INSTRUÇÃO: As questões de números 01 a 03 tomam
por base um trecho do poema satírico Cartas Chilenas,
do poeta neoclássico Tomás Antônio Gonzaga (17441810), e um fragmento do poema João Boa-Morte,
cabra marcado para morrer, do poeta neoconcretista
Ferreira Gullar (1930).
Cartas Chilenas
Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha
têm diversas herdades: umas delas
dão trigo, dão centeio e dão cevada;
as outras têm cascatas e pomares,
com outras muitas peças, que só servem,
nos calmosos verões, de algum recreio.
Assim os generais da nossa Chile
têm diversas fazendas: numas passam
as horas de descanso, as outras geram
os milhos, os feijões e os úteis frutos,
que podem sustentar as grandes casas.
(...)
Amigo Doroteu, és pouco esperto;
as fazendas que pinto não são dessas
que têm para as culturas largos campos
e virgens matarias, cujos troncos
levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.
Não são, não são fazendas onde paste
o lanudo carneiro e a gorda vaca,
a vaca, que salpica as brandas ervas
com o leite encorpado, que lhe escorre
das lisas tetas, que no chão lhe arrastam.
Não são, enfim, herdades, onde as loiras,
zunidoras abelhas de mil castas,
nos côncavos das árvores já velhas,
que bálsamos destilam, escondidas,
fabriquem rumas de gostosos favos.
Estas quintas são quintas só no nome,
pois são os dois contratos que utilizam
aos chefes, ainda mais que o próprio Estado.
Cada triênio, pois, os nossos chefes
levantam duas quintas ou herdades,
e, quando o lavrador da terra inculta
despende o seu dinheiro, no princípio,
fazendo levantar, de paus robustos,
as casas de vivenda e, junto delas,
em volta de um terreiro, as vis senzalas,
os nossos generais, pelo contrário,
quando estas quintas fazem, logo embolsam
uma grande porção de loiras barras.
(Tomás Antônio Gonzaga, Cartas Chilenas.
1.ª edição: 1788-1789.)
OBJETIVO
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João Boa-Morte
Vou contar para vocês
um caso que sucedeu
na Paraíba do Norte
com um homem que se chamava
Pedro João Boa-Morte,
lavrador de Chapadinha:
talvez tenha morte boa
porque vida ele não tinha.
Sucedeu na Paraíba
mas é uma história banal
em todo aquele Nordeste.
Podia ser em Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra da peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida não.
Morava João nas terras
de um coronel muito rico.
Tinha mulher e seis filhos,
um cão que chamava “Chico”,
um facão de cortar mato,
um chapéu e um tico-tico.
Trabalhava noite e dia
nas terras do fazendeiro.
Mal dormia, mal comia,
mal recebia dinheiro;
se recebia não dava
pra acender o candeeiro.
João não sabia como
fugir desse cativeiro.
(Ferreira Gullar, João Boa-Morte, cabra marcado para morrer.
1.a edição: 1962.)
OBJETIVO
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1
No fragmento das Cartas Chilenas, a identidade das
personagens censuradas pelo eu-poemático é fragmentada em expressões como “os grandes”, “os generais” e “os chefes”. Em João Boa-Morte, embora o
enunciador revele ter um nome, sua identidade também se coletiviza e ele perde a individualidade, absorvida pela situação descrita no poema. Com base nessa
opção,
a) explique por que motivo essa personagem deixa de
ser individualizada e acaba assumindo uma dimensão
tipicamente coletiva;
b) transcreva os dois versos de João Boa-Morte, em
que o eu-poemático reconhece essa coletivização da
identidade.
