear entre refeições, solicita estes préstimos ao PGS que, numa primeira oportunidade, adquire esses produtos, descontando o seu valor à quantia que estava amealhada. Quando o dinheiro atinge os 10 €, os reclusos são informados da situação e, no mês seguinte (caso assim o decidam), repete-se a operação no multibanco com o levantamento de mais 50 €. Se esta quantia não for suficiente, terão de solicitar por escrito a razão de tal insuficiência e apenas o comando do estabelecimento tem autoridade para alterar esta rotina. De um modo geral, aplica-se à correspondência controlo idêntico ao dos visitantes. As cartas são fechadas e abertas pelo PGS na presença do recluso respectivo, salvo as que se destinam e provenham do seu advogado ou de outras entidades previstas na lei. Não existe interdição de destinatários, podendo o interno receber e enviar cartas a quem desejar. Todavia, o conteúdo da correspondência é examinado em ambos os sentidos. Esta tarefa é executada unicamente pelo sargento e pelo comandante de PGS, tendo em vista a preservação da segurança do estabelecimento e questões de reinserção social, uma vez que esta acção não visa apenas controlar determinados projectos de fuga, exercendo-se igualmente sobre queixas várias a respeito do estabelecimento. Comentários sobre o tratamento dado pelo staff, a qualidade da comida ou das celas, rotinas ou comportamentos de terceiros são alvo de censura, obrigando a uma reformulação dos conteúdos. Alguns reclusos mantêm uma relação de influência, fundamentalmente, devido ao seu posto, facto que lhes proporciona uma examinação menos cuidada e um controlo mais fraco (algumas vezes mesmo inexistente). Por este e outros acontecimentos, onde a diferença de alojamentos e de condições entre categorias assume um ponto fulcral, acreditamos que o tratamento dado pelos staff aos reclusos tem especificações e orientações diferentes, tornando-se mais respeitoso, distante, receoso à medida que se sobe na hierarquia militar. Este factor é preponderante relativamente a outros como a duração da pena e tipo de crime, tal como mencionámos numa das nossas hipóteses. 22 Este valor foi alterado para o recluso que se encontra com uma doença terminal, tendo sido acrescido aos 50 € o valor dos medicamentos. Os reclusos em prisão preventiva têm direito à totalidade do vencimento. Os condenados recebem um quarto do vencimento, conjuntamente com os descontos decididos em tribunal. 56 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Julgamos que esta censura não se limita apenas aos princípios defendidos pela instituição, designadamente a segurança e a reinserção social. Defendemos que por detrás destas acções, existe uma tentativa mais lata e abrangente, ainda que subreptícia e camuflada, de promover a disciplina, a moralização para as boas práticas e o encaminhamento para escolhas e decisões onde predomine o legal em detrimento do desviante. As sucessivas censuras, inspecções e revistas onde tudo é observado cuidadosamente, induz a uma descaracterização da personalidade, procurando originar seres desprovidos de iniciativa que acatem as ordens de um modo inconsciente, sem recorrer a contestações, murmúrios ou reivindicações. 4.4. O Fardamento e o Atavio Quando um interno se encontra no período de «quarentena», é-lhe transmitido que deverá usar uniforme e manter hábitos de higiene que promovam a auto-imagem do militar e da instituição que representa. Os reclusos não devem usar, em qualquer circunstância, roupas de índole civil como calças de ganga ou outro vestuário similar. A limpeza e a correcta apresentação dos uniformes (tal como do seu alojamento, do bar e da sala de convívio, excepto a roupa da cama) é da sua directa responsabilidade. O uso obrigatório de uniforme é defendido como medida preventiva destinada a facilitar a sua identificação no interior e no exterior do estabelecimento, como factor personalizador e uniformizador, como recondução dos desviantes à sua normalidade e como continuidade da sua condição militar. Todavia, independentemente da sua patente, os reclusos perdem a acção de comando, mesmo se tiverem um posto superior ao do comandante do estabelecimento. Como já foi mencionado, os reclusos em situação de reserva ou reforma trajam à civil, havendo apenas um nestas condições. Esta indumentária civil obedece a algumas considerações: “...deve ser discreta, sóbria, respeitosa e adequar-se às situações respectivas...” (Estabelecimento Prisional Militar - Normas de Execução Permanente, 2004: 19). Existem formaturas nas quais devem comparecer todos os reclusos. Formatura do pequeno-almoço (7h30), início de trabalhos da manhã (9h00), almoço (12h30), início de trabalhos da tarde (14h00), jantar (19h00) e recolher (21h30), salvo outras entendidas como pertinentes. Às 22h00 recolhem às celas que são fechadas pelo PGS, permanecendo nesta situação até às 7h00 do dia seguinte. Às 02h00 todas as luzes são apagadas no interruptor central ficando apenas as de emergência no interior das clausuras, permitindo o controlo visual através da janela de vigia das portas. 57 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar Os internos devem apresentar-se com os uniformes engomados 23 , limpos, botas ou sapatos devidamente engraxados, cabelo e barba aparados. Esta é uma situação que, salvo casos pontuais, não origina qualquer atrito pois não constituem novidade, tratando-se apenas de um prolongamento da sua atividade laboral, embora noutra situação e com constrangimentos diferentes. Às terças e quintas-feiras, dias em que têm educação física, podem comparecer à formatura do pequeno-almoço e da manhã com o fato de treino em uso em cada instituição. Nas alturas em que se encontram a executar tarefas ocupacionais voluntárias, podem vestir uma bata protectora ou despir algum tipo de fardamento que dificulte estas acções. Quando nos deslocámos no primeiro fim-de-semana ao estabelecimento, verificámos que alguns dos reclusos envergavam roupa civil, outros encontravam-se meio uniformizados, envergando chinelos, sapatilhas, etc. O nivelamento dos reclusos estabelecido pelo carácter estereotipado do uso do uniforme e pela estandardização do corpo a que estávamos sobejamente habituados durante a semana, contrastava agora com esta imagem aparentemente desordenada e desorganizada, fazendo relembrar, ainda que por breves momentos, o teor e o carácter das penas. Após o nosso espanto inicial, tentámos descortinar a razão de tal desiderato ao que nos foi dito pelo graduado de serviço que ao fim de semana os reclusos têm autorização para andar assim e aliviar o fardamento. Podem lavar e passar a ferro as fardas para que não hajam desculpas durante a semana... Os reclusos não podem ser obrigados a trabalhar. Aderem voluntariamente a serviços na lavandaria, jardinagem, na cozinha, carpintaria, mecânica, biblioteca. A esta voluntariedade, não será alheio o facto de contribuir para o acesso a saídas precárias. A psicóloga argumentava que ... se um interno não coopera, não se mostra interessado nas actividades ocupacionais, é um foco de tensão e de ansiedade, o que resulta numa informação negativa... O recluso identificado como líder é o único que se recusa a desempenhar qualquer tarefa. Este é um facto que contribui para o aumento da sua credibilidade junto dos co-reclusos, ao verem nele um indivíduo que não tem problemas em assumir as suas escolhas mesmo quando essa situação lhe pode trazer profundas desvantagens pessoais. Ao ser questionado sobre a razão de tal escolha, retorquiu em tom irónico...pensei que vinha para a prisão apanhar sol e dormir. Não quero trabalhar. Isso é uma segunda pena... Após autorização do conselho técnico e do NAC, o comandante tem autoridade para conceder duas saídas precárias por trimestre para a sua área de residência, com 23 Existe uma máquina de lavar e outra de secar roupa, com os respectivos detergentes cedidos pelo estabelecimento e algumas tábuas de passar a ferro, para que não haja impedimentos ao bom estado e conservação dos uniformes. 58 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 a duração de um fim de semana 24 . Se a situação o justificar, o comandante pode autorizar um recluso condenado a ausentar-se do estabelecimento até 12 horas - não o pode fazer para os preventivos que apenas podem ser autorizados pelo Juiz do TEP. Dois reclusos encontram-se matriculados em estabelecimentos de ensino próximos do EPM, na esperança de poder assistir às aulas tendo em conta essa possibilidade de ausência. A este propósito, o comandante afirmou que, além das saídas precárias que são fundamentais para a reinserção familiar e social, não concedia outro tipo de autorização a nenhum recluso, defraudando as expectativas de assistência das aulas e futuro aproveitamento escolar, originando alguma frustração e irritação que se materializa em constantes amuos e desabafos entre pares. É dado aos reclusos a possibilidade de personalizarem as suas celas, tornando-as lugares mais acolhedores e familiares, estando longe de constituir um espaço próprio e reservado. Podem colocar cachecóis, fotografias, posters, desde que não perfurem a parede nem danifiquem o material que se encontra à carga de cada cela. Evidentemente que não poderá constituir um espaço privado dado as constantes entradas de soldados do PGS e as revistas inopinadas que são efectuadas como rotina de segurança. É, inclusivamente, um espaço inseguro, tendo em conta uma potencial transferência de cela por ordem superior. A autonomia individual é reduzida, havendo uma fragilização das fronteiras individuais dadas as restrições de tempo e de espaço impostas pela rotina do estabelecimento, aliadas aos condicionalismos monetários e à privação do livre-arbítrio nas mais variadíssimas ocasiões. Estas regulações integram um processo de “Mortificação do Eu” de que nos fala Erving Goffman (1987), em favor de uma consciência colectiva de obediência que tende para o servilismo, ainda que a instituição defenda que se enquadram em objectivos puramente institucionais auto-disciplinares que visam uma futura reinserção societal sólida e adequada. 5. PONTO DE CHEGADA - NOTAS CONCLUSIVAS A reclusão militar tem particularidades distintivas e específicas que a distingue das demais. Esta é uma das principais conclusões da pesquisa. Conclusão também relevante é a que identifica, claramente, uma tentativa premente de afirmação de uma identidade não desviante e de diferenciação face aos co-internos. Em todas as conversas, esteve sempre presente uma tentativa, poucas vezes sub-reptícia, de recomposição de uma identidade positiva e de reposicionamento numa ordem social legítima onde se pretendem re-inscrever. Trata-se de procurar convencer que não 24 Cumulativamente, o Juiz do TEP pode conceder até dezasseis dias por ano e o General Director do Serviço de Justiça e Disciplina pode conceder até seis dias. 59 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar houve prevaricação, que se cometeram injustiças, tentando-se revisitar, ainda que por breves momentos, situações e episódios vividos de modo a originar-se um afastamento ou desvinculação do seu novo papel social. Identidades e sociabilidades que se articulam em oposição a um carácter desviante que a grande maioria procura afastar. O sentido improvisado em que evitam uma solidariedade e uma consciência colectiva é disso um sinal inequívoco, alicerçado num conjunto de práticas, representações e rotinas quotidianas que se antagonizam com o estigma desviante que os une e contratualiza. A cooperação quando existe é estratégica, não sendo isenta de favorecimentos e intenções. Outro factor a ter em consideração é o afastamento dos padrões hierárquicos formais entre os reclusos. Foi inequivocamente identificado que os internos não são fiéis à cadeia de comando imposta pelos vínculos institucionais exteriores e preferem seguir, ainda que não o assumam claramente, ideias, opiniões, ideologias, opções que lhes forneçam confiança, mesmo que para isso tenham que reformular determinados valores militares como a lealdade, a camaradagem, o espírito de corpo, a frontalidade. Identificam e seguem quem lhes pareça proporcionar melhores condições de sucesso, independentemente de patentes ou escalão etário. Aliás, o recluso identificado como líder é dos que possui patente e idade mais reduzida, contrariando certas ideologias de senso comum que procuram aliar a uma maior idade, uma maior capacidade de persuasão e maiores conhecimentos e experiência. Consequentemente, umas das minhas hipóteses não foi corroborada, isto é, a hierarquia militar formal não corresponde à hierarquia informal subterrânea no relacionamento entre co-internados. Apenas funciona de maneira irrepreensível no sentido comando-reclusos. Outro pormenor a ter em consideração é a proliferação de ordens e proibições escritas ou não, que originam zonas dúbias de decisão, quer para os reclusos quer para os elementos do PGS, constituindo-se o hábito, a rotina, a antiguidade e o costume como factores decisores na conduta e livre-arbítrio dos actores sociais em causa. O tratamento institucional dado pelo staff aos reclusos não é idêntico. A começar pelas condições de alojamento que são distintas consoante a classe a que se pertence, a conivência do PGS para com os reclusos-graduados ao deixar passar algumas proibições que são impostas a outros, são indícios que possibilitam a confirmação de uma das hipótese de partida. A diferença nas condições dos alojamentos é um factor, por si só, perturbante e causador de afastamento entre os internos. O respeito e o receio dos militares do PGS pela graduação dos reclusos é inequívoca, diminuindo a sua exigência e rigor à medida que se sobe na hierarquia militar. Em suma, o tratamento dado pelo staff tem orientações e especificações 60 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 diferentes, tornando-se mais permissivo, benevolente, respeitoso à medida que se sobe na hierarquia formal militar, sendo um factor preponderante relativamente aos demais. Em traços gerais foi ainda possível identificar outras características dos reclusos. A grande maioria pertence à classe de Praças e apresentam qualificações escolares relativamente baixas ao nível do 1º e 2º ciclos do ensino básico, o que confirma uma das hipótese de partida. Trata-se de uma população de indivíduos masculinos a rondar os 47 anos de idade e casados, o que a distingue das populações maioritariamente jovens e solteiras que se encontram recluídas nas penitenciárias civis nacionais. A esmagadora maioria está presa pela primeira vez, sendo quase marginal o número de reincidentes. O tempo médio de permanência na prisão é de um ano e três meses havendo apenas um indivíduo que se encontra detido há mais de três anos. Não se encontram indícios da tríade «homossexualidade, drogas, violência», contrapondo-se aos números que encontramos mencionados na literatura sobre as prisões civis. A inexistente presença de mulheres, corresponde também à diminuta quantidade de elementos do sexo feminino que, percentualmente e em comparação com os homens, se encontram recluídas em Portugal. Este facto não poderá ser dissociado dos modelos de construção da identidade masculina e feminina. A socialização dos rapazes tende a ser mais desregrada, mais afirmativa e identitária, apelando a uma maior consciencialização de aspectos exteriores ao domicílio - como os grupos ou a violência física entre pares - e a um menor controlo dos progenitores como meio de expressão da masculinidade. O género feminino tende a ser socializado em torno de práticas que favorecem a organização, as regras, a obediência, o retraimento, a docilidade e o fechamento doméstico. A maioria dos crimes está relacionado com o roubo e o furto, seguido do tráfico de droga, havendo quase uma replicação com o tipo de crimes que prevalecem na sociedade civil. A instituição mais representada é a GNR, não sendo irrelevante a sua proximidade a actos e acções desviantes devido à natureza da sua missão, factores que contribuem para a permeabilidade e susceptibilidade dos agentes a situações marginais. As tarefas ocupacionais efectuadas pelos internos, apesar de se constituírem como actividades facilitadoras de interacções sociais e relacionais, não são verdadeiros espaços de aquisição de competências profissionais com vista a uma futura reinserção laboral. Elas contribuem, essencialmente, para a manutenção e reprodução do sistema prisional, assumindo apenas uma dimensão mecânica e repetitiva. Este poderia ser um ponto de partida para novos e futuros trabalhos. 61 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar Com efeito, a especificidade do papel social desempenhado pelos reclusos é ainda agravado por estarem em causa longos anos de encarceramento e de, não raro, as visitas dos familiares serem pouco assíduas uma vez que se trata da única cadeia para militares. Os poucos pedidos de transferência ou são indeferidos pelo general director de justiça e disciplina ou são interrompidos pelos próprios ao se aperceberam das condições de habitabilidade que os esperariam, caso fosse aceite a transferência. Os relatos pouco abonatórios dos que perderam a «condição militar» e foram transferidos para estabelecimentos civis e o próprio conhecimento destas realidades pelos internos da GNR, configuram e auxiliam a formulação de imagens que os levam a reflectir sobre as boas condições de habitabilidade que usufruem no EPM. A cadeia militar parece ser um meio particular dotado de códigos e papéis sociais constituintes de uma micro sociedade que potencia diferenças e distâncias sociais, não contribuindo para a união, reforço ou solidariedade entre os recluídos que não se revêm nesta micro cultura encarcerada, enfatizando sentimentos de estranheza e ausência. Sobre os internos recai um estigma que se intensifica quer pelo uso de uniforme quer pelo peso das estruturas sociais militares que continuam a organizar a vida intra-muros. A este propósito não esqueçamos, como salienta Pedro Dores (2003), que“...os sistemas prisionais não são entidades estranhas às sociedades a que estão associados. (Dores, 2003: 9) e como tal, a vida na prisão militar não pode ser dissociada das realidades que continuam a ocorrer nas instituições de origem dos reclusos. BIBLIOGRAFIA Almeida, João Ferreira de (1986) – Classes Sociais nos Campos. Camponeses Parciais numa Região do Noroeste. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1986. Barreto, António (2000) – A Situação Social em Portugal. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais. Beleza, Teresa Pizarro (1993) – “A Reinserção Social dos Delinquentes: Recuperação da Utopia ou Utopia da Recuperação?”, em Cidadão Delinquente, Reinserção Social? Lisboa: Instituto de Reinserção Social. p. 159-173. Bell, Judith (1997) – Como Realizar um Projecto e Investigação. Lisboa: Gradiva Editora. Biscaia, Pedro Tenreiro (2001) – “Prisões Muito Preventivas”. In Boletim da Ordem dos Advogados. Lisboa: Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados. N.º 17. p. 50, 51 e 52. 62 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Bourdieu, Pierre (1985) – “A Génese dos Conceitos de Habitus e de Campo”, em Poder Simbólico. Lisboa : Difel. Burns, Tom; FLAM, Helena (2000) – “Sistemas de Regras Sociais: Teorias e Aplicações”. Oeiras: Celta Editora. Cabral, Manuel Villaverde; PAIS, José Machado (coords) (2002) – Jovens Portugueses de Hoje. Oeiras: Celta Editora. Carreiras, Helena (1997) – Mulheres nas Forças Armadas Portuguesas. Lisboa: Edições Cosmos. Costa, Alfredo Bruto da (2001) – Exclusões Sociais. Colecção Fundação Mário Soares. Lisboa: Editorial Gradiva. Costa, António Firmino da (1986) – “A Pesquisa de Terreno em Sociologia”, em SILVA, Augusto Santos; PINTO, José Madureira (orgs.) (1986) – Metodologia das Ciências Sociais. Porto: Edições Afrontamento. Costa, António Firmino da (1999) - Sociedade de Bairro. Dinâmicas Sociais da identidade Cultural. Oeiras: Celta Editora. Costa, António Firmino da [et al] (2000) – “Classes Sociais na Europa”. In Sociologia: Problemas e Práticas. CIES/ISCTE. Oeiras: Celta Editora. N.º 34. p 8-39. Dores, Pedro (org.) (2003) – Prisões na Europa – Um Debate que Apenas Começa. Oeiras: Celta Editora. Janeiro de 2003. ISBN 972-774-158-4. Eco, Umberto (1997) – Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Lisboa: Editorial Presença. Estabelecimento Prisional Militar (2004) – Normas de Execução Permanente [reservado]. Tomar: Estabelecimento Prisional Militar Estado Maior do Exército (1997) – História do Encarceramento Militar Português. Lisboa: Estado Maior do Exército. Foddy, William (1996) - Como perguntar. Teoria e Prática da Construção de Perguntas para Entrevistas e Questionários. Oeiras: Celta Editora. Foucault, Michel (2004) – Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 26.ª Edição. Ghiglione, R. e matalon, B. (1992) - O Inquérito – Teoria e Prática. Oeiras: Celta Editora. Goffman, Erving (1987) – Estigma. Rio de Janeiro: Zahar Editores. Gonçalves, Rui (2001) – Delinquência, Crime e Adaptação à Prisão. Coimbra: Quarteto Editora. Guiddens, Anthony (1994) – Capitalismo e Moderna Teoria Social. Lisboa: Editorial Presença. Howard, Keith e John A., Sharp (1989) - The Management of a Student Research Project. Aldershot,: Gower. 63 Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar Instituto Nacional de Estatística (2001) – Recenseamento à População Portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Estatística. Medeiros, Carlos (1992) – “Do Desvio à Instituição Total, Subcultura, Estigma, Trajectos”. In Cadernos do Centro de Estudos Judiciários. Lisboa: Ministério da Justiça. N.º 2/1992. Moreira, José Semedo (1996) – Um Universo Recluso – Organização das Relações Instituídas. Tese de Licenciatura. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Pires, Rui Pena (1999) – “Uma Teoria dos Processos de Integração”. In Sociologia Problemas e Práticas. N.º 30. p. 11-61. Provedor de Justiça (2003) – Relatório Sobre o Sistema Prisional do Ano 2003. Lisboa: Gabinete do Provedor de Justiça, Provedoria da Justiça. Rafter, Nicole (1995) – “Gender, Prisons and Prison History”. Social Science History. Vol. 9. N.º 3. Torres, Anália Cardoso (coord) (2001) – Trajectórias e Consumos de Drogas nas Prisões: Um Diagnóstico. Lisboa: CIES/ISCTE. Torres, Anália Torres; GOMES, Maria do Carmo (2002) – Droga e Prisões em Portugal. Lisboa: CIES/ISCTE. Vala, Jorge; cabral, Manuel Vilaverde; ramos, Alice (2003) - Valores sociais: mudanças e contrates em Portugal e na Europa. Lisboa: ICS. Vaz, Maria João (2003) – “Prisões de Lisboa no Último Quartel do Século XIX. Elementos para o seu Estudo”, em dores, Pedro (org.) (2003) – Prisões na Europa – Um Debate que Apenas Começa. Oeiras: Celta Editora. Janeiro de 2003. ISBN 972-774-158-4. Viegas, José Manuel Leite; costa, António Firmino da (orgs.) (1998) – Portugal, Que Modernidade? Oeiras: Celta Editora. Wacquant, Loíc (2000) – Prisões da Miséria. Oeiras: Celta Editora. Wheeler, Stanton (1991) – “Socialization in Correctional Communities”. In American Sociological Review. N.º 26. OUTRAS FONTES BILIOGRÁFICAS http://www.dgsp.mj.pt - Direcção Geral dos Serviços Prisionais http://www.exercito.pt - Exército Português http://www.fap.pt - Força Aérea Portuguesa http://www.gnr.pt - Guarda Nacional Republicana http://www.ine.pt - Instituto Nacional de Estatística 64 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 http://marinha.pt - Marinha Portuguesa http://mdn.gov.pt - Ministério da Defesa nacional 65 Boletim de Sociologia Militar N.º3 – 2012 PP. 66 a 85 Gestão de Carreiras no Exército Português: Uma Proposta de Modelo Aplicado Helena Jerónimo* Isabel Ribeiro** RESUMO O presente trabalho tem como objetivo principal compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português. Em termos metodológicos, realizámos entrevistas semiestruturadas a interlocutores-chave, com o intuito de compreender a situação atual do Exército Português em matéria da gestão das carreiras. Com base na análise de conteúdo a essas entrevistas, é apresentada uma proposta de modelo de intervenção ao nível da gestão de carreiras passível de ser implementado no Exército Português. Palavras-chave: Exército Português, Carreiras Militares, Gestão de Carreiras, Planeamento de Carreiras. ABSTRACT The aim of this work is to understand how the military careers are managed in the Portuguese Army. Therefore, in methodological terms, we made semi-structured interviews with key interlocutors, in order to understand the current situation of the Portuguese Army regarding the management of careers. Furthermore, based on these interviews, we have prepared an intervention which integrates a career management model that can be implemented in the Portuguese Army. Keywords: Portuguese Army, military careers, career management, Career planning. INTRODUÇÃO As organizações desenvolvem as suas atividades num ambiente marcado pela incerteza e turbulência, no qual os recursos humanos (RH) se constituem como um dos seus ativos mais valiosos (Carvalho, 2003). Nesta era de informação e de conhecimento, a gestão das pessoas assume um papel central no sucesso, desenvolvimento e progresso das organizações. A Instituição Militar, enquanto estrutura social e agregadora de pessoas, enquadra-se naquele contexto geral (Nunes, 2004). Ainda que a motivação principal das Unidades Orgânicas não seja a mesma que a generalidade das organizações, a sua estratégia organizacional e os desafios que diariamente se lhe colocam assumem grandes similaridades. A gestão de RH numa Unidade, Estabelecimento ou Órgão (U/E/O) começa a assumir, cada vez mais, que os militares são “clientes internos”. Ou seja, as suas necessidades e aspirações são essenciais para que se identifique uma * Profª. Doutora do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Mestre em Gestão de Recursos Humanos, Socióloga no Centro de Psicologia Aplicada do Exército ** 66 Gestão de Carreiras no Exército Português resposta adequada para atrair, reter e desenvolver este recurso estratégico (Câmara, Rodrigues e Guerra, 2010). As pessoas são, cada vez mais, exigentes no que respeita à sua carreira profissional, devido aos desequilíbrios constantes e imprevisíveis que ocorrem entre o mercado de recursos humanos1 e o mercado de trabalho2 (Chiavenato, 2002), pelo que atrair, reter e desenvolver os colaboradores torna-se numa tarefa complexa e num desafio constante para os gestores de RH. O Exército Português é uma organização que desde sempre teve como preocupação a gestão dos seus recursos humanos, procurando desenvolver-se e adaptar-se às novas exigências e condicionalismos civis e militares. No que diz respeito à gestão de carreiras, esta assume-se, contudo, como uma gestão meramente administrativa, baseando-se em promoções automáticas com base na antiguidade. Verificamos que o modelo de gestão de carreiras aplicado no Exército Português é o modelo tradicional de carreira que tem por base o princípio da ascensão vertical na estrutura da organização (Câmara et al, 2010), associando-se às características de lealdade, dedicação, defesa da pátria, emprego para toda a vida, entre outros. Este modelo é atualmente questionado, se não mesmo ultrapassado. Enquanto colaboradores do Centro de Psicologia Aplicada do Exército – como é o caso de uma autora deste estudo – apercebemo-nos quer da importância da gestão de carreiras para os trabalhadores do Exército, quer da ausência de uma estrutura específica que se ocupe de uma gestão de carreiras ancorada na análise e descrição das funções, garantindo não só a identificação do potencial dos militares, como também a sua adaptação a novas funções, assegurando, consequentemente, a sua motivação e satisfação. Desta forma, com o presente estudo pretendemos compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português, e do mesmo passo, entender como é que o Exército desenvolve e retém os seus RH. Este estudo visa contribuir para um maior conhecimento da realidade do Exército e preencher uma lacuna e propor um modelo de gestão de carreiras para os Oficiais do Quadro Permanente. DEFINIÇÃO DE CARREIRA O conceito de carreira tem vindo a ser usado de forma muito diversificada e ampla, pelo que emergiram diversas conceções sobre o mesmo. No entanto, a aceção mais comum é a de carreira como caminho, i.e., um trilho que se segue de forma 1 Mercado de Recursos Humanos constitui-se pelo conjunto de indivíduos munidos de capacidades e de aptidões que se encontram aptos para o trabalho, num determinado tempo e lugar (Chiavenato, 2002). 2 Mercado de Trabalho refere-se ao conjunto das oportunidades de trabalho existentes num determinado momento e lugar (Chiavenato, 2002). 67 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 segura e visível (Tieppo, Gomes, Sala e Trevisan, 2011). Esta aceção integra a noção de mobilidade, ascensão ou estabilidade profissional de algumas funções, como por exemplo, a carreira de executivo para caraterizar a mobilidade e a carreira militar, como profissão (Dutra, 1996). Segundo Hall (2002), a carreira é apresentada como sendo uma sequência de atitudes e de comportamentos, que se encontram associados às experiências e atividades que o indivíduo exerceu e que estão relacionadas ao trabalho. No fundo, esta definição de carreira assume-a como resultante das opções do indivíduo e exclui as variáveis não controladas que dizem respeito às necessidades das organizações. Por isso, segundo Hall (2002) a carreira possui, basicamente, quatro sentidos diferentes: a) Carreira como avanço – que integra a noção de mobilidade vertical numa organização; b) Carreira como profissão – que se liga com determinadas profissões de prestígio, que possuem algum estatuto na sociedade (e.g., médicos, advogados); c) Carreira como sequência de trabalhos realizados – conceito que acolhe como carreira qualquer trabalho realizado pelo indivíduo. Esta é uma conceção objetiva de carreira; d) Carreira como sequência de experiências relativas a uma função – tida como a forma como a pessoa experimenta a sequência de trabalhos e de atividades que constituem a sua história profissional. Esta assume uma dimensão subjetiva de carreira. No entanto, uma carreira desenvolve-se em função de dois prismas de análise: de um lado, as expectativas pessoais do indivíduo e do outro, da organização (Dutra, 1996). Todos temos a noção de que o indivíduo não é estático. Ele desenvolve-se em função das necessidades de adaptação aos contextos e situações. Todos sabemos, também, que face às situações de incerteza e de desenvolvimento, as organizações têm que encontrar formas ajustadas de se adaptarem às necessidades emergentes da sociedade. Neste sentido, o conceito de carreira ao nascer da relação entre a pessoa e a organização, acaba por admitir a noção de movimento, já que perspetiva não só o ponto de vista do indivíduo e da organização, como também da relação entre estes (Tieppo et al, 2011). Por conseguinte e tal como refere Hall (2002), o conceito de carreira deve ser focalizado na experiência subjetiva de carreira do indivíduo, na forma como este constrói a sua carreira, nas relações que estabelece com cada trabalho na vida, observando os aspetos subjetivos e objetivos em conjunto e na forma como assume 68 Gestão de Carreiras no Exército Português os up and down, como parte natural do processo de carreira. Daí que as suas aspirações, motivações e expectativas sejam importantes no decurso do processo. O CONCEITO DE CARREIRA MILITAR E O SEU QUADRO LEGAL O conceito de carreira militar encontra-se definido no art.º 27 do Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho (que se constitui como o Estatuto dos Militares das Forças Armadas - EMFAR). Nesse artigo, carreira militar é “o conjunto hierarquizado de postos, desenvolvida por categorias, que se concretiza em quadros especiais e a que corresponde o desempenho de cargos e o exercício de funções diferenciadas entre si”. No art.º 28 desse mesmo documento, verifica-se que os militares se agrupam por ordem decrescente de hierarquia, nas categorias de Oficiais, Sargentos e Praças. As subcategorias referem-se ao subconjunto de postos que se diferenciam em função da autonomia, da complexidade funcional e da responsabilidade (art.º 28, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). O posto refere-se à posição que, na respetiva categoria, o militar ocupa no âmbito da carreira militar fixada de acordo com o conteúdo e qualificação da função ou funções. Os cargos militares são definidos como “lugares fixados na estrutura orgânica das Forças Armadas, a que correspondem as funções legalmente definidas” e também os “lugares existentes em qualquer departamento do Estado ou em organismos internacionais a que correspondem funções de natureza militar” (art.º 33, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). As funções militares são as que implicam o exercício de competências legalmente estabelecidas para os militares, agrupando-se estas em: Comando, Direção ou Chefia; Estado-maior e Execução (art.º 34, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). A Lei n.º 11/89 de 1 de Junho instituiu as Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, estabelecendo os direitos e os cumprimentos dos deveres pelos militares dos quadros permanentes em qualquer situação e dos restantes militares enquanto na efetividade de serviço, definindo os princípios orientadores das respetivas carreiras. O art.º 2 desse documento define que a condição militar se carateriza pela subordinação ao interesse nacional; pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz quer em tempo de guerra; pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei; pela aplicação de um regime disciplinar próprio; pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais; pela restrição, constitucionalmente prevista, do 69 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 exercício de alguns direitos e liberdades; pela adoção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das Forças Armadas; pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação. Nesse documento, nomeadamente no seu art.º 11, está explicito que é garantido a todos os militares o direito de progressão na carreira, nos termos fixados nas leis e orientando-se o desenvolvimento das carreiras em função dos seguintes princípios básicos: relevância de valorização da formação militar; aproveitamento da capacidade profissional, avaliada em função da competência revelada e da experiência; adaptação à inovação e transformação decorrentes do progresso científico, técnico e operacional e; harmonização das aptidões e interesses individuais com os interesses das Forças Armadas. Da mesma forma, verifica-se no art.º 12 (Lei n.º 11/89 de 1 de Junho) que os militares têm o direito e o dever de receber formação de atualização, reciclagem e progressão, com vista à valorização humana e profissional e à sua progressão na carreira. O EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho), originalmente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, já sofreu diversas alterações e aplicase a todos os militares das Forças Armadas (art.º 2), independentemente do posto, da carreira, da forma de prestação de serviço, do ramo ou da situação administrativa em que se encontram. Este é o documento que regula a gestão das carreiras militares. O EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho) no seu Preâmbulo define objetivos fundamentais: “Reequacionar o desenvolvimento da carreira militar através da introdução de mecanismos reguladores que permitam dar satisfação às legítimas expectativas individuais e assegurem um adequado equilíbrio da estrutura de pessoal das Forças Armadas”. Alguns dos mecanismos foram “o estabelecimento de tempos máximos de permanência em alguns dos postos da hierarquia militar, a exclusão da promoção por efeitos de ultrapassagens, durante certo período, por um ou mais militares da mesma antiguidade, a possibilidade de passagem à reserva por declaração do militar ao ter completado 55 anos de idade e ainda a adoção da norma de aumento geral de serviço em 25% para efeitos de passagem à reserva ou à reforma”. As formas de prestação do serviço efetivo são: serviço efetivo nos quadros permanentes (QP); serviço efetivo em regime de contrato (RC); serviço efetivo em regime de voluntariado (RV) e serviço efetivo decorrente de convocação ou mobilização (art.º 3, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). 70 Gestão de Carreiras no Exército Português No art.º 4 do EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho) é referido que o serviço efetivo nos QP compreende a prestação de serviço pelos cidadãos que, tendo ingressado voluntariamente na carreira militar, adquirem vínculo definitivo às Forças Armadas. O serviço efetivo em RC compreende a prestação de serviço voluntário por um período de tempo limitado, com vista à satisfação das necessidades das Forças Armadas ou ao seu eventual ingresso nos QP. Também o serviço efetivo em RV compreende a prestação de serviço militar voluntário por um período de 12 meses, com vista à satisfação das necessidades das Forças Armadas, ao ingresso ao RC ou ao eventual recrutamento para os QP (art.º 5, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). O serviço efetivo decorrente de convocação ou mobilização compreende o serviço militar prestado na sequência do recrutamento excecional, nos termos previstos na Lei do Serviço Militar, sendo que o conteúdo e a forma de prestação do serviço efetivo por convocação ou mobilização são regulados por diploma próprio (art.