Não é que eu queira me exibir...
Mas não há salame (e prosciutto, rigatino,capocollo, finocchiona) como o meu
Patrícia Ferraz / TOSCANA
Fora da Toscana pouca gente já ouviu falar de cinta senese. E quem vive na região também não faz lá muita
questão de alardear o nome. Cinta senese é uma espécie suína que produz embutidos excepcionais. Seus
rebanhos são pequenos. Desde tempos remotos os animais da raça, de porte médio, correm soltos pelos bosques
toscanos, com suas longas orelhas fazendo sombra para os olhos. Têm o pelo negro, com uma "cinta" branca
(que lhes empresta o nome) cruzando o corpo, logo abaixo do pescoço.
Os cintas seneses chegaram à beira da extinção, mas os rebanhos já foram recuperados, o que permite, hoje,
caçá-los - sem culpa - na forma de salame, finocchiona, sbriciolona, rigatino, salsiccia, soppressata, capocollo,
pancetta, prosciutto... Não é uma caçada fácil, pois há poucas salumerias onde se pode encontrá-los. São
produtos artesanais e caros, oferecidos apenas nas lojas mais sofisticadas da Toscana. Também se encontram nas
próprias macellarias, os açougues onde são elaborados. As mais famosas e tradicionais, como a Antica Macellaria
Farloni, em Greve in Chianti (como você vai ler nesta edição), têm lojas próprias e valem a visita.
Os embutidos toscanos feitos de cinta senese não são para qualquer paladar. Rústicos, têm sabor forte, quase
selvagem. Seu perfume é intenso, bem mais marcante que o dos produtos feitos com outras raças. A carne do
cinta senese também é menos macia. Primeiro, porque a gordura não vem entremeada. Ou seja, carne é carne,
gordura é gordura - não se misturam. Além disso, o animal vive solto, fortalecendo seus músculos. Mas nem
pense que isso é defeito. Ao contrário, essas características são a prova da autenticidade dessa raça suína muito
antiga que nunca foi geneticamente manipulada.
As receitas de embutidos tradicionais da Toscana incluem temperos e especiarias, o que intensifica ainda mais o
sabor da carne. Há muitas maneiras de saboreá-los. Aconselha-se abrir os trabalhos com uma taça de Chianti
Classico e uma fatia de pão de campanha sem sal...
Pergunte a um italiano onde são feitos os melhores embutidos e ele vai dizer sem piscar: na minha região! A
resposta, é claro, vem sempre justificada por uma boa explicação. Os toscanos garantem que seus embutidos de
cinta senese são melhores por dois motivos. Primeiro porque o porco dessa raça tem mais gordura (não
entremeada) que os outros, o que deixa a carne mais saborosa e faz com que se conserve por mais tempo. Mas
também graças às receitas tradicionais toscanas - que contabilizam inclusive a alimentação orgânica dos animais.
Os suínos cinta comem milho e cevada. Aos 18 meses, com 150 kg, já estão prontos para o abate. No açougue, a
preparação é feita em duas etapas. Primeiro retiram-se as peças inteiras para elaboração de presunto, paleta,
lombo, pancetta, copa...
"Cada peça é refilada - limpa - e com as aparas é que fazemos os embutidos", explica Paolo Nocentini, da
Fattoria San Michele a Torri, enquanto mostra à reportagem do Paladar sua propriedade em Scandicci, perto de
Florença. "Não desperdiçamos nada, nem a cabeça escapa, com ela fazemos vários embutidos entre eles o
capocollo", diz.
Até o surto da vaca louca os produtos eram ensacados em intestino de vitelo, o que foi proibido. Agora são
embutidos numa tripa feita de fibras naturais.
O prosciutto de cinta é menor que o de outras raças e mais salgado (numa "escala italiana de salatura" o toscano
é o mais salgado, o San Daniele tem salatura média e o de Parma é do tipo menos salgado). É levemente
apimentado e tem a carne vermelho-viva.
A perna do suíno passa por 15 dias de salga, depois é lavada e pendurada numa sala com temperatura controlada.
"Como é menor ele não pode secar muito rapidamente, senão fica duro por fora e muito mole dentro", explica
Nocentini. Em ambiente úmido, demora para secar, o que dá melhor resultado.
Depois de cinco meses o presunto é lavado novamente e temperado com pimenta, alho, sal grosso e pincelado
com gordura de porco para fechar os poros e conservar o tempero. "Dura um ano em condições ideais, mas
aguenta dois sem problemas", diz o produtor.
Coordenador de um estudo da Universidade de Florença sobre as propriedades organolépticas do suíno cinta
senese e presidente da Olivecoltore Toscani Associati, Giampiero Cresti ensina a escolher o presunto ideal.
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"Nunca se deve comer um prosciutto com a gordura amarela, isso é sinal de oxidação", adverte. "Gordura
branquinha indica que a carne está macia, compacta, consistente, de sabor delicado."
Além do prosciutto, os toscanos fazem o rigatino, uma pancetta temperada com sal, pimenta e alho - o do
Falorni (leia abaixo) é famoso, curado por quatro meses em prancha de madeira aromática.
Salame? Tem na Itália toda, mas a Toscana faz variedades próprias. O salame clássico toscano é produzido com
partes finas do suíno, tem pequenos cubinhos de gordura, bastante sal e um toque de pimenta. E a grande
especialidade entre Florença e Siena é a finocchiona, um salame com sementes de erva-doce (finocchio, em
italiano, daí o nome). Para preparar esse embutido, a carne de aparas da barriga e a gordura são moídas juntas,
em pedaços pequenos, temperadas com sal, pimenta, sementes de erva-doce, antes de ser ensacada. Quando a
finocchiona é feita com pedaços maiores, se despedaça e chama-