Resolução
a) João Boa-Morte é personagem de “uma história
banal”, que poderia ter ocorrido “em todo aquele
Nordeste”. O seu é, portanto, o destino de toda
uma coletividade pobre e explorada. Daí porque ele
“se coletiviza, perde a individualidade”, absorvida
pela generalidade da situação que vive. Note-se que
se trata de situação idêntica à do protagonista de
Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto. A auto-apresentação de Severino, na introdução daquele poema dramático, deve ter sido o
modelo desta apresentação de João Boa-Morte. Deve-se observar, porém, que nem no âmbito da ficção João Boa-Morte pode ser considerado o “enunciador” da narrativa, como se lê no caput da questão (“Em João Boa-Morte, embora o enunciador
revele ter um nome…”). João Boa-Morte não é, de
fato, nem o enunciador fictício, porque a narração
não é de primeira pessoa, mas de terceira.
b) A segunda estrofe do texto transcrito é toda dedicada à “desindividualização” da personagem:
“Sucedeu na Paraíba
mas é uma história banal
em todo aquele Nordeste.
Podia ser em Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra da peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida não.”
OBJETIVO
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2
Aspectos da métrica e da rima costumam ser diferenciais de certos períodos literários. Esses recursos
podem ligar os poemas de Gonzaga e de Ferreira Gullar
com o Neoclassicismo, de um lado, e com a transposição de temas para a literatura de cordel, de outro.
Tendo em vista essas possibilidades,
a) aponte as diferenças entre os dois poemas, quanto
ao número de sílabas métricas e quanto ao emprego
de rimas;
b) identifique um par de expressões rimadas, na segunda estrofe do poema de Ferreira Gullar, que
remete à região onde é típica a literatura de cordel.
Resolução
a) Os versos das Cartas Chilenas são decassílabos
brancos, isto é, sem rimas (a grande maioria desses
versos corresponde ao modelo rítmico chamado
heróico, com tempos fortes na sexta e décima sílabas; raramente encontram-se versos ditos sáficos,
com acentuação predominante na quarta, oitava e
décima sílabas: “das lisas tetas, que no chão lhe
arrastam”). Os versos de João Boa-Morte são
redondilhos maiores, ou seja, contam sete sílabas
métricas, e a maioria deles apresenta rimas, dispostas em esquemas variáveis (dos 30 versos transcritos, 18 são rimados e 12 são brancos).
b) O “par de expressões rimadas” só pode ser “todo
aquele Nordeste” e “todo cabra da peste”. O Nordeste é a “região onde é típica a literatura de cordel” e onde é típico o dialeto a que remete a expressão “cabra da peste”, designadora de homem
másculo e destemido.
OBJETIVO
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3
Em João Boa-Morte, o vocábulo “cativeiro” enfatiza o
tipo de tratamento, próprio da escravidão, dispensado
pelo fazendeiro ao seu empregado. Nas Cartas Chilenas, o eu-poemático denuncia a corrupção das autoridades, mas, em certo momento, faz também uma referência à escravidão. Relendo o texto de Gonzaga,
a) destaque o verso desse poema que contém essa alusão a elementos ligados à escravidão;
b) indique a palavra, no verso encontrado, que resume
a opinião do eu-poemático quanto à escravidão, justificando sua escolha.
Resolução
a) O único verso que alude à escravidão no fragmento transcrito das Cartas Chilenas é “em volta de um
terreiro, as vis senzalas”, onde senzalas são as
habitações dos escravos.
b) Vis é a palavra que, na opinião da Banca Examinadora, “resume a opinião do eu-poemático quanto à
escravidão”. Essa, porém, é apenas uma – e discutível – interpretação da passagem em questão.
Com efeito, vis pode indicar apenas que as senzalas eram habitações sórdidas ou de pouco valor,
sem que isso implique qualquer opinião negativa do
“enunciador” acerca da escravidão. Ademais, nada
indica que Gonzaga fosse antiescravista ou censurasse as condições em que viviam os escravos –
ele que, como se sabe, tornou-se em Moçambique
um grande mercador de escravos, tendo herdado o
lucrativo negócio em razão de seu casamento com
a herdeira, uma viúva analfabeta. Já antes, quando
se discutiu a abolição da escravatura, como item do
programa da conjuração mineira, Gonzaga foi dos
que se opuseram a essa proposta.