º 6, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). PLANEAMENTO DAS CARREIRAS MILITARES Quando falamos de desenvolvimento de carreiras temos que ter em conta o planeamento de recursos humanos. A organização tem de prever que movimentos poderão ocorrer, quais as funções que serão necessárias ocupar, quantas vagas existirão ao longo do tempo e quais os recursos humanos disponíveis para as ocupar. Aqui, a organização terá que ter atenção a uma perspetiva integrada de recursos humanos, bem como uma visão estratégia e proativa, como o recrutamento interno e a descrição de funções para cada cargo. O planeamento das carreiras militares é realizado com base na avaliação, constituindo-se esta como uma importante fonte de dados no planeamento dos RH. Assim, toda e qualquer avaliação deve ter como principal preocupação os objetivos propostos, devendo estes ser flexíveis, claros e adequados aos meios disponíveis (Oliveira, 2009). Os objetivos de carreira devem reunir certas características de forma a poderem ter uma utilidade. É comum usar-se a sigla SMART para os definir, que significa: Específicos (Specific) – não devendo ser vagos e devem ser definidos em pormenor. Os objetivos generalistas tendem a ser menos eficazes; 71 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Mensuráveis (Measurable) – devem ser definidos de forma a poderem ser medidos e analisados em termos de valores ou volumes. Os objetivos devem ser quantificáveis; Atingíveis (Attainable) – devem ser formulados de forma a serem alcançáveis, por isso devem ser propostos em consonância com os intervenientes para que estes possam sentir-se motivados para os atingir; Realistas (Realistic) – devem permitir alcançar metas tendo em consideração a disponibilidade dos recursos existentes; Temporizáveis (Time bound) – devem ser definidos em termos de duração e de prazos. O Plano de RH (PRH) de uma Unidade Orgânica pretende desenvolver militares que se encontram ao serviço, traçando-lhes planos de carreira, reconvertendo-os ou dando-lhes formação para que possam adquirir as competências que se anteveem como fundamentais. Trata-se de um exercício complexo, mas fundamental para o desenvolvimento estratégico da instituição militar (Nunes, 2004). O PRH pode ser visto como um palco no qual se situam os interesses e perspetivas organizacionais e as aspirações e desejos de desenvolvimento dos militares, sendo que só a articulação perfeita destes dois polos, permite uma compatibilização dos objetivos individuais e organizacionais (Nunes, 2004). De facto, é unanimemente aceite que só concedendo aos militares uma perspetiva de desenvolvimento pessoal e profissional, é que se consegue que uma U/E/O possa aspirar a construir uma opção de permanência mais ou menos prolongada para os seus quadros. No fundo, revela a sua capacidade para reter e desenvolver os RH (Câmara et al., 2010). Se o PRH for desajustado, terá repercussões nos planos de carreira dos quadros. Se esses planos não forem ao encontro dos desejos e aspirações dos militares, existe uma forte probabilidade de estes abandonarem a sua U/E/O ou mesmo a instituição (Ribeiro, 2010). Por conseguinte, um dos objetivos das U/E/O é projetar as necessidades futuras de RH, a sua calendarização, o perfil, o número e a sua localização nessa estrutura. No fundo, é permitir a identificação antecipada dos pontos críticos em que é mais provável que ocorram falhas, excessos ou uso ineficiente de militares (Ribeiro, 2010). Neste sentido, a responsabilidade pela construção de um PRH tem que ser centralizada na Secção de Pessoal, para permitir o desenvolvimento equilibrado e harmonioso, garantindo a coordenação e sinergias interfuncionais que se encontram implícitas nele. Trata-se pois, de um processo dinâmico e em constante aperfeiçoamento (Ribeiro, 2010). 72 Gestão de Carreiras no Exército Português O planeamento das carreiras operacionaliza o princípio de um recrutamento interno, ao procurar identificar no interior de uma U/E/O pessoas capazes de satisfazerem as necessidades projetadas. O planeamento de carreiras deve permitir a satisfação das necessidades da U/E/O pelo desenvolvimento das pessoas que a compõem. São, no fundo, um conjunto de ações programadas que têm por objetivo permitir o desenvolvimento pessoal e profissional do militar, de modo a que o mesmo consiga atingir o potencial que lhe foi detetado (Oliveira, 2009). Por outro lado, quando um militar se candidata para uma nova função na organização, significa que manifesta um desejo de mudança do lugar que naquele momento ocupa. A principal vantagem do processo de recrutamento interno será o facto de permitir o desenvolvimento das pessoas que já pertencem à organização e de lhes proporcionar perspetivas de carreira (Chiavenato, 2002), mas existem outras vantagens, como: a diminuição dos custos do processo; a oferta de oportunidades e de planos de carreira promovendo a motivação dos militares; índice de validade e de segurança superior, já que se conhecem os militares e pode ser um processo de identificação mais rápido do que o recrutamento externo (Cherrington, 1995). Nunes (2004) assinala que as principais razões para se optar por um recrutamento interno são normalmente focalizadas no cumprimento dos planos de carreira para o qual o candidato está preparado; utilização do talento disponível na organização e retenção, na organização, de elementos-chave considerados indispensáveis, concedendo-lhes oportunidades de progredirem na organização. Por conseguinte, neste processo, devem ser consideradas todas as candidaturas de forma igual, procurando-se que a condução seja feita de forma mais transparente possível, para não haver distorções ou emergência de sentimentos de injustiça. Neste sentido, o recrutamento interno no Exército pode albergar três soluções: uma escolha direta, um concurso interno ou o método do tipo “recomendar um amigo”3. A escolha direta é aquela que tem normalmente mais reações negativas dentro da organização, pelo facto de ser percecionada como uma ação de favoritismo, em detrimento de outras candidaturas igualmente valiosas, não abrindo a oportunidade para todos os potenciais interessados (Ribeiro, 2010). Não obstante as vantagens deste procedimento, existem desvantagens. Uma das primeiras é aquela que poderá levantar algumas questões éticas, que se prendem com a transmissão do potencial individual atribuído a um militar, que poderá criar expectativas que podem ser impossíveis de satisfazer, levando à desmotivação (Nunes, 2004). Cherrington (1995) assinala ainda o facto de ser necessário a existência de colaboradores que possuem potencial de desenvolvimento para 3 Correspondente ao método de Referências em Recrutamento. 73 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 poderem ser movimentados; o facto deste tipo de recrutamento poder constituir-se como uma fonte de conflito entre os colaboradores e o facto de não permitir a entrada de novos saberes e competências na instituição. O planeamento de carreiras é um exercício limitado na medida em que depende da estrutura da própria U/E/O e da pequena percentagem de militares que esta pode albergar. Para além deste aspeto, ainda se sublinham os custos associados e a complexidade relativamente a determinadas necessidades das U/E/O. Se não se transmite essa informação, pode-se também perder um argumento que permite reter e motivar um militar e; por outro lado, a justiça face ao facto de se ter que excluir uma parte elevada de militares das oportunidades de carreira (Nunes, 2004). De facto, o grau de exigência dos militares é cada vez maior, quer para com a instituição, esperando que esta lhes proporcione os direitos que estão consignados na Lei, quer para com as U/E/O a que pertencem, que se encontram condicionadas pelas missões que têm que cumprir (Nunes, 2004). Paralelamente, a gestão de carreiras está ainda associada à rotação de pessoal, que se constitui como um fenómeno complexo, no qual radicam inúmeras causas, nomeadamente salariais. Na instituição militar, a solicitação voluntária de rotação de pessoal encontra-se associada a fatores de motivação, às condições de trabalho, satisfação na função, nível de stress, estilo de gestão, reconhecimento, oportunidade de desenvolvimento pessoal, acesso à formação, entre outros (Nunes, 2004). Esta rotação pode ainda dever-se a causas naturais, tais como a incapacidade para o trabalho, a morte, atingir a idade da reserva, o fim do contrato, por iniciativa da U/E/O (geralmente por questões disciplinares), ou ainda, por iniciativa do próprio militar. Pode, também, ser decorrente de causas endógenas, relativas a aspetos particulares da vida da unidade (e.g., motivos de promoção, formação), ou causas exógenas (e.g., natural desenvolvimento da carreira dos militares). No entanto, a taxa de rotação dos militares constitui-se como uma poderosa condicionante do PRH, pelo que deve ser tida em consideração, uma vez que: a rotação dos militares baixa à medida que a idade ou anos de serviço aumentam e é maior nos militares com nível de qualificação mais baixo (Ribeiro, 2010). Por outro lado, a rotação de efetivos nas U/E/O é um problema que o Comandante/Diretor/Chefe e o seu conselheiro na área de pessoal (Chefe da Seção de Pessoal ou equivalente) se debatem, no sentido de conciliarem as necessidades de serviço e os interesses individuais dos militares. Cada vez mais se verifica a multiplicidade e a polivalência de funções por parte dos militares, procurando fazer face às restrições orçamentais e aos condicionamentos relacionados com a falta de RH (Nunes, 2004). 74 Gestão de Carreiras no Exército Português O DIAGNÓSTICO: ETAPAS E PROCEDIMENTOS Procuramos com o presente estudo compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português, com o intuito final de apresentar uma proposta de intervenção a este nível. Por conseguinte, o diagnóstico que serviu de base ao presente estudo constitui-se com uma natureza qualitativa. A abordagem qualitativa foi preconizada com base em entrevistas semiestruturadas, conduzidas a três colaboradores do Exército, que são interlocutores e fontes de informação privilegiadas: Major General, Coronel e Tenente Coronel, detentores de sólidos conhecimentos ao nível da Gestão de Recursos Humanos4. Estes militares foram convidados a responder a sete questões relacionadas com a gestão de carreiras e que fazem parte do guião de entrevista. Este guião permitiu recolher dados para uma análise compreensiva sobre a gestão de carreiras em contexto do Exército. Com intuito de utilizar de forma adequada o guião de entrevista, garantindo uma recolha de informação pertinente ao presente estudo, revisitámos vários autores com intuito de preparar, adequadamente, os momentos que precederam o início da entrevista, o decurso e o seu término (Lessard-Hébart, Goyette e Boutin, 1994). A confidencialidade e o anonimato das respostas foram garantidos através do uso de codificações para a análise das respostas às questões. Para se analisar e tratar a informação recolhida através das entrevistas realizadas, o procedimento eleito foi a análise de conteúdo (Bogdan e Biklen, 1999). Após a análise das respostas dos entrevistados, foi possível realizar-se uma análise SWOT5 da situação do Exército Português, com a qual se pretendeu consolidar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças existentes na gestão de carreiras. A análise SWOT é apresentada na Figura 1. Pela análise da Figura 1, verificamos que as respostas dos entrevistados forneceram pistas interessantes para a elaboração de uma análise SWOT, que nos permitiu caraterizar a situação atual que define o Exército Português. Após a análise das entrevistas exploratórias e leitura de alguns estudos realizados no âmbito militar verificamos que, a par do que acontece em várias organizações, também no Exército Português emerge a necessidade de repensar os modelos de gestão de carreiras dos militares. 4 Inicialmente estava previsto serem realizadas mais entrevistas (a três Generais e a três Coronéis) no entanto, devido a constrangimentos temporais, e a alguma burocracia, fomos forçados a conduzir apenas três entrevistas. 5 A análise SWOT (Strenght, Weaknesses, Oportunities, Threats) consiste no estudo da envolvente interna (forças e fraquezas) e externa (ameaças e oportunidades) de uma organização. 75 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Ambiente Externo Ambiente Interno Figura 1. Análise SWOT Forças Fraquezas Modelo atual é um modelo simples que permite a promoção do máximo de oficiais aos postos mais elevados da hierarquia Modelo legislado ao pormenor (cf. detalhe normativo do EMFAR), transmite uma ideia de grande transparência e objetividade Ausência de um sistema eficaz de gestão de carreiras Escassez de RH Ausência de perfis funcionais totais, de um sistema de avaliação de potencial e de análise de funções Antiguidade – inibe as pessoas de serem escolhidas em função das competências; Limitação geográfica – economia financeira. Oficiais escolhidos conforme a área geográfica Financeira Quebra de expetativas Oportunidades Ameaças Abertura à sociedade civil e às práticas de gestão de carreiras realizadas em outras instituições Protocolos com centros de formação; Pressão externa poderá proporcionar uma implementação de um novo sistema com menor resistência à mudança Conjuntura económica (congelamento das promoções). Crescente constrição orçamental poderá originar uma diminuição dos postos superiores Fonte: Análise das Entrevistas PROPOSTA DE INTERVENÇÃO O principal objetivo deste projeto é desenvolver um plano de carreiras, tendo em conta, os objetivos e expetativas de carreira dos militares e as perspetivas da própria instituição, promovendo-se a compatibilização dos interesses institucionais e individuais. O modelo de intervenção proposto pode ser dividido em dois pontos de análise essenciais: (i) o ponto de vista da instituição e (ii) o ponto de vista do militar. Apesar destes dois pontos de análise numa primeira instância surgirem separadamente na verdade são interdependentes, isto é, o desenvolvimento de um está intimamente condicionado com o desenvolvimento do outro. A Figura 2 apresenta, de forma esquemática, o modelo de Gestão de Carreiras que propomos. Por conseguinte, abordaremos os diversos aspetos propostos para cada um dos prismas de análise e procuraremos conciliá-los numa perspetiva comum. 76 Gestão de Carreiras no Exército Português Assim sendo, como já vimos anteriormente, o modelo de gestão de carreiras que se encontra em vigor é um modelo tradicional, onde a tónica é colocada na carreira vertical. Este modelo é, atualmente, ultrapassado, já que os imperativos e as necessidades emergentes sublinham aspirações e expectativas de carreiras congruentes com as motivações de cada um dos colaboradores em função dos seus próprios objetivos individuais, fortalecendo a necessidade de compatibilização entre os interesses individuais e organizacionais. Apesar da necessidade de compatibilização destes dois interesses, não existe ainda um consenso relativamente a quem pertence a responsabilidade da gestão da carreira, se ao individuo, se à organização. De acordo com a literatura, parece razoável propor que a gestão de carreiras seja uma responsabilidade partilhada pelos indivíduos e pelas organizações (Cunha et al, 2010, p. 616). O desenvolvimento de carreira organizacional não «morreu», parecendo antes assistir-se a uma espécie de «dança organizacional» - isto é, um processo de influência mútua entre indivíduos e organizações, em que cada parte é simultaneamente agente e alvo de influência (Herr, 2001, in Cunha et al, 2010, p. 616). Neste sentido, sob o ponto de vista organizacional emergem os objetivos, as oportunidades e as necessidades da organização, na sua íntima relação com o meio envolvente. Do outro lado, emergem igualmente os objetivos individuais dos militares, as suas expectativas e desejos ao nível da carreira, em função dos contextos onde se inserem. Entre estas duas lógicas de ação, aparentemente contraditórias, é necessário estabelecer-se uma ponte que permita a troca de sinergias entre ambas as partes. Essa troca é possível ser realizada se for criada uma figura mediadora entre as duas partes, cuja missão se insere não só na defesa dos objetivos organizacionais, mas também na orientação dos objetivos individuais face às oportunidades existentes na instituição. Essa figura é assumida por nós como um Gestor de Carreiras, que deverá exercer a sua função dentro do Gabinete de Apoio às Carreiras, a ser criado para o efeito. No Exército existe a Repartição do Pessoal Militar onde se gerem as carreiras militares. No entanto, este apoio é meramente administrativo. 77 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Figura 2. Modelo Proposto Objetivos da Organização Necessidades e oportunidades da Organização Objetivos do militar Gabinete de apoio às carreiras: Desejos e expetativas do militar Gestor de Carreiras Focus on Growth Funções Vagas Questionário de expetativas de carreira Competências Mentoring e Coaching Manager as career coach Identificar o potencial do colaborador Análise dos recursos humanos disponíveis - Recrutamento e Seleção; - Análise de Funções Desempenho e performance do militar Planos de evolução na carreira - Avaliação de desempenho - Formação General Tenente-General Major Capitão M Coronel Tenente-Coronel Carreira Vertical Brigadeiro-general ~ Major-General (Modelo existente atualmente) Candidato Fase de admissão/Entrada na AM Testes Psicológicos; conhecer o potencial de cada candidato Carreira Horizontal Tenente Alferes Durante o 4º ano da AM Âncoras de carreira Aspirante a Oficial Soldado Cadete 78 Gestão de Carreiras no Exército Português Por conseguinte, quando falamos de desenvolvimento de carreiras, a organização deverá ter em conta o planeamento de RH, os movimentos que podem ocorrer, as funções que serão necessárias ocupar, o número de vagas existentes, quais os RH disponíveis, seu potencial, entre outros. Neste sentido, a organização deverá preconizar uma perspetiva integrada de RH, socorrendo-se dos subsistemas de gestão de RH ao dispor, nomeadamente, o recrutamento interno e a descrição de funções para cada cargo. O recrutamento permitirá a identificação das vagas e a análise dos RH disponíveis, enquanto a descrição de funções, permite ter um perfil previamente configurado e determinado, que inclui as hard e as soft skills necessárias ao desenvolvimento do cargo em análise. Por outro lado, a organização deve também atender aos objetivos pessoais de carreira dos militares e, para tal, é necessário recolher informação relativa à avaliação de desempenho do militar e ao plano de formação delineado. Estes indicadores permitem recolher informações sobre as competências e sobre o desempenho do militar, identificando o seu potencial. Em suma, consideramos que a gestão de carreiras em contexto militar deve albergar os vários subsistemas de RH existentes, para que possa assumir-se como eficaz. Tendo estes aspetos em consideração, entendemos que a gestão de carreira deve constituir uma preocupação desde o início da admissão na Academia Militar. Por conseguinte, a instituição deve desde o início, registar em base de dados, os testes psicológicos que permitem dar a conhecer o estado cognitivo atual do militar e o seu potencial de desenvolvimento. Já vimos que a gestão da carreira atual no Exército é a vertical, caraterizandose pela sucessão de postos. No entanto, devemos ter em conta que os militares, sendo colaboradores da Instituição militar, não se regem pelas mesmas motivações, aspirações nem pelos mesmos desejos de carreira. Neste sentido, propomos igualmente uma gestão horizontal. A proposta indicada sugere que a partir do posto de Capitão, o militar, juntamente com o seu “aconselhador” ou gestor de carreira, escolha o seu percurso de carreira. A carreira horizontal implicaria uma progressão mais lenta nos postos, até ao posto de Tenente-Coronel mas em contrapartida, o militar estaria a desempenhar funções do seu agrado, sem mobilidades geográficas. Neste sentido, o militar poderá escolher o que mais o motiva, ou a componente operacional, ou então, uma estabilidade emocional, familiar e geográfica. O desenvolvimento de uma carreira horizontal encontra-se intimamente relacionada com o desenvolvimento de competências que devem ser transversais a 79 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 toda a organização. Por esse motivo, consideramos aqui fundamental o papel da formação profissional e dos development centres, com o objetivo de potenciar competências nos militares que possam ser uma mais-valia no desenvolvimento de uma carreira horizontal. Durante o 4º ano da Academia Militar, propomos a administração de um questionário de Âncoras de Carreira, para que antes de iniciar a sua carreira propriamente dita, tanto o militar como a instituição se comecem a aperceber das orientações de carreira daquele. Este conceito de Âncora de Carreira foi desenvolvido a partir dos estudos de Schein, que explora a forma com que alguns aspetos pessoais podem ser determinantes nas escolhas profissionais, criando assim, uma padronização (1990a). Dos seus estudos resultou uma descrição de um conjunto de autoperceções relativas a talentos e habilidades, motivações e atitudes, necessidades e valores, baseadas nas experiências efetivas de cada sujeito, criando-se, assim, rumos que norteiam as escolhas desse profissional. A este conjunto Schein (1990a), designa de Âncoras de Carreira e estas afetam a forma com que o indivíduo acolhe e percebe o seu trabalho e a sua carreira. As Âncoras de Carreira apresentam características diferentes, segundo Schein (1990b): Competência Técnica/Funcional – nesta âncora o profissional adquire sentido de identidade através da aplicação das suas habilidades técnicas. A realização profissional vem através da possibilidade de enfrentar desafios; Competência de Gestão Global – o profissional orientado para a gestão global possui a capacidade de realizar um contrato psicológico com a organização, para que o sucesso da organização seja o seu sucesso; Autonomia e Independência – aqui encontram-se as pessoas que possuem um nível reduzido de tolerância pelas regras estabelecidas por outras pessoas, por procedimentos e outros tipos de controlo que venham a cercear a sua autonomia; Segurança e Estabilidade – a principal preocupação é a sensação de bemestar gerada pela baixa volatilidade na sua carreira. Para isso, o profissional aqui ancorado irá guiar as suas decisões de carreira na segurança e estabilidades oferecidas; Criatividade Empreendedora – aqui encontramos os profissionais focados na criação de novas organizações, serviços ou produtos; Serviço/Dedicação a uma causa – integram os indivíduos que não estão dispostos a renunciar, em nenhuma hipótese, aos seus valores pessoais. Executam, assim, atividades profissionais que possam integrar esses valores; 80 Gestão de Carreiras no Exército Português Desafio – a superação de obstáculos aparentemente impossíveis e a solução de problemas ‘insolúveis’ definem o sucesso para os profissionais aqui ancorados. Estilo de Vida – nesta âncora, o profissional procura encontrar uma forma de integrar as necessidades individuais, familiares e as exigências de carreira. Grande parte das pessoas, possivelmente, preocupa-se com várias destas questões, mas em diferentes graus. Uma Âncora de Carreira poderá fazer todo o sentido hoje e amanhã emergir uma outra (Schein, 1990a). O reconhecimento da Âncora de Carreira possibilita ao profissional o desenvolvimento de estratégias de carreira que combinem as suas habilidades e valores, com as oportunidades que a organização possui. Como referido inicialmente, acreditamos que a figura de um Gestor de Carreiras faz todo o sentido no Exército Português, na medida em que este deverá preocupar-se, essencialmente, com três procedimentos de desenvolvimento fundamentais: Figura 3: Procedimentos de intervenção Focus on growth A focalização deve ser nos valores, aspirações e interesses pessoais, com vista ao crescimento; É necessário identificar as competências pessoais e as oportunidades de desenvolvimento e de melhoria; Consolidar a informação recolhida num plano de desenvolvimento de carreira estruturado e consonante com as orientações estratégicas da organização; Implementação de uma entrevista anual de avaliação dos projetos de carreira. Preocupações de carreira Mentoring e Coaching As pretensões e objetivos de carreira alteram-se constantemente, por isso a gestão das preocupações/expectativas de carreira pode ser realizada em vários momentos ao longo da vida militar: na avaliação de desempenho; questionários e inquéritos de motivação, clima e satisfação no trabalho. Coaching consiste no desenvolvimento de competências e de habilidades para que resultados planeados possam ser alcançados com êxito. Um coach, auxilia e apoia o coachee (cliente) a sair do seu estado atual e atingir um estado desejado. Mentoring é uma espécie de tutoria onde um profissional mais velho e mais experiente orienta e partilha com profissionais mais jovens, experiências e conhecimentos no sentido de dar-lhes orientações e conselhos para o desenvolvimento das suas carreiras. Fonte: Baseado em van de Ven (2007). Neste sentido, a sua atuação deverá ser vista como um “manager as career coach”, atuando como um coach, realizando discussões construtivas com o militar e atuando como seu “advogado” de carreira, tal como sugere van de Ven (2007). 81 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Para tal, deverá preconizar papéis diversos como: (a) desafiar e ajudar o militar sobre as suas aspirações de interesses em matéria da carreira, por forma a testar que as mesmas são robustas, realistas e fortalecidas; (b) deve proporcionar feedback ao militar e discutir com ele o desempenho, o potencial, as forças e as oportunidades de melhoria; (c) comunicar aberta e francamente com o militar sobre o facto de as suas expectativas serem ou não realistas; (d) motivar e ajudar o militar a gerar opções e a traduzi-las num plano de ação exequível (van de Ven, 2007). Após esta análise individual realizada pelo Gestor de Carreira, torna-se imperativo a existência de uma reunião de revisão global do desenvolvimento de carreira, a ser preconizada pelos diversos Gestores de Carreira, com intuito de combinar as oportunidades de desenvolvimento (e.g., vagas em aberto, rotação das funções, missões especiais, etc.), com as aspirações e necessidades dos militares. Desta reunião, deverá resultar um plano de desenvolvimento integrado, que contém as ações a realizar para cada militar, as suas responsabilidades e orientação necessária. As decisões inicialmente tomadas nesta reunião devem ser comunicadas, em forma de partilha com o militar, procurando que este dê a sua opinião sobre a opção encontrada. Todos os procedimentos devem ser claramente expressos e todos os colaboradores devem ter acesso a toda a informação de igual forma. Em suma, apresentamos na Figura 4 os instrumentos que podem ser utilizados na gestão de carreiras dos militares do Exército Português. Figura 4. Instrumentos de Gestão de Carreiras Avaliação das Expectativas Avaliação de desempenho Questionário/Inventário das preocupações de carreira Âncoras de Carreira Instrumentos de Ação Planos de Carreira Mentoring Coaching Planos de desenvolvimento pessoal Mobilidade Horizontal Mobilidade Vertical Recrutamento Interno Desenvolvimento de Competências CONSIDERAÇÕES FINAIS Formação Development Centres CONSIDERAÇÕES FINAIS 82 Gestão de Carreiras no Exército Português O presente trabalho teve como principal objetivo compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português. Da auscultação que realizámos através das entrevistas, concluímos que: A gestão de carreiras no Exército não é realizada com base numa análise de funções, por forma a orientar melhor os desempenhos dos militares para funções de maior responsabilidade e adequação; O Exército Português carece de uma estrutura específica que se dedique à gestão de carreira dos militares; Durante o processo de gestão de carreiras (entendido pelo Exército como uma movimentação vertical decorrente da antiguidade) não são auscultadas as expectativas, aspirações e motivações dos militares perante a sua carreira. Por conseguinte e atendendo a estas constatações, consideramos ser possível avançar com a proposta de um modelo de gestão de carreiras, passível de ser implementado no Exército Português. Este modelo coloca a tónica na existência de um Gestor de Carreiras e de um Departamento para o efeito, no qual haverá uma preocupação de conciliação e compatibilização dos interesses individuais dos militares e os da organização. Neste processo, serão auscultadas as expectativas, aspirações e motivações dos militares, bem como será considerada uma movimentação horizontal de carreira que permita desenvolver competências transversais a toda instituição. É nossa expectativa que este trabalho se venha a constituir como uma maisvalia para o Exército Português ao nível da gestão de carreiras. Em termos pessoais, este trabalho assumiu-se como um grande desafio, na medida em que nos levou a procurar informação que fosse pertinente para o Exército, refletir sobre a mesma e sistematizá-la num modelo de carreiras que possa ser útil e aplicável. Alguns obstáculos e constrangimentos surgiram (dificuldades na obtenção das entrevistas; dificuldade em se aceder a determinados documentos do Exército, entre outros), e cujos efeitos tentámos minimizar sem prejuízo para o trabalho final. Esperamos, por conseguinte, que este trabalho possa servir de ponto de partida para novas investigações relativas à avaliação da implementação deste modelo de gestão de competências. 83 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS Bogdan, R. e Biklen, S. (1999). Investigação qualitativa em educação. Uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora. Câmara, P.B., Rodrigues, J.V. e Guerra, P.B. (2010). Novo Humanator: Recursos humanos e sucesso empresarial. Lisboa: Dom Quixote Carvalho, J. (2003). Sistema de Avaliação do Mérito do Pessoal Militar: Suporte do Sistema de Promoções. Sintra: Instituto de Altos Estudos da Força Aérea. Cherrington, D.J. (1995). The management of human resources (4th edition). New Jersey: Prentice Hall. Chiavenato, I. (2002). Recursos Humanos (7ª Ed.). S. Paulo: Editora Atlas. Cunha, M. P., Rego, A., Cunha, R. C., Cabral-Cardoso, C., Marques, C. A. & Gomes, J. F. S. (2010). Manual de gestão de pessoas e do capital humano (2.ª edição). Lisboa: Sílabo. Dutra, J. (1996). Administração de Carreiras: uma proposta para repensar a gestão de pessoas. São Paulo: Atlas. Hall, D. (2002). Careers In and Out of Organizations. London: Sage Publications. Lessard-Hébart, M., Goyette, G. e Boutin, G. (1994). Investigação qualitativa: Fundamentos e práticas. Lisboa: Instituto Piaget. Mintzberg, H. (2011). Managing. San Francisco: Berrett-Koehler Publishers. Nunes, P. (2004). O Dia-A-Dia de uma Unidade Regimental. Dificuldades e Desafios da Gestão de Recursos Humanos. Lisboa: Revista da Academia Militar. Oliveira, U. (2009). Institucionalização de um sistema de acompanhamento e aconselhamento permanente das carreiras militares, com previsão de pontos de aferição e eventual saída da organização. Lisboa: Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM). Quivy, R. e Campenhoudt, L. (2008). Manual de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva. Ribeiro, J. (2010). A Gestão de Recursos Humanos na Força Aérea. Lisboa: Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM). Schein, E.H. (1990a). Career anchors and job planning: The links between career pathing and career development. Cambridge: MIT Review. Schein, E.H. (1990b). Career anchors (revised edition). San Diego: University Associates. Tieppo, C., Gomes, D., Sala, O. e Trevisan, L. (2011). Seriam as âncoras de carreira aderentes às carreiras inteligentes? Estudo comparativo entre alunos 84 Gestão de Carreiras no Exército Português formandos do curso de administração de empresas e turismo. Revista Gestão Organizacional, 4 (2), 274-293. van de Ven, F. (2007). Fulfilling the promise of career development: Getting to the “heart” of the matter. Organization Development Journal, 25(3), 45-50. Fontes jurídicas Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho, Diário da República, I Série, n.º 146 Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, Diário da República, I Série, n.º 20 Lei n.º 11/89 de 1 de Junho, Diário da República, I Série, n.º 125 Portaria n.º 1246/2002 de 7 de Setembro, Diário da República, I Série, n.º 207. 85 Boletim de Sociologia Militar N.º3 – 2012 PP. 86 a 120 GESTÃO E DESENVOLVIMENTO DE CARREIRAS - O caso da Marinha Portuguesa -1 Adelino Costa Cabral* RESUMO A Gestão e Desenvolvimento de Carreiras assumem, numa sociedade em constante mutação, onde o paradigma deslocou o centro da acção da organização para o indivíduo, papel preponderante na sustentação e desenvolvimento das organizações. As pessoas, ao longo do último século, preponderaram como charneira dinamizadora do acto organizacional e principal factor de competência a uma adaptação, consequente, às alterações da envolvente, assumindo, progressivamente, uma gestão individual da carreira. A Marinha Portuguesa, como instituição inserida numa sociedade global, não pode estar desatenta perante as melhores práticas, de modo a manter competitividade num mercado de trabalho onde todos querem conservar, nas suas fileiras, indivíduos satisfeitos e motivados, que concorram de forma indelével para o cumprimento da missão. O propósito deste estudo referenciou-se numa aspiração da Marinha de “conceber um sistema generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos Recursos Humanos e o aconselhamento de percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira”. Para esse fim, adoptou-se a metodologia “Estudo de Caso”, ajustada a uma situação em contexto real, tendo-se recorrido, para um eficaz diagnóstico, a diferentes técnicas de recolha e análise de dados. Para responder à questão base, desenhou-se um plano de intervenção, assente no evidenciado e consubstanciado num conjunto de acções que perfilhem a edificação de um programa de Gestão e Desenvolvimento de Carreiras participado e cooperativo, onde a conciliação de interesses, individuais e organizacionais, seja um desiderato a alcançar. Palavras-Chave: carreiras; acompanhamento; evolução; sucesso ABSTRACT The career’s management and development, inside a constantly moving society, where the paradigm have changed the organizational action centre to the individual, assume a preponderant role in the organization’s maintenance and development. During the last century the people has the dynamic strength of the organization’s activity and was the main factor of a skilled adaptation to the environment changes. Furthermore, they assumed, in a progressive way, the management career as an individual task. The Portuguese Navy, as an institution integrated in a global society, have to to maintain the competitiveness level in the labour market where all (institutions/organizations/enterprises) want to have motivated and satisfied collaborators who guarantee the accomplishment of the mission. Because of that, the Portuguese Navy could not have an attitude of inattention to the best practises. This study took as reference the Portuguese Navy’s ambition of “creating a generalized and methodical system to allow the human resources’ individualized attendance and the specialized career consulting”. The adopted methodology was the “Case Study”, adjusted to a real context, and to efficacy diagnostic, different techniques of analyses and gathering data were used. The structure of the conceptual framework was essentially based on the literature’s review, which sustained all the study. In order to answer to the central question, it was elaborated a plan of action to implement an interactive management and development career’s program. The proposal of action assumes the organizational and individual interest’s conciliation as a goal to achieve during the program implementation. Key-words: careers; monitoring; evolution; success 1 Este artigo é baseado num projeto, defendido pelo autor, em 23 de janeiro de 2012, no ISCTE, no âmbito do Mestrado em Gestão de Recursos Humanos. * Capitão-de-fragata da Marinha. 86 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 1. INTRODUÇÃO A sustentação das organizações, na sociedade contemporânea, torna premente a adopção e edificação de políticas, modelos e práticas de Gestão de Recursos Humanos (GRH) potenciadores na atracção, manutenção e desenvolvimento dos activos humanos mais bem preparados, tendo em conta que são os únicos actores capazes de responder, em tempo e de forma eficiente, a qualquer alteração da envolvente. Com a globalização e evolução tecnológica, as organizações adaptaram-se à realidade da sociedade económica e posteriormente do conhecimento, ficando mais flexíveis e permeáveis à entrada e saída dos colaboradores (Hall, 1996; Sullivan, 1999; King, 2004; Baruch, 2004a e 2004b). Este fenómeno tem vindo a passar a responsabilidade da gestão da carreira da organização para o trabalhador, que hoje procura no trabalho motivações e recompensas distintas do passado. O trabalho para a vida já não é uma ambição de todos, o importante será, a título de exemplo, a realização pessoal, o desenvolvimento de aptidões e competências e o equilíbrio entre o trabalho e a família (Baruch, 2004b e 2006; Ng et al., 2005) Se a capacidade de gestão de carreiras passou da organização para o indivíduo, a responsabilidade também. Contudo, as organizações continuam a necessitar de pessoas que lhe permitam alcançar os objectivos estratégicos e a potenciação da sua imagem e implementação de produtos num mercado, que advindo da globalização, apresenta níveis de incerteza bastante elevados, onde existem cada vez mais actores e concorrência. Desta forma, a gestão e desenvolvimento de carreiras que respondam a essas questões base são práticas de extrema relevância para o progresso das organizações e para o alcançar do sucesso de cada um e de todos, num principio colectivista em que a organização é a potenciação da soma do valor dos seus membros. Não existe satisfação individual separada do sucesso organizacional (Greenhaus, Callagan e Godshalk, 2010; Tams e Arthur, 2010). No contexto militar essa necessidade é premente e contínua, devido ao fim do serviço militar obrigatório, no final do século passado. Essa alteração fez diminuir o número de elementos disponíveis, que levou a que as Forças Armadas fossem para o mercado de trabalho recrutar os seus activos em concorrência directa com os restantes intervenientes do tecido empresarial. Mas o fenómeno de trazer as pessoas para o contexto castrense é apenas o inicio do processo de atrair, manter e desenvolver pessoas. Após a contratação dos indivíduos torna-se necessário 87 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa consagrar uma cativante opção de carreira, de forma a manter os melhores nas fileiras. A realidade tecnológica que hoje constituí as plataformas militares carece de especificidades, comportamentos e competências exigentes, tornando necessárias práticas de gestão de desenvolvimento de carreira que acomodem os interesses individuais, numa conciliação, na maior expressão possível, com os da organização. A evolução das carreiras militares assente em dois eixos – progressão horizontal e promoção vertical, conforme estatuído no Estatutos dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), carece de ser contemplada de forma a permitir uma clareza de definição na responsabilidade e participação de cada elemento na definição da sua carreira que poderá progredir de forma mais ou menos linear, considerando a participação do indivíduo e as circunstâncias de oportunidade. Nestes pressupostos, um processo efectivo de gestão de carreiras, no âmbito da Marinha, é algo a prosseguir e fortalecer de modo a permitir manter e desenvolver os que evidenciem melhores capacidades e valências, num enquadramento dos valores e cultura organizacional vigentes e objectivos estratégicos projectados. Podemos aferir que todas as organizações necessitam de indivíduos para a sua actividade. Em contrapartida, a maioria dos indivíduos necessitam das organizações para desenvolverem o seu trabalho. O desafio nesta interacção emerge na procura do equilíbrio entre as solicitações individuais e a oferta institucional. As organizações querem os melhores para os seus quadros e os indivíduos pretendem integrar as organizações mais conceituadas. O cruzamento destas aspirações será o factor crucial para o sucesso das carreiras e para o êxito das actividades organizacionais. A carreira é um percurso de vida e cada um é construtor do seu caminho. Como proferia Peter Drucker “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.” As carreiras dos militares regem-se por normativo legislativo, determinado superiormente, que enquadra formalmente e com alguma rigidez a sua gestão e desenvolvimento. Nessa decorrência, torna-se necessário proceder a alguma agilização deste processo com vista a torná-lo mais participado e efectivo, nomeadamente por recurso às novas tecnologias de informação e comunicação. Partindo deste pressuposto, que existe necessidade de uma avaliação e reestruturação, importa identificar os factores críticos do actual sistema de gestão de carreiras na estrutura castrense da Marinha, com o propósito de debelar as falhas identificadas, visando uma gestão mais eficiente do desenvolvimento de carreiras, que propicie um desempenho ajustado do potencial humano e articulado acréscimo de valor em sentido biunívoco. 88 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Conforme relevado, torna-se necessário intervir ao nível das práticas de Gestão de Carreiras da Marinha, de modo a ir ao encontro do propósito traçado superiormente, através dos documentos estruturantes, de determinação interna para a execução das políticas de Recursos Humanos perspectivadas para esta matéria, e que se materializa em “Conceber um sistema generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos RH da Marinha e o aconselhamento de percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira” (DSRH). É com este objectivo que iniciámos o desenho do presente projecto numa perspectiva de colmatar uma necessidade da organização numa dimensão de adaptação das políticas instituídas às boas práticas organizacionais. Desta forma, propusemo-nos desenhar um modelo aplicado, no âmbito da gestão e desenvolvimento de carreiras, na estrutura da Marinha Portuguesa, assente numa perspectiva de sucesso individual e organizacional, numa participação colectiva e com a maior conciliação de interesses possível. O trabalho desenvolvido estrutura-se a partir de uma revisão de literatura sobre a temática em causa de gestão e desenvolvimento de carreiras, que permite conhecer a grandeza teórica enquadrante desta matéria e as práticas preconizadas para a envolvente contemporânea na perspectiva pessoal e da organização. Para se atuar é necessário conhecer a realidade vigente de forma a gizar um eficiente e eficaz rumo da intervenção. Assim, procedeu-se a um estudo de caso, cujo método e técnicas de recolha de dados necessários ao diagnóstico se evidenciam e explanam no capítulo três deste trabalho. Para que uma intervenção seja efectiva, é fundamental analisar o diagnosticado, a fim de projectar um plano baseado no patenteado e contribuinte para a resolução da questão evidenciada. Assim, estruturou-se o plano de intervenção que se pretende adequado na forma, aceitável na estrutura e exequível na dimensão. Em suma, a estruturação do trabalho assenta numa metodologia de identificação do problema através de um diagnóstico ajuizado nos dados evidenciados no estudo de satisfação efectuado aos elementos da Marinha, complementado por uma análise de conteúdo às contribuições abertas que os respondentes poderiam colocar no âmbito do questionário elaborado. Finalmente, compôs-se o caminho que poderia colmatar a necessidade patenteada, propondo-se um plano de intervenção que vá de encontro à política da organização para este área funcional e tenha o patrocínio do vértice estratégico para a sua implementação, contribuindo para essa factor a entrevista efectuada ao vicealmirante superintendente dos serviços do pessoal, que permitiu ter presente a vontade para a acção, numa perspectiva que enquadrasse todos os parâmetros da 89 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa questão, tendo em conta a dimensão da instituição, cultura organizacional vigente e capacidade de implementação do plano, na conjuntura atual. 2. 2.1. ENQUADRAMENTO TEMÁTICO Definição e caracterização de carreira As questões sobre a definição de carreira têm obtido resposta, pelos estudiosos desta matéria, de acordo com várias perspectivas. Em alguns campos de estudo, a carreira é tida como o conjunto de experiências, relacionadas com o trabalho, ocorridas ao longo da vida de uma pessoa (Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010). Outras ópticas atribuem como significado de carreira uma sequência evolutiva da experiência do trabalho ao longo do tempo (Arthur, Hall e Lawrence, 1989). Podemos, no entanto, considerar que uma carreira é a sequência de papéis e experiências, em ambiente de trabalho, na vida das pessoas, que ocorrem numa envolvente social específica, nomeadamente em organizações (Baruch, 2004a). Logramos então aferir que a carreira pode ser olhada sob quatro referenciais distintos (Hall, 2002): a) Como desenvolvimento profissional, numa mobilidade interna que possibilita uma ascensão hierárquica na organização; b) Como ocupação profissional, que pressupõe uma série de movimentos verticais ascendentes, ao longo do tempo de trabalho, independentemente da organização em que ocorrem; c) Como uma sequência de empregos e funções ao longo da vida, em que todas as pessoas com uma história de trabalho, possuem uma carreira; d) Como uma sequência de experiências profissionais ao longo da vida, cuja carreira representa um conjunto de vivências nos empregos e actividades que constituem a sua história de trabalho. Neste desígnio, o desenvolvimento de carreiras constitui-se em dois patamares indissociáveis (Hall, 1996): a) Planeamento de carreira: numa auto-consciência individual, das oportunidades com que se deparam, das escolhas que efectua, dos condicionamentos e consequências que daí advêm; da definição dos objectivos de carreira e do planeamento que giza do trabalho, da formação e outras experiências vivenciadas para parametrizar o sentido, oportunidade e a sucessão das acções a adoptar para atingir os objectivos de carreira; 90 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 b) Gestão da carreira: método de preparação, promoção e monitorização do planeado para a carreira de forma individual ou em conjunto com os sistemas de carreiras da organização em que se insere. Para Greenhaus, Callanan e Godshalk (2010), a gestão da carreira de um sujeito pressupõe um conjunto de acções que passam por diversos estádios e que facilitam observar a complexidade dos actos que concorrem para a carreira individual: Também a evolução do conceito de carreira, tem vindo a ajustar-se ao longo dos tempos. No passado a imagem era de as organizações possuírem estruturas hierárquicas rígidas que operavam num ambiente estável. O plano de carreiras, neste contexto, era previsível, seguro e linear. Em contraste, o actual sistema organizacional está caracterizado num modo de total mudança, dinamismo e fluidez. As carreiras são imprevisíveis, vulneráveis e multidimensionais. Estes dois cenários estão em extremos opostos. No entanto nenhum reflecte uma representação completa, verdadeira e justa do estado vigente (Baruch, 2006). Deste modo, alguns autores definem modelos que habilitam uma abordagem plural no conceito de carreira, Brousseau, Driver e Eneroth (1996) enunciaram quatros hipóteses fundamentais de experiências de carreira. Os padrões definidos diferem, basicamente, em termos de direcção e frequência do movimento dentro e entre diversos tipos de trabalho ao longo do tempo. Ainda segundo os mesmos autores, os indivíduos que adoptem carreiras de perito ou lineares têm vantagem em organizações burocráticas com estruturas mecanicistas. Enquanto que os indivíduos que desenvolvam carreiras em espiral ou transitórias não se enquadrarão neste tipo de organizações. A caracterização dos modelos de carreiras emergentes distingue-se pelas competências de cada elemento, necessárias no contexto de trabalho em que se insere ou num incremento da sua empregabilidade. As valências conseguidas pela passagem em várias organizações, a identificação com o trabalho que desenvolve, a aprendizagem em ambiente organizacional, o estabelecimento de redes sociais de suporte e a responsabilidade individual de gestão da sua carreira (Sullivan, 1999). A escolha, da actividade ocupacional e decorrentes resultados, têm como principal factor os valores culturais e de trabalho de cada indivíduo (Brown, 2002). Todavia, só uma decisão intuitiva não é efectiva, carecendo do acompanhamento de uma decisão racional. Por outras palavras, os indivíduos necessitam de usar a sua “cabeça” (racionalidade) e o seu “coração” (intuição) para tomarem uma decisão de carreira efectiva. Esta conjunção tende a produzir diferentes tipos de percepções complementares entre si (Singh e Greenhaus, 2004). 91 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa O compromisso que um individuo desenvolve no seio da empresa e que pode ser: afectivo, reflectindo um desejo de continuar membro da organização, desenvolvido em grande parte como resultado de experiências de trabalho que criam sentimentos de conforto e competência pessoal; de continuidade, espelhando uma necessidade de se manter na organização, devido aos custos associados à saída (e.g. falta de alternativas); ou normativo no sentido de uma obrigação de permanecer, resultante da interiorização de uma preceito de fidelidade ou o recepção de favores que exigem um determinado reembolso. A intenção de sair da organização diminui em correlação com o aumento do factor compromisso. Contudo, o comportamento do indivíduo será distinto em função da componente compromisso mais evidenciada (Meyer e Allen, 1991) O desenvolvimento desta temática, tem mostrado que o controlo da carreira se presencia, cada vez mais, sobre a influência do individuo do que da organização (Baruch, 2004b e 2006). Esta tendência para a gestão de carreiras individualizada pode decorrer em vantagens para as organizações e para os sujeitos. Para os elementos identifica-se na hipótese de poderem ter um leque alargado de opções de carreira. As organizações concentram-se na possibilidade de externalizar serviços, em vez de efectuarem despedimentos, contratando ex-colaboradores como consultores (Baruch, 2004b). Mas deve-se ter sempre como principio a criação de compromisso nos indivíduos que potencie um bem-estar pessoal e uma vontade de trabalhar em conjunção de critérios com os objetivos organizacionais (Meyer e Allen, 1991). Como se observou, existe no contexto actual uma necessária auto-gestão da carreira que se relaciona com os comportamentos dos indivíduos e que de acordo com King (2004) se dividem em três grandes grupos: de posicionamento, focados no alcançar dos objectivos de carreira através da uma escolha criteriosa nas oportunidades de mobilidade, num investimento estratégico no desenvolvimento do seu capital humano e numa rede social desenvolvida e activa; de influência, no sentido de influenciar as decisões dos elementos chave, para alcançar os resultados desejados; de gestão de fronteiras, num balanço de solicitações entre o domínio laboral e a vida extra-trabalho. Em contraste com as anteriores gerações, actualmente os membros das organizações são responsáveis pelas suas próprias carreiras, não considerando qualquer hipótese de uma carreira para a vida numa só organização (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006). Existindo, possibilidade, de em conjunto com a ambição e astúcia individual, alcançar o topo da carreira, independentemente de onde se começa. Com a oportunidade vem a responsabilidade, sendo que o sucesso, na actual sociedade, baseada na economia, é induzido pelo conhecimento que cada um tem de si mesmo, 92 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 os seus factores de competitividade, valores e forma de alcançar bons resultados (Drucker, 2005). Muito do que se apelida de desenvolvimento de carreira deveria, com mais acuidade, ser caracterizado como comportamento vocacional, as escolhas individuais são mais do foro educacional e vocacional do que, efectivamente, uma escolha de carreira, onde a interacção coma envolvente está, permanentemente, presente (Savickas, 2002). A abertura dos mercados e da competição à escala global, à beira do século XXI, criou a necessidade de organizações em rede e consequentemente carreiras muito mais flexíveis (Hall, 1996). A principal modificação verifica-se na mudança de carreiras que ofereciam emprego seguro para todos, para carreiras que proporcionam oportunidades de desenvolvimento (Baruch, 2004a). Contudo, no presente, as perspectivas profissionais parecem ser muito menos definíveis e previsíveis, sendo a transição entre empregos mais frequente e difícil. Estas mudanças requerem dos trabalhadores o desenvolvimento de aptidões e competências, substancialmente, diferentes das requeridas no século XX, necessitando as pessoas de enfatizar a capacidade de flexibilidade humana, a adaptabilidade e a aprendizagem ao longo da vida (Savickas et al., 2009). Entre estas novas carreiras podemos identificar as proteanas, autodeterminadas e definidas pelos valores do indivíduo em contraposição às recompensas organizacionais, servindo a pessoa, a família e o propósito de vida (Hall, 2004). Este padrão de carreira assente na individualidade enfatiza a adaptabilidade do próprio e a definição da direcção que deseja seguir surgindo em contraposição à carreira sem fronteiras (boundaryless) que se encontra numa perspectiva organizacional de maior permeabilidade à entrada e saída dos colaboradores (Sullivan, 1999). A predisposição individual para uma carreira tipo proteana é um antecedente significativo para uma carreira de sucesso (Vos e Soens, 2008). Mas não devemos descurar, que as pessoas permanecem mais tempo nas firmas que apresentam boa reputação, num princípio de identidade interna (Chun, 2005). 2.2. Sucesso na carreira De acordo com Baruch (2004b), a organização deve ser capaz de proporcionar aos seus colaboradores opções que lhes permitam ter sucesso nas suas carreiras. No entanto, se a essência das carreiras tem vindo a mudar, também o significado de sucesso têm evoluído, diferenciando-se conforme o referencial: O factor satisfação na carreira, assim como o relacionado com benefícios tangíveis, como altos salários e promoções frequentes estão relacionados com uma postura proactiva (Seilbert, Crant e Kraimer, 1999). Os comportamentos de 93 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa proactividade que contribuem de forma intrínseca e extrínseca para criar condições para uma carreira de sucesso consubstanciam-se: em ser inovador, em vez de manter uma orientação para o status-quo; em assumir princípios de astúcia política e empenho activo no planeamento de carreira, procurando um retorno. Estas acções específicas aumentarão a probabilidade de uma maior recompensa extrínseca e intrínseca (Seibert, Kraimer e Crant, 2001). Os indivíduos, que se mobilizam numa perspectiva de mudança de carreira, aumentam as suas possibilidades se construírem relações em variados contextos sociais. Devendo edificar uma alargada matriz de relações de aconselhamento. Incrementando dessa forma o grau de acesso à informação, mas mais importante, a flexibilidade cognitiva e a capacidade para ponderar de forma alargada e criativa um amplo campo de possibilidades (Higgins, 2001). A relação entre satisfação na carreira e conflito trabalho-família é uma mediação que poderá evidenciar-se como moderador negativo, devendo ter em conta diversos factores como são o género, o estado parental e marital, as fontes de suporte, a comunidade em que se está inserido e os recursos financeiros. Sendo a retenção de talentos um importante objecto para as organizações, compreender os factores que influenciam a satisfação individual com a carreira é de extrema importância (Martins, Eddleston e Veiga, 2002). A questão de como efectuar o balanceamento das actividades e interacções trabalho-família, torna-se saliente na reflexão sobre as competências e aspirações de cada indivíduo. Gerir as interacções entre os diferentes domínios da vida tornou-se uma preocupação primordial para os trabalhadores periféricos, cujo trabalho é contingencial, free-lance, temporário, externo, part-time ou casual (Savickas et al., 2009). O modo como sempre foi pedido o incremento de capacidades, competências e enfrentar estratégias para estar num mercado de trabalho flexível, é agora suplementado por um entendimento profundo e alargado de como as pessoas devem agir de forma a serem as escolhidas. O pensamento do novo século deve entender a carreira como uma questão de autonomia pessoal num mercado de trabalho livre (Law, Meijers e Wijers, 2002). As pessoas podem recorrer a múltiplos pontos de referência para avaliarem o seu sucesso na carreira, medindo-o relativamente às expectativas que têm com o seu trabalho e em relação ao resultado das outras pessoas (Heslin, 2003). Sendo as variáveis de reconhecimento de sucesso distintas para cada indivíduo (Ng et al., 2005). 94 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Podemos então notar que, o sucesso na carreira é resultado das práticas individuais interiorizadas de forma subjectiva, podendo ser definido como o alcançar dos resultados desejados ao longo da experiência de uma pessoa, no tempo dedicado ao trabalho. As pessoas têm diferentes aspirações de carreira, considerando distintos factores de realização, como são exemplo, a segurança no trabalho, a localização do trabalho, o status, a progressão através de diferentes funções, acesso à formação, a importância do trabalho versus tempo para si e para a família. Por outro lado, encontra-se a perspectiva externa que considera, em maior ou menor dimensão, indicadores tangíveis de forma objectiva e reflecte o entendimento social partilhado em contraposição ao sentimento individual (Arthur, Khapova e Wilderom, 2005). Considera-se, então, que, existe uma “grande divisão” entre factores subjectivos e objectivos no evidenciar do sucesso de carreira. Os objectivos podem verificar-se através de manifestações exteriores de sucesso, como por exemplo: a remuneração; a posição hierárquica que a pessoa atingiu com uma determinada idade, ou que quantidade de recursos a pessoa tem sobre a sua coordenação. Alternativamente, podemo-nos concentrar nas questões subjectivas como as pessoas sentem a sua experiência de trabalho ao longo da vida profissional (Gunz e Heslin, 2005). Na mesma linha de pensamento Seibert e Kraimer (2001) definem sucesso extrínseco como o aferido em termos de salário e promoções, associados a resultados de recompensas instrumentais que advêm do trabalho ou ocupação e que são objectivamente observáveis. O sucesso extrínseco é então o medido em termos de satisfação no âmbito dos factores que estão inerentes no trabalho ou ocupação e dependem de uma avaliação subjectiva, do próprio relativamente aos seus objectivos e expectativas. No entanto, ter uma personalidade proactiva contribui para o sucesso na carreira, com um efeito significativo na satisfação, no salário auferido e no número de promoções conseguidas ao longo da carreira (Seibert, Crant e Kraimer, 1999). 2.3. Acompanhamento e aconselhamento Na forma de as organizações ajudarem os seus colaboradores a terem sucesso na carreira, é crucial considerar os seus desejos e planos. Embora as carreiras estejam, presentemente, nas mãos dos colaboradores, as organizações podem ter como objectivo aconselhar os seus elementos no desenvolvimento de carreira, com incidência nos factores associados às características pessoais como a motivação, reflexão e redes sociais em que se inserem, atendendo à situação no trabalho e à dinâmica do ambiente em correlação com os factores de sucesso interno e externo da carreira (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006). Todavia, a tutoria poderá 95 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa não ser directamente relacionável com o sucesso ao longo da carreira, no respeitante ao sucesso objectivo, os profissionais com aconselhamento relevam altos índices de produtividade no início e no fim da carreira, sendo assim positiva a intervenção nessas fases, já no estádio intermédio da carreira, não é tão evidente. Relativamente ao sucesso subjectivo, os colaboradores com tutores apresentam sentimentos de sucesso ao longo de toda a carreira (Peluchette e Jeanquart, 2000). Afirmar às pessoas que são os responsáveis pelas sua carreira, pode ser mais fácil de dizer do que de fazer. As pessoas precisam de suporte, e nem sempre têm o conhecimento e a força mental para se dirigirem sem aconselhamento e orientação. É aqui que entra o aconselhamento de carreira, que pode ajudar as pessoas a identificar a sua vocação e percurso, assim como o contexto em que a pessoa está mais preparada para prosperar. O aconselhamento é um canal de comunicação de dois sentidos com o empregado e pode ocorrer de duas formas. A primeira é através do seu supervisor directo, ou de um elemento hierarquicamente superior que conheça as atitudes, comportamentos e aptidões do colaborador, a segunda é pelo responsável pela Gestão dos Recursos Humanos. Dependente da complexidade da organização e dos seus recursos financeiros, o aconselhamento externo pode ser uma opção (Baruch, 2004a). Nas organizações onde os colaboradores são orientados para alcançarem objectivos ambiciosos, atingem mais facilmente esses propósitos do que aqueles que têm tutores que não compartilham um elevado nível de ambição. Esses princípios potenciam os factores de motivação, a interligação entre o orientado e o orientador e o sucesso na carreira (Godshalk e Sosik, 2003), devendo existir um reconhecimento da alargada matriz dos pontos referenciais que se podem adoptar para avaliar as carreiras, por recurso a um elevado grau de controlo das experiências relacionadas com a falha e com o sucesso (Heslin, 2003). O aconselhamento de carreira pode acontecer, de forma mais comum, através de quatro métodos: aconselhamento individual; aconselhamento de grupo; orientação de grupo; em interactividade através de ferramentas informáticas e através de páginas electrónicas via internet. O primeiro é o mais dispendioso, mas é igualmente o mais utilizado, estando implantado na tradição de potenciação de apetências. O contexto destas entrevistas inclui tópicos como auto-conceito, interesses, valências, valores, regras de vida e objectivos. O aconselhamento de grupo está, normalmente, mais limitado às questões da carreira. A orientação de grupo está mais interligada ao encontrar de uma vocação de carreira. As ferramentas informáticas e o recurso à internet, pressupõe uma utilização individual, sendo efectivos quando é efectuado um registo das interacções e das expectativas do colaborador ou se torna necessário um 96 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 apoio profissional à distância. No futuro deve-se ter em conta a realidade tecnológica existente, conhecendo que colaboradores podem ser aconselhados desta forma, que tópicos podem ser endereçados e que eficiência tem este método (Bowlsbey, 2003). Para Eby (1997) o aconselhamento será uma valiosa fonte de informação para os indivíduos sobre as mudanças na natureza das carreiras (e.g. menor segurança no trabalho; necessidade de ser mais proactivo no desenvolvimento da sua carreira). Na posse desta informação, os colaboradores estarão mais aptos para participar e encontrarem o apoio necessário para o desenvolvimento da sua carreira. 2.4. O futuro O pandemónio que, presentemente, se vive nas carreiras, cria alguma confusão e frustração para muitas pessoas, mas pode ser gerador de um ímpeto de oportunidades para desenvolver sistemas de carreiras inovadores, que vão além dos do passado, motivando comportamentos estratégicos que correspondam às necessidades da maioria e não só de alguns (Brosseau, Driver e Eneroth, 1996). As organizações e os indivíduos desempenharão um papel relevante na gestão de carreira, devendo partilhar informação sobre oportunidades e possibilidades, contribuintes para o benefício comum (Baruch e Peiperl, 2000). As carreiras contemporâneas são bastante diferentes das carreiras tradicionais, mas nem tudo mudou. Os padrões desenvolveram-se, de sistemas de carreiras estáveis e lineares para sistemas transaccionais e dinâmicos. Todavia, a mudança nem sempre fez evoluir para melhor. Um sistema de carreiras deve estar balanceado entre o instrumentalismo do sucesso dos indivíduos e das organizações onde trabalham (Baruch, 2006). Contudo, há muito a ganhar se tivermos, sempre, presente a expansão do conceito de carreira para além dos modelos tradicionais (Sullivan, 1999). Devem-se projectar trajectórias nas quais os indivíduos progressivamente desenham e constroem as suas próprias vidas, incluindo a carreira (Savickas et al., 2009). Mas não podemos escamotear os efeitos directos e os de longo termo, que o actual estado da economia mundial tem sobre o desenvolvimento das carreiras dos indivíduos e concomitantemente nas suas vidas, podendo tornar a definição de progressão de carreira, ao longo de diversos estágios, um conceito obsoleto. Mas ao longo do século XXI, iremos manter a premência de carreiras estruturadas e evolutivas, porque as experiências, necessidades e situações dos indivíduos mudam com o tempo em correspondência como a sua idade. O que pode tornar apropriado ver a carreira como uma série de estágios ou fases únicos. É facilmente aceitável que as questões e expectativas de um indivíduo de 25 anos, em inicio de carreira, sejam 97 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa diferentes de um colaborador com 45 anos, a meio da sua carreira ou com 65 anos no fim da sua vida activa. Os indivíduos encaram ao longo da vida um conjunto de diversas e múltiplas situações, tarefas e factores de motivação. O entendimento desta evolução e associadas necessidades e implicações nos diferentes estágios da carreira pode contribuir para uma gestão mais efectiva da carreira pelo indivíduo, ajudando, igualmente, as organizações a gerirem e desenvolverem os seus recursos humanos (Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010). É impossível antecipar como irão evoluir as carreiras nos próximos anos. Os desafios, tais como os riscos sistémicos dos mercados financeiros globais, as mudanças na provisão dos serviços sociais e a delapidação dos recursos naturais, aumentam a vulnerabilidade das carreiras, que estão incorporadas nos modelos de produção económica estabelecidos. No entanto, emergem oportunidades para carreiras associadas à inovação social (incluindo a sustentabilidade no uso dos recursos). Estes desenvolvimentos podem tornar algumas áreas de especialização profissional obsoletas, mas criam possibilidades para novas valências e colaborações. Existem bastantes questões sobre a adaptabilidade individual e organizacional em resposta a estas transições (Tams e Arthur, 2010). Como disse Drucker (2005), se os bulldozers movem montanhas, as ideias mostram onde é que as máquinas devem actuar. O importante, são as mentes brilhantes. 2.5. A particularidade das carreiras militares – o caso da Marinha A definição, nacional, de carreira militar encontra-se no artigo 27.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), sendo definido como “o conjunto hierarquizado de postos, desenvolvida por categorias, que se concretiza em quadros especiais e a que corresponde o desempenho de cargos e o exercício de funções diferenciadas entre si”. A descrição do desenvolvimento da carreira militar encontra-se estatuído nos artigos 125.º e 126.º do EMFAR, orientando-se pelos seguintes princípios: primado da valorização militar; universalidade; profissionalismo; igualdade de oportunidades; equilíbrio; flexibilidade; mobilidade; credibilidade. Traduzindo-se, em cada categoria, na promoção dos militares aos diferentes postos, de acordo com as respectivas condições gerais e especiais, tendo em conta as qualificações, a antiguidade e o mérito revelados no desempenho profissional e as necessidades estruturais das Forças Armadas. Deve possibilitar uma permanência significativa e funcionalmente eficaz nos diferentes postos que a constituem. 98 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 No inerente aos direitos dos militares o EMFAR no seu artigo 25.º refere que “O militar tem, nomeadamente, direito: A ascender na carreira, atentos os condicionalismos previstos no presente Estatuto, e à progressão no posto, nos termos do respectivo estatuto remuneratório”. Temos assim, uma perspectiva de evolução horizontal e vertical que conforme Baruch (2004a) as pessoas têm que evidenciar o seu melhor para uma progressão na carreira. Na sociedade anteriormente vigente a promoção era um acto administrativo, hoje é uma recompensa de desempenho. Ao nível da Marinha, o documento estruturante da estratégia de topo, a Diretiva de Política Naval de 2011 (DPN), define como prioridade para a gestão: a valorização permanente dos recursos humanos, em especial ao nível da liderança, da formação académica dos quadros superiores e da qualificação e certificação técnico-profissional, promovendo um ensino de qualidade e reforçando a individualidade dos órgãos de base com essa missão, para dispor de quadros mais bem preparados, elevar os níveis de motivação e influenciando positivamente o recrutamento e a retenção; o envolvimento dos escalões intermédios de chefia nos processos de tomada de decisão utilização dos sistemas e das competências, para optimizar o emprego dos recursos humanos e das respectivas competências, numa lógica de desconcentração criteriosa dos processos, como factores contribuintes para uma carreira de sucesso numa instituição que conhece o valor dos seus membros e defende o seu desenvolvimento e reconhece a particularidade dos seus activos humanos. No inerente à política de gestão de pessoal, nomeadamente, no relativo à informação de carreira de todos os indivíduos, militares, militarizados e civis, que prestam serviço na Marinha, o Despacho do vice-almirante superintendente dos Serviços do Pessoal n.º 09/2006, de 19 de Abril, determina que tendo presente os princípios estatutários da carreira militar e os gerais da gestão do pessoal cria o Gabinete de Gestão de Carreiras, a que incumbe, particularmente, a promoção de sessões de atendimento e aconselhamento do pessoal no âmbito do desenvolvimento das respectivas carreiras. A acção deste Gabinete será proporcionar informação, com o objectivo de os elementos da Marinha obterem, em tempo oportuno, um melhor conhecimento acerca das respectivas carreiras, em termos de oportunidades prováveis de desenvolvimento. Estas indicações devem, em regra, ser prestadas uma vez em cada posto e/ou sempre que julgado conveniente. Os militares que prestam serviço na Marinha têm, ainda, a capacidade de aquando do processo inerente à sua Avaliação Individual, de acordo com o normativo constante na Portaria n.º 502/95 de 26 de Maio, de opinar sobre a forma como gostariam que fosse orientada a sua carreira, referindo a área funcional onde 99 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa gostariam de desempenhar funções, tais como: Estado-Maior; Gestão de Pessoal; Navios; Instrução; Autoridade Marítima; Manutenção/Reparação; Abastecimento/Logística. Na Directiva Sectorial de Recursos Humanos, que se assume como um documento estruturante da estratégia da organização, considera-se a evolução de um ambiente externo cada vez mais exigente e dos novos desafios emergentes nos planos internos e externos, com incidência nos Recursos Humanos (RH) e na sua gestão. Constituindo-se, esta diretiva, como um elemento central da definição do desenvolvimento e da concretização da política de RH da Marinha, referenciando-se que gestão dos RH, deve assumir-se como um referencial no domínio das Forças Armadas e no universo da Administração Pública, refletindo elevadíssimos níveis de comprometimento e satisfação, por parte dos militares e dos comandos, direcções e chefias das unidades e organismos aos quais aqueles estão alocados, definindo, ainda, que a GRH, na Marinha deve pautar-se por elevados padrões de qualidade e por uma melhoria contínua, na conciliação e consecução, permanentes, dos requisitos estratégicos da Instituição e das necessidades e dos objectivos individuais do seu pessoal. No contexto dos objetivos estratégicos sectoriais para a área funcional do pessoal é identificada como prioridade: “Proporcionar ao pessoal da Marinha carreiras equilibradas, atrativas e motivadoras. Tornando-se necessário desenvolver um trabalho que responda a esta questão de forma organizada e metódica. 3. MÉTODO E TÉCNICAS DE RECOLHA E ANÁLISE DE DADOS 3.1. Método O método a perseguir neste projecto é o estudo de caso, relevando-se nos seguintes pontos, de acordo com a definição de Yin (2003) o estudo de caso baseia-se nas características do fenómeno em estudo e num conjunto de características associadas ao processo de recolha de dados e às estratégias de análise dos mesmos. Foi neste conceito que baseamos o nosso estudo num princípio de parametrização da informação que nos diagnosticasse de forma precisa a situação que carecia de intervenção, para desenharmos, com os alicerces do quadro teórico de referência evidenciado um projecto de intervenção capaz de debelar a necessidade patenteada. 3.2. População/Amostra Para realização do presente estudo, e considerando a população de todos os indivíduos que prestam serviço na Marinha (cerca de 12500), tomou-se como amostra 100 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 o conjunto restrito de oficiais com o posto de primeiro-tenente (1TEN); capitão-tenente (CTEN) e capitão-de-fragata (CFR), cuja carreira média expressa-se em cerca de dezoito anos no conjunto dos três postos, com diversas progressões horizontais e promoções verticais, sendo desse modo representativo da carreira organizacional em estudo e cujas conclusões obtidas podem ser transportadas para outros postos e categorias. A amostra, em causa, foi constituída por 746 elementos, distribuídos por 279 1TEN, 254 CTEN e 213 CFR. De acordo com as tabelas de Arkin e Colton (“Tables for Statisticians”), para esta população finita (abaixo de 15000), assumindo uma margem de erro de 5% e um intervalo de confiança de 95,5%, a amostra requerida fixa-se em 390, pelo que a de 746 indivíduos é adequada para o objectivo em causa. Obtiveram-se 501 respostas (193 1TEN; 183 CTEN; 116 CFR; 9 NR), representando 67,16% do universo. Dos respondentes, 21 elementos são do género feminino e 448 do género masculino (32 NR). Encontram-se, igualmente, representadas todas as classes de oficiais existentes na amostra. Relativamente ao tempo de permanência nos quadros da Marinha, estamos perante indivíduos entre os dez anos e os quarenta anos de serviço, com idades entre os 28 e os 61 anos, com uma média de 40,06 anos (s.d. 6,628). As habilitações literárias evidenciadas encontram-se num espectro abrangente do ensino básico (1) ao mestrado (25), com maior frequência ao nível da licenciatura (347). A amostra advém de diversas áreas funcionais da Marinha2, com maior incidência nas áreas do Material (78), Pessoal (99) e Operacional (139). 3.3. Técnica de recolha de dados 3.3.1. Questionário A base para o diagnóstico da situação vigente na Marinha ao nível da dimensão da Gestão e Desenvolvimento de Carreiras, assenta num estudo efectuado aos militares que prestavam serviço na organização e decorreu nos anos de 2008/2009, por aplicação de um questionário de satisfação, desenvolvido no âmbito do projecto de Certificação do Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha de acordo com a Norma Portuguesa (NP) 4427:20043, que estabelece na sua cláusula 2 Autoridade Marítima (47); Cultura (6); Estado-Maior (45); Financeira (28); Formação (1); Instituto Hidrográfico (1); Material (78); Operacional (139); Pessoal (99); Tecnologias da Informação (38); Fora da matriz interna da Marinha (1); NR (18). 3 O Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha (SGRHM), encontra-se certificado pela APCER (Associação Portuguesa de Certificação) desde 31 de Agosto de 2009. 