OBJETIVO
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INSTRUÇÃO: As questões de números 04 a 07 tomam
por base um fragmento do romance O Cabeleira, do ficcionista romântico Franklin Távora (1842-1888), e um
trecho do romance Vidas Secas, do escritor modernista
Graciliano Ramos (1892-1953).
O Cabeleira
Eles atravessaram a vau o rio, e foram ter à graciosa habitação (de Felisberto), que no meio daquele deserto atestava a existência de uma civilização rudimentar no lugar onde havia caído, sem tentativa de proveito para a sociedade que o sucedera, o gentilismo
guarani digno de melhor sorte.
Do alto onde fora construída a habitação via-se o rio
que corria na distância de umas dezenas de braças, e
desaparecia por entre umas lajes brancas no rumo de
leste; do lado do ocidente mostravam-se as lavouras de
Felisberto desde as proximidades da casa até onde a
vista alcançava.
Felisberto aplicava-se quase exclusivamente à cultura da roça. No perímetro de vinte léguas em derredor
era o lavrador que desmanchava mais mandioca, que
competia no mercado do Recife com a farinha de
Moribeca, já então afamada. Havia anos em que ele
mandava para o Recife cerca de duzentos alqueires.
Um negro, uma negra, duas negrotas e três molecotes filhos dos dois primeiros faziam prodígios de valor
na cultura das terras. Amanheciam no cabo da enxada
e só se recolhiam quando faltava uma braça para o Sol
se esconder no horizonte. Estes escravos viviam porém
felizes tanto quanto é possível viver feliz na escravidão.
Não lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem,
e nos domingos trabalhavam nos seus roçados. Em
algum dia grande faziam seu batuque, ao qual concorriam os negros das vizinhanças.
Quando Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre de açúcar do engenho Curcuranas, teve a feliz idéia de ir estabelecer-se naquele
sítio que comprara com algumas economias que lhe
legara um tio que vivera de arrematar dízimos de gado.
Essas economias deram-lhe também para comprar
duas moradinhas de casas e o negro André. Com a
negra Maria, que a mulher lhe trouxera em dote, casou
Felisberto o seu negro, na esperança de que em poucos anos a família escrava estaria aumentada, e por
conseguinte aumentada também a fortuna do casal.
Essa esperança foi brilhantemente confirmada.
(...)
Frutos do trabalho honesto e esforçado, o qual é
sempre favorecido pela Providência, não tinham sido de
todo destruídos pela grande seca os roçados do
Felisberto. Ele já enumerava muitos prejuízos, mas
olhando em torno de si via ainda muito com que contar
na tremenda crise que reduzira o geral da população da
província a extrema penúria.
(Franklin Távora, O Cabeleira. 1.a edição: 1876.)
OBJETIVO
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Vidas Secas
A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória
benziase tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco
do copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as
folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados.
No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido.
Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo
carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo
estava perdido, combinou a viagem com a mulher,
matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a
carne, largou-se com a família, sem se despedir do
amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.
Saíram de madrugada. (...)
Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o Sul. Com a fresca da madrugada,
andaram bastante, em silêncio, quatro sombras no
caminho estreito coberto de seixos miúdos – os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupas, Sinhá
Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água,
Fabiano atrás de facão de rasto e faca de ponta, a cuia
pendurada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió
a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da matalotagem no outro. Caminharam bem três
léguas antes que a barra do nascente aparecesse.
Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se
até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente
mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que
se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem
parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a
lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando tudo estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para
enterrar-se.
(Graciliano Ramos, Vidas Secas. 1.a edição: 1938.)
OBJETIVO
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4
No último parágrafo de Vidas Secas, depois de empregar três verbos no pretérito perfeito, o enunciador utiliza uma sucessão de verbos flexionados no pretérito
mais-que-perfeito. Com base nessa constatação,
a) explique a diferença de emprego entre esses dois
tempos verbais e sua importância para o texto;
b) reescreva o segundo período desse último parágrafo
do texto mencionado, flexionando os verbos no pretérito mais-que-perfeito.