101 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa normativa 8.1.2 - Satisfação interna, que “A organização deve medir, periodicamente, o nível de satisfação interna, estabelecendo a metodologia e os instrumentos adequados”. Para esse fim foi elaborado um questionário, que medisse a satisfação interna em várias dimensões, a partir da definição de satisfação de Locke (1976: 1304) “um estado emocional positivo ou de prazer, resultante da avaliação do trabalho ou das experiências proporcionadas pelo trabalho”. Podendo as facetas da satisfação serem agrupadas de forma lógica, proporcionando uma compreensão das suas causas e natureza, permitindo entender como e porquê certos eventos/agentes assumem um carácter positivo ou negativo. As questões foram elaboradas de forma que fossem claras e percebidas correctamente pela população a inquirir e fossem ao encontro do que se pretendia averiguar, tendo sido construída uma versão preliminar do Questionário. Esta versão preliminar foi pré-testada, visando verificar as seguintes proposições: todas as questões são compreendidas da mesma forma pelos inquiridos? As listas de respostas abrangem todas as respostas possíveis? Há alguma questão que origina recusa na resposta? A ordem das questões é aceitável? Qual a reacção dos inquiridos relativamente à extensão do questionário e nível de dificuldade? Qual a duração do tempo de resposta ao questionário? Da análise das sugestões apresentadas foi elaborada a versão definitiva. O questionário apresenta dez dimensões de observação, sendo que para o presente projecto centramo-nos na correspondente ao desenvolvimento de carreira que se consubstancia nos seguintes cinco itens: I 1. As oportunidades para progressão na carreira; I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira; I 3. As possibilidades que tem de intervir na progressão de carreira; I 4. A forma como tem progredido na carreira; I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira. Foi utilizada uma escala de Likert de quatro níveis (Nada Satisfeito; Pouco Satisfeito; Satisfeito; Muito Satisfeito), existindo, ainda, a possibilidade de resposta de não aplicável. Em cada dimensão foi, ainda, solicitado aos respondentes que indicassem algumas sugestões para que a Marinha pudesse melhorar a satisfação nesta área. 3.3.2. Entrevista à Gestão de Topo De forma a aferir a aceitação da gestão de topo para acomodar a intervenção que se preconizava, e cumulativamente recolher uma opinião, sobre esta matéria, 102 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 abalizada pela experiência de algumas dezenas de anos de Marinha, em diversos cargos de relevo, em unidades em terra e navios no mar, solicitou-se uma entrevista situacional ao vice-almirante António José Bonifácio Lopes que desempenha, actualmente, o cargo de superintendente dos Serviços do Pessoal, responsável máximo pela esta área funcional na organização. 3.3.3. Análise Documental Para um conhecimento mais adequado do normativo enquadrante deste processo, na Marinha, procedeu-se a uma análise de todos os documentos estruturantes desta matéria. 3.4. Técnica de tratamento de dados Para o tratamento dos dados obtidos, no âmbito das questões fechadas procedeu-se a uma análise estatística descritiva com recurso à ferramenta informática SPSS4, para determinação das médias e desvio padrão dos itens em questão, e índices de satisfação evidenciados. Na decorrência do solicitado na questão aberta do questionário de satisfação interna, no inerente aos itens relativos à Gestão e Desenvolvimento de carreira, no sentido da melhoria contínua do sistema em concordância com as melhores práticas. No inerente à entrevista à Gestão de Topo, procedeu-se a uma análise de conteúdo, que permitiu enquadrar os aspectos mais relevantes que poderão ser objecto de uma estratégia de intervenção que os diminua ou elimine. Nesse sentido, procedeu-se de acordo com o método de inferições sequenciais expresso por Bardin (2008), tendo-se agrupado os contributos obtidos por parâmetros correlacionáveis com os itens associados às questões fechadas, modelando-se numa desconstrução da unidade de análise inicial (frase) para um indicador de tema (expressão ou palavra) que permitisse, por discriminação quantitativa, aferir áreas de intervenção preferencial. 4 Statistical Package for the Social Sciences 103 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa 4. 4.1. RESULTADOS Questionário – Questões fechadas Os resultados apurados no questionário são os abaixo explanados (Tabela 1), relevando-se que numa escala de quatro níveis, se consideram positivos os valores superiores a 2,5 de média, que correspondem a 50% de satisfação absoluta: Tabela 1 - Resultados da dimensão satisfação com as promoções/carreira Item Média Desvio Padrão I 1. As oportunidades que lhe são oferecidas para progressão na carreira 2,43 0,80 I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira 2,60 0,71 I 3. As possibilidades que tem para intervir na progressão na carreira 2,09 0,75 I 4. A forma como tem progredido na carreira 2,72 0,82 I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira 2,39 0,86 No entanto, importa referir, que foi considerado, superiormente, avaliar como valor mínimo aceitável um índice de satisfação - IS = (n.º de satisfeitos + n.º de muito satisfeitos) / n.º de respondentes), adequado aos objetivos estratégicos da organização, aquele que se apresentasse igual ou superior a 70%. Este nível de ambição, que desloca a distribuição normal para a direita, intenta que a maioria dos elementos se encontre numa faixa de satisfação superior. Tabela 2 - Índice de Satisfação da Dimensão Satisfação com as promoções/carreira (em %) Itens IS I 1. As oportunidades que lhe são oferecidas para progressão na carreira 50,6 I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira 62,4 I 3. As possibilidades que tem para intervir na progressão na carreira 29,6 I 4. A forma como tem progredido na carreira 67,5 I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira 49,2 104 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Pela análise dos dados obtidos e presentes na Tabela 2, não se verificam índices de satisfação superiores a 70% em relação aos itens analisados. Pelo que todos são identificados como críticos e com potencial de análise e intervenção. Os itens com mais baixo nível de satisfação - o item I 3., inerente à satisfação para com “as possibilidades que tem para intervir na progressão na carreira” (29,6%), deverá ser alvo de uma, mais aturada, análise. Não se podendo, ainda, descurar como factores de análise, nesta dimensão, o Item I 1. e I 5., que apresentam resultados inferiores a 60%. Neste articulado, afere-se a necessidade de elaborar um projecto que eleve o índice de satisfação nesta dimensão, o qual deverá incidir na possibilidade de as pessoas intervirem de forma mais dilatada na sua progressão de carreira, utilizando o mérito como factor de diferenciação e criando oportunidades de carreira multidisciplinares e preditoras de sucesso, evidenciando-se que os indivíduos com posto mais elevado na hierarquia (CFR) apresentam maiores índices de satisfação, com excepção do I 4. – A forma como tem progredido na carreira. 4.2. Questionário – Questão Aberta Da análise de conteúdo efectuada à questão aberta de sugestões para elevar o nível de satisfação nesta dimensão, releva-se, em correlação com o parâmetro aferido em cada item das questões I. 1 a I. 5, o seguinte (Tabela 3): Tabela 3 - Análise de Conteúdo às Questões Abertas Parâmetro Indicador (expressão ou palavra) Oportunidades para Promoção/Progressão Não atendimento de pretensão de diversificar a carreira; Comandos no mar, quem necessita de horas de navegação; Diferença de carreiras; Nivelar condições de progressão; Classe, factor impeditivo; Carreiras planeadas no médio/longo prazo; Requisitos não claramente identificados; Divulgação dos critérios usados, e do peso relativo; Divulgar as possibilidades de carreira; Definir "Carreira”; Regras transparentes, objectivas; Comandos no mar a quem necessita de horas de navegação; Homogeneizar os quadros; Equilibrar os diversos quadros; Estabilidade de regras; Quadros alterados; Aumentar o tempo de permanência nos postos, subindo os vencimentos e incrementando a diferenciação para o mesmo posto; Requisitos e exigências 105 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa Parâmetro Indicador (expressão ou palavra) Possibilidade de intervir Intervenção na carreira casuística e fruto da oportunidade; Carreiras discutidas com cada um; Envolvidos os elementos; Escolhas passar pelo próprio; O próprio tem de ter capacidade de intervir; Promoção/Progressão na carreira Uniformizar o acesso a cargos por nomeação, escolha; Não à simples antiguidade na carreira. Promoções por escolha todos os postos; Progressão não por antiguidade; Promoção para a função; Promoções nos períodos de tempo previstos; Classe, factor impeditivo de progressão na carreira; Minimizar a discrepância promoções diferentes classes; Clarificação das regras; Atraso na progressão das carreiras; Progressão na carreira mais célere; Aumentar o tempo de permanência nos postos, subindo os vencimentos e incrementando a diferenciação para o mesmo posto; Normalização nas promoções das classes; A classificação da EN, não deveria perdurar para toda a vida; Concorre a um lugar do posto acima; Mérito demonstrado Valorização do mérito relativo; Mais importância ao desempenho de mérito; Maior peso ao mérito relativo; Mais aptos e capazes, acelerada a sua progressão; Progressão por mérito; Mérito sobrepor; Mérito relativo não é usado; Promover o mérito relativo; O não mérito não é usualmente reprovado; Considerando o desempenho individual dos militares; Podemos, assim, apreciar um conjunto de factores contribuintes para o projecto de intervenção, no sentido de incrementar o Índice de Satisfação nesta dimensão. O modelo a estruturar deverá evidenciar as acções necessárias para responder às questões levantadas. 4.3. Entrevista à Gestão de Topo Da entrevista realizada à gestão de topo da Marinha, na pessoa do superintendente dos Serviços do Pessoal, vice-almirante António José Bonifácio Lopes, que consistiu num conjunto de 16 questões, podemos evidenciar alguns factores que cimentam o diagnóstico preconizado pelos restantes instrumentos de recolha de dados, assim como um levantamento indicadores de acção passíveis de 106 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 implementação e suportados pelo vértice estratégico da organização, cujas grandes áreas evidenciadas se consubstanciam no quadro seguinte (Tabela 4): Tabela 4 - Análise de Conteúdo à Entrevista à Gestão de Topo Parâmetro Indicador de acção Oportunidades para Promoção/Progressão Incrementar o processo de comunicação sobre as oportunidades de carreira, informando o individuo sobre as suas possibilidades, num contexto de caracterização e posicionamento na sua categoria e classe; Potenciar a identidade organizacional, num princípio de envolvimento individual. Requisitos e exigências Desenvolver processos de comunicação, nomeadamente, no referente ao planeamento perspectivado; Alicerçar as melhores práticas de forma transparente e cooperativa; Elaborar um estudo que permita avaliar a ampliação do actualmente implementado. Possibilidade de intervir Estruturar um sistema de Aconselhamento e Acompanhamento que permita uma orientação sistémica dos indivíduos, através da criação de um Órgão de Acompanhamento e Aconselhamento de Carreira (OAAC); Instituir a figura do tutor de carreira; Incrementar as acções de participação das pessoas, no processo de carreira. Parametrizar uma ferramenta informática para interacção pessoa/organização; Desenvolver estratégias de conciliação entre os interesses pessoais e organizacionais, de forma a permitir pontos de avaliação e, eventual, saída da organização. Promoção/Progressão na carreira Estruturar carreiras diversificadas que permitam uma superior empregabilidade, ao nível interno e externo; Divulgar o exemplo como factor de motivação conjunta. Mérito demonstrado Avaliar as actuais regras de promoção e progressão, centradas na meritocracia. Perspectivar canais de promoção, progressão e desenvolvimento de carreira que permitam valorizar o mérito. Desta forma, aprecia-se um conjunto de acções que poderão ser implementadas na organização em convergência com a questão base de implementação de um modelo sistémico de gestão e desenvolvimento de carreiras sustentadas e motivantes que permita um envolvimento de todos os meios humanos e pondere uma definição de objectivos comuns e tendentes para um rumo único de todos os intervenientes nesta acção. A convergência de interesses será o fator chave, para um aumento do índice de satisfação percebido de modo a atingir valores consentâneos com o nível de ambição desejado pela organização. 107 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa 5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Tendo-se concluído o levantamento dos dados definidores do diagnóstico organizacional vigente, através dos índices de satisfação evidenciados, assim como as hipóteses de intervenção patenteadas por recurso à questão aberta de sugestões, para potenciação do índice de satisfação, torna-se necessário sistematizar um plano de intervenção, consistente e enlevado de níveis de eficiência e eficácia, que permita desenvolver as acções de intervenção de forma substantiva e contribuintes para o propósito traçado, com base numa análise sistematizada e progressiva do evidenciado. Este processo encontra-se devidamente sustentado pelo vértice estratégico da organização, conforme verificado através da Entrevista à Gestão de Topo, de onde se infere um conjunto de acções passíveis de serem promovidas no sentido do objectivo macro de obtenção de elevados padrões de satisfação, transversais a todas as categorias dos militares da Marinha. 5.1. Áreas/Acções de Intervenção Da análise de conteúdo, efectuada à questão aberta, das sugestões para elevar o nível de satisfação nesta dimensão, releva-se abaixo exposto em interligação com cada item das questões I. 1 a I. 5, permitindo um levantamento das hipotéticas áreas de intervenção para inclusão no plano de implementação, que habilite como referiram Greenhaus, Callanan e Godshalk (2010) uma gestão da carreira com um conjunto de acções que passam por diversos estádios e que facilitam observar a complexidade dos actos que concorrem para a carreira individual Podemos, assim, considerar um conjunto de factores que deverão ser alvo do projecto de intervenção, com o objectivo de incrementar o Índice de Satisfação nesta dimensão. Num significado de desenvolvimento profissional e numa mobilidade interna que proporcione uma ascensão hierárquica na organização (Hall, 2002). O modelo de projecto de intervenção a delinear deve estruturar-se a partir das acções evidenciadas que permitam responder, de forma consistente, às questões levantadas. Esta tendência para a gestão de carreiras individualizada decorre em vantagens para as organizações e para os sujeitos (Baruch, 2004b). Da análise efectuada à entrevista à gestão de topo, infere-se um conjunto de Acções de Intervenção, no âmbito do universo definido como Áreas, passíveis, de Intervenção, susceptíveis de sustentação e patrocínio de implementação pelo vértice estratégico da organização. Na forma de as organizações ajudarem os seus 108 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 colaboradores a terem sucesso na carreira, é crucial considerar os seus desejos e planos (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006). Nesta sequência, parametrizamos, através da evolução do diagnóstico efectuado, um conjunto analítico e evolutivo com origem nos aspectos críticos identificados, áreas de intervenção modeladas pelos respondentes ao Inquérito de Satisfação e decorrentes acções derivantes para o desiderato em causa, em convergência com a vontade estratégica da organização, vertida nos documentos estruturantes da política de Recursos Humanos e demonstrada na entrevista à gestão de topo. Esta estrutura, de resposta, consubstancia-se no arrolado na Tabela 5: Tabela 5 – Ações de Intervenção Objetivando-se, nesta configuração, um aumento dos índices de satisfação evidenciados, por recurso a um conjunto de acções que se consideram adequadas, aceitáveis e exequíveis, para alcançar o nível de ambição patenteado para esta área. Considerando que o entendimento da evolução e associadas necessidades e implicações nos diferentes estágios da carreira pode contribuir para uma gestão mais efectiva da carreira pelo indivíduo, ajudando, igualmente, as organizações a gerirem e desenvolverem os seus meios humanos (Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010). 109 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa Nestes termos e em conjunção com a estratégia organizacional observado, permitirá desenvolver um plano de intervenção consonante e delineador de acções que prossigam o objectivo traçado. 6. 6.1. FORMA DE IMPLEMENTAÇÃO Acções de Intervenção Concluído o diagnóstico organizacional da matéria identificada e tendente processo de sustentação por parte da gestão para o desenho de um mecanismo sistémico que permita abranger na maior extensão exequível as questões identificadas nesta dimensão da satisfação com as promoções e carreiras. Desta forma, torna-se necessário projectar um conjunto de acções que permitam contribuir para os objectivos organizacionais nesta matéria, conforme nos propusemos efectuar com a feitura deste projecto no sentido de incrementar o índice de satisfação colectivo nesta dimensão, patrocinando modernas práticas de Gestão de Recursos Humanos tendo como linha de rumo as melhores práticas identificadas na teoria como sendo as potenciadoras da satisfação e criadoras de motivos para que todos os elementos que prestam serviço na instituição aumentem o seu compromisso organizacional e se sintam envolvidos como parte de uma engrenagem em que todos são peças basilares para um desenvolvimento sustentado e coerente na senda da eficácia organizacional, sem descurar a optimização e a necessária, cada vez mais, economia de meios num produto operacional constante. O perspectivado tende a cobrir todos os parâmetros teóricos identificados – Possibilidade de Intervir; Mérito Demonstrado; Oportunidades para Promoção/Progressão; requisitos e exigências; Promoção/Progressão na carreira, sem descurar o nível crítico de índice de satisfação evidenciado. Foram, igualmente, tidas em conta as áreas de intervenção identificadas nas sugestões analisadas, assim como as acções de intervenção sustentadas pela gestão de topo, sem envolvimento da gestão num processo de mudança organizacional como este, o sucesso estará sempre pendente. Neste contexto, assume-se que o ora perspectivado poderá criar novas condições e oportunidades, num envolvimento de todos os elementos, concebendo capacidades de intervenção e comunicação que possibilitem uma conciliação de interesses a todos os níveis e nos diversos patamares de decisão, num processo de apoio à gestão enleante e motivante, onde todos tenham o seu papel. 110 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 6.1.1. Órgão de Aconselhamento e Acompanhamento de Carreira Numa sociedade concorrencial em que as instituições dependem dos seus colaboradores numa simbiose de conciliação de interesses, a prática de Gestão de Pessoas elevadas nas organizações onde, como se verificou na análise teórica, afirmar às pessoas que são os responsáveis pelas sua carreira, pode ser mais fácil de dizer do que de fazer. As pessoas precisam de suporte, e nem sempre têm o conhecimento e a força mental para se dirigirem sem aconselhamento e orientação (Baruch, 2004a). Nessa envolvente e no sentido de alavancar os objectivos estratégicos delineados num paradigma organizacional contemporâneo, preconiza-se como contribuinte para o sucesso cooperativo a existência de um órgão específico, de aconselhamento e acompanhamento de carreiras, que assegure os regimentos de acompanhamento e aconselhamento sistémico da carreira, em pressuposto de convergência dos interesses organizacionais, em soberania, e dos pessoais na maior dimensão possível. Sem descurar a necessária proactividade que deve ser incentivada a cada elemento como parte da sua gestão de carreira. Neste envolvente, potencia-se o parâmetro de participação das pessoas, que assim têm possibilidade de intervir directamente no processo, conhecendo a sua realidade, oportunidades, requisitos e exigências traçadas. 6.1.2. Tutoria de Carreira Conforme acima plasmado, o OAAC deve ser complementado, no âmbito das responsabilidades atribuídas, pela figura do Tutor de Carreira. Estes elementos deverão ser identificados num espectro restrito de militares que pelo seu exemplo, factor primordial neste processo, como evidenciou o superintendente dos Serviços do Pessoal na sua entrevista, atribuindo-lhe ponderação relevante no seu próprio sucesso, podendo proceder como factores de motivação conjunta, que possibilitem aos mais jovens um referencial de experiência e competência, promotor de dinâmicas de carreira. 6.1.3. Portal Intranet (www.marinha.pt/carreiras) A interacção institucional deve explorar todas as possibilidades existentes de modo a que as decisões organizacionais assentem em informação precisa, actual e correspondente, na maior sobreposição possível com o interesse evidenciado pelas pessoas. A Marinha possui, há alguns anos, uma plataforma de comunicação interna que permite veicular um conjunto de informação de forma célere e eficaz, assumindo como público-alvo todos os elementos da organização – a Intranet. Esta ferramenta 111 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa tem a capacidade de, igualmente, servir para recolher informação dos militares, militarizados e civis que prestam serviço na Marinha, no sentido do individual para o organizacional. No contexto do actual plano, preconiza-se a criação e implementação de uma ferramenta informática, na plataforma tecnológica da Intranet, avalizando uma eficaz interacção entre as pessoas e a organização, de acordo com os adequados requisitos de segurança da informação e baseado num princípio de confiança e probidade de processos. Não descurando uma definição de conteúdos ajustada ao fim em causa e em processo de fácil acção do utilizador. As ferramentas informáticas e o recurso à internet pressupõem uma utilização individual, sendo efectivos quando se realiza qual o conjunto de tópicos que podem ser endereçados e que eficiência tem este método (Bowlsbey, 2003). 6.1.4. Programa “PARTICIPE” Neste contexto, não é suficiente edificar mecanismos que possibilitem uma interacção entre os actores deste processo. É determinante desenvolver instrumentos de mobilização colectiva que possibilitem afectar graus de sucesso, contribuintes para uma dinâmica constante que rentabilize o investimento da organização. Nesse âmbito, estruturou-se uma campanha promocional para potenciação da participação das pessoas na actividade organizacional, nomeadamente, nesta fase, na aderência e sensibilização para a exploração das capacidades disponibilizadas na página electrónica das carreiras (www.marinha.pt/carreiras), a qual assenta numa visão inspiradora de envolvimento de todos os elementos, que se apelidou de programa “PARTICIPE”. 6.1.5. Regras de promoção e progressão / selectividade e mérito Conforme aferido no questionário de satisfação interna um dos itens com menor índice de satisfação é o associado à questão da utilização do mérito relativo na progressão de carreira (49,2%). Igualmente, nas respostas recolhidas pela questão aberta de observa uma grande preocupação com a valorização do mérito nos processos de promoção. Aquando da entrevista à gestão de topo, o superintendente dos Serviços do Pessoal foi peremptório em sublinhar a carência perspectivar canais de promoção, progressão e desenvolvimento de carreira, sendo premente revisitar as actuais regras de promoção, designadamente em alguns dos postos intermédios, onde a promoção não ocorre por escolha, assim como as inerentes à colocação, nomeadamente, nos cargos de referência para a organização. 112 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Neste envolvimento, torna-se necessário criar um Grupo de Trabalho, que revisite a estrutura mestra deste parâmetro (promoção e progressão), ponderando uma apreciação que suceda numa proposta de alteração do vigente, em consonância com os factores de sucesso pessoal e organizacional, atentos os seguintes preceitos: 6.1.6. Interligação de sistemas Para um apoio à decisão, de cada elemento da organização, informado e avisado torna-se fundamental que a informação esteja disponível a todos os níveis e contribua para uma eficaz análise e assuma princípios de qualidade e transparência considerando que, pessoas permanecem mais tempo nas firmas que apresentam boa reputação, num princípio de identidade interna (Chun, 2005). Os sistemas de informação arrogam na sociedade actual um papel preponderante no exercício das organizações, assumindo-se como uma base de trabalho contínua para o desenrolar da acção produzida. Noutro ângulo, a actual difusão de sistemas, de forma desgarrada, não habilitará a um consenso harmónico no obtido, podendo enviesar a análise e ulterior decisão. Neste enquadramento, considera-se fundamental que a organização explore os seus sistemas num molde de interligação e consonância que potencie a firmeza no modelo, perspective a confiança e apresente a celeridade adequada, sem descurar como envolvente de fundo a indispensável característica de fiabilidade. Por outro lado, as ferramentas tecnológicas devem ter presente uma indispensável facilidade de operação, baseada no nível inferior dos utilizadores finais. Presente o que precede, intentou-se como uma das acções de implementação, neste campo de actuação, a interligação do existentes no âmbito do Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha, preferencialmente, em plataforma única de exploração directa e numa uniformização de processos e procedimentos. De referir que, este objectivo encontra-se identificado, no âmbito do Ministério Defesa Nacional, através do projecto do Sistema de Informação de Gestão (SIG-DN), que inclui uma parte dedicada aos Recursos Humanos – Carreiras. 7. CONCLUSÕES A questão de gestão e desenvolvimento de carreiras nas Forças Armadas é algo que, desde que existem corpos militares, com carácter regular, tem sido encarado como um desígnio enquadrante da promoção e progressão na sociedade castrense. No entanto, na sociedade contemporânea onde a prestação do serviço militar deixou de ser obrigatório, sendo agora o mercado de trabalho o universo de aquisição 113 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa de elementos para as fileiras, fez com que esta matéria assumisse uma vertente central no desenvolvimento da organização e na sua sustentação ao nível das características e capacidades inerentes às pessoas como parte de um corpo organizacional autoproduzido e auto-sustentado, onde o elemento humano é o factor diferenciador da acção produzida, num ambiente em constante alteração e evolução. Neste enquadramento, a Marinha identificou como premente uma intervenção construtiva, que habilitasse a concepção e implementação de um sistema generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos recursos humanos, em consonância com o aconselhamento de percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira. O evidenciado permitiu referenciar uma organização baseada e estruturada com base num normativo/legislação com alguma rigidez, mas com aptidão e vontade, conforme demonstrado nos diversos documentos estruturantes e na entrevista à gestão de topo, de acolher e patrocinar novos processos e modelos que provejam assolar o problema em causa. Há espaço e empenho para uma intervenção de adaptação à sociedade. Nesta decorrência, reconheceu-se que o paradigma de carreira mudou, na actual sociedade do conhecimento, as pessoas são parte activa do processo, num princípio de auto-satisfação e motivação, onde os valores de envolvimento entre o indivíduo e a organização mudaram e evoluíram para um compromisso biunívoco de comprometimento e acompanhamento mútuo. As pessoas necessitam das organizações para se realizarem e as organizações carecem dos indivíduos para desenvolverem valor e alcançarem objectivos estratégicos sustentados. A análise da realidade institucional revelou-nos que existem índices de satisfação bastante positivos, mas com valores abaixo do nível de ambição ambicionado, o que levou à necessidade de esquematizar um plano de intervenção, alicerçado nos princípios teóricos patenteados e que correspondesse ao pretendido, sem colapsar, mas em harmonia com a cultura e liderança organizacional identificadas. Sabendo-se que só com o envolvimento do vértice estratégico pode ser edificado um plano com capacidade, efectiva, de implementação, estando essa ideia, sempre, presente na proposta elencada. Se o nível de pretensão organizacional é elevado, o plano de implementação têm que ser ambicioso de modo a alcançar os objectivos delineados, de forma evolutiva e consonante com as sugestões enlevadas. No presente estudo tomou-se esta questão como central e determinante, num futuro participado e cooperativo, potenciado em elevados índices de satisfação e compromisso organizacional. 114 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Neste domínio, elaborou-se um plano de implementação, que derivasse do evidenciado na recolha de dados efectuada. As hipóteses de intervenção estruturadas derivaram do apresentado na questão fechada de sugestões para melhorar o índice de satisfação numa plataforma de acção convergente e demonstrada, obtendo-se desta forma uma conjectura de trajecto. Através da entrevista à gestão de topo, cimentou-se o anteriormente obtido e identificaram-se as acções de intervenção passíveis de sustentação e adopção pela organização. Este exercício levou-nos a um conjunto de seis acções de intervenção base, contribuintes para os aspectos subsequentes à meta considerada: uma acepção da transparência e compreensão das regras e requisitos; elevar as oportunidades, incrementar a possibilidade de intervir, acentuar o mérito como base selectiva da promoção e progressão esperada, numa dimensão de acompanhamento e aconselhamento autêntico e perspicaz, onde o exemplo seja tomado como padrão e a participação, individual e grupal, seja o princípio geral orientador, numa plataforma de interligação de sistemas e práticas e incremento da comunicação organizacional ascendente e descendente. O planeado segue o estruturado nas melhores práticas referidas na sociedade civil e militar. Desta maneira espera-se contribuir para um incremento da qualidade do sistema e facilitar os propósitos de satisfação, comprometimento e motivação de todos os elementos. O delineado pressupôs, ainda, um conjunto de acções que permitissem compor um plano, onde o sujeito seja a pessoa e assuma o centro do acto, este plano tende a estar em consonância com o modelo Baruch e Peiperl (2000) que sobressaiu num conjunto de práticas de gestão de carreiras num modelo bidimensional, que correlaciona a sofisticação das mesmas com o envolvimento dos indivíduos. Numa conciliação de interesses individuais e organizacionais, onde o objecto trabalhofamília, não pode ser descurado, como não tem vindo a ser na Marinha, na maior extensão possível. A exploração das capacidades estruturais e tecnológicas existentes, por recurso, nomeadamente à plataforma intranet disponível, esteve sempre presente no arquitectar do plano. Espera-se que esta acção potencie o envolvimento da área funcional do pessoal com as diferentes direcções, comandos e chefias, num programa participado e cooperativo, centrado numa intervenção conjunta e destinado a todos, num intento de corpo unívoco, onde os diferentes órgãos só se vivenciam com a contribuição de todas as suas células - homens e mulheres. 115 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa Perspectivando-se que o ora idealizado seja acolhido pela organização como resposta ao problema identificado e concorra para um eminente nível de satisfação, onde a presença no local de trabalho seja um factor de agrado e envolvimento com a organização, numa perspectiva de carreira com intuitos e recompensas. Estando o processo desenvolvido de forma una, inevitavelmente, existirá uma forte relação entre as dimensões, que importa aferir e ponderar. A focalização apenas numa das dimensões poderá não coincidir com os resultados, eventualmente, evidenciados numa análise substantiva de todas as dimensões em presença. Em consonância, enlevar cada dimensão num estudo singular será benéfico para um conhecimento preciso da realidade existente e habilitar a parametrização de planos de intervenção que relevem cada dimensão e facultem uma evolução sustentada, caso se verifique a necessidade, a fim de alavancar os índices de satisfação para os ambicionados pela gestão superior da Marinha. Por outro prisma, uma das limitações evidenciadas, centra-se na escassez de hábitos de participação activa dos elementos que prestam serviço na Marinha, evidenciado no reduzido número de respostas à questão aberta de sugestões para uma melhoria na dimensão “carreiras”. Esta acepção decorrerá da imagem, que ainda perdura, de as Forças Armadas serem uma organização de princípios e hierarquia rígida e não convivente com a participação de todos os indivíduos em todos os níveis. Esta representação mental tem que ser debelada de modo a permitir um envolvimento de todos perante a organização e da organização para com todos. Algumas das acções de intervenção supracitadas, concorrerão para este objectivo, mas não se esgotam em si, é necessário ao longo de toda a estrutura organizacional continuar a erguer métodos e processos de participação cooperativa e trabalho colaborativo. Só nestes moldes poderão as organizações enfrentar um futuro incerto e de mutação constante. Esta matéria, do envolvimento das pessoas, poderá ser alvo de futuros projectos que permitam evidenciar programas e práticas potenciadores e determinantes de uma participação mais activa de todos em conceito de envolvimento estrutural e grupal. Releve-se, que a convicção interiorizada arroga que o ora apresentado contribuirá para um incremento dos índices de satisfação, com custos de investimento limitados. Por reorganização dos recursos existentes, num princípio de optimização e perspectivação de eficiência e eficácia, onde a economia resultante da edificação do plano, colmatará o investimento, sem necessidade de alocação de novos recursos subsidiários. 116 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Neste domínio, embora se possa afirmar que o facto dos custos, da operação, não se encontrarem contabilizados poderá ser objectivada como uma limitação do produzido, aquilata-se que esta opção poderá evidenciar o núcleo do perspectivado na extensão inerente às alterações prescritas para as práticas de gestão de recursos humanos, em detrimento dos custos financeiros daí decorrentes, sem perda de uma focalização precisa nos objectivos estratégicos a alcançar na organização. Uma organização optimizada, eficiente e eficaz, pressupõe elementos envolvidos e prontos para desempenharem a sua missão com sucesso e desejarem estar, sempre, presentes como actores de um desenvolvimento sustentado e participado. BIBLIOGRAFIA Arthur, M. B., D. T. Hall, e B. S. Lawrence (1989), Generating New Directions in Career Theory: The Case for a Transdisciplinary Approach, in M.B. Arthur, D.T. Hall e B.S. Lawrence (Ed.), Handbook of Career Theory, Cambridge: Cambridge University Press, 7–25. Arthur, M. B., S. N. Khapova, e C. P. M. Wilderom (2005), Career success in a boundaryless career world, Journal of Organizational Behavior 26, 177-202. Bardin, L. (2008), Análise de Conteúdo, Lisboa, Edições 70. Baruch, Y. (2004a), Managing Career: Theory and Practice. Harlow: FT-Prentice Hall/Pearson. Baruch, Y. (2004b), Transforming Careers: from linear to multidirectional career paths. Organizational and individual perspectives, Career Development International 9 (1), 58-73. Baruch, Y. (2006), Career development in organizations and beyond: Balancing traditional and contemporary viewpoints, Human Management Review 16, 125138. Baruch, Y. e M. Peiperl (2000), Career Management Practices: an empirical survey and implications, Human Resource Management 39(4), 347-366. Brousseau, K. R., M. J. Driver, K. Eneroth e R. Larsson (1996), Careers Pandemonium: realigning organizations and individuals, Academy of Management Executive 10(1), 52-66. Brown, D. (2002), The role of work and cultural value in occupational choice, satisfaction, and success: a theoretical statement, Journal of Counseling and Development 80, 48-56. Chun, R (2005), Corporate Reputation: Meaning and Measurement, International Journal of Management Reviews 7 (2), 91-109. 117 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho, com as alterações e rectificações introduzidas até ao Decreto-Lei n.º 59/2009, de 04 de Março, (EMFAR - Estatutos dos Militares das Forças Armadas). DR I-A Série 146 (25-06-99) 3792-3843. Drucker, P. (2005), Managing Oneself, Harvard Business Review January, 100-109. Eby, L. T. (1997), Alternative Forms of Mentoring in Changing Organizational Environments: A Conceptual Extension of a Mentoring Literature, Journal of Vocational Behavior 51, 125-144. Godshalk, V. M. e J. Sosik (2003), Aiming for career success: The role of learning goal orientation in mentoring relationships, Journal of Vocational Behavior 63, 417437. Greenhaus, J. H. (2008), Innovations in the study of the work–family interface: Introduction to the Special Section, Journal of Occupational and Organizational Psychology 81, 343–348. Greenhaus, J. H., G. A. Callanan, e V. M. Godshalk (2010), Career Management. 4th Edition. SAGE Publications, Inc. Gunz, H. e M. Peiperl (2007), Handbook of Career Studies. SAGE Publications, Inc. Gunz, H. P. e P. A. Heslin (2005), Reconceptualizing career success, Journal of Organizational Behavior 26, 105–111. Hall, D. T. (1996), Protean Careers of the 21st Century, Academy of Management Executive 10(4), 8-16. Hall, D. T. (2002), Careers in and out organizations. Thousand Oaks, Ca: Sage. Hall, D. T. (2004), The protean career: A quarter-century journey, Journal of Vocational Behavior 65, 1-13. Harris-Bowlsbey, J. (2003), A Rich Past and a Future Vision, The Career Development Quarterly 52, 18-25. Heslin, P. A. (2003), Self- and other criteria of career success, Journal of Career Assessment 11, 262-286. Heslin, P. A. (2005), Conceptualizing and evaluating career success, Journal of Organizational Behavior 26, 113–136. Higgins, M. C. (2001), Changing careers: the effects of social context, Journal of Organizational Behavior 22, 595-618. King, Z. (2004), Career self-management: Its nature, causes and consequences, Journal of Vocational Behavior 65, 112-133. Kuijpers, M. A. C. T., B. Schyns, e J. Scheerens (2006), Career Competencies for Career Success, Career development Quarterly 55, 168-178. Law, B., F. Meijers e G. Wijers (2002), New perspectives on career and identity in contemporary world, British Journal of Guidance and Counselling 30, 431-449. 118 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Lei Orgânica n.º 1-A/2009 de 7 de Julho (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas). D. R. I Série, 129, Suplemento (07-07-09) 4344-(2) a 4344(9). Locke, E. A. (1976), The nature and causes of job satisfaction. In M. D. Dunette (Ed.), Handbook of industrial and organizational psychology. Chicago: RandMcNally, 1297-1349. Marinha (2006), Despacho do VALM Superintendente dos Serviços do Pessoal, nº 9/2006, 19 ABR - Politica de Gestão de Pessoal. Informação de Carreira do Pessoal Militar, Militarizado do QPMM e civis do QPCM. Marinha (2007), Despacho do Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada, n.º 16/07, de 9 de Abril – Nomeação e Colocação. Regras. Marinha (2009), Directiva Sectorial de Recursos Humanos. Marinha (2011), Directiva de Política Naval. Marinha (2011), Directiva Sectorial de Recursos Humanos. Martins, L. L., K. A. Eddleston e J. F. Veiga (2002), Moderators of the relationship between work-family conflict and career satisfaction, Academy of Management Journal 45(2), 399-409. Meyer, J. P. e N. J. Allen (1991), A Three-Component Conceptualization of Organizational Commitment, Human Resource Management Review, 1(1), 6189. Ministério da Defesa Nacional (2007), Grupo de Trabalho para a Reestruturação das carreiras dos Militares das Forças Armadas – Relatório Final, Lisboa. Mintzberg, H. (1993), Structure in fives. Design Effective Organizations, Englewood Cliffs, NJ, Prentice Hall. Moreira, P. S. (2006), Gestão de Pessoas em Portugal – tendências, qualificações e formação. Lisboa: IQF. Ng, T. W. H., L. T. Eby, K. L. Sorensen e D. C. Feldman (2005), Predictors of objective and subjective career success: a meta-analysis, Personnel Psychology 58, 367408. Oliveira, U. J. (2009), Institucionalização de um sistema de acompanhamento e aconselhamento permanente das carreiras militares, com previsão de pontos de aferição e eventual saída da organização, Lisboa, IESM, CPOG-TII. Página oficial da Marinha na internet (www.marinha.pt), acedida em diversas datas no período de Março a Junho de 2011. Peluchette, J. V. E. e S. Jeanquart (2000), Professionals´ Use of Different Mentor Sources at Various Career Stages: Implications for Career Success, The Journal of Social Psychology 140(5), 549-564. 119 Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa Portaria n.º 502/95, de 26 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 1380/2002, de 23 de Outubro, (RAM – Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares da Marinha). D. R. I Série-B 122 (26-05-95) 3331-3342. Savickas, M. L. (2002), Reinvigorating the Study of Careers, Journal of Vocational Behavior 61, 381-385. Savickas, M. L., L. Nota, J. Rossier, J. P. Dauwalder, M. E. Duarte, J. Guichard, S. Soresi, R. V. Esbroeck, A. E. M. V. Vianen (2009), Life Design: A paradigm for career construction in 21st century, Journal of Vocational Behavior 75, 239-250. Seibert, S. E. e M. L. Kraimer (2001), The five-factor model of personality and career success, Journal of Vocational Behavior 58, 1-21. Seibert, S. E., J. M. Crant e M. L. Kraimer (1999), Proactive personality and career success, Journal of Applied Psychology 84, 416-427. Seibert, S. E., M. L. Kraimer e J. M. Crant (2001), What proactive people do? A longitudinal model linking proactive personality and career success, Personnel Psychology 54(4), 845-874. Singh, R. e J. H. Greenhaus (2004), The relation between career decision-making strategies and person-job fit: A study of job changers, Journal of Vocational Behavior 64, 198-221. Sullivan, S. E. (1999), The changing nature of careers: A review and research agenda, Journal of Management 25, 457-484. Tams, S. e M. B. Arthur (2010), New directions for boundaryless careers: agency and interdependence in a changing world, Journal of Organizational Behavior 31, 629-646. Vos, A. D. e N. Soens (2008), Protean attitude and career success: The mediating role of self-management, Journal of Vocational Behavior 73, 449-456. Yin, R. (2003), Case Study Research: Design and Methods (3ª Ed), Thousand Oaks, CA: SAGE Publications. 120 Boletim de Sociologia Militar N.º3 – 2012 PP. 121 a 141 Porque os homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo Thiago Perez Bernardes de Moraes* RESUMO A violência é uma constante em todas as diversas sociedades, em maior ou menor medida. Entretanto, em todas elas, os homens apresentam maior comportamento agressivo do que as mulheres. Nesse sentido, há evidencias de que essa realidade tenha correlação com o passado evolutivo de nossa espécie. Assim esse trabalho atua com duas hipóteses explicativas para tal disparidade. Uma diz respeito à divisão sexual do trabalho e outra a seleção sexual, no que diz respeito ao ônus parental e a seletividade das fêmeas. Ambas parecem ter exercido pressões no sentido de compor tendências psicológicas agressivas. Palavras Chave – Violência masculina, antropologia evolucionaria, seleção natural, seleção sexual. ABSTRACT Violence is something that several societies carry among its cultures as a common characteristic, some in larger ways, and some in smaller measures. However, in all of them, men show a more aggressive behavior than women. In that way, there are evidences, that this reality has a correlation with the evolutionary past from our specie. So, this studies, acts with two explanatory hypotheses for this case. One concern to the labor sexual division; the other to the sexual selection in the parental charge and the selectivity of the females. Both seem to have exercised pressures in a way of composing psychological aggressive tendencies. Key-words: Male violence, evolutionary anthropology, natural selection, sexual selection. 1 – INTRODUÇÃO A violência na sociedade contemporânea é um dos mais graves problemas sociais, atingindo em maior ou menor medida todas as sociedades e todos os estratos sociais. Apesar de alguns autores apontarem para uma relativa diminuição da violência ao longo dos últimos séculos é inegável que a violência ainda espanta, não só pelo volume, mas também em muitos casos, pelos requintes de crueldade. Um dado interessante é que, ao que tudo indica, os homens estão muito mais inclinados, do que as mulheres, ao comportamento agressivo. Essa propensão é visível numericamente quando analisamos os dados demográficos dos cárceres do mundo todo. Segundo dados das Nações Unidas de 2002, dos 8.570.051 presos recentes, apenas 4,4% são mulheres enquanto uma esmagadora maioria de 95,6% são homens. Apesar da variação cultural, essa proporção desigual entre homens e mulheres em cárcere se reflete em todo mundo. Nesse sentido, as ciências sociais * O autor é cientista político, e doutorando em psicologia social pela Universidade Argentina John Kennedy. 121 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo não tem dado uma grande inteligibilidade para essas singularidades entre gênero e comportamento feminino. No limite, as ciências sociais tradicionalmente se aportam num determinismo cultural onde a estrutura social molda o comportamento dos diferentes indivíduos. Mas nesse caso as ciências sociais geralmente não explicam de onde surgem as estruturas sociais, e nem por que homens e mulheres recebem de maneira distinta tais influências estruturantes. Nesse sentido, esse artigo caminha no rumo de uma antropologia evolucionária, onde o comportamento dos diferentes sexos varia por conta das disposições psicológicas distintas, que foram construídas em resposta a problemas adaptativos distintos. Trabalhamos com duas hipóteses explicativas para elucidar a diferença entre os sexos, para a prática do comportamento violento. A primeira é de que a divisão sexual do trabalho, no passado evolutivo humano, gerou adaptações físicas e psicológicas distintas em homens e mulheres. A segunda hipótese diz respeito à seleção sexual, nesse caso, como o cuidado parental gera um ônus muito maior a mulher, do que ao homem, esta tende a ser sexualmente mais seletiva. Nesse caso, os homens desenvolveram estratégias para competir pelas mulheres, para indicar aptidão e também para afastar possíveis rivais. Esse artigo se divide em cinco partes. Na segunda parte desse trabalho, abordamos algumas deficiências das ciências sociais e introduzimos o debate sobre teoria evolucionária em antropologia. Na terceira parte realizamos uma breve abordagem teórica sobre comportamento agressivo. Na quarta parte discorremos sobre a disparidade entre homens e mulheres no que diz respeito o comportamento agressivo, e também trabalhamos com nossas hipóteses explicativas. Na última parte do trabalho fazemos algumas considerações finais. 2 - A LIMITAÇÃO DA ANTROPOLOGIA E DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Cultura é por tradição a basilar central da antropologia. Entretanto a antropologia tem adotado uma abordagem onde questões sobre a universalidade da cultura, ou por que elas apresentam uma grande variedade não se tornam inteligíveis, sobretudo no que diz respeito às causas proximais dos indivíduos. Os antropólogos (assim como a maior parte dos cientistas sociais, infelizmente), tem feito uso do determinismo infra estrutural, nesse sentido, o materialismo cultural tende a exagerar quanto o peso de variáveis como estrutura social, meio ambiente, condições ecológicas. É inegável que essas variáveis oferecem um bom ponto de partida, entretanto a antropologia tem feito deles um fim em si mesmo, a revelia de outras explicações, como a biológica. A antropologia pode nesse sentido, por exemplo, 122 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 explicar o porquê algumas pessoas em determinadas culturas comem carne e vaca, e em outra apenas de porco, entretanto, ela não consegue explicar o porquê a carne é consumida em praticamente todas as culturas (Kanazawa, 2006). Há três mitos filosóficos plantados nas cátedras de séculos atrás que ainda permeiam as ciências sociais, a psicologia, e outras ciências pautadas no estudo do comportamento humano, como a economia. O primeiro é o de Descartes, do fantasma na mente; o segundo é o plantado por Locke, o da távola rasa e o terceiro foi promulgado por Rousseau, o bom selvagem. O primeiro mito postula que no interior de cada individuo há uma entidade metafisica que direciona o sujeito para a capacidade de viver e interagir com o mundo. Dito de outra forma, a filosofia de Descartes propõe que dentro de cada cérebro, hás uma alma, e essa sempre é capaz de tomar decisões acertadas. Foge do escopo dessa discussão espraiar todas as arestas dessa discussão mas a neurobiologia, assim como a genética comportamental, a antropologia, a primatologia, e outras ciências cognitivas já postularam que o cérebro é um instrumento adaptado para resolução de problemas específicos e que sua estrutura guarda uma relação simbiótica com o nível comportamental (Pinker, 2004). O segundo mito, levantado por John Locke, entende que o homem é fruto de suas experiências. Ou seja, todo seu comportamento, gostos, vontades, enfim, todos os processos psicológicos que colocam todas as ações em curso são advindos das impressões posterizadas pelo ambiente. É indubitável o poder de influencia que o meio exerce sobre nós humanos, as diferenças culturais tendem ora a incentivar, ora a reprimir nossos gostos e anseios. Entretanto, a psicologia evolucionaria ancorada nas demais ciências cognitivas vêm postulando que o cérebro já tem em si um background, pois o mesmo é nada mais que a síntese de muitos cérebros que em escala evolutiva se adaptaram para melhor se adaptar frente a problemas seletivos (Pinker, 2004). O terceiro mito, foi promulgado por Rousseau, segundo ele todos os homens são bons por natureza, entretanto, é o meio sombrio e infértil quanto à bondade que degrada a essência humana. Ele propunha, em parte baseado na noção de távola rasa, que a criança no desenvolvimento de seus sentidos devia ser privada do contato social afim de não ter suas qualidades comportamentais degradadas. Novamente, podemos concordar que o meio tem efeitos expressáveis sobre o comportamento e a personalidade; entretanto, é duvidoso que o romântico bom selvagem da literatura de Rousseau realmente tenha existido. Como já mencionado, somos influenciados por uma serie de variáveis, boa parte delas são biológicas e ligadas aos problemas adaptativos. No modus operandi promovido pela ética evolucionaria a logica biológica criou padrões totalmente antagônicos aos promulgados conceitualmente na leitura do 123 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo bom selvagem. A violência aqui é um paradoxo interessante, pois comumente explicações advindas das ciências sociais colocam esta como um fruto do meio, uma degradação do bom selvagem. Isso por que os intelectuais tendem a ignorar os ditames evolucionistas. É indubitável que a violência seja um problema de ordem social, e representa um grande problema politico, mas não podemos esquecer que ela se manifesta e advêm de vias psicologias e biológicas. A violência, antes de ser somente um fruto da logica social, decorre de razoes evolutivas, onde no limite, ela foi útil no contexto evolutivo (Pinker, 2004). Todas essas noções, somadas as noções advindas dos preceitos religiosos, em maior ou menor medida permeiam toda a sociedade. Esses modelos teóricos levam a crer que o individuo não tem características inatas, propensões, e que todos os indivíduos tendem a serem iguais. Para além dessas afirmações, Steven Pinker realiza algumas postulações, com base no resultado de suas pesquisas, referente às bases biológicas do comportamento humano. A primeira é a de que todas as características comportamentais humanas são essencialmente hereditárias, em todas as circunstancias. A segunda lei se ancora na primeira, e diz que o fato de ser criado em uma mesma família tem uma influencia menor do que a advinda do efeito genético. A terceira lei é a de que uma parte significativa das variações comportamentais complexas entre humanos não pode ser entendida nem pelo efeito genético, nem pelo efeito socializante. O estruturalismo assim como a analise de redes sociais e também a teoria de redes de troca, são perspectivas dominantes nas ciências sociais1, e também na antropologia. Essas teorias explicam como se formam os laços sociais (ou a ausência desses), em um ambiente onde o comportamento individual é emoldurado por variáveis exógenas. Essas teorias tem tido relativo sucesso em explicar o comportamento como fruto da estrutura social, entretanto, essas teorias não avançam em igual medida no sentido de esclarecer de onde surgem as estruturas sociais (Kanazawa, 2001, 2005). Apesar de o estruturalismo representar um sucesso acadêmico empírico, ele é dotado de uma serie de falhas teóricas. Primeiro, ele assume que o comportamento é moldado pela estrutura social, entretanto, ele não explica de onde vem à estrutura social e também não avança no sentido de determinar quais são as causas psicológicas do sujeito para que ele se deixe moldar pelo meio social. Nesse sentido, o 1 Como na sociologia de Parsons. Nela, as ações são conjuntos de estruturas pelas quais os seres humanos formam suas preferencias e intenções e que, com maior ou menor êxito conseguem concretizar suas intenções, nesse caso é afirmar que ações humanas são ações culturais, pois são balizadas pelos valores advindos dos sistemas simbólicos, onde são formadas as intenções (Parsons, 1968, p.5-9). Nesse caso, ação, não pode ser entendida como um reflexo de resposta ad hoc em relação a algum estimulo, mas sim como um agente, ativo na formação de interesses e expectativas. Nesse sentido, o eixo da teoria da ação é o cidadão individual, nesse caso aqui entendido como ator, e sua ação e relação para com seus pares, os outros atores (Parsons, 1968, p40-2). 124 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 estruturalismo trabalha com algumas suposições, muito pobres, onde ele assume algumas tendências sociopsicologicas dos indivíduos, mas não explica o porquê destas inclinações. Outro problema é que o estruturalismo não atribui características sociais ou psicológicas individualmente aos humanos, ignorando as diferencias biopsicossociais entre os homens onde em um limite eles são teoricamente tratados como “estruturalmente equivalentes”. Nesse caso os intervenientes são tratados como equivalentes e intercambiáveis dentro de um modelo de rede social, nesse caso, os atores tendem a se comportar todos de maneira parecida. Mesmo as estruturas sendo as principais razões causais do estruturalismo, esta, e as preferencias (como as do individualismo metodológico da escolha racional) são deixadas como variáveis exógenas (Kanazawa, 2001, 2004). No mesmo sentido o estruturalismo não faz distinção entre os indivíduos, nesse caso não importa sexo, idade, etnia. Assim como ele também não leva em conta as variáveis sociodemograficas, como a própria linguagem. Aqui devemos lembrar que para muito além das esforças estruturantes, as diferenças inerentes entre os atores influenciam o comportamento dos mesmos, nesse caso, mesmo os indivíduos sendo “estruturalmente equivalentes” segundo a teoria, eles tendem a desenvolver comportamentos diferentes (ex: homens e mulheres convivem na mesma estrutura e desenvolvem gostos e comportamentos distintos) (Browne, 1998; Miller, 2000; Kanazawa, 2001). Há pelo menos quatro pontos críticos que devemos nos ater em relação à condução de experimentos comportamentais contemporâneos. Primeiro, a rotulagem “aprendido” não é mais satisfatória que a rotulagem “evoluída”, nesse sentido há de se considerar que o ambiente fornece um input causal que influencia o organismo, de alguma forma. Em segundo lugar, essas duas rotulagens não devem ser postas em competição, vide que a aprendizagem exige componentes psicológicos evoluídos sem os quais não poderia ocorrer. O terceiro ponto, os mecanismos de aprendizagem são mais complexos qualitativamente e mais numerosos quantitativamente do que a psicologia tradicional faz parecer ser, para muito além das teorias como a do condicionamento operante clássico, há de se considerar o design especializado dos domínios gerais cognitivos. Por fim, para além da simples ideia de socialização como único vetor do comportamento, num cenário de tabula rasa, a psicologia evolucionaria vem sinalizando que o desenvolvimento dos mecanismos de aprendizagem fora uma resposta evolutiva aos distintos dilemas adaptativos (Confer et al., 2010; Mace, 1996ª; Mithen, 1998). 125 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo 2.1 POR UMA ANTROPOLOGIA EVOLUCIONARIA A antropologia evolucionaria é um ficheiro interdisciplinar que tem como principal foco a evolução fisiológica e comportamental do homem. Nesse sentido, ela não se concentra apenas no estudo do homo sapiens, mas também em outros primatas não humanos. Ela por excelência é uma convergência entre as ciências naturais e sociais e por isso recebe contribuições de diversos campos como a genética, a neurociência cognitiva, a primatologia, a etologia, a paleontologia, a arqueologia, a psicologia social e outras. Pode se dizer que a teoria evolucionaria evolutiva é uma disciplina emergente interessada, sobretudo em entender como os mecanismos psicológicos e as estratégias comportamentais evoluíram frente aos problemas adaptativos que nossa espécie enfrente a milhões de anos. A teoria evolutiva vem trazer para a teoria da personalidade um novo fôlego se ancorando na natureza humana (e nas causas proximais2) entendendo que os seres humanos, assim como os demais seres vivos, certamente, não estão e nunca estiveram longe das forças organizadoras da seleção natural (Buss, 1991, p.459-460). A teoria evolucionista introduz duas grandes generalizações nas ciências sociais. A primeira é a de que o homo sapiens não tem nada de especial em relação às outras espécies biológicas. Humanos são únicos, entretanto, não são os únicos. Cada espécie evoluiu de maneira singular, no intuito de resolver os desafios ambientais. Os seres humanos são como os outros animais, e estão sujeitos a todas as leis da natureza, em especial estão dependentes da dinâmica própria da seleção natural e sexual. A segunda grande generalização é em relação a nosso cérebro3 e nossas capacidades cognitivas. Em perspectiva evolutiva, nosso cérebro nada mais é do que um substrato das forças e pressões evolutivas, um órgão, que assim como qualquer outro, evoluiu por milhões de anos, até o período Pleiostoceno na savana africana, onde os serres humanos viveram a maior parte da historia evolutiva. Nesse ponto, entendemos que o cérebro humano, assim como o dos outros organismos é dotado de capacidades, mas também de limitações. No caso de humanos, parece claro que temos dificuldades cognitivas de exercermos funções que não exercíamos no período Pleistoceno (Kanazawa, 2001, 2004, 2005). 2 Definimos causa proximal como o conjunto de fatores ligados ao background do funcionamento biológico dos organismos, incluindo, por exemplo, as vias metabólicas, fisiológicas e comportamentos a nível molecular, celular, e também populacional. Como causa final em outro ponto entendemos os fatores evolutivos responsáveis pela origem ou proposito de um sistema biológico (Hickman, Robert & Larson, 2004, p797). 3 Em seu modelo de estruturação de mente, Mithen propõe que nossos ancestrais, primeiro acumularam conhecimento comum através de uma inteligência genérica e a posteriori desenvolveram módulos mentais que o permitiram obter mais conhecimentos. Mithen divide em três as principais capacidades humanas que propiciaram o desenvolvimento social: 1)a de ter conhecimento natural, 2)a de conseguir fabricar instrumentos, e 3)a de produzir artefatos culturais e a capacidade de viver balizado por regras sociais. (Mithen, 1998). 126 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 É importante que entendamos que todo comportamento observável é fruto de mecanismos que estão alocados no organismo e que combinado com influencias ambiental e orgânico definem como esses mecanismos agiram. Esses mecanismos foram criados pela seleção natural, que cria respostas fisiológicas, anatômicas e psicológicas. Há pelo menos duas direções em estudos que confirmam essas hipóteses evolutivas, uma de cunho empírica, outra teórica. Primeiro 25 anos de experimentos vêm mostrando que a psicologia humana envolve muitos mecanismos complexos e de domínios específicos que tem funções especificas; a segunda ordem de cunho empírica nos remete a analogia em relação aos animais, pois todos eles desenvolveram mecanismos para seus problemas adaptativos, como por exemplo, para doenças (desenvolveram sistema imunológico), para o calor (glândulas sudoríparas), nesse diapasão os psicólogos evolutivos entendem a mente como também provida de especialidades (Buss, 1991, p.461). As diversas ciências que hoje compõem o universo do que se entende como ciências psicológicas abrangem uma serie de ferramentas úteis para a compreensão do comportamento. Nesse sentido podemos analisar o comportamento á partir da analise de quatro basilares básicos: 1)como o comportamento se desenvolve, 2)quais mecanismos fisiológicos agem para tirar o comportamento exequível, 3)se o comportamento guarda relação positiva com o sucesso reprodutivo, 4)se o comportamento originou-se ou foi alterado ao longo da historia evolutiva. Esses quatro níveis de analise oferecem instancias úteis seja para a formulação de novas hipóteses, seja para a equipação metodológica para testes empíricos de hipóteses evolutivas. Podemos segmentar esses quatro níveis de analise em dois grupos sendo o primeiro o aquele que guardam relação com as causas proximais ou imediatas do comportamento e o segundo com os que guardam relação com as causas distais. O primeiro grupo se concentra nos sistemas de desenvolvimento interno e nas bases fisiológicas; enquanto o segundo grupo lida com as perspectivas evolutivas de longo prazo do comportamento, ou seja, analisam sobretudo o valor adaptativo dos processos e também as modificações em perspectiva histórica. Ambas as causas, distais e proximais estão inter-relacionadas em um ciclo interrupto. (Alcock, 2011, p.11-57). A base mental de toda teoria evolucionaria4 são os preceitos de Darwin e a teoria sintética da evolução biológica. Aqui, os traços variantes podem ser herdados 4 A teoria evolutiva aplicada ao comportamento é como uma tendência sumariamente interdisciplinar. Ela é por assim dizer um resultado bem sucedido da agregação de valores da filosofia, com os preceitos da psicologia, com os conhecimentos da antropologia, da linguística e também das ciências biológicas, como a biologia evolutiva, a neurociência e também a matemática e as ciências da computação. A antropologia, em particular vem oferecendo uma base teórica consistente aos preceitos da psicologia evolutiva, ao trazer a campo uma serie de estudos empíricos sobre a evolução natural e cultural da humanidade. Nesse ponto, a psicologia evolutiva é inovadora, ao estudar o 127 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo pelos pais, essas variantes por sua vez auxiliam no desenvolvimento funcional, na reprodução e na sobrevivência, consequentemente, mais gerações vão herdar tais características, a revelia de outras. Esse processo resulta em três produtos; 1)adaptações5 relacionadas aos problemas ancestrais, 2)produtos não funcionais, que persistem pois foram acopladas como adaptações (exemplo medo de cobras e escorpiões sem veneno) e 3)ruídos, são variações dadas a eventos aleatórios ambientais ou mutações genéticas. Historicamente esses preceitos vêm sendo aplicados para a compreensão da fisiologia e das adaptações funcionais corporais. E mais recentemente esses preceitos vêm fornecendo elementos “de ponta” para a condução teórica a epistemológica de estudos sobre comportamento psicológico. Adaptações psicológicas são circuitos de armazenamento e processamento de informações, com saídas funcionais arquitetadas para a resolução de uma gama de problemas adaptativos (Miller, 2007; Confer et al., 2010). Os seres humanos indubitavelmente tem capacidades culturais, nos últimos anos uma serie de pesquisadores através de modelos de co-evolução estão descrevendo e testando hipóteses sobre a herança genética e cultural. Ao expormos a discussão em um nível mais técnico, podemos definir em 4 pontos relevantes para a compreensão da transmissão cultural via memes: 1)a transmissão na verdade orienta o comportamento, 2)esta transmissão está susceptível a integração hierárquica, 3)os memes são transmitidos através das interações sociais. A interação social permite transmissão, recepção e assimilação cultural, pois os seres humanos possuem adaptações cognitivas especificas que permitem a comunicação entre mentes, pois toda cultura para ser assimilada demanda de uma grande capacidade de aprendizagem, num diapasão onde as informações são extraídas do ambiente e interpretadas na mente. As adaptações cognitivas evoluíram ao longo das gerações, pois ela sofreu graduais alterações (Boyer, 2000). Dito de outra forma é bem verdade que é o ambiente que oferece as principais variáveis referencias para os indivíduos, entretanto, os mesmos só podem assimilar tais estímulos se tiverem plenas capacidades cognitivas. Estas capacidades tornam possíveis que os humanos através de crenças, símbolos e convenções criem e manifestem as mais diversas representações culturais. Isso permite que nós seres humanos, para muito além de reproduzirmos alguns poucos hábitos ao longo da vida, comportamento, e o próprio cérebro, á partir de uma perspectiva integrada com a teoria da evolução (Buss, 2005; Cosmides & Tobby, 2005). 5 É importante destacarmos que toda adaptação deve ser enxergada dentro de suas limitações, sob o viés de seu problema adaptativo e, sobretudo, há de se entender que a adaptação é um sinal um adicionamento de um equipamento para resolução de problemas outorgadas pela seleção natural, entretanto, não podemos dizer que todas as adaptações são do tipo ótimas, todas guardam relação com o período específico, com problemas específicos. E não é qualquer mudança que a seleção natural promove, mas, sobretudo aquelas ligadas ao “fitness darwiniano” (Buss, 1989, 2008). 128 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 sejamos capazes de extrair informações através de praticas já vivenciadas, técnicas ensinadas, por meio de rituais, por normas e outros meios diversos. Em suma a cultura adquirida, e suas representações parecem se desencadear por meio de episódios vivenciados, como as interações sociais e atividades comunicativas. E por mais interessante que são as diferenças e os gostos humanos, resultados do multiculturalismo, é mais impressionante ainda as semelhanças encontradas entre os hábitos, preferencias e atitudes. Podemos dizer que cada cultura traz para seus indivíduos uma serie de singularidades sobre a construção do que é atraente, entretanto, mesmo a construção social sendo um dos pilares fundamentais para a fundamentação das preferencias, podemos identificar traços universais, quanto à preferencias. Logo, para além das capacidades de modulação cultural, entendemos que as preferencias também guardam relação todas com o passado evolutivo (Boyer, 2000; Miller, 2000; Haviland et al, 2011). Podemos dizer que a mente humana é um complexo integrativo de funções especializadas, onde as adaptações psicológicas evoluíram como soluções para problemas qualitativamente distintos, quantitativamente numerosos. Essa máxima é valida tanto para humanos e não humanos. É enorme a lista de adaptações psicológicas, para muito além de medo de cobras a animais perigosos, outros problemas que enfrentamos são a seleção de alimentos, o investimento parental, relações de parentesco, amizades, coalizões, agressividade seletiva, negociação hierárquica, e muitos outros (Confer et al., 2010). 3 - COMPREENDENDO A AGRESSÃO Em quase todo reino animal (exceto na sociedade humana) a agressão guarda uma relação positiva com demandas, ou seja, ela é sumariamente de caráter instrumental e não um fim em si mesmo. Ela é um meio, seja para a obtenção de parceiros, suprimentos alimentares, defesa territorial e outras demandas afins. No reino animal há pouca propensão por parte da maioria dos animais para se envolverem em lutas sem sentido, por vezes, as diversas espécies executam meios ritualísticos para evitar conflitos perigosos. A maioria dos animais não demonstra inclinação em humilhar seu adversário e nem demonstra sentir prazer em derrota-lo (Johnson, 1972, 33-4). Devemos entender que a agressão em si é um processo muito complexo e esta sob gerencia multifocal. Tanto a caça, quanto a luta pela sobrevivência são processos distintos que podem levar a violência. Mas são distintos, tanto quanto a motivação, quanto aos fins. Tais motivações podem ser proximais como a fome, a sede, a 129 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo vontade de fazer sexo ou distais, como um potencial adversário. Ela pode derivar de um comportamento genético, aprendido, pode ser de ordem instrumental como um meio para se atingir um fim. O termo agressão desafia definições simples, por conta de sua dinâmica e complexidade, sendo assim um fenômeno que demanda analise em diferentes níveis. A agressão não é um acidente do século XX, tão pouco fruto de alguma intervenção de ordem teológica. Ela representa uma adaptação comportamental evolutiva, pautada na necessidade de sobrevivência e de reprodução das diferentes espécies. Mas claro que como as espécies são diferentes, os processos de agressão também variam entre as diferentes espécies (Johnson, 1972, p.31-2; Alcock, 2011). Há de se considerar que mesmo em um ambiente largamente cooperativo, há sempre um nível de competição mais ou menos mensurável entre os organismos que tende a gerar conflitos que por vezes são resolvidos por vias de hostilidade. Entretanto, a maior parte das lutas, entre os organismos biológicos são mais de caráter simbólico do que fisicamente nocivas, tem mais a intenção de machucar do que propriamente matar. Com exceção da espécie humana, poucos organismos demonstram satisfação em ter que matar um individuo da mesma espécie, ou de outra; e quando fazem, geralmente não o fazem como um fim em si mesmo, mas como uma via funcional para obtenção de um fim, como alimento. Por vezes, a agressão também é uma via utilitária entre os organismos para o estabelecimento de estratificações hierárquicas de dominância social, por vezes, estabelecendo preceitos de territorialidade, mais ou menos expressáveis e mensuráveis (Hickman, Robert & Larson, 2004). 3.1 - DESAFIOS DO PASSADO, AGRESSÃO NO PRESENTE No que diz respeito aos problemas adaptativos reprodutivos, nossa espécie6 enfrentamos pelo menos oito problemas distintos, sendo eles: 1) a competição intrasexual, 2)a seleção dos parceiros, 3)engajamento bem sucedido na via social e sexual, 4)preservação do companheiro, 5)formação de alianças de reciprocidade, 6)manutenção de coalizões, 7)cuidados parentais e socialização e 8)investimento 6 Uma relação interessante, quando estudamos as relações proximais do comportamento humano, é entender o seu próprio passado evolutivo, e também nesse sentido, o tamanho do cérebro. O primeiro primata da nossa cadeia evolutiva fora o ardipithecus, e seu cérebro tinha pouco mais de 300 gramas, pouco depois temos o australopithecus com um cérebro variando de 310 gramas até 530 gramas. Mais tarde na cadeia evolutiva temos o homo erectus, com um cérebro variando entre 775 gramas e 1.225 kg e depois temos o homo sapiens arcaico, o neandertal com um cérebro variando entre 1.2 kg e 1.450 kg. Por fim temos o homo sapiens moderno com um cérebro de 1.350 kg que gasta em media 1/5 de toda a energia consumida por nosso corpo. Assim o homo sapiens possui um cérebro grande, cerca de seis vezes maior do que se espera de um mamífero comum e com áreas corticais associativas maiores, em comparação a primatas antropoides e não antropoides. Há também de se considerar que o cérebro humano não é só grande, mas também bastante compacto, ou seja, possui mais neurônios por regiões em vista de outras espécies (Dalgalarrondo, 2011, p.170-184). 130 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 extra-parental. Cada um desses dilemas trouxe consigo uma serie de subproblemas que provocaram adaptações evolutivas (Buss. 1991, p.645). Muitos vestígios arqueológicos apontam que a violência entre homens vem de uma longa trajetória. Por exemplo, um cemitério em Jebel Sahaba, note de Sudão, que se remonta a mais ou menos 13 mil anos atrás fornece uma grande quantidade de evidencias sobre forte violência e talvez guerra entre os primeiros seres humanos. Para se ter ideia, dos 59 corpos dispostos nesse cemitério, mais da metade apresenta sinais de morte por violência (por exemplo, continham pedaços de farpas de flechas entre os ossos. Os corpos de criança encontrados também indicam que essas foram assassinadas, com violentos golpes no pescoço. Mais vestígios arqueológicos na Alemanha, Baviera e França sinaliza que também lá houveram violentos assassinatos, destacamos aqui que muitos foram mortos com violentos golpes no crânio. Infelizmente, temos uma limitação quanto aos vestígios arqueológicos, seja na quantidade, seja na dificuldade de seu trato. Talvez, a violência entre os primeiros humanos seja ainda mais comum do que faz crer a arqueologia (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012). Mas fora os restos mortais há outras evidencias arqueológicas interessantes, como os machados de pedra e madeira, e lanças confeccionadas a mais de 40 mil anos atrás, mas evidente que essas ferramentas foram uteis para outras finalidades como a caça. Pinturas do período Paleolítico na França, Espanha, e Itália descrevem com precisão seres humanas morrendo através de violência e conflito, como por exemplo, com flechas. Podemos dizer também que desde o inicio da civilização também se presenciam relatos de violência, como por exemplo, no Egito, Suméria, Grécia, Roma, índia, e Mesopotâmia. Finalmente, na transição de vida do estilo nômade para assentamentos permanentes que começaram no período neolítico (impulsionada pela agricultura e pela criação de animais) a mais ou menos 10 mil anos também encontraram evidencias de violência entre humanos. Os assentamentos permanentes7 trouxeram a acumulação de recursos8, tecnologia e também a violência. Dado os esforços que foram demandados no passado em construir paredes e proteções destes assentamentos contra outros indivíduos, é provável que os ataques 7 No decorrer da historia da nossa espécie houveram diversos sistemas sociais, desde os mais simples em períodos muito remotos, até sistemas altamente complexos como os que vemos na sociedade contemporânea. Em períodos remotos, os sistemas sociais aos poucos influenciaram os rumos da seleção natural, impuseram novos problemas adaptativos, e consequentemente, sofremos adaptações por conta desses novos problemas, sejam elas psicológicas ou fisiológicas. A cultura, apesar de não ser uma única determinante, exerce uma pressão muito forte sobre o comportamento humano e ao que tudo indica, essa capacidade de se influenciar pela cultura guarda relação com um subproduto do desenvolvimento das inteligências. (Mace, 1996a,b). 