Resolução
a) Os pretéritos perfeito e mais-que-perfeito referemse a tempos distintos do passado. O segundo indica anterioridade em relação ao primeiro, um pretérito mais remoto, por isso “mais-que-perfeito”.
Fizeram, depôs e olhou indiciam no fragmento
ações mais recentes, um passado imediato, “perfeito”, ou seja, terminado. Arrastara-se, retardarase, repreendera e aconselhara remetem a ações
anteriores à interrupção da retirada, ao ato de os
retirantes fazerem uma pausa (“alto”) em sua “fuga”, tangidos pelo sol e pela miséria em um incessante retirar-se.
b) “E Fabiano depusera no chão parte da carga, olhara o céu, as mãos em pala na testa.”
5
Em O Cabeleira, o terceiro parágrafo apresenta alguns
detalhes sobre a personagem Felisberto. Relendo essa
passagem, responda:
a) quais as formas lingüísticas usadas pelo enunciador,
nesse parágrafo, para nomear, identificar ou retomar
a personagem Felisberto?
b) por que razão essas referências à personagem aparecem na ordem estabelecida no texto?
Resolução
a) As formas lingüísticas que nomeiam, identificam e
retomam a personagem são, respectivamente: o
nome próprio, Felisberto, que o nomeia; a condição
de lavrador, que o identifica, e os pronomes relativos nas passagens “que desmanchava” e “que
competia”, além do pronome pessoal ele, referentes todos à personagem cujas ações são descritas.
b) A lógica discursiva faz natural que a nomeação, a
qualificação e a retomada desses identificadores
pelos pronomes, seus substitutos, estabeleçam
uma ordem, uma seqüência, tendo em vista a coesão textual e a supressão de redundâncias. O movimento ou a orientação dessa série de referências
vai do nome, como sujeito do predicado de sentido
mais amplo (“Felisberto aplicava-se quase exclusivamente à cultura da roça”) para as ações específicas que compõem sua atividade de lavrador.
OBJETIVO
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6
A simpatia em relação ao indígena, que sublinhou na
época romântica uma linha ardentemente cultivada por
José de Alencar, o indianismo, está subentendida também em textos como o de Franklin Távora. Relendo o
primeiro parágrafo de O Cabeleira,
a) localize uma referência ao indígena, nessa passagem, e esclareça por que pode ser compreendida
como um traço de simpatia;
b) transcreva o trecho desse parágrafo em que está
implícita a idéia de que a sociedade indígena era algo
superado, sem serventia.
Resolução
a) A referência ao indígena está em “o gentilismo
guarani digno de melhor sorte”. “Gentilismo”, palavra pouco usual, deriva de gentio, “não-civilizado”,
“pagão”, “não-cristão”. “Digno de melhor sorte”
indica que o autor lamenta a marginalização do
índio e o apagamento de sua cultura.
b) Ao dizer que a sociedade indígena foi “uma civilização rudimentar” (e que sua cultura desaparecera)
“sem tentativa de proveito para a sociedade que [a]
sucedera”, o narrador sugere que o legado da cultura nativa foi praticamente nulo, indiciando, ainda no
âmbito do romantismo brasileiro, uma superação da
vertente idílica e idealizadora do indianismo.
7
Certas expressões ganham sentidos diferentes, dependendo do contexto ou da situação em que ocorrem.
Assim, os adjetivos “secas” ou “torrados”, de Vidas
Secas, estão impregnados de uma conotação negativa,
diferentemente de “secas” ou “torrados” em contextos como “ameixas secas” ou “amendoins torrados”,
onde são positivos. Pensando nessas possibilidades,
a) explique que sentido tem a expressão “céu azul”,
para Fabiano, na frase “No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido”;
b) construa uma frase em que o contexto atribua a essa
mesma expressão uma conotação positiva.