8 Uma serie de psicólogos evolutivos postulam que a agricultura é tão recente que, em perspectiva evolutiva, pode-se dizer que não houve tempo desta mudança cultural ter gerado mudanças adaptativas evolutivas. Entretanto, há evidencias de adaptações genéticas relacionadas à agricultura e a pecuária, por exemplo, a tolerância ao consumo da lactose parece ser uma adaptação genética de menos de 10.000 atrás, relacionada com a criação de gado (Mace, 1996a,b). 131 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo de outros seres humanos constituíssem uma ameaça. Podemos em alguma medida dizer que existem evidencias de violência entre homens durante toda nossa historia evolutiva, o que é um lembrete interessante de que a violência humana de hoje, não é um fenômeno novo (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012). Mas não podemos falar de violência entre homens sem nos remetermos ao fenômeno da guerra. Entretanto, é difícil precisar com exatidão em que momento os humanos passaram a se envolver em guerra. Nesse ponto a primatologia oferece interessantes insigts, por exemplo, o comportamento belicista e politico dos chimpanzés, sinalizam que ao que tudo indica os humanos se envolvem em conflitos a muito tempo. Com a migração do estilo nômade para os assentamentos permanentes, a acumulação de recurso parece ter sido um dos pivôs para guerras no passado, vide que as evidencias arqueológicas aponta que a maioria das edificações para proteção no passado coincidiu com períodos de incerteza climática e de escassez de recurso. Assim, entendemos que esses períodos foram fartos em guerras, e furtos de recursos (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012; Waal, 2000, 2001). Quanto aos crimes, em perspectiva evolutiva podemos lançar três máximas úteis para a compreensão das barreiras e dos vetores psicológicos que se criaram aqui através do processo de evolução e co-evolução: 1)provavelmente, o crime era recorrente no ambiente ancestral, 2)as estratégias criminosas se desenvolveram em padrões previsíveis e 3)por conta de tal previsibilidade, provavelmente, houveram adaptações especificamente para motivar o crime e também combater o mesmo. Nesse sentido quanto ao design mental, podemos dizer que o processo de coevolução formatou também mecanismos mentais para a defesa contra crimes (Duntley & Shackelford, 2008). 4 - POR QUE HOMENS SÃO MAIS VIOLENTOS QUE MULHERES? De acordo com a interpretação evolucionaria, existe diferença comportamental entre os gêneros sexuais, pois ambos têm disposições psicológicas distintas que presumivelmente foram construídas em nossa espécie por meio da adaptação mediada geneticamente para as condições ancestrais de vida (Buss & Kenrick, 1998). Nesse diapasão, coletamos dados sobre a população carcerária mundial e analisamos a disparidade numérica entre homens e mulheres que cumprem penas. Apesar de haver uma relativa diferença entre os números, nos diversos países, em todos eles a proporção de homens que cometeram crimes é muito maior do que a de mulheres. 132 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Os números impressionam, segundo o oitavo levantamento das Nações Unidas sobre tendências de crimes, de 2002, nos 159 países em que se coletaram os dados, existe uma população carcerária (de presos recentes) de aproximadamente 8.570.051. Deste montante, estima-se que apenas 4,4% sejam mulheres, e o restante, 95,6% são homens (Shaw, Van Dijk & Rhomberg, 2003). Abaixo, com base dos dados das Nações Unidas de 2002, formulamos um gráfico com os 5 países que tem maior população carcerária, e estratificamos de forma ilustrativa a enorme desproporção existente entre homens e mulheres que cumprem pena. Estados Unidos China Mulheres Russia Homens India Brasil 0 500000 1000000 1500000 2000000 Dados adaptado pelo autor com base em: Shaw M, Van Dijk J, Rhomberg W (2003) Determining global trends in crime and justice: an overview of results from the United Nations surveys of crime trends and operations of criminal justice systems. In: Forum on crime and society, vol III, no. 1 &2. 4.1 - A PRESSÃO DA SELEÇÃO SEXUAL: HOMO SAPIENS COMO UM ANIMAL POLÍTICO E SOCIAL Estudos recentes apontam que homens, mais do que mulheres, são mais susceptíveis a serem racistas e xenofóbicos. Essa propensão parece guardar relação evolucionaria com as demandas dos homens que se envolviam em conflito. Quanto a esta propensão psicológica por guerras podemos definir quatro basilares condicionais: 1)a crença de que o grupo pode ser vitorioso, 2)a expectativa de que os ganhos da guerra superem seus custos, 3)a expectativa dos beneficiários receberem igual contribuição (e assumirem iguais riscos) e 4)A incapacidade de prever com exatidão qual membro irá ou não morrer (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012). Não devemos desconsiderar as variáveis individuais, mas o papel da abordagem interdisciplinar evolucionaria esta em desvendar os traços universais dos homens. E nesse sentido ao que tudo indica os homens são mais propensos a se 133 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo envolverem em violência do que as mulheres. Em especial quando o futuro demonstra-se incerto. Ao que parece ambientes insalubres com alta incidência de parasitas induzem a condutas violentas, como também a pobreza e também grande competição intersexual (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012) Uma empresa que sempre esteve presente no passado, e mais do que nunca hoje, é a competição por status. A psicologia evolucionaria, a antropologia, a ecologia comportamental humana produziram uma serie de trabalhos teóricos e empíricos que apontam que os homens que possuem mais status social são os que têm maior acesso sexual a um numero maior de mulheres. O potencial reprodutivo ligado ao status gerou pressões por parte da seleção natural que por sua vez estruturou adaptações cognitivas que levam a ascensão social dentro da estratificação hierárquica. Nesse sentido há uma correlação desproporcional entre os indivíduos, pois para um individuo subir de status, quase que como um jogo de soma zero, algum outro individuo deve perder status. Agora, se levarmos o alto ônus de se perder status podemos concluir que os indivíduos são adaptados não só em adquirir status, mas também há lutar pela manutenção do mesmo. No que diz respeito aos recursos sexuais, podemos afirmar que em alguma medida o custo parental e biológico da gravidez é muito maior para a mulher, do que para o homem. E também é possível dizer que as mulheres podem ter um numero limitado de filhos9, enquanto os homens se tiverem mais parceiras, podem ter um numero absurdamente maior. Nesse caso, a pressão da seleção natural estruturou homens para serem mais propensos a terem um numero maiores de parceiras e as mulheres a serem mais seletivas. Nessa dicotomia onde o homem é inclinado a desejar um grande numero de parceiras em vista das mulheres, sugerimos que essa discrepância ente os sexos seja o subsidio da prostituição feminina (Browne, 1998, 2005; Duntley & Shackelford, 2008) O mundo de nossos ancestrais forçava este a conviver com um numero muito reduzido de pessoas, em vista de hoje. Nesse sentido, é provável que as ações sociais neste período desencadeassem maior repercussão e consequentemente maior sustentamento da reputação ao longo prazo. Assim, sugerimos que humanos desenvolveram também como estratégias para galgar status, e também para ter mais acesso ao sexo, à agressão. A violência nesse contexto proposto não é só uma medida eficaz para combater outros competidores (e no limite tira-los da competição), mas também poderia render possíveis ganhos de recursos com furtos e também aumentar o prestigio social. Pesquisas em psicologia evolucionaria apontaram como correlação positiva a competição intrasexual e a violência, nos dias atuais (e 9 Isso porque, enquanto a mulher produz ao longo da vida uma media de 400 óvulos, o homem produz por minuto 50 mil espermatozoides (três milhões por hora) (Waal, 2000). 134 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 provavelmente no passado). Tais disputas são comuns por desencadearem conflitos violentos que podem chegar até em homicídio (Duntley & Shackelford, 2008). As pressões evolutivas distribuem de forma desigual entre homens e mulheres o custo do investimento parental, o que implica nesse sentido que fêmeas, em comparação com homens, maximizam mais suas chances de sobrevivência, e de sua prole, se forem mais seletivas na seleção sexual. Nesse caso, a uma maior inclinação por parte dos homens para competir. Duas estratégias dicotômicas entre si são vias comuns nesse sentido. Uma primeira diz respeito à exibição de características apreciadas pelo sexo oposto (por exemplo, bom físico, que indicam para além da saúde também bons genes, status social, recursos financeiros). Outra estratégia é vencer a concorrência de maneira direta, seja através de conflitos reais ou simbólicos dentro das diversas estruturas sociais que expressão meios diferente de dominância social. Em ambas as estratégias, a possibilidade de que fenômenos agressivos sejam postos em curso é bastante alta. Essa logica, parece ser uma das importantes vias explicativas para se compreender a diferença dramática existente entre os homens e mulheres, no que diz respeito ao comportamento físico violento, em uma via observável em todas as sociedades humanas ao longo do tempo, durante todos os períodos históricos (Neuberg, Kenrick & Schaller, 2010, p.28-32, Wood & Eagly, 2002). A agressão pode ser uma via eficiente em alguma medida para o comportamento de cúpula de curto prazo, entretanto, pode se tornar uma via não tão eficiente para o estabelecimento de relacionamentos á longo prazo. Comparações interespécies nesse sentido apontam que há uma correlação positiva entre poligamia e comportamento violento, ou seja, quanto mais polígamo é o comportamento de determinado organismo, maior são suas propensões á violência. Isso também foi observado em sociedades humanas. Algumas espécies manifestam com maior intensidade comportamentos violentos quando estão entrando na puberdade, quando estão iniciando suas capacidades reprodutivas. O mesmo já foi observado em diversos experimentos em psicologia social. Homens na puberdade tendem a manifestar mais comportamento agressivos, maior nível de competitividade do que em qualquer outra fase da vida (Neuberg, Kenrick & Schaller, 2010,p.31-34). Em suma, o auto custo parental debilitava a mulher para o exercício de uma serie de atividades. Nesse sentido, a fêmea é quem realiza a seleção. Aqui, homens ancestrais competiam com outros homens pelo acesso sexual as mulheres, e também pela tentativa de monopolização das mesmas. Nesse sentido, o homem desenvolveu maior propensão adaptativa a violência do que a mulher. Podemos também aqui nos referir as preferencias, estudos transculturais recentes demonstram que as atuais preferencias, mesmo em modulações culturais diferentes, guarda relação com o 135 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo contexto evolutivo. Nesse caso, em todo mundo a maioria das mulheres sente maior atração por homens mais velhos, que possuam mais recursos e/ou sejam mais socialmente estabilizados enquanto em outro diapasão homens preferem mulheres mais jovens, com suas capacidades reprodutivas comprovadas e confiáveis (Wood & Eagly, 2002; Buss, 1989,2008). 4.2 - A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Em praticamente todas as sociedades de coletores e caçadores do presente, se observa uma nítida divisão sexual do trabalho, onde os homens se dedicam quase que exclusivamente a caça e as mulheres a coleta (e também ao cuidado parental). Como essas sociedades tradicionais são consideradas os melhores modelos para a compreensão do estilo de vida dos nossos antepassados evolutivos supõem-se que no passado também houve tal divisão também ocorria. Os homens nesse sentido podiam ir à caça e percorrer por vezes longas distancias até obterem uma presa e a posteriori retornarem ao acampamento. Enquanto, as mulheres não podiam se afastar muito do acampamento, por conta do cuidado de sua prole, assim, dedicava-se a coleta. Nesse ponto é importante destacar que as atividades reprodutivas das mulheres criam restrições de tempo e energia, impossibilitando no passado que estas participassem de guerras, caça, e outras atividades que demandavam muitos recursos endógenos. (Dalgalarrondo, P. 2011, p.168-178; Wood & Eagly, 2002). Alguns arqueólogos apontam que tal estratificação fora tão funcional que, caso não houvesse existido, talvez nosso cérebro não tivesse se desenvolvido tanto. Isso porque essa estratificação trouxe benefícios tangíveis para os humanos, vide que os mesmos passaram a dispor de uma dieta alimentar muito rica contendo grandes quantidades de proteína, gordura, carboidratos e fibras. Nessas sociedades os homens desenvolveram complexos sistemas de distribuição de alimentos entre todos os indivíduos10. Em perspectiva evolucionaria, podemos dizer que as atividades de caça do homem do período Pleistoceno exerceram uma pressão seletiva, onde o homem adquiriu um diformismo físico e psicológico em relação às mulheres: 1)maior força, 2)maior coragem, 3)maior impulsividade, para citar apenas algumas. Todas essas características ofereciam vantagens no período pleistoceno, onde homens, mais do 10 O exame mais critico das diversas sociedades do mundo, sobretudo as tradicionais de caçadores e coletores (usados com frequência para modelos de nosso estio de vida no período pleistoceno) nos leva a perceber que de fato existe evidencias que o compartilhamento de recursos, em especial alimentos, é bastante comum, assim como também é comum o comercio seguro entre tribos vizinhas de caçadores e coletores. Entretanto, em nenhuma destas sociedades de caçadores e coletores é presenciado o fenômeno de se dividir livremente recursos com membros de outras tribos. Isso nos leva a crer que há barreiras mais ou menos definidas quanto à propensão do comportamento altruísta, como já descrito (Kanazawa, 2010). 136 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 que mulheres, tinham de conviver com as incertezas da caça, e também se defender de predadores. Tais adaptações forneceram traços positivos no passado, entretanto, no contexto socioinstitucional contemporâneo representam em alguma medida uma fonte de desvantagem, vide que o homem, mais do que a mulher, é biopsicosocialmente mais propenso ao comportamento agressivo, conduta tida hoje como antissocial e que pode levar o individuo ao encarceramento, ou até a morte. Entretanto há evidencias de uma flexibilização contemporânea da divisão sexual do trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pela mudança cultural. Numa base onde a divisão do trabalho e o próprio patriarcalismo se ancorava na reprodução feminina, temos uma inclinação no eixo na medida em que as mulheres passam a exercer maior controle da reprodução através de métodos anticonceptivos, abortos, e também pela dinâmica da produção e distribuição de alimentos, onde o homem deixa de ser o pivô. Nessa guinada, a mulher vem conquistando espaço no mercado de trabalho, nas lideranças e também na academia (Browne, 1998, 2005; Wood, W. & Eagly, A., 2002). Entretanto, o background psicológico humano, e também convenções sociais, em maior ou menor medida ainda faz existir o patriarcalismo em todas as sociedades. 4.3 - O PAPEL DA TESTOSTERONA Os hormônios funcionam associados aos mecanismos neurais de estabelecimento de prioridades. Nesse sentido as mudanças ambientais (tanto no físico, quanto no social) são detectadas pelo organismo e codificadas em respostas hormonais. Os sinais químicos resultantes desse processo podem desencadear uma cadeia de acontecimentos fisiológicos e comportamentais, estratificando e estabelecendo prioridades. Mas cada hormônio efetiva mudanças fisiológicas e comportamentais distintas em cada espécie, entretanto, o mecanismo de organização comportamental destas diferentes espécies apresenta similaridades. Isso reflete a natureza da mudança evolutiva (Alcock, 2011, p.170-180). Em algumas espécies a testosterona ativa o comportamento territorial como é o caso do Pardal Cantor e da Escrevedeirada-lapônia. Em muitas espécies, assim como o homem, é apontada uma alta correlação entre níveis de testosterona e comportamento agressivo. Podemos citar os cervos, que vivem pacificamente em seus grupos, entretanto, durante todo o verão quando seu nível de testosterona aumenta, o seu comportamento agressivo também aumenta, causando sempre episódios violentos (Alcock, 2011, p.173; Johnson, 1972). 137 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo Pesquisas apontam que indivíduos que tem antecedentes violentos, e que praticam condutas antissociais geralmente (mais do que a media) possuem níveis mais altos de testosterona. Nesse sentido podemos dizer que há uma correlação positiva entre o inicio da adolescência e o inicio das condutas antissociais, vide que nesse período da vida os homens possuem mais testosterona do que em qualquer outro (Aromäki, Lindman & Erikson, 1999). Há estudos também que apontam uma alta correlação entre altos índices de testosterona (acima da media) em mulheres, e maior inclinação a condutas violentas (Dabbs & Hargrove, 1997; Dabbs et al. 1988). Outros estudos corroboraram ainda mais a correlação entre testosterona e agressividade em humanos, ao analisarem o uso de anabolizantes a base de testosterona em homens e mulheres. No geral, há uma tendência em aumentar os níveis de excitação sexual e também o nervosismo (Hoaken & Stewart, 2003). Aqui concluímos que, como em geral homens possuem maiores níveis de testosterona, eles tendem também a manifestar maior comportamento violento. Nesse sentido, essa é uma importante variável que parece guardar relação com as duas hipóteses deste texto. Nesse caso, o nível de testosterona em homens parece guardar tanto relação com a seleção natural, tanto com a seleção sexual. 5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência é um fenômeno universal e a disparidade quanto à inclinação a este comportamento, entre homens e mulheres, é igualmente universal. Em todo mundo, homens se demonstram mais violentos, praticam mais crimes, vão para guerra, tem maior gosto por esportes violentos. Para além da antropologia cultural estruturalista, trabalhamos com a antropologia evolucionaria e com as hipóteses que dela derivam. Nesse sentido, entendemos que as ciências sociais possuem déficits e estes por sua vez podem ter resposta dentro da teoria evolucionaria que tem um grande valor heurístico no que diz respeito à compreensão das causas proximais do comportamento (causas praticamente ignoradas dentro das ciências sociais, ou permeada por noções muito pobres). No que diz respeito à tendência masculina ao comportamento agressivo, acreditamos que haja uma correlação positiva entre os desafios adaptativos do período ancestral. Ao que parece, os desafios que mais exerceram pressão foram a divisão sexual do trabalho e a seleção sexual. 138 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alcock, J. (2011). Comportamento animal: Uma abordagem evolutiva. Porto Alegre: Artmed. Aromäki, A. S., Lindman, R. E. & Eriksson, C.J. P. (1999), Testosterone, aggressiveness, and antisocial personality. Aggressive Behavior, 25(2), 113123. Asch, S., (1977). Psicologia social. (4a ed.). São Paulo: Companhia editora nacional. Boyer, P. (2000). Evolutionary Psychology and Cultural Transmission. American Behavioral Scientist, 43(6), 987-1000. Browne, K.R. (1998). An evolutionary account of women’s workplace status. Managerial and Decision Economics, 19(7/8), 427–440. Browne, J. (2002). Charles Darwin: The power of place. New York: Knopf. Browne, K. R. (2005). Evolved sex differences and occupational segregation. Journal of Organizational Behavior, 26, 1-20. Buss, D. M. (1989). Sex differences in human mate preferences: Evolutionary hypotheses tested in 37 cultures. Behavioral and Brain Sciences, 12, 1–14. Buss, D. M., & Schmitt, D. P. (1993). Sexual strategies theory: An evolutionary perspective on human mating. Psychological Review, 100, 204–232. Buss, D. M., & Kenrick, D. T. (1998). Evolutionary social psychology. In D. T. Gilbert, S. T. Fiske, & G. Lindzey (Eds.). The handbook of social psychology (Vol. 2, 4a ed., pp. 982–1026). Boston: McGraw-Hill. Buss, D. M. (2008). Evolutionary psychology: The new science of the mind. (3a ed.). Boston: Allyn & Bacon. Confer, J. C., Easton, J. E., Fleischman, D. S., Goetz, C., Lewis, D. M., Perilloux, C., et al. (2010). Evolutionary psychology: Controversies, questions, prospects, and limitations. The American Psychologist, 65, 110–126. Cosmides, L., & Tooby, J. (2005). Neurocognitive adaptations designed for social exchange. In D. M. Buss (Ed.) The handbook of evolutionary psychology (pp. 584–627). New York: Wiley. Dabbs, J. M., & Hargrove, M. F. (1997). Age, testosterone, and behavior among female prison inmates. Psychosomatic Medicine, 59, 477–480. Dabbs, J. M., Ruback, R. B., Frady, R. L., Hopper, C. H., & Sgoutas, D. S. (1988). Saliva testosterone and criminal violence among women. Personality and Individual Differences, 9, 269–275. Dalgalarrondo, P. (2011). Evolução do Cérebro: Sistema nervoso, psicologia e psicopatologia sob a perspectiva evolucionista. Porto Alegre: Artmed. 139 Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo Duntely, J. D., & Shackelford, T. K. (2008). Darwinian foundations of crime and law. Aggression and Violent Behavior, 13, 373-382. Haviland, W., Prins, H., Walrath, D. & Mcbride, B. (2011). Princípios de Antropologia. (2a ed.). São Paulo: Cengage Learning. Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Larson, A. (2004). Princípios Integrados de Zoologia. (11ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara Kogan. Hoaken, P. N., & Stewart, S. H. (2003). Drugs of abuse and the elicitation of human aggressive behavior. Addictive Behaviors, 28(9), 1533–1554. Johnson, R. (1972). Agressão no homem e nos animais. Interamericana: Rio de Janeiro. Kanazawa, S. (2001). Where do social structures come from? Advances in GroupProcesses, 18, 161-183. Kanazawa, S. (2004). The Savanna Principle. Managerial and Decision Economics, 25, 41–54. Kanazawa, S. (2005). Is ‘discrimination’ necessary to explain the sex gap in earnings? Journal of Economic Psychology, 26, 269–287. Kanazawa, S. (2006). ‘First, kill all the economists…’: The insufficiency of microeconomics and the need for evolutionary psychology in the study of management. Managerial and Decision Economics, 27, 95–101. Kanazawa, S. (2010). Evolutionary psychology and intelligence research. American Psychologist, 65, 279–289. Liddle, J.R., Shackelford, T.K. & Weekes-Shackelford, V.A.(2012). Evolutionary perspectives on violence, homicide, and war. Review of General Psychology, 16, 24-36. Mace, R. (1996a). When to have another baby: A dynamic model of reproductive decision-making and evidence from the Gabbra pastoralists. Ethology and Sociobiology, 17, 263–273. Mace, R. (1996b). Biased parental investment and reproductive success in Gabbra pastoralists. Behavioral Ecology and Sociobiology, 38, 75–81. Miller, G. (2000). The mating mind. New York: Penguin. Miller, G. F. (2007). Sexual selection for moral virtues. Quarterly Review of Biology, 82, 97–125. Mithen, S. (1998). A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo: Editora da UNESP. Neuberg, S.L., Kenrick, D.T., Schaller, M., 2010. Evolutionary social psychology. In: Fiske, S.T., Gilbert, D., Lindzey, G. (Eds.), Handbook of Social Psychology. John Wiley & Sons, New York, pp. 761–796. 140 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Parsons, T. et al. (1968). Hacia uma teoria general de la accion. Buenos Aires: Editoral Kapelusz. Pinker, S. (2004). Tábula Rasa. A negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras. Putnam, R. (2000). Bowling alone: The collapse and revival of american community. New York: Simon and Schuster. Riddley, M. (2004). O que nos faz humanos. Genes, natureza e experiência. São Paulo: Editora Record. Shaw M, Van Dijk J, Rhomberg W (2003) Determining global trends in crime and justice: an overview of results from the United Nations surveys of crime trends and operations of criminal justice systems. In: Forum on crime and society, vol III, no. 1 &2 Waal, F. (2000). The ape and the sushi máster. New York: Basic Books. Waal, F. (2001). Primates – A natural heritage of conflict resolution. Scice, 28, 586590. Wood, W., & Eagly, A. H. (2002). A cross-cultural analysis of the behavior of women and men: Implications for the origins of sex differences. Psychological Bulletin, 128, 699–727. 141 Boletim de Sociologia Militar N.º3 – 2012 PP. 142 a 151 A Incerteza do Risco: Ensaio relativamente ao tema Sociedade de Risco de acordo com Ulrich Beck e Anthony Giddens Rui Eusébio* Resumo Uma leitura diferenciada do lugar da ciência e da tecnologia no quadro institucional das sociedades contemporâneas parece estar na base de definições divergentes de modernidade reflexiva por parte de Ulrich Beck e de Anthony Giddens. Para ambos os autores, a noção de modernidade reflexiva constitui, como é sabido, noção central para caracterizar o quadro contextual da crise ecológica actual. Este artigo visa uma apresentação dos traços fundamentais das teorias destes autores e os fundamentos dessa divergência. Palavra-chave: sociedade de risco, sociedade industrial, modernidade reflexiva Abstract A different reading of the place of science and technology in the institutional framework of contemporary societies seems to be the basis of differing definitions of reflexive modernity by Ulrich Bech and Anthony Giddens. For both authors, the notion of reflexive modernity is, as is known, central notion to characterize the contextual framework of the current ecological crisis. This article aims at presenting the basic features of the theories of these authors and the reasons for the divergence. Key-words: risk society, industrial society, reflexive modernity INTRODUÇÃO Dia 26 de 1986, um dia que ficará enterrado na memória de todos, Pripyat, uma cidade localizada na Ucrânia, não muito distante da fronteira com a Bielorrússia é alvo de um acontecimento que viria não só a marcar a narrativa de um país como também a história do planeta. Informações apontam que durante uma operação de rotina, foram realizados testes ao interior do núcleo do reator com o intuito de aumentar a capacidade de produção energética. Contudo, os técnicos que se encontravam encarregues destes testes, não seguiram as normas de segurança e por conseguinte o reator nº4 acabou por entrar numa situação de instabilidade. * Capitão de Infantaria Licenciado em Sociologia (ISCTE), E-mail: [email protected] 142 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Pelas 01 horas e 23 minutos ocorrem as primeiras explosões, grandes quantidades de radiação à base de urânio e grafite são libertadas para a atmosfera, tal como sucedera em Hiroshima, mas neste caso com efeitos bem superiores, estima-se que o acidente em Chernobyl emitiu quatrocentas vezes mais radiação que a bomba atómica lançada sobre a cidade japonesa. Estávamos perante um novo inimigo, invisível mas potencialmente devastador1. Foram momentos como este, que nos fazem pensar, não só indivíduos como eu, que acabo de iniciar a minha carreira de “aprendiz em sociologia”, como também os grandes teóricos que se têm debruçado no estudo destas questões. Actualmente as “questões ambientais começaram nos últimos anos a captar cada vez mais a atenção da sociologia, especialmente nos debates sobre a modernidade, sobretudo a partir do momento em que a escala dos problemas ambientais assumiu uma dimensão global incontornável.” (Schmidt, 1999, p.194) Este ensaio tem como objectivo, ainda que de uma forma sucinta possibilitar ao leitor, inteirar-se acerca da reflexão social contemporânea, sobre a perspectiva da sociedade de risco do ponto de vista de Ulrich Beck e Anthony Giddens. Mas, o que levou estes autores a “olhar a sociedade desta forma”, o que levou estes criadores a assumirem uma leitura diferenciada, do lugar da ciência e da tecnologia no quadro institucional das sociedades contemporâneas relativamente à noção de modernidade reflexiva? Será com base nestas questões, que iniciarei o meu desenvolvimento sobre os traços fundamentais das teorias destes autores. A SOCIEDADE DE RISCO De acordo com Beck “ a sociedade de risco significa que vivemos na idade dos efeitos secundários, isto é, habitamos num mundo fora do controlo, onde nada é certo além da incerteza” (Beck, 2000:166) Do seu ponto de vista, a noção de risco encontra-se associada a um estádio preciso do processo de modernização, incorporando a dimensão de incerteza, embora o autor não refute a existência do conceito de risco noutros períodos da história. Para ele, o risco também se encontra interligado aos danos produzidos pelo processo civilizacional (modernização) (Areosa,2008), nas suas palavras “risck may be defined as systematic way of dealing with hazards and insecurities induced and introduced by modernization itself. Risks, as opoposed to older dangers, are consequences which 1 Documentário da BBC “Chernobyl Nuclear Disaster – Surviving Disaster (BBC Documentary) 143 A Incerteza do Risco relate to the threatening force of modernization and to its globalization of dout. They are politically reflexive” (Beck,1992, p.21). Foi após o acidente de Chernobyl (já anteriormente abordado), que Ulrich Beck desenvolve a conceptualização de sociedade de risco, com o intuito de alertar dos possíveis riscos que se encontram inerentes á comunidade, realçando de uma forma particular os efeitos dos meios tecnológicos sobre o ambiente biofísico. Do seu ponto de vista, Chernobyl é o principal marco de um “choque antropológico”, pois foi a partir deste momento que se dá uma alteração ao nível perceptual do ser humano sobre as possíveis consequências da ciência nos seus modos de vida. Pripyat2 tornara-se num evento onde foi passível identificar o seu início, mas não o seu fim, a população só tomou conhecimento da realidade dos factos 30 horas após o desastre, e ainda hoje é alvo de marcas físicas deixadas por este acontecimento (este foi o resultado de algumas instituições continuarem a funcionar numa lógica semi moderna, embutida no secretismo e na confidencialidade, que não só predominava na altura “em plena guerra fria”, como ainda hoje predomina de alguma forma a incomunicabilidade entre a ciência, a política e a sociedade). Esta invisibilidade e a intangibilidade dos riscos ecológicos demonstram bem o motivo de ansiedade e angústia (Valadas, 2012) permanente em todos nós. Pela primeira vez é sentida a necessidade de uma intervenção que supera o conhecimento científico até ao momento desenvolvido, ocorrendo “a institucionalização da dúvida e da angústia, no qual se acentua com o crescimento da desconfiança e da insegurança proveniente da dependência em relação aos sistemas periciais” (Valadas,2012). Este foi o ponto decisivo na demarcação de um período de consciencialização acerca dos prováveis efeitos da tecnologia sobre o meio ambiente, contrariando assim a baixa probabilidade que era atribuída a instalações desta natureza. Entramos num período de deslegitimação da ciência e da tecnologia, começam a surgir as primeiras dúvidas nas mentes internacionais sobre as particularidades dos riscos ambientais. Pela primeira vez um problema local ameaça o global como um todo, desencadeando ações de ansiedade e de reflexividade. SOCIEDADE INDUSTRIAL VS. SOCIEDADE DE RISCO Do ponto de vista de Beck, esta presença invasora associada ao risco deriva essencialmente do desenvolvimento da sociedade industrial. Contudo, o autor não 2 De acordo com o documentário da BBC 144 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 desconsidera o facto da existência do risco em sociedades anteriores tal como fora o caso das pestes, das catástrofes naturais, entre outras, que também elas eram dotadas de um poder assolador comparável até aos poderes destrutivos actuais, porém e ao contrário do que se sucedia no passado, o conceito de risco contemporâneo deve-se sobretudo a deliberações de índole económico. Para Beck, o termo risco, não provém de decisões tomadas por elementos singulares, mas sim de opções levadas a cabo por entidades económicas e políticas organizadas (Mela, Belloni, Davico, 2001). “Os riscos pressupõem decisões e análises industriais, isto é, técnicoeconómicas, das vantagens. Distingue-se das consequências das guerras pelo seu “nascimento normal”, ou melhor, pelo facto de “nascerem de forma amigável” nos centros da racionalidade e do bem-estar, com a bênção dos garantes do direito e da ordem; distinguem-se das catástrofes pré industriais pela sua génese decisória, que nunca é realmente apenas dos indivíduos, mas de inteiras organizações e associações políticas.” (Beck, 1994, p. 50)3 Numa fase inicial, esta abordagem efetuada por Beck relativamente à sociedade de risco, teve fortes influxos na comunidade internacional, este conceito assumia-se como resposta à obsolescência da sociedade industrial (Beck,2000). De acordo com Areosa “A terminologia de sociedade de risco designa essencialmente uma condição das sociedades contemporâneas, nas quais os riscos sociais, individuais, políticos e económicos tendem, de forma crescente, a escapar à proteção, controlo e monitorização da sociedade industrial. Segundo Beck, existem dois estádios distintos para estas duas realidades sociais, isto é, a sociedade de risco sucede à sociedade industrial. A transição da sociedade industrial para a sociedade de risco é irreversível e Beck vai designar este período como modernidade reflexiva” (Areosa,1998, p. 6). Esta transição é dada pelo “envelhecimento” da modernidade industrial resultante de um processo de inovação autónomo, no qual acaba por gerar a “sociedade de risco” (adaptado de Lash et al., 1996,pp.27-230, citado por Schmidt 1999, p. 200). Na opinião de Beck, a sociedade industrial tinha como função resolver os problemas da escassez, assegurando as necessidades básicas e a produção de bemestar, desprovendo de certa forma os efeitos residuais remanescentes da actividade produtiva, imperava a “lógica de produção de riqueza sobre a lógica de produção dos riscos”, ao qual não era atribuída qualquer tensão entre as partes envolventes. Com o 3 Beck, U. (1994), “Dalla società industriale alla società del rischio. Questioni di sopravvivenza, struttura sociale e illuminismo ecologico”, in Teoria Scoiologica, 2, 4 pp. 49-75 145 A Incerteza do Risco aparecimento da sociedade de risco4, tudo se altera, as consequências provenientes do processo de desenvolvimento acabam por fazer oscilar os pilares do progresso, mergulhando instituições públicas, políticas e financeiras, no questionamento sobre os possíveis riscos da sociedade industrial. Este tipo de sociedade foi perdendo lentamente as suas “certezas”, sabendo que estas constituíam um dos seus principais alicerces (Areosa, 1998). De acordo com Valadas (2012) este momento simboliza a passagem de um processo positivo (distribuição de riqueza) para um processo negativo (distribuição do risco), este é o momento que marca a mudança da modernidade simples (apogeu da sociedade industrial) para a modernidade reflexiva (emergência da sociedade de risco). É no choque entre estes dois momentos, que Beck edifica o conceito de “modernidade reflexiva”, no sentido contrário da dialética entre o conceito de “modernidade” e “modernidade reflexiva”, ele acaba por afirmar que “ modernidade reflexiva significa acima de tudo confrontação […] autoconfrontação com as consequências da sociedade de risco e não podem ser [adequadamente] encaradas e ultrapassadas no sistema da sociedade industrial” (Lash et al., citado por Schmidt 1999, p.201) Hoje, as preocupações em torno da sociedade já não recaem sobre a produção massificada, mas sim na necessidade de resolver os problemas causados por este sistema. Beck identifica ainda, outro ponto muito importante na sua análise, referindo que no decorrer da sociedade industrial a oscilação entre a desigualdade social e a vulnerabilidade aos perigos ambientais variavam numa relação direta em favor aos que detinham mais posses, ou seja, os habitantes das classes sociais mais altas tinham sempre a possibilidade de contornar situações críticas ao nível ambiental (poluição por exemplo), contrariamente ao que se verifica na atual sociedade de risco. Neste tipo de sociedade os riscos adoptam uma postura “democrática”, isto porque podem afetar um maior número de pessoas, independentemente da sua condição ou classe social. Luísa Schmidt acaba mesmo por afirmar que “na sociedade de risco, a hierarquia social e o perigo desarticulam-se, pois o risco emerge, “democratiza-se” e estende-se a todas as classes socias, culturas, raças e nações…” (Schmidt, 1999, p. 202) A dissolução de certezas da sociedade industrial acaba por originar as incertezas da sociedade de risco. 4 A ameaça nuclear é um dos exemplos paradigmáticos de situação, visto que, virtualmente, paira sobre todas as regiões do globo. Em simultâneo, o risco transformou-se num fenómeno global e globalizante. 