Resolução
a) A expressão “céu azul” tem conotação negativa
para Fabiano, pois indica que não haverá chuva e
que a tão temida seca já é uma realidade inevitável.
b) “Após a tempestade, o céu azul brilhava com promessa de bonança.”
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INSTRUÇÃO: As questões de números 08 a 10 tomam
por base uma passagem do romance Canaã, do escritor
pré-modernista Graça Aranha (1868-1931), e um trecho
do romance Mad Maria, do ficcionista contemporâneo
Márcio Souza (1946).
Canaã
– Mora aqui há muito tempo? – perguntou Milkau.
– Fui nascido e criado nessas bandas, sinhô moço...
Ali perto do Mangaraí. – E tateando o espaço, estendia
a mão para o outro lado do rio: – Não vê um casarão lá
no fundo? Foi ali que me fiz homem, na fazenda do
capitão Matos, defunto meu sinhô, que Deus haja!
E a conversa foi continuando por uma série de perguntas de Milkau sobre a vida passada daquela região,
às quais o velho respondia gostoso, por ter ocasião de
relembrar os tempos de outrora, sentindo-se incapaz,
como todos os humildes e primitivos, de tomar a iniciativa dos assuntos. Ele contou por frases gaguejadas a
sua triste vida, toda ela um pobre drama sem movimento, sem lances, sem variedade, mas de quão intensa e profunda agonia! Contou a velha casa cheia de
escravos, as festas simples, os trabalhos e os castigos... E na tosca linguagem balbuciava com a figura em
êxtase a sua turva recordação.
– Ah, tudo isso, meu sinhô moço, acabou... Cadê
fazenda? Defunto meu sinhô morreu, filho dele foi
vivendo até que governo tirou os escravos. Tudo debandou. Patrão se mudou com a família para Vitória, onde
tem seu emprego; meus parceiros furaram esse mato
grande e cada um levantou casa aqui e acolá, onde bem
quiseram. Eu com minha gente vim para cá, para essas
terras de seu coronel. Tempo hoje anda triste. Governo
acabou com as fazendas, e nos pôs todos no olho do
mundo, a caçar de comer, a comprar de vestir, a trabalhar como boi para viver. Ah! tempo bom de fazenda! A
gente trabalhava junto, quem apanhava café apanhava,
quem debulhava milho debulhava, tudo de parceria,
bandão de gente, mulatas, cafuzas... Que importava feitor?... Nunca ninguém morreu de pancada. Comida
sempre havia, e quando era sábado, véspera de domingo, ah! meu sinhô, tambor velho roncava até de madrugada...
E assim o antigo escravo ia misturando no tempero
travoso da saudade a lembrança dos prazeres de ontem, da sua vida congregada, amparada na domesticidade da fazenda, com o desespero do isolamento de
agora, com a melancolia de um mundo desmoronado.
(Graça Aranha, Canaã. 1.a edição: 1902.)
Mad Maria
Collier estava enfrentando os piores momentos de
um trabalho tecnicamente simples. Mas são trinta
milhas de pântanos e terrenos alagadiços. Os homens
estão passando por condições de trabalho jamais imaginadas. Muitos morrerão, porque o trabalho é duro,
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porque nunca estão suficientemente adaptados para
enfrentar terreno tão adverso. Collier gostaria de estar
longe de tudo aquilo, não precisava mais se expor
daquela maneira. Ele sabia que poderia adoecer, e
quem caísse doente no Abunã estaria condenado. As
condições de trabalho não eram o forte daquele projeto
maluco.
Collier pode ver um grupo de nove barbadianos carregando um trilho. O dia começa agora a clarear e logo
o sol estará forte e o céu sem nuvens.
Os barbadianos já estão bastante suados, as peles
negras brilham e eles vão chapinhando na água que
lhes atinge os joelhos. Collier tem ali sob as suas ordens cento e cinqüenta homens. O objetivo é atravessar os pantanais do rio Abunã com uma ferrovia, o que
não parece difícil. Os barbadianos estão carregando o
trilho na direção do sítio onde outros trabalhadores
estão abrindo valas com picaretas e pás.