146 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Contudo, na opinião de Ulrich Beck continua a prevalecer uma lógica de distribuição desigual dos danos tanto ao nível social como ao nível geográfico. Na fase atual, os riscos multiplicam-se, adquirem um alcance cada vez mais profundo, e sobretudo assumem uma dimensão global, já não delimitável. A ameaça de contaminação atómica e química, o efeito de estufa e outras potenciais catástrofes não se detêm perante limites administrativos dos Estados, nem permitem que qualquer grupo social se sinta seguro. Devemos ter em atenção que as ameaças globais conferem propriedades catalisadoras ao aumento das desigualdades entre povos sendo que, os mais ricos acabam por deter uma maior capacidade de atenuação relativamente aos efeitos dos riscos ambientais, no entanto, o autor acaba por sublinhar que “nestes casos, os países ricos não escapam – invadidos que serão pelos “ecorefugiados”… daí a inegável “democratização” potencial dos riscos e seus “efeitos de boomerang” ou a falta de imunidade de todos face às ameaças globais, embora a velocidades diferentes”. (Beck,1992ª, p.23, citado por Schmidt, 1999, p. 202). Na opinião de Beck a ciência contribuiu fortemente para o desenvolvimento do progresso económico do mundo ocidental, contudo e com base neste desenvolvimento nascem novos riscos, o conhecimento torna-se assim a principal fonte geradora da instabilidade que de certa forma acaba por perdurar nos dias de hoje, traduzindo uma noção de incontrolabilidade sobre o meio científico, técnico e social. É um facto, que a probabilidade de acontecer algo catastrófico é muito baixa, porém Fukushima5 não fora um acontecimento no passado, levando sempre a recordar que acidentes como este realmente acabam por ocorrer. Como síntese, Ulrich Beck, exporta uma imagem de um futuro ensombrado para as sociedades modernas, afirmando que “ a sociedade de risco é então uma sociedade catastrófica pois nela, a excepção ameaça tornar-se a norma”(Beck,1992, p.24). Contudo, existem mais autores que partilham desta opinião, embora de uma forma um pouco diferente, Anthony Giddens é um deles. Este será o próximo ponto de abordagem na prossecução do meu ensaio. 5 “Vários funcionários da central nuclear de Fukushima, fortemente atingida pelo sismo e tsunami que atingiram o Japão neste mês, foram evacuados depois de ter sido detectado fumo a sair do reactor número três. Mesmo assim, o governo japonês diz que a situação na central avança de forma lenta mas positiva.” Fonte: http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1811257&seccao=%C1sia “Alguns indivíduos de uma espécie de atum do oceano Pacífico capturados em Agosto de 2011 na costa da Califórnia, nos Estados Unidos, estavam contaminados com radiação da central nuclear de Fukushima, no Japão, libertada depois do sismo de 11 de Março do ano passado.” Fonte: http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/atum-capturado-nacalifornia-tinha-radioactividade-de-fukushima-1548062 147 A Incerteza do Risco GIDDENS E O CONCEITO DE MODERNIDADE O impacto cultural da globalização foi alvo de muita atenção para Giddens. Imagens, ideias, produtos e estilos disseminam-se hoje em dia pelo mundo inteiro de uma forma muito rápida. As consequências da globalização acabam por ter uma dispersão em todos os sentidos, no qual afecta todos os aspectos do mundo social, no entanto, dado a globalização ser um processo aberto e intrinsecamente contraditório, as suas consequências são difíceis de prever e mesmo controlar, representando uma outra forma de pensar esta dinâmica assente no risco. Muitas destas alterações provocadas pela globalização resultam em novas formas de risco, cada uma delas associada à sua época. Ao contrário dos riscos do passado, que tinham causas estabelecidas e efeitos conhecidos, os riscos hoje em dia são incalculáveis e de consequências indeterminadas. (Giddens,2001) Anthony Giddens refere, que os seres humanos sempre se depararam directamente com riscos de várias espécies, mas, actualmente incorporam uma natureza diferente das anteriores. Anteriormente as sociedades humanas estavam sob a ameaça de riscos externos, como, as secas, os terramotos, as pestes, entre outros, onde não existia uma influência por parte da acção do homem, ao qual denominava de riscos externos. Nos dias de hoje a sociedade é confrontada por riscos que resultam do impacto da acção da tecnologia e da ciência sobre o mundo biofísico, ao qual advém a intitulação de riscos manufacturados (Giddens, 2001). As questões ambientais tem vindo a ocupar um lugar de progressiva evidencia na Teoria de Modernidade no qual acaba por surgir sempre articulada a outras, tais como, a globalização, a alocação de recursos no âmbito do domínio militar transnacional e a perturbação trazida pela modernidade à vida pessoal e íntima, como sejam o medo e a ansiedade face ao risco (Schmidt, 1999). Giddens tem vindo ao longo das suas obras a associar os problemas ambientais com conceitos como globalização, para ele o ser humano encontra-se rodeado por uma panóplia de escolhas e de muitas incertezas, estando de certa forma em concordância com a teoria apresentada por Ulrich Beck, ele acaba por reconhecer que fora na era do industrialismo capitalista que ocorrera a explosão dos problemas ambientais como fruto do desenvolvimento da ciência que por sua vez, acabou por levar a um conjunto de riscos elevados. O autor tal como Beck reconhece que a passagem da sociedade industrial para a sociedade actual assenta sobretudo num conceito de Modernidade Tardia, contudo a sua visão não se revela tão pessimista como a de Beck, nem o seu grau de insegurança tão elevado. Tal como irei apresentar mais a frente, Giddens reconhece que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia perderam a sua legitimidade com os 148 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 casos já anteriormente referidos, no entanto Giddens acaba também por observar que poderá ser através da ciência e da tecnologia que se poderá contornar esta desconfiança. Na opinião de Giddens a sociedade acaba por “olhar” para a ciência e tecnologia com alguma desconfiança, é o resultado das consequências sobre o meio ambiente provocadas pelo capitalismo industrial, contudo, o autor não assume uma posição extrema tal como Beck, mas reconhece que é devido à conjugação entre estes dois elementos que ocorre um processo reflexivo do conhecimento, conduzindo à dúvida e à incerteza. De acordo com este autor, o grau de insegurança que é gerado em torno da sociedade, encontra-se muitas das vezes associado ao impacto social e cultural dos riscos de elevadas consequências e baixa probabilidade, associados não só ao ambiente, como também a outros fenómenos marcantes da realidade social contemporânea (Valadas,2012). Para ele, tal como fora para Beck, a perca da legitimidade por parte da ciência e da tecnologia acabou por influenciar fortemente o sentimento de dúvida no universo dos mais leigos. Giddens reconhece que fora o mundo industrial (capitalismo industrial) o principal catalisador dos problemas ambientais, porém também ressalva que poderá ser através dos fatores originários (ciência e tecnologia), que reside a solução a essas mesmas contrariedades. Atualmente, os meios de comunicação social assumem um papel fundamental no processo de intermediação entre a ciência e a sociedade, “funcionando também como formas e/ou rotinas de securização.” (Schmidt,1999, p.198) tal como o sistema “pericial”6, No qual se encontram associados entidades como os peritos, especialistas e técnicos que avocam, organizam e sistematizam as informações, desta forma os “indivíduos transferem a sua confiança daquilo que eram os saberes tradicionais e interacção com pessoas que conheciam” (Schmidt, 1999, p. 198), para um novo tipo de sistema. A este processo Giddens apelidava de “sistemas abstractos” sendo algo que funciona como uma nova rede de confiança. Assim e de acordo com Valadas a complexidade da gestão dos problemas da modernidade tardia obriga a uma acrescida transferência de poder para os sistemas abstractos cuja lógica de funcionamento e racionalidade é opaca à maioria dos leigos. Outro dos pontos abordados por Giddens consistiu na importância dos movimentos ambientalistas e nos seus efeitos sobre o discurso político, estes movimentos que surgiram entre a década de 70 – 80 ainda que fora de uma forma 6 Por exemplo o nosso Infarmed, ao nível nacional, a organização mundial de saúde a uma escala mundial 149 A Incerteza do Risco marginal, acabam por auxiliar a compreensão sobre a natureza ou seja, esta já não é só vista como um recurso produtivo, possibilita ainda instalar-se como uma referência para a experiência perturbada das vidas pessoais na condição moderna. Giddens identificou que o indivíduo ao viver num grau de insegurança elevado acaba por ganhar consciência sobre os riscos globais. Do surgimento desta contraposição da perca da legitimidade pela parte da ciência e da tecnologia, e da possível resposta de estes mesmos factores, a modernidade tardia ou radicalizada acaba-se por definir como uma “juggernaut Society” (de futuro incerto) (Valadas, 2000). Giddens concebe o conceito de “juggernaut society” como resposta à sociedade de risco. CRÍTICAS A ESTES MODELOS Estas teorias acabaram como qualquer teoria por ser alvo de críticas, entre as quais e de acordo com Areosa, os críticos de Beck defendem que o sucesso de conceito de sociedade de risco deve-se mais a circunstâncias históricas (por exemplo, Luhmann vê este conceito como uma moda) do que uma verdadeira teoria social consistente, isto é, defende que a teoria de Beck circula entre a verdade e a profecia. Beck foi também apelidado como o teórico da catástrofe ou apocalíptico. Uma das críticas recorrentes à sua teoria está relacionada com o próprio conceito de risco. Na perspetiva dos críticos de Beck, a sua noção de risco é redutora, visto que esta é simplesmente apresentada como uma resposta às consequências imprevistas da industrialização, particularmente no âmbito dos riscos técnicos e ambientais. São também apontadas insuficiências nas estratégias para gestão de riscos” (Areosa,2008, p. 4). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste trabalho, foi possível visualizar o desenvolvimento da teoria de sociedade de risco sob a perspectiva de Ulrich Beck e Anthony Giddens. Foi para mim um enorme prazer desenvolver esta temática, pois além de ser uma área da qual eu partilho um especial interesse, trata-se também de um território extremamente desafiante em contextos futuros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Areosa, João, (2008), “ O risco no âmbito da teoria Social” in Modernidade, Incerteza e Risco – VI Congresso Português de Sociologia, Mundos Sociais: Saberes e 150 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Práticas, Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa. Beck, Ulrich (1992), Risk Society. Towards a new modernity. London: Sage. Beck, U. (1994), “Dalla società industriale alla società del rischio. Questioni di sopravvivenza, struttura sociale e illuminismo ecologico”, in Teoria Scoiologica, 2, 4 pp. 49-75. Beck, Ulrich (1999), World risk society. Cambrige: Polity Press. Mela, Alfredo, Maria Carmen Belloni e Luca Davico (2001), “O Ambiente na reflexão sociológica”, A Sociologia do Ambiente, Lisboa, Editorial Estampa, pp. 168-172. Giddens, Anthony, (1992), As consequências da modernidade, Oeiras, Celta Editora. Giddens, Anthony,(2001), Sociologia, 7ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Av. Berna, Lisboa. Schmidt, Luísa, (1999), “Sociologia do Ambiente: genealogia de uma dupla emergência”, in Análise Social, nº 150, pp.175 – 210. Publico “Atum capturado na Califórnia com radioactividade de Fukushima” disponível em:http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/atum-capturado-na-california-tinharadioactividade-de-fukushima-1548062 consultado a 12-06-2012. DN Globo “Fukushima : fumo no reactor 3 obriga a evacuar trabalhadores” disponível em: http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1811257&seccao=%C1si a consultado a 12-06-2012. Youtube, “Chernobyl Nuclear Disaster – Surviving Disaster (BBC Documentary)” disponível em:http://www.youtube.com/results?search_query=Chernobyl+Nuclear+Disaste r+%E2%80%93+Surviving+Disaster+%28BBC+Documentary%29&oq=Chernob yl+Nuclear+Disaster+%E2%80%93+Surviving+Disaster+%28BBC+Documentar y%29&aq=f&aqi=&aql=&gs_l=youtube.12...2432.2432.0.3833.1.1.0.0.0.0.82.82. 1.1.0...0.0.xonXw-vL9Q8 Consultado a 13-06-2012. 151 Boletim de Sociologia Militar N.º 3 – 2012 PP. 152 a 162 DOIS OLHARES SOBRE A MESMA PERSPECTIVA – SOCIEDADE DO RISCO - ULRICH BECK E ANTHONY GIDDENS Andreia Filipa Duarte Pires* RESUMO É inevitável falar em sociedade do risco, sem fazer um enquadramento sobre modernidade e pós-modernidade, assim como consequentemente do processo de globalização e risco, e por fim a sociedade do risco em si mesma. Ao pensarmos no desenvolvimento das sociedades não o podemos dissociar da modernidade, que segundo Giddens, se refere aos modos de vida e organização social que surgiu no século XVII na Europa e subsequentemente teve influência mais ou menos global. É relevante enquadrar o tema da globalização, termo este que se refere ao processo de interdependência e relações sociais a um nível mais alargado, no qual se pode afirmar que vivemos num “mundo único”. Associado a esta ideia, estão os fenómenos que lhe são intrínsecos, e a emergência do risco em sociedade. Palavras-chave: Modernidade, Globalização, Sociedade do Risco ABSTRAT It is inevitable to talk about risk society without referring modernity and post modernity, which led we can say to the process of globalization and risk, and obviously the risk society itself. When we think of the development of societies we can’t dissociate it from modernity, which , according to Giddens, gave rise to different ways of life and social organization that emerged in Europe, in the XVII century , and globally had a gradual increase as consequence. It’s important talk about globalization as a frame of reference, since it is connected to the process of interdependence and social relations to a wider level, once we live in a “one world”. Related to this process are the intrinsic events and the rising risk in society. Keyword: Modernity, Globalization, Risk Society I – MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE São diversos os autores que falam em modernidade e pós-modernidade relativamente à sociedade. Um destes autores é Featherstone (1989), defende que o pós-modernismo é um reflexo do mundo Ocidental, mostrando um corte ou ruptura com a modernidade, contrapondo-se a esta. Relativamente aos conceitos de modernidade e pós-modernidade, cito Featherstone em que este diz: […]. A modernidade é definida geralmente como tendo surgido com o Renascimento e foi definida em relação à Antiguidade […]. Na perspectiva da teoria sociológica Alemã dos finais do século XIX, princípios do século XX, da qual deriva em grande parte o nosso sentido comum * Licenciada em Sociologia pela Universidade da Beira Interior, E-mail: [email protected] 152 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 do termo modernidade é contraposta à ordem tradicional e implica a progressiva racionalização e diferenciação económica e administrativa do mundo social […] (Featherstone, 1989, p.95). No entanto, Featherstone (1989) quando fala em pós-modernidade sugere uma mudança de paradigma ou ruptura com a modernidade envolvendo a emergência de uma nova totalidade social com princípios próprios de organização. Todavia o conceito pós-moderno deve integrar o moderno. Evocando Lyotard (1984) (in Featherstone, 1990, p.96) quando fala de modernidade, diz que esta deve ser vista como qualidade da vida moderna, da qual produz um sentido de descontinuidade no tempo. Tal como defende Giddens (1996) quando fala na descontinuidade da modernidade, para este autor, a modernidade refere-se aos modos de vida e à organização social que emergiu na Europa por volta do século XVII exercendo influência a nível global. Apesar de muitos defenderem a ideia de estarmos a entrar numa nova era – a pósmodernidade, ou como alguns preferem designar esta transição, sociedade da informação ou sociedade de consumo, pelo facto de nos encontramos a caminhar para um sistema centrado na informação. Neste sentido, Giddens (1996) sustenta a ideia de que se está longe da época pósmoderna – pós-modernidade, mas sim no começo de uma época de consequências da modernidade, portanto fala das descontinuidades da modernidade em que os modos de vida nesta alteram-se tanto em extensividade como em intensividade. Em extensividade, as transformações na modernidade criaram formas de interligação social à escala global e em termos de intensividade, transformaram-se as características mais íntimas e pessoais da nossa vida. As descontinuidades da modernidade apresentadas por Giddens (1996) assentam em três factores: a) Primeiramente o ponto a focar é o ritmo da mudança, onde na era da modernidade é mais dinâmica do que noutros sistemas tradicionais anteriores no qual a rapidez da mudança é extrema e é mais visível no que respeita à tecnologia mas estando presente em todas as outras esferas; b) O alcance da mudança é o segundo ponto a mencionar, do qual à medida que globalmente se interligam diferentes regiões do mundo leva a que surjam transformações sociais à escala global; c) Por último, o terceiro ponto a referir é a natureza das instituições modernas, isto é, ao contrário de períodos históricos anteriores, a modernidade não se vê representada em alguns modelos sociais modernos como é o caso do sistema político de Estado-Nação, a dependência generalizada da produção do recurso a fontes de energia inanimadas e ainda a completa transformação dos produtos e do trabalho assalariado em mercadorias, enquanto noutros modelos sociais modernos preexiste uma continuidade ilusória. 153 Sociedade do Risco Acerca da modernidade, Giddens (1996) faz também referência ao dinamismo desta, apresentando três factores que caracterizam as instituições modernas: - a separação do tempo e do espaço, esta separação é a condição do distanciamento espacio-temporal de alcance indeterminado; - o desenvolvimento de mecanismos de descontextualização, estes mecanismos reorganizam as relações sociais através de grandes distâncias espaço-tempo; e por último, - a apropriação reflexiva de conhecimento, esta apropriação afasta-se da tradição, pelo facto de a produção de conhecimento sobre a vida social ser parte integrante da reprodução do sistema (Giddens, 1996, pp.36-37). II – GLOBALIZAÇÃO A globalização implica olharmos para o mundo de uma forma global. Esta apresenta-senos de uma forma diferente, passamos a estar interdependentes das relações entre países, o local transforma-se em global, onde as nossas acções locais se repercutem ao nível global. Tornamo-nos mais conscientes dos problemas que se passam à nossa volta a nível mundial, dado que estes podem exercer influência nas nossas vidas, isto é, o local pode condicionar o global, assim como o inverso. Fazendo alusão a Giddens (2004), a globalização é um fenómeno que se transpõe para a esfera mais íntima da vida pessoal através de meios impessoais como a internet, os media, que nos dão a conhecer mais rapidamente, muitas vezes quase em “tempo real”, as situações que acontecem no mundo, salientando também o contacto pessoal com indivíduos de outros países e culturas, transformando definitivamente as experiências pessoais quotidianas dos indivíduos. Importa frisar que as transformações que a globalização acarreta implicam uma redefinição ao nível pessoal e mais íntimo das nossas vidas tais como os papéis de género, as interacções com os outros, a identidade pessoal, a família e a sexualidade. Citando o autor, […]. Graças à globalização, a forma como nos concebemos a nós próprios e a relação com as outras pessoas estão a ser profundamente alterados (Giddens, 2004, p.61). II.I – GLOBALIZAÇÃO, RISCO E MODERNIDADE Como mencionado acima, a globalização é um processo caracterizado pela intensificação das relações sociais à escala global, regiões interligadas entre si, em que os acontecimentos locais são moldados influenciando outros locais mais distantes – cite-se aqui Giddens quando diz: a modernidade é inerentemente globalizante (Giddens, 1996, p.44). Voltando o discurso para o risco, o risco em sociedade surge com o “ajustar” das sociedades à globalização em todos os seus aspectos e todas as transformações ocorridas a nível institucional pelo advento da modernidade. 154 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Hoje quando se fala em risco, muitos dos quais estamos expostos têm origem na criação humana e não tanto primordialmente do mundo natural como outrora. Citando Lasch, este autor esquematiza o risco do mundo contemporâneo, olhando com mais pormenor para a modernidade, da seguinte forma: “1 – Globalização do risco no sentido da intensidade: por exemplo, a guerra nuclear pode ameaçar a sobrevivência da humanidade; 2 – Globalização do risco no sentido do crescente número de acontecimentos contingentes que afectam todas as pessoas ou, pelo menos, um elevado número de pessoas no planeta: por exemplo, mudanças na divisão global do trabalho; 3 – Risco decorrente do ambiente criado, ou natureza socializada: a infusão de conhecimento humano no ambiente material; 4 – Desenvolvimento de ambientes de risco institucionalizado que afectam as oportunidades de vida de milhões de pessoas: por exemplo, os mercados de investimentos; 5 – Consciência do risco enquanto risco: as “falhas de conhecimento” sobre os riscos não podem ser convertidas em “certezas” através do conhecimento religioso ou mágico; 6 – Consciência bem difundida do risco: muitos dos perigos que enfrentamos colectivamente são conhecidos de vastos públicos; 7 – Consciência das limitações da pericialidade: nenhum sistema pericial o pode ser totalmente em termos das consequências da adopção de princípios de pericialidade.” (Lasch cit. por Giddens, 1996, pp.87-88). Ao falar-se de globalização e risco, reporta-nos irremediavelmente para as consequências de largo alcance e de como estas são de certo modo imprevisíveis, indeterminadas, incalculáveis e difíceis de controlar afectando todos os aspectos do mundo social. Uma das consequências que a globalização traz são a multiplicação dos riscos manufacturados – isto é, estes riscos dependem do impacto da acção do nosso conhecimento e da tecnologia sobre o mundo natural, ou seja, resultam da nossa acção sobre a natureza. O indivíduo nas sociedades humanas sempre esteve perante a ameaça de riscos, mas estes eram externos – sucedidos de terramotos, tempestades, secas e fome, não estando dependentes da acção do homem. Actualmente são os riscos manufacturados que estão presentes e ameaçam as populações. Dentro destes riscos manufacturados, são-nos apresentados por exemplo os riscos ambientais e os de saúde. Em relação aos riscos ambientais, o crescente aumento da intervenção do homem sobre a natureza através do desenvolvimento industrial e tecnológico aumentou o risco a nível ambiental, de tal forma que umas das causas maiores, será a crescente preocupação com o aquecimento global, do qual se sabe que provêm diversos problemas globais, entre os quais: o degelo dos glaciares, o aumento do efeito de estufa, aumento da camada de ozono. Comparativamente, os riscos de saúde também tem assumido uma preocupação crescente por parte dos meios de comunicação e campanhas para a saúde 155 Sociedade do Risco devido às pessoas estarem cada vez mais expostas ao sol sem se lembrarem nos malefícios do mesmo, ignorando por exemplo o risco elevado de sofrer de cancro da pele, também estes riscos advêm do aumento do volume de emissões químicas produzidas pela indústria e mais uma vez pela actividade humana. Para Beck (1992) (in Giddens, 2004, pp.68-69), a globalização é a “responsável” pelo surgimento de uma sociedade de risco global, o autor não considera apenas os riscos ambientais e de saúde como ameaça, mas antes todas as mudanças na vida social contemporânea que estão a surgir, os indivíduos vêem-se “obrigados” a pensar a sua posição em relação ao mundo, isto é, temos que nos ajustar e responder constantemente a estas mudanças, desde a alteração dos padrões de emprego à democratização das relações sociais. Segundo Beck (1995) um aspecto importante da sociedade de risco é que os seus perigos não são limitados espacial, temporal ou socialmente (cit. por Giddens, 2004, p.69). O fenómeno da globalização, como é referido por Giddens (2004) também se desenha sob a forma de desigualdade, ou seja, os países encontram-se diferenciadamente expostos a este fenómeno, sendo sentido assimetricamente o impacto desta nos diferentes países. Os países “desenvolvidos” ou industrializados têm maior poder e desenvolvimento económico estando este concentrado num pequeno número de países sobre os países de “terceiro mundo”, onde persiste um fosso de disparidade cada vez maior, vejamos que é aqui que se sofre de generalizada pobreza, sistemas de prestação de cuidados de saúde e educação deficientes e obsoletos, pesadas dívidas externas e sobrepopulação. A globalização é um processo em aberto, de forma rápida e assimétrica com consequências inesperadas e difíceis de controlar, que resulta da conjugação de diferentes factores sociais, políticos, económicos e culturais. Caracteriza-se fortemente pelo avanço das tecnologias de informação e comunicação e intensificação das relações sociais. No que respeita à disparidade entre países ricos e pobres, pode dizer-se que é nos países ricos que se concentram os recursos e o consumo, a riqueza e o rendimento, no entanto inversamente a esta perspectiva encontra-se a dívida externa, a fome e a doença e naturalmente a crescente situação de pobreza associada aos países mais desfavorecidos que acabam por ser marginalizados ou mesmo acabando por ser excluídos do processo de modernização e globalização já que se acentua a sua dependência para com os países mais ricos. Seria um desafio para o mundo global, que neste século XXI, o processo de globalização chegasse de forma igualitária a todos com as mesmas oportunidades ou que a cooperação transnacional entre os países permitisse um mundo social melhor para todos, já que os que mais necessitam de ajuda são os que correm risco de continuar no processo de exclusão global se assim se pode dizer. Actualmente é “impensável” agir localmente sem pensar globalmente. 156 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 III – A SOCIEDADE DO RISCO – CONFRONTAÇÃO ENTRE BECK E GIDDENS O risco é transversal a todos os sectores da sociedade como afirma Queirós, Vaz e Palma (2006), autores como Beck (1992, 1994, 1999) e Giddens (1991, 1998, 1999) (in Queiróz, Vaz, Palma, 2006, p. 1) centram a sua tese no facto de vivermos numa sociedade onde a industrialização, os avanços tecnológicos emergem em prol do desenvolvimento e progresso, modificando a natureza dos riscos e a capacidade da sociedade os gerir e compreender. O grande paradigma da sociedade moderna é o “risco” uma vez que temos hoje uma maior consciência dos riscos que nos ameaçam. Queirós, Vaz e Palma (2006) afirmam que as sociedades sempre estiveram expostas ao risco mas de modos diferenciados, isto é, primeiramente o risco estava presente como produto da acção não humana – os riscos não são controlados pelo Homem – e actualmente os riscos são produto da acção humana dado resultarem do processo de modernização e das alterações das estruturas de organização social. No seguimento desta perspectiva podem esquematizar-se as características de Beck (1992) e Giddens (1996) relativamente à evolução das sociedades. Beck fala na evolução das sociedades composta por três períodos: sociedades tradicionais, primeira modernidade e segunda modernidade representada no Quadro I, Giddens por sua vez fala do risco nas sociedades prémodernas e modernas representadas no Quadro II. Quadro I – Características das sociedades tradicionais, da primeira modernidade e segunda modernidade, segundo Beck (1992). SOCIEDADES TRADICIONAIS PRIMEIRA MODERNIDADE SEGUNDA MODERNIDADE - Estruturas comuns; - Peso do Estado-Nação; - Reflexividade; - Influência da família na - Estrutura de classes sociais; - Destradicionalização; construção da individualidade; - Pleno Emprego; - Individualização; - Tradição; - Rápida Industrialização; - Globalização; - Religião/Crenças - Desemprego; - Revolução de género; -Progresso tecnológico/ Poder tecnocrático; - Segurança; - Dúvida quotidiana; - Previsibilidade; - Incerteza; - Confiança; - Fragmentação Cultural; - Norma - Insegurança FONTE: adaptado de Beck (1992), cit. por Queirós et. al (2006) Assim, ao analisarmos o quadro, notamos que Beck vai ao encontro de Giddens no sentido de se privilegiar nas sociedades tradicionais a tradição como influência da construção da identidade, em que se vive o ambiente dos riscos previsíveis, confiança e a seguranças nas 157 Sociedade do Risco instituições sociais ao invés do que se assiste actualmente na passagem da primeira para a segunda modernidade – aqui é desprivilegiada a tradição, existindo uma maior individualização da sociedade dado que a globalização de certo modo causou uma fragmentação da “essência” das sociedades tradicionais, citando o autor, este entende pela segunda modernidade o facto de as instituições modernas se estarem a tornar globais, enquanto a vida quotidiana se está a libertar do jugo da tradição e dos costumes (cit. por Giddens, 2004, p.679), ainda Beck (1992) refere o processo de perda de tradições como forma dos indivíduos tomarem as próprias decisões resultando desse modo, novos estilos de vida. Contudo com o crescente desenvolvimento do nível tecnológico e industrial, também se revolucionaram os papéis de género. Observe-se que com o risco, surge a insegurança relativamente às instituições sociais uma vez que se fala sobre a capacidade de resposta aos problemas que advêm da globalização e modernidade, a incerteza e a dúvida, e também a crescente interacção com outras culturas e países levando à fragmentação da própria cultura. Complementando a ideia de Beck, Giddens (1996) faz também uma análise do risco nas sociedades pré-modernas e modernas. Observe-se o Quadro II. Quadro II – Ambiente de Risco nas sociedades pré-modernas e modernas segundo Giddens SOCIEDADES PRÉ- SOCIEDADES MODERNAS MODERNAS (Segunda Modernidade) (Primeira Modernidade) AMBIENTE DE RISCO - Ameaças e perigos - Ameaças e perigos emanados provenientes da natureza, tais da reflexividade da modernidade; como a prevalência de doenças infecciosas, insegurança climatérica, cheias ou outras - Ameaça de violência humana à catástrofes naturais; industrialização da guerra; - Ameaça de violência humana por parte saqueadores, de exércitos senhores de - Ameaça de perda de sentido da pessoal, derivada reflexividade da guerra locais, ladrões; da modernidade aplicada ao self. - Risco da perda da graça religiosa. FONTE: adaptado de Giddens, 1996, p.70. Parafraseando Beck (1992), sobre a evolução das sociedades representadas no Quadro I, as sociedades tradicionais podem considerar-se as existentes na Europa até ao início da Revolução Industrial, caracterizadas pela forte influência da família e forte religiosidade. A primeira 158 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 modernidade afirmou-se na Europa nos séculos XVII e XVIII, aqui a Igreja perde poder e a família passa a ser nuclear, substituindo a família alargada. O modelo da primeira modernidade assenta na rápida industrialização, pleno emprego e pela grande influência do Estado-Nação, ainda assim com todas estas alterações prevalece um ambiente de confiança, segurança e previsibilidade. A segunda modernidade teve início no século XX permanecendo até aos dias de hoje. Beck (1992) afirma que os riscos são uma causa do processo de modernização, em que a industrialização não se pode dissociar da produção de risco e onde o avanço tecnológico é apontado como um índice de causa-efeito deste processo, do qual Beck defende a ideia de que […] os riscos ultrapassam os limites temporal e territorial, e são produto dos excessos da produção industrial. […] (Castiel, 2001, in Navarro e Cardoso, 2005 cit. por Queirós et al., 2006, p.8). Já Giddens defende a perspectiva de que […] os riscos na sociedade reflexiva extrapolam as realidades individuais e até mesmo as fronteiras territoriais e temporais em resultado do processo de globalização (Giddens, 2001, cit. por Queirós et al., 2006, p.7). […] Na era da modernidade reflexiva uma acção independentemente da escala – individual, social e internacional – tem consequências a uma escala imprevisível (Slattery, 1991, cit. por Queirós et al., 2006, p.7). Ambos os autores põem em foco o debate sobre o risco como questão fundamental das sociedades modernas, particularmente os riscos tecnológicos e ambientais. Eles defendem que a sociedade contemporânea se caracteriza pela radicalização dos princípios que orientam o processo de modernização industrial, que marcam a passagem da sociedade moderna para a sociedade de risco – onde com o início da modernidade, os riscos ambientais e tecnológicos são complementares das sociedades industrializadas dado ser o progresso do desenvolvimento da tecnologia e ciência que produz novos riscos de carácter global, riscos em que as consequências são imprevistas como é o caso do já mencionado aquecimento global, escassez e poluição dos recursos hídricos, efeito estufa. A origem da sociedade do risco é marcada pela catástrofe de Chernobyl. Uma das propostas de Giddens (1998) (in Guivant, 1998, pp. 26-27) para enfrentar os riscos da modernidade, passa por uma redefinição das políticas pressupondo uma reorientação nos valores e nas estratégias, designando este processo como “política da vida”, isto é, a discussão assenta no modo como iremos viver as escolhas sobre o que no passado era visto como natural e inevitável. O impacto global do desenvolvimento industrial sobre os ecossistemas é um dos quatro tipos de crises globais diferenciais de Giddens (1994b) (in Guivant, 1998, p.27), sendo os outros, o desenvolvimento da pobreza, a propagação de armas de destruição maciça e a proibição dos direitos democráticos, diz ainda que não há possibilidade de pensar a natureza excluindo-a dos ecossistemas sociais, uma vez que este é o parâmetro base dos riscos ambientais e tecnológicos. Beck (1994) (in Guivant, 1998, p.28) também centraliza a questão do risco no eixo político, identificando a segunda fase da modernidade como favorável a novas estratégias políticas, onde à 159 Sociedade do Risco primeira fase da modernidade, corresponde a passagem da sociedade industrial para a sociedade de risco, emergente de uma dinâmica de radicalização da modernidade. À segunda fase da modernidade, corresponde uma reflexividade sobre as consequências da modernidade industrial sendo estas questionadas política e socialmente por organizações de interesse e pelo sistema político. No domínio do risco, considera-se importante citar o autor Franklin (1998), este afirma que […] a forma com que interpretamos os riscos, negociamos os riscos, e vivemos com as imprevisíveis consequências da modernidade estruturará a nossa cultura, sociedade e política pelas próximas décadas (cit. por Guivant, 1998, p.35). CONSIDERAÇÕES FINAIS Em jeito de conclusão, pode afirmar-se que o risco passou a ser a questão e o debate fundamental das sociedades modernas. A modernidade acarretou muitas mudanças positivas como o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a industrialização (mais avançada), o debate sobre questões que até então não tinham tanta relevância tal como o inevitável debate nas agendas políticas e sociais do risco. Beck e Giddens são dois autores incontornáveis quando se fala em sociedade do risco. Beck foi o autor que alertou para a temática do risco a que as sociedades estão sujeitas actualmente, tal como Giddens. Este autor – Beck (2000) –, diz que a sociedade de risco surge como resposta à sociedade industrial, pois “[…] a terminologia de sociedade de risco designa essencialmente uma condição das sociedades contemporâneas, nas quais os riscos sociais, individuais, políticos e económicos tendem, de forma crescente, a escapar à protecção, controlo e monitorização da sociedade industrial. […]” (Beck (2000) cit. por Areosa, 2008:6), parafraseando ainda o autor, este afirma que hoje o risco provém das incertezas criadas pelo nosso próprio desenvolvimento social tal como o desenvolvimento da ciência e da tecnologia do que dos perigos naturais como acontecia anteriormente. Os autores Douglas e Wildavsky (1982) dizem que o risco é socialmente construído, e, por vezes, afigura-se como algo incontrolável visto que nós nem sempre conseguimos saber se aquilo que estamos a fazer é suficientemente seguro […]. Assim, a visão dos actores sociais sobre os riscos aos quais estão sujeitos é sempre parcial ou incompleta (cit. por Areosa, 2008, p.3). O risco é pautado pela incerteza – uma das suas dimensões – esta é vista como omnipresente e condicional, pois não temos a possibilidade de conhecer e controlar todos os riscos a que estamos expostos, tanto hoje – presente – como no futuro, sendo esta uma característica da contemporaneidade como afirmam os autores Douglas e Wildavsky (1982) (in Areosa, 2008:4). Logo, pode olhar-se para a modernidade, moldada e ajustada a um novo padrão 160 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 – o risco, a emergência de novos riscos que se transformaram num fenómeno global capaz de nos transformar relativamente aos riscos a que nos encontramos expostos. Alguns exemplos destes riscos “invisíveis” mas “reais e presentes” são: a diminuição da camada de ozono, a poluição ambiental, o crime organizado, os ataques terroristas, a proliferação de arsenal bélico sofisticado, a modificação genética dos alimentos (transgénicos). São estes os riscos contemporâneos na nossa sociedade e aos quais devemos ter a percepção que nos podem vir a afectar. É a partir desta “era da modernidade” em que vivemos hoje que podemos questionar, um pouco em jeito de afirmação, que vivemos condicionados pelo medo, com a percepção do risco sempre presente no nosso comportamento, tendo a percepção da influência que a nossa acção individual ou colectiva poderá causar danos à escala local ou global, em que muita das vezes não se tem poder de controlo sobre essas mesmas acções. Não se esquecem acontecimentos, como o 11 de Setembro (2001), e 11 de Março (2004) na Estação de Atocha em Madrid, que marcaram e iniciaram uma fase de terrorismo. Salientando também os fenómenos ecológicos/naturais como o Tsunami na Indonésia (2004), o sismo no Haiti (2010) e mais recentemente a erupção do vulcão da Islândia (2011). Tudo isto incentivou a reestruturação das agendas globais tanto a nível político como social. São fenómenos como estes que de alguma forma nos fazem ter uma percepção diferente do mundo em que vivemos actualmente, um mundo repleto de ameaças e riscos muitas vezes imperceptíveis mas “reais”. BIBLIOGRAFIA Areosa, João (2008), O risco no âmbito da teoria social, comunicação apresentada no VI Congresso Português de Sociologia, Lisboa, Mundos Sociais: Saberes e Práticas; Beck, Ulrich (2000), What is globalization?, Politic Press; Beck, Ulrich, GIDDENS, Anthony., LASH, Scott. ([1994] 2000), Modernização Reflexiva: Política, Tradição e Estética no Mundo Moderno, Volume XXXVI (Outono), Análise Social, pp. 10151020; Castles, Stephen (2002), Estudar as transformações sociais, Revista Sociologia – Problemas e Práticas, N.