Collier sente sede e seus braços estão cheios de
calombos. Quando ele passa a mão sobre a pele do
braço, é como se experimentasse a pele grossa de
algum sáurio. Os braços do engenheiro Collier foram
cruelmente mordidos pelos mosquitos. Tudo porque
esqueceu de vestir uma camisa de mangas compridas.
Ele tinha sido obrigado a entrar vinte metros na mata
virgem e foi imediatamente sugado e ferrado pelos
insetos. Seu cotovelo direito virou uma maçã mole e
sangrenta, o seu cotovelo esquerdo virou uma cereja
madura.
(...)
Collier está com sede e tem uma ponta de dor de
cabeça, seu maior temor é de ficar doente no Abunã,
mas ninguém sabe que ele tem medo, é um homem
seco, fechado, quase sempre ríspido. Dentre as suas
atribuições, ele chefia os cento e cinqüenta trabalhadores, quarenta alemães turbulentos, vinte espanhóis
cretinos, quarenta barbadianos idiotas, trinta chineses
imbecis, além de portugueses, italianos e outras nacionalidades exóticas, mais alguns poucos brasileiros, todos estúpidos. Os mais graduados, embora minoritários, são norte-americanos. Os mandachuvas são
norte-americanos e aquele é um projeto norte-americano. Mas Collier é cidadão inglês, um velho e obstinado engenheiro inglês.
(Márcio Souza, Mad Maria. 1.a edição: 1980.)
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8
O preconceito, como grande obstáculo à interação
humana, tem sido amplamente questionado nos últimos tempos. Nos textos desta parte, por exemplo, é
possível perceber alguns tipos de preconceito. Tomando por base esse pensamento,
a) identifique, em Mad Maria, o modo preconceituoso
com que o enunciador se refere à nacionalidade dos
trabalhadores envolvidos na construção da ferrovia;
b) demonstre, em Canaã, como o enunciador avalia,
preconceituosamente, a capacidade de linguagem
do velho.
Resolução
a) O enunciador não disfarça no texto o “arianismo”,
com preferência pela vertente anglo-saxônica. Com
exceção do cidadão inglês, Collier, “um velho e
obstinado engenheiro”, e dos norte-americanos,
“os mais graduados”, “os mandachuvas”, todas as
demais nacionalidades são denegridas: os alemães
são apenas “turbulentos”, os restantes são aquinhoados com epítetos ofensivos: “cretinos” (os
espanhóis), “idiotas” (os barbadianos), “imbecis”
(os chineses), “todos estúpidos” (portugueses, italianos, “outras nacionalidades exóticas” e brasileiros).
b) A suposta superioridade lingüística do enunciador
sobre a “parolagem” do velho e a visão preconceituosa daquele quanto à linguagem deste evidenciam-se, de início, por este juízo: “sentindo-se incapaz, como todos os humildes e primitivos, de tomar
a iniciativa dos assuntos”, que acusa a incapacidade de expressão de idéias e questões. Essa visão
preconceituosa particulariza as dificuldades do
velho na enunciação de sua fala: “frases gaguejadas” (inseguras, mal articuladas, sem fluência),
“tosca linguagem” (inculta, rude, grosseira), “balbuciava” (aproximação com a fala infantil, confusa,
imperfeita).
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9
Pão e circo simbolizam, nas mais diferentes épocas da
civilização, os bens oferecidos pelo governo às classes
sociais, principalmente as menos favorecidas, de maneira a satisfazer suas principais necessidades e prevenir eventuais revoltas provocadas por condições desumanas de vida. Considerando o texto de Graça Aranha,
a) encontre uma passagem, extraída da fala do velho
escravo, em que aparecem os elementos correspondentes à satisfação dessas necessidades, na antiga fazenda;
b) aponte uma qualidade do trabalho escravo, na antiga
fazenda, que parece ter muita importância para o
velho.