º 40, pp.123-148; Featherstone, Mike (1989, Junho), Moderno e Pós-Moderno, Definições e interpretações sociológicas, comunicação apresentada na Conferência do ISCTE, a convite da Revista Sociologia – Problemas e Práticas e da Revista Crítica das Ciências Sociais, Lisboa, Revista Sociologia – Problemas e Práticas, N.º 8, 1990, pp. 93-105; Giddens, Anthony (2004), Sociologia, 4ª Edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian; Giddens, Anthony (1996), As Consequências da Modernidade, 3ª Edição, Oeiras, Celta Editora; 161 Sociedade do Risco Guivant, Julia, S. (1998), A Trajectória das Análises de Risco: da periferia ao centro da teoria social, Revista Brasileira de Informações Bibliográficas ANPOCS, N.º 46, pp. 1-40; Queirós, Margarida, VAZ, Teresa, PALMA, Pedro (2006), Uma reflexão a propósito do Risco, Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 1-23. 162 Boletim de Sociologia Militar N.º 3 – 2012 PP. 163 a 176 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011): dois conceitos em conflito, devido às mudanças da economia política Cândido Peixoto Fernandes* RESUMO Devido às transformações da economia política na derradeira década, ocorreu uma mudança radical de interpretação socioeconómica de um conceito operativo fundamental, como é o “Emprego”. Esta mutação neo-clássica liberal, implicou, em primeiro lugar, a eclosão de condições depressivas únicas e a mutação de perspectiva do Estado Democrático, quanto ao fenómeno do Emprego. Assim, desta dupla transformação, negativa, segundo todos os dados disponíveis, se gerou o seu abandono em simultâneo, por parte do Estado e do Mercado, levando ao aparecimento de algo de novo e trágico em Portugal – e na Europa - que é o “Desemprego Estrutural”. Palavras-chave: emprego, desemprego, estrutural, neo-clássico ABSTRACT Due to the transformations of political economy at the last decade, there has been a radical change in socio-economic interpretation of a key operative concept, as is the "job". This mutation neo-classical liberal, implied, first, the emergence of depressive conditions unique and changing perspective of the democratic state, as the phenomenon of job. Thus, this double transformation, negative, according to all available data, its abandonment was generated simultaneously by the state and the market, leading to the emergence of something new and tragic in Portugal - and Europe - which is "Structural unemployment”. Keywords: employment, unemployment, structural, neo-classical. 1. QUAL A DEFINIÇÃO ADEQUADA DE DESEMPREGO ESTRUTURAL? O Desemprego Estrutural em Portugal caracteriza-se por ser um género de desemprego massivo, involuntário e de longo prazo, que fundamenta o sistema capitalista neo-liberal, quanto à política salarial e condições laborais, mesmo a nível de Estado, quanto mais, em termos de Mercado. Já que passando a haver uma massa tão grande de trabalhadores disponível no desemprego, sem qualquer possibilidade de sair dessa condição, estes se irão revelar dispostos a aceitar um salário abaixo do SMN (Salário Mínimo Nacional), para poder trabalhar. Então, o patronato pode impor o salário e as condições laborais e contratuais que entender, com o fito, sempre, de obter maiores lucros e maior produtividade, com maiores cargas horárias e menores condições de remuneração e para o trabalhador e menos direitos. * Licenciado em Comunicação Social, pela Universidade do Minho (Braga, Portugal) e jornalista de profissão. E-mail: [email protected] 163 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Com a actual Depressão Económica, que eclodiu em 2007, o Desemprego Estrutural tornou-se em Portugal dir-se-ia que necessário e "naturalizado", essencial à manutenção económica do sistema capitalista neoliberal, embora já houvesse um nível alarmante de desemprego conjuntural a partir do ano 2001, com cerca de 4,1%. O Desemprego Estrutural caracteriza-se, assim, em traços gerais: 1º por ser um género de desemprego de longa duração (mais de 2 anos), muito duradouro e estável; 2º por ser massivo e sem solução à vista; 3º um desemprego involuntário, em que a grande maioria dos cidadãos nessa condição não tem culpa, são alheios às suas causas e não desejam continuar desempregados. Os desempregados caíram nessa condição socioeconómica altamente desfavorável contra vontade, já que viram os seus contratos de trabalho rescindidos pela entidade patronal, fosse por limite de tempo contratual, desnecessidade ou por despedimento simples, individual e colectivo. Com tão grande número de casos comprovados, logo se confirma esta característica de “involuntário”, quanto ao recente Desemprego Estrutural. E este deve-se à enorme quantidade de unidades de produção encerradas, por falência e bancarrota, durante o processo de “desindustrialização” e de “destruição de emprego”, por via especulativa financeira e por decisão administrativa. O Governo português, dada a adopção de políticas neo-clássicas (ou ultraliberais), abandonou deliberada e conscientemente, a anterior política de "Pleno Emprego", consagrada constitucionalmente, para passar a confiar em exclusividade, no Mercado livre. Segundo defendem os seus mentores, este Mercado irá alcançar um novo ponto de equilíbrio e superar a crise a prazo, através dos seus mecanismos automáticos de auto-ajustamento (preços, salários e taxas de juro), afastada a hipótese de intervenção do Estado, em nome do Bem Comum. Nestas condições adversas, sem uma política de "Pleno Emprego", irá cristalizar-se o trágico fenómeno do Desemprego Estrutural durante tempo indeterminado, na Sociedade e Economia portuguesas, a que se deve seguir uma pauperização e precarização crescente das condições de vida entre a População Activa. 1. DESEMPREGO ESTRUTURAL VERSUS PLENO EMPREGO Uma das primeiras ilações a retirar da tentativa de redefinir o que seja o Desemprego Estrutural, é que a oposição ideológica entre duas correntes, como sejam o neo-keyneseanismo e o neo-classicismo, corresponde a dois conceitos divergentes de “Pleno Emprego”, logo à partida. Mais do que em relação ao antigo conceito, o que o novo “Desemprego Estrutural” está a confrontar, é o “Pleno Emprego”. O “Pleno Emprego” era entendido como uma Economia que utilizava ao máximo a sua capacidade tecnológica e todos os factores de produção - o trabalho, o capital e os inputs 164 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011) (investimento, matéria-prima e bens de capital ou maquinaria). Este ponto de equilíbrio não admitia mão-de-obra desempregada, acima dos 3% da População Activa. Devido à Depressão Económica, essa situação de equilíbrio rompeu-se. A interpretação sociológica do que se pode considerar legitimamente como “Desemprego Estrutural” mudou e não no sentido progressivo, em termos científicos. O que deve alterar a consciência social por veiculação ideológica da nova superstrutura. Um problema tão grave deixou de ser considerado como prioritário, a nível de Estado. É, aliás, o maior perigo subjacente, a nível teórico e na realidade concreta. Essa fracção da População Activa deve ver-se “legalmente” abandonada – como se o “desemprego” fosse um problema irresolúvel e não houvesse ciência para focar e atacar tal contrariedade, sequer. Existe um grave problema de interpretação sobre o que está em causa, na actualidade, quando vivemos no meio da mais grave fusão de crises desde a Grande Depressão de 1929. Este problema deriva da falta de memória histórica e da ausência de uma boa interpretação política sobre as duas grandes correntes ideológicas, o neo-classicismo liberal e o neo-keyneseanismo – a que se pode unir a falta de um instrumento de análise tão elementar, como o “Desemprego”, visto de forma correcta, dentro do âmbito da Sociologia. Dado que a base teorética em causa se identificou como sendo neo-clássica, com o seu maior fundamento na Escola Austríaca (von Mises e Hayek), nasceu uma confrontação política muito profunda entre os ultraliberais e os ainda neo-keyneseanos. Cuja maior contribuição prática foi a Época da Prosperidade que o Ocidente viveu a partir de 1945, o Welfare State - e a Escola Institucional (cuja obra maior é a "Economia" de Paul Samuelson, uma síntese entre os princípios neo-clássicos e keyneseanos, tendo aceite parte das teses do economista J. M. Keynes). A separação entre estas duas grandes correntes continuou, havendo uma cisão entre economistas e sociólogos, que viraram as costas à teoria contrária. Eles separaram-se, entrincheirando-se em posições irreconciliáveis e ignorando os argumentos da outra parte. Por esta razão, apesar dos neo-clássicos terem vencido de forma surpreendente no inicio deste século, e construído uma nova economia de cariz regressivo e anti-democrático, os neokeyneseanos, como Krugman, Stiglitz e Roubini, apenas para citar os mais famosos - continuam a seguir a regra de desclassificar totalmente o adversário, persistindo em dar a sua interpretação dos factos e recusando-se a explicar o porquê da sua atitude. A desclassificação académica dos neo-clássicos apoia-se no pressuposto que é uma obviedade, desta corrente não funcionar. E essa condenação nasce da sua ética académica e profissional e também, da profusão de dados negativos de cariz socioeconómicos, relacionados com a Depressão actual e a anterior. Eles condenam a teoria oponente e colocam-lhe o catálogo de "fuzzy economics". Recusam-na e não a explicam: baseiam-se apenas no ensino e interpretação da realidade, a partir dos seus próprios princípios. Se nasce ou não uma confusão deste confronto, não cabe aos 165 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 teóricos ir mais longe, pois eles estão cristalizados nas suas posições, confirmadas pela experiência prática – a sociedade contemporânea. Romper com esta atitude é romper com a sua ética. O que se pode fazer, então, para tentar compreender este conflito teórico insanável? Uma proposta seria agir como um advogado em tribunal. Ou seja, para entender um caso judiciário, e se houver oportunidade disso, deve-se assumir alternadamente a defesa e a acusação do caso, de modo a conhecer com profundidade as motivações, as causas e os preceitos jurídicos que ambos utilizam para resolver o caso. Aquilo que a defesa e a acusação dizem. Apenas assim se pode entender o que se passa na globalidade – e sociologicamente, também. E o mesmo se aplica às duas escolas económicas em confronto - depois de conhecer as causas que movem cada uma delas, deve-se confrontá-las, até poder formar uma opinião mais consciente. Este esclarecimento ideológico e teórico é fundamental para criar conceitos operativos na Sociologia. Um dos mais importantes, senão o mais importante na área – dado o enorme impacto socioeconómico que tem e deriva, como um estilhaço, da Depressão, é o Desemprego Estrutural. O flagelo que se está a gerar, a avolumar e a instalar na Sociedade Portuguesa devido a causas políticas e não científicas. 2. AS MUDANÇAS OPERADAS NO CONCEITO DE “DESEMPREGO ESTRUTURAL” A questão passou a ser a linha política de fundo, adoptada pelos países ditos "avançados", é uma versão extrema do Liberalismo Económico Clássico. Pela chamada “terceirização”, a Economia e o Estado continuam subjugados pelo capital financeiro. O mais premente dos problemas actuais é, sem dúvida, desde o ponto de vista sociológico - o Desemprego Estrutural. E para compreender a absoluta inacção dos actuais Governos e a carência prolongada de qualquer programa, salvo medidas residuais, como manter os Centros de Emprego abertos - ou a ligação com a Segurança Social, apenas para contabilizar os trabalhadores ou no sentido de os ir eliminando, quando cancelados os subsídios de emprego, os subsídios sociais, o RSI (Rendimento Social de Inserção), os abonos de família e outros benefícios "cortados"? Repete-se o padrão do novo Liberalismo Clássico como argumento central: apenas revendo os seus standards atávicos, como o "desemprego friccional", se pode entender o que se passa. Ou seja, um género de desemprego que resulta do desajustamento passageiro entre os mecanismos automáticos de auto-ajustamento do mercado (preços, salários e taxa de juros). Para os neo-liberais, o desemprego "não existe", em grande parte, pois é da exclusiva competência dos agentes do Mercado - e dai não haver necessidade do Governo se mover nesse sentido. O mercado irá resolver os atritos - dizem eles. Dai a necessidade de confirmar quais são os conceitos operativos do liberalismo clássico agora reeditado, na área. Também não existe uma 166 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011) crise global, é sempre sectorial e não global – e refere-se apenas ao sector da Divida. E daí advêm, em consequência, o não reconhecimento oficial de que exista qualquer crise verdadeira, sequer. Alguns neo-clássicos, como Milton Friedman, tentaram moderar este conceito de "desemprego friccional" dos clássicos, que ignorava este fenómeno - por ex. nos anos 20 do passado século - quando os sindicatos ingleses lutavam para que se reconhecesse oficialmente o estatuto de "desempregado". Os monetaristas propuseram, por ex., a "taxa natural de desemprego" - a Economia tende, a longo prazo, a criar tal taxa, ligado, entre outras coisas, a expectativas negativas em relação à subida dos salários, que coligados à taxa de inflação, anulavam o lucro dos empresários - e por conseguinte, iriam criar mais desemprego. Mas, agora, nem estas explicações arrevesadas concedem: os ultraliberais vêm a público esclarecer com naturalidade, instalada a sua ideologia a nível sistémico - que um aumento de 1,3% da Taxa de Desemprego (cerca de 50 mil novos desempregados) - se deve à descida do Deficit Público em -3%. Estes ignoram tudo porque tais problemas não cabem no seu modelo: especulação financeira, desemprego, crise... A primeira é um negócio como os outros, o desemprego não existe ou de atrito e passageiro, a Economia funciona sempre no "pleno emprego", (dentro das possibilidades do momento, talvez?), a crise apenas pode ser parcial e não global, etc. Os dados são contundentes: no 4º trimestre de 2011, a Taxa de Desemprego atingiu 14% em Portugal e 10,4% na Zona Euro. A estruturação sociológica (entendida como criar uma estrutura persistente), deste género de Desemprego é simples de comprovar, por simples ilação percentual e se a sobrepomos ao factor tempo. No 4º trimestre de 2001, 4,1% da População Activa permanecia no Desemprego – e portanto, cerca de 200 mil pessoas podem, embora seja uma simplicidade estatística, estar nessa condição há 12 anos. Enquanto, no 4º trimestre de 2005, o dobro dessa percentagem, 8%, que corresponde a cerca de 400 mil pessoas, devem permanecer assim há 6 anos. Depois, olhando-se para o aumento súbito do Desemprego, entre o 4º trimestre de 2010 e o 4º trimestre de 2011, que corresponde a 2,9%, então pode-se suspeitar que a Taxa de Desemprego oficial ainda esconde uma larga percentagem de desemprego “oculto” ou não “declarado”. Tudo isto indica, que se trata de um flagelo, uma estruturação social do Desemprego, que atingirá mais de 1 milhão de portugueses, dentro de uma estimativa conservadora. E que esse fenómeno tem as características de longa durabilidade e de ser involuntário – quando não automático, dentro do sistema neo-clássico. 167 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 TAXA DE DESEMPREGO Ano Portugal Zona Euro 2000 3,7% 8,4% 2001 4,1% 8,2% 2002 6,1% 8,7% 2003 6,5% 9,1% 2004 7,1% 9,3% 2005 8,0% 9,1% 2006 8,2% 8,2% 2007 7,8% 7,5% 2008 7,8% 8,0% 2009 10,1% 10,0% 2010 11.1% 10,1% 2011 14% 10,4% A estruturação deste género de desemprego pode ser consciente e ter uma utilidade política e até ser provocado – daí se falar em “destruição de emprego”, por parte do Mercado e do Estado. Nenhuma classificação sociológica do fenómeno do Desemprego actual descreve com exactidão o fenómeno de desemprego massivo, insolúvel e involuntário verificado na última década, salvo o Desemprego Estrutural, como se Portugal tivesse descido à condição de país subdesenvolvido e ocorresse uma quebra e uma insuficiência de infra-estruturas industriais e comerciais, que levariam à criação cumulativa de Desemprego. Ou seja, a sucessivas fases de desocupação profissional não resolvidas. O Desemprego Tecnológico tampouco se aplica, pois não ocorreu uma substituição de bens de capital mais eficientes na Indústria, que levasse à especialização e o fim do trabalho manual ou braçal (os programas tecnológicos não vieram substituir a maquinaria, e sim, a própria Indústria…). O desemprego conjuntural ou cíclico prolongou-se além da crise oficial e vai mais além da habitual ascendente da curva do ciclo económico. O próprio Desemprego Friccional também parece ter desaparecido, absorvido pela grande massa de desempregados, que se transformou num exército (pós) industrial de reserva, 168 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011) classificado como excedentário. Este género de desemprego resulta da fricção dos mecanismos automáticos de reajustamento económico – e daí a mudança de emprego ou actividade dos indivíduos (é o menor dos problemas dentro do Desemprego). Por último, o desemprego temporário, ligado à sazonalidade do trabalho, sobretudo, nos sectores agrícolas, e à crescente precariedade laboral, ainda não foi alvo de demasiados estudos por parte dos institutos de estatística, pelo que deve ocupar uma fracção muito significativa da População Activa. 3. A DESMONTAGEM DA TEORIA CLÁSSICA LIBERAL POR KEYNES Vivemos já em plena Economia Clássica. A grande maioria da população é estrangulada pela nova "garra invisível" do ressuscitado modelo de Liberalismo Clássico. É uma tenebrosa forma de organização social e económica, tão regressiva como o corporativismo, apossou-se do nosso país e dos países ditos "avançados". Mais: este novo e retrógrado classicismo adquire tons de "czarismo" e pretende reduzir a população portuguesa a servos da gleba. A Depressão Económica fundiu-se num encadeamento de crises ininterruptas, sem apelo nem agravo, aprofundadas por "políticas de austeridade" desajustadas, com consequências socioeconómicas gravosas, que vêm em sequência ao Desemprego Estrutural: a pobreza persistente, as carências alimentares, a anomia, a instabilidade social, a delinquência, o abandono de idosos e crianças, entre tantas outras. A melhor definição do que consiste a "Economia Clássica" encontra-se na "Teoria Geral", de J.M. Keynes, no segundo capitulo, intitulado "Os Postulados da Economia Clássica". Nesta obra, o economista inglês tentou com êxito, desmontar o antigo modelo liberal clássico, peça a peça, sobretudo, o Desemprego. Este modelo prevaleceu durante o séc. XIX, até 1929, e ficou comprometido pela gravíssima crise que se instalou em todo o mundo, após o Crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Após a Grande Depressão, o keyneseanismo acabou por prevalecer, de uma forma mais ou menos liberal, ainda, depois de servir de base teórica, maioritária pelo menos, ao Presidente Roosevelt, nos EUA ou ao primeiro-ministro Clement Atlee, na Grã-Bretanha, no pós-guerra. Muitos outros países prosperaram segundo esta teoria económica e científica, desde a socialdemocracia nórdica, até ao mais recente dos casos, o Brasil do PT, após o ano 2000. Keynes, tal como qualquer economista do seu tempo, partia do estudo do classicismo económico e portanto, não admira que se debruçasse sobre as eternas questões da teoria do valor ou da produção e sobretudo, sobre o volume de recursos utilizados numa dada economia. Esta quantidade de recursos era a preocupação fundamental dos clássicos. Com o seu livro, Keynes acrescenta dois pontos novos - qual "a aplicação efectiva" destes recursos e as "flutuações do emprego", tema este, que hoje, tal como nos anos trinta, é de capital importância. 169 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Na área do Emprego, a teoria clássica arrumava-o para um canto, com uma simplicidade "sublime" e sem discussão, com duas leis: "i. O salário é igual ao produto marginal do trabalho". Ou por outra, "o salário de um trabalhador é igual ao valor que estaria perdido, se o emprego fosse reduzido numa unidade" após a dedução de custos da redução. Mas se a concorrência dos mercados fosse imperfeita, esta "igualdade pode ser perturbada". E depois, "ii. A utilidade do salário, quando um determinado volume de trabalho foi aplicado, é igual à não-utilidade (desutility) marginal da quantidade de emprego". Então, o salário real do trabalhador assalariado é apenas suficiente para a sua subsistência, estando sujeito à qualificação da unidade de trabalho - o indivíduo - pelo que a unidade das unidades empregáveis fica sujeita "às imperfeições da concorrência". Os indivíduos podem suspender o trabalho, "em vez de aceitar um salário que tinha para eles um valor utilitário abaixo de um determinado mínimo". A teoria Clássica apenas admite, nestas condições, o "desemprego friccional". O Pleno Emprego clássico não é atingido por razões colaterais e alheias ao mercado, e gera-se desemprego devido "devido a uma temporária falta de equilíbrio entre as quantidades relativas de recursos especializados, como resultado de erro de cálculo ou procura intermitente. Ou ao espaço de tempo na sequência de alterações imprevistas, ou ao facto da passagem de um emprego para outro, não pôde ser concretizada sem um certo atraso". Então, segundo o classicismo, deverá ficar de fora sempre uma parte dos recursos humanos, pela natureza das coisas. Aliás, para estes, o que existe é o "desemprego voluntário" por causa de uma "recusa ou impossibilidade de uma unidade de trabalho", devido às leis laborais, por exemplo, a contratação colectiva, de aceitar o salário conveniente à sua "produtividade marginal", quanto ao valor do produto. Como nunca admitem o "desemprego involuntário", para os Clássicos, tanto o "desemprego friccional" como o "desemprego voluntário" estão abrangidos na mesma categoria. Dentro destes parâmetros, o volume de recursos utilizados é fixado pelas duas leis. A primeira dá-nos o quadro da procura de emprego e a segunda lei, a maneira de a satisfazer. Então, a quantidade de trabalho é fixada no ponto onde se equilibram as utilidades: Produto marginal/ Emprego marginal Daqui, que os Clássicos apenas previssem um crescimento do emprego, quando, citando: "(a) A melhoria na organização ou na previdência diminuem o desemprego “friccional"; (b) Uma diminuição na não-utilidade marginal do trabalho, expressa pelo salário real, para o qual o trabalho restante está disponível, de modo a diminuir o desemprego “voluntário"; (c) Um aumento na produtividade física marginal do trabalho nas indústrias de bens de consumo; 170 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011) (d) O aumento do preço de bens de não-consumo, em comparação com os bens de consumo, o preço dos bens de consumo, associada a uma mudança nas despesas de bens de não consumo - vistos como simples Mercadorias". Esta simplicidade advém, aliás, da única teoria de emprego existente entre os Clássicos, já que se tratava de um tema muito secundário para eles. Os Clássicos partem do princípio que é um facto indiscutível, a não-existência de trabalho suficiente para toda a população de um país, com base num dado salário. Pois a população gostaria, não apenas, de ter o trabalho que sempre desejasse, mas também ganhando aquilo que exigissem os sindicatos, por ex. A escola Clássica argumenta, baseada na segunda lei, que "que, embora haja procura de trabalho existente pelo salário nominal (ou salário em dinheiro), apenas pode ser preenchida antes que todos os que estão dispostos a trabalhar por esse salário, sejam empregados". E que, a existir, este ponto de equilíbrio se deve a "um acordo tácito", entre os trabalhadores, para não trabalharem por menos deste salário. De outro, modo os trabalhadores apenas podem esperar mais Emprego, se aceitarem "uma redução de salários" (!). Caso contrário, caem na situação de "desemprego voluntário". Keynes denuncia a falácia dos Clássicos, pois acontece que "dentro de uma determinada procura de emprego, haja uma quantidade de dinheiro prevista para o salário mínimo e não para um salário mínimo real". Este factor da existência legal de um salário mínimo nacional veio a contribuir para equilibrar o problema produção-emprego-salários, já que "se a oferta de trabalho não é uma função dos salários reais como única variável, o seu argumento decompõe-se totalmente e deixa pendente a questão que o emprego real será sempre indeterminado". Os Clássicos trabalhavam segundo um modelo de Concorrência Perfeita, considerado um caso especial, com óbvias e muito mensuráveis flutuações de emprego no caso geral. O outro factor que pode deslocar a curva da oferta de emprego é a do preço dos bens de consumo. 171 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 Quando ocorre um aumento no preço dos bens de consumo, os trabalhadores tem de aguentar uma "redução dos salários nominais", mas não abandonam logo o emprego, como propõe os Clássicos. Pois acreditavam "que seria ilógico que o trabalho resistisse a uma redução dos salários nominais, mas não resistisse a uma redução dos salários reais". Keynes concluía, no tempo da Grande Depressão, que a enorme taxa de Desemprego, que atingiu os 25 milhões de pessoas nos EUA, não se devia a tais causas clássicas. Mas, sim, a outras, bem diferentes. Daí uma das suas asserções: "São frequentes grandes variações no volume de emprego, sem qualquer alteração aparente, quer nas exigências mínimas reais da força de trabalho ou da sua produtividade". Aqui, o economista inglês questiona a relação entre as mudanças reais no dinheiro e as mudanças nos salários reais. Ou seja, entre salário nominal e salário real. E ele verifica que estes vão quase sempre "no sentido oposto". Por uma simples razão cambial: quando a divisa sobe, os salários reais caem e quando a divisa desce, os salários reais crescem. Mais: pode acontecer que "a força de trabalho esteja mais disposta a aceitar cortes salariais, quando o emprego está a cair". Mas os salários reais irão aumentar depois, devido ao investimento feito em Bem de Capital, devido ao retorno que se ocasiona, mesmo se a produção diminui. "Para obter mais trabalho do que é actualmente utilizado, geralmente, o capital fica disponível para pagar salários, embora o preço dos bens de consumo esteja a aumentar e, consequentemente, o salário real entre em queda". Daqui se deduz que "o salário equivalente à mercadoria em divisa existente", não seja uma indicação precisa da "não-utilidade marginal do trabalho". E a segunda lei fique sem validade. 172 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011) "Utiliza-se o salário nominal para determinar o salário real". E a partir daqui, a teoria Clássica assume que a força de trabalho deve estar sempre disposta a aceitar uma redução do salário nominal e por conseguinte, do salário real. Pelo que "a força de trabalho está em condições de decidir o salário real pelo qual trabalha, mas não a quantidade de emprego criado a esse nível salarial". E que é a negociação entre os empresários e os trabalhadores, o que determina o salário real. Aliás, a partir do princípio da livre concorrência entre os empregadores e sem "nenhuma combinação restritiva entre os trabalhadores", estes podem combinar o seu salário real - conforme a "não-utilidade marginal do volume de emprego oferecido pelos empregadores". Os Clássicos acreditavam também que estas leis não se alteravam, fossem quais fossem as condições do mercado, como legislação diferente, abertura ou fecho do sistema económico, as condições bancárias de crédito, etc. E que nem sempre a redução nominal dos salários implicava uma redução real dos mesmos. Segundo Keynes, o nível geral dos salários reais não podia ser obtido pela negociação entre trabalhadores e empregadores. Os Clássicos entravam em contradição com a sua teoria, por uma série de motivos: i. Os preços são regulados pelo custo marginal, calculado em termos de capital; ii. Os salários nominais apoiam primeiro no custo marginal. Então, seria de supor que se o salário mudasse, os preços iriam mudar na mesma proporção - deixando o salário real e o nível de Desemprego na mesma. "Então, qualquer pequeno ganho ou perda de emprego não afectariam a despesa ou o lucro, e outros elementos de custo marginal permaneceriam inalterados". Mas não, os Clássicos acreditavam que os preços dependiam do capital e que a força de trabalho determina o salário real. E que o Pleno Emprego se pode definir pela seguinte lei: a quantidade máxima de emprego que é compatível com determinado salário real. Para Keynes, a segunda lei da teoria Clássica cai por terra pelas objecções quanto ao comportamento real da força de trabalho e o pressuposto que o salário real é directamente determinado pela negociação salarial. Primeiro, porque uma queda dos salários reais devido ao aumento dos preços, mesmo mantendo os salários nominais iguais, não leva à "provisão de mão-de-obra", antes pelo contrário. E que "Não existe, portanto, nenhum expediente pelo qual a força de trabalho, como um todo, possa calcular o seu salário real, para um valor dado pela tabela e fazendo, em simultâneo, negócios com os empresários". Essa era a tese keyneseana. Keynes tem um objectivo diferente dos clássicos: ele pretende resistir à baixa dos salários nominais ou reais como método de balançar a economia. Mas não o pretende “resistir como regra” e antes, optando por novas regras, já que constata que se os salários em geral não descem, isso não vai afectar em nada o Pleno Emprego (o emprego total). Ao contrário do que afirmam os 173 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 clássicos. Portanto, mesmo que ocorresse “uma resistência organizada”, não haveria qualquer descida do Pleno Emprego. Este “branqueamento dos salários” afecta, isso sim, “a distribuição do salário real agregado, entre os diferentes grupos de trabalho, e não o seu montante médio por unidade de emprego”. Então, “O nível geral dos salários reais depende das outras forças do sistema económico”. Para Keynes, nestas condições particulares, os clássicos deixavam o factor “sorte” aos trabalhadores, na sua busca de um emprego com melhores salários ou mesmo, em encontrar um simples emprego. E isto, devido à regra imutável da “não-utilidade marginal do emprego”, que tudo estipula. Os próprios sindicatos, ao não calcularem o que tal significa em termos de “custo de vida”, não iriam oferecer demasiada resistência a esta. Esta norma implica que, em condições de livre mercado, os empresários não tem de se preocupar com o Emprego e antes com o lucro. A Escola Clássica descrê da utilização plena dos recursos disponíveis e podem por de parte muitos negócios, se estes não lhes garantirem os benefícios que pretendem. Ou se os trabalhadores exigirem salários que os empresários não estão dispostos a pagar. E ai surgiria o “desemprego friccional”, também. Keynes rompe com a teoria clássica, ao propor esta categoria de desemprego, o desemprego “involuntário”. A sua nova definição é: “Os homens caem no desemprego involuntário se, no caso de um pequeno aumento no preço dos bens de consumo em relação ao salário nominal, tanto a oferta agregada de força de trabalho disposta a trabalhar pelo salário corrente ou combinado e da sua oferta agregada, com o mesmo salário, seria maior do que o volume de emprego existente”. Os clássicos continuam a insistir na sua fórmula do “salário real e a não-utilidade marginal do emprego” da segunda lei. Não passa de um “atrito” temporário e passageiro – e o “desemprego involuntário” não existe, quanto a eles. Podem ocorrer surtos de desemprego, por efeitos colaterais, como a falta de “trabalhadores especializados” ou a pressão de “trabalhadores especializados”, ao não aceitar determinado salário pela sua “produtividade marginal”. Para Keynes, então “... se a "Teoria Clássica" só é aplicável ao caso de Pleno Emprego, é falacioso aplicá-la aos problemas de desemprego "involuntário" – se é que existe tal coisa (…)”. Para ele os teóricos clássicos “parecem geómetras euclidianos num mundo não-euclidiano que, descobrem pela experiência, numa linha recta, outra linha aparentemente paralela; e que muitas vezes, elas se encontram, traçam linhas de repreensão para não manter nessa linha as infelizes colisões que vão ocorrendo... No entanto, na verdade, não há solução, a não ser conjugar o axioma das linhas paralelas e elaborar uma geometria não-euclidiana”. Não obstante o facto concreto de haver uma óbvia correlação entre “organização, equipamento e técnica, os salários e o volume de produção (e consequentemente, o emprego” e 174 O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011) por norma, “um aumento do emprego só pode ocorrer acompanhado de um declínio na taxa de salários reais”. Então, para os clássicos, “ se aumenta o emprego, então, no curto prazo, a recompensa por unidade de trabalho em termos de salários e bens deve, em geral, entrar em declínio e aumentar os lucros”. Pois, “o produto marginal do lucro (que regula os salários reais) diminui necessariamente o emprego, e cresce”. E segundo esta perspectiva clássica, qualquer método de aumentar o emprego deve levar, em simultâneo, a uma “diminuição do produto marginal” – e que então, a taxa de salário deve ser medido em termos de produto e lucro. Aqui surgem questões anexas, não apenas quanto ao lucro, mas também ao consumo, por parte dos trabalhadores – que no caso dos clássicos, se devia manter estritamente ao nível da subsistência. E quanto ao lucro, este cresceria intocado. E segundo a acusação de Keynes, “impõe-se a vontade por parte dos trabalhadores de aceitar menores salários nominais”. Era norma clássica inatacável, que “a oferta cria a sua própria procura” no sentido “que todos custos de produção devem necessariamente ser aplicados, no total, directa ou indirectamente, na hora de comprar as matérias-primas.” Quanto ao rendimento que os trabalhadores “consomem ou poupam, como resultado da sua produtividade” é apenas, “o output em espécie dessa actividade”. Pois “A totalidade dos rendimentos de um homem é gasta na compra de serviços e de mercadorias”, segundo Marshall. E do lado do trabalhador, não cabe a “poupança”, portanto, a não ser na “produção de capital”. Mais capital. E então surge “o pressuposto da igualdade entre a quantidade da procura e da produção como um todo e a sua quantidade de oferta” que é um dos axiomas máximos da Teoria Clássica, para o economista inglês. E que funcionam como as linhas paralelas euclidianas. Nesta base teórica tão dogmática, se fundamenta a visão clássica da “poupança privada e nacional”, da “taxa de juros” tradicional, “a teoria clássica do desemprego”, a sua “teoria quantitativa do dinheiro”, as vantagens do laissez-faire quanto ao comércio exterior, etc. Tudo pressupostos que Keynes vai desmontar na sua “Teoria Geral”, qualificando-os como “errados”. Esta situação tão estranha sucedeu por razões exógenas? Ou o novo modelo Liberal Clássico funcionou como sempre, ao longo do tempo? Tudo leva a crer que S=f(i) se converteu numa falácia dentro da Economia Clássica, apesar de não o ser no quadro keyneseano. Portanto, a questão reside no Investimento (I).) Assim, o economista inglês aborda a Clássica de uma perspectiva nova, democrática e progressista, contestando que: “(1) Que o salário real é igual à não-utilidade marginal do trabalho existente; (2) Que não existe tal coisa como desemprego "involuntário", no sentido estrito; (3) Que a oferta cria sua própria procura, no sentido que a quantidade de procura agregada é igual à quantidade da oferta agregada, para todos os níveis de produção e emprego.” E quando cai uma destas leis, todas as outras são invalidadas. 175 Boletim de Sociologia Militar n.º 3 5. A VISÃO MARXISTA DO DESEMPREGO ESTRUTURAL Por último, last but not least, aparece Marx, com uma “lei capitalista do desemprego”. O desemprego entre os trabalhadores é consequência directa da propriedade privada dos meios de produção e segundo ele, o processo de acumulação do capital na sociedade burguesa leva automaticamente a que parte dos trabalhadores se tornem supérfluos. E assim, tem de ser eliminada da produção e condenada ao desemprego e a carestia de via. Na linguagem marxista, esta “superpopulação relativa” assume várias classificações, como “flutuante”, que perde o trabalho durante algum tempo, até que haja novos incrementos da produção, sem que esta a absorva por completo; “latente”, constituída pelos camponeses, a que o progresso técnico vêm reduzir a exigência de mão-de-obra; “estagnada”, constituída por aqueles que perderam definitivamente o emprego e se ocupam em trabalho irregular ou ocasional. Esta visão marxista era lúcida, se olharmos para as tristemente célebres teorias demográficas malthusianas. BIBLIOGRAFIA Donário, A., 2003, Economia Politica, Universidade Autónoma de Lisboa, Notas pessoais de António Filipe Garcez José, recuperado em Maio, 2012, de http://cogitoergosun.no.sapo.pt/ecopol2sem.pdf. Keynes, J., M., 2002, Os Postulados da Economia Clássica in M.I.A, The General Theory of Employment, Interest and Money, (Rev.Ed.).Recuperado em Maio, 2012, de marxists.org 2002. 176