Resolução
a) A passagem que se refere à satisfação das necessidades de “pão e circo” se encontra no final da
fala do velho escravo: “comida sempre havia e
quando era sábado, véspera de domingo, ah! meu
sinhô, tambor velho roncava até de madrugada”.
Portanto, havia comida (pão) e entretenimento
(circo).
b) O trabalho em grupo, compartilhado com outros
escravos (“a gente trabalhava junto”), era objeto de
nostalgia para o velho escravo, saudoso de sua
antiga participação numa coletividade, em contraste com “o desespero do isolamento de agora”.
10
Em Mad Maria, os verbos estão flexionados em boa
parte no presente do indicativo, como forma de significar que os fatos estão ocorrendo no momento em que
o enunciador os apresenta, simulando maior proximidade e envolvimento. Tendo em vista essa idéia,
a) identifique, no segundo parágrafo do texto, um advérbio que confirme lingüisticamente essa tentativa
de simulação de tempo presente;
b) justifique o emprego de verbos no pretérito perfeito,
no quarto parágrafo, como parte das estratégias narrativas escolhidas para a construção do texto.
Resolução
a) O advérbio que confirma a tentativa de simulação
de tempo presente é “agora”.
b) O pretérito perfeito é empregado em parte do quarto parágrafo, no trecho em que o narrador relata a
imprudência do engenheiro Collier – vestir camisa
de mangas curtas – que o levou a ser mordido por
mosquitos. Esse fato é anterior à enunciação, ou
seja, ao presente da narração.
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REDAÇÃO
INSTRUÇÃO: Leia atentamente os seguintes textos.
Região do Pontal possui 95 assentamentos
O Pontal do Paranapanema é a principal região de
assentamentos de São Paulo, concentrando 95 dos 153
projetos do Estado. A maioria dos assentamentos é do
governo estadual. Eles começaram a ser implantados
no início dos anos 80, mas o processo se intensificou a
partir de 1995, na gestão Mário Covas (PSDB).
Desde 1995, o governo paulista desapropriou 93
mil hectares de terra no Pontal, a um custo de R$ 88
milhões, de acordo com o ITESP. Como essas terras
foram consideradas devolutas, o dinheiro indeniza os
fazendeiros pelas benfeitorias, mas não pela terra desapropriada.
O leite é o principal produto dos assentamentos da
região. Representa 59% do valor da produção, segundo
o ITESP. Os lotes de Moisés Simeão de Oliveira e
Jenival Bispo dos Santos, por exemplo, não fogem à
regra.
Moisés obtém de seu lote uma renda de cerca de
R$ 600 por mês mais o que ganha com a venda de seis
ou sete bezerros por ano, subproduto da pecuária leiteira. Cada um vale cerca de R$ 250.
O orçamento da família é completado com o salário
de Moisés como presidente do sindicato dos trabalhadores rurais da região e com o que sua mulher
consegue com a venda de roupas que compra uma vez
por mês no Brás e no Bom Retiro, em São Paulo.
Moisés fica feliz ao ver que seu filho Marco Antônio, que nasceu no assentamento e cursa o ensino
médio, tem planos de plantar coco no lote. “É bom ver
que ele se interessa pelo trabalho aqui.”
O lote de Jenival também se baseia no leite, tirado
das dez vacas que ele possui. Seis bezerros, quatro
novilhos e um touro completam o rebanho. Dois hectares são ocupados com algodão.
Jenival, Moisés e os demais assentados na Gleba
XV de Novembro não moram em agrovilas, como ocorre em muitos assentamentos. Nesses, as casas dos
agricultores ficam uma ao lado da outra, e cada um se
desloca todos os dias até o seu lote para trabalhar.
Na Gleba XV, cada um mora no seu lote. “Assim a
gente está sempre de olho na terra”, diz Moisés.
(Folha de S.Paulo, 29.11.2003.)
OBJETIVO
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MST diz que se vingará da morte de um sem-terra
Um lavrador ligado ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi baleado em um engenho, em São José da Coroa Grande (a 145 km de
Recife, PE), e morreu ontem na capital, onde estava
hospitalizado. Os sem-terra prometeram destruir a propriedade para vingar o crime.
A vítima, Josuel Fernandes da Silva, foi morto supostamente por um funcionário do engenho Manguinhos, propriedade reivindicada pelo movimento para
desapropriação e reforma agrária.
Silva foi atacado na madrugada de anteontem, ao
sair de casa, localizada dentro da área. Filho de um dos
líderes do MST na região, ele teria sido espancado
antes de ser baleado abdome.
Em Recife, para onde foi levado, o promotor agrário
do Estado, José Edson Guerra, conversou com ele, que
disse conhecer o agressor. Guerra não revelou o nome
do acusado, mas a Folha apurou que se chama Marcos
e trabalha no engenho. Guerra foi à região com representantes do INCRA (Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária) e do Ministério Público Estadual. O
suposto criminoso não foi achado.
A notícia da morte revoltou integrantes do MST,
que decidiram vingar o crime. “Não vai sobrar uma
telha da casa grande”, disse o líder Jaime Amorim.
“Vamos quebrar tudo, porque já havíamos denunciado
a presença de jagunços e nada foi feito.”
O INCRA em Recife disse que a área, de 3 613 ha,
foi vistoriada e excluída do processo de reforma agrária
por estar situada em área de mangue.
(Folha de S.Paulo, 12.09.2004.)
PROPOSTA DE REDAÇÃO
O desejo pela propriedade da terra e os conflitos
dele advindos percorrem a história brasileira, desde a
colonização, conforme você pôde perceber, nos vários
textos que fundamentam as questões da Prova de
Língua Portuguesa.
Baseando-se em sua experiência, nos textos literários desta prova e nos dois textos jornalísticos, transcritos nesta parte, escreva uma redação do gênero dissertativo, em prosa. Procure apontar caminhos para a
distribuição de terras, no país, tendo em vista o seguinte tema:
TERRA PARA TODOS:
UTOPIA OU SONHO POSSÍVEL?
OBJETIVO
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Comentário sobre a proposta de Redação
“Terra para todos: utopia ou sonho possível?” Para
responder a essa questão, o candidato deveria basearse "em sua experiência, nos textos literários da prova e
nos dois textos jornalísticos", estes últimos transcritos
na prova de Redação.
No que se refere aos fragmentos de Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, e João Boa-Morte,
de Ferreira Gullar, caberia observar que ambos tratam de
conflitos que há muito perpassam a história do país: enquanto o primeiro poema compara os "grandes", os "generais", detentores de "diversas verdades", "diversas
fazendas", aos "Doroteus", cujas terras "são quintas só
no nome", o segundo poema relata a exploração do
lavrador Pedro João Boa-Morte, submetido a uma espécie de cativeiro, do qual não havia como fugir.
Associando tais poemas ao noticiário recente,
exemplificado por duas reportagens da Folha de S.Paulo, uma dando conta do relativo êxito dos assentamentos realizados pelo governo, e outra relatando a
morte de um integrante do MST, o candidato poderia
inferir que pouco mudou desde que o país passou a ser
colonizado. Assim, foi despropositado, por parte da
Banca Examinadora, exigir que o candidato apontasse
caminhos para a distribuição de terras, especialmente
se for levada em conta a dimensão desse conflito, que
tem sobrevivido a todos os governos que já comandaram o país, inclusive o atual, que constantemente se
vê pressionado pelos líderes do MST. Representou, portanto, uma incoerência a questão que se seguiu à proposta: como sugerir meios de se democratizar a posse
da terra se o próprio tema admite que essa possibilidade
seja utópica?
OBJETIVO
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INSTRUÇÃO: As questões de números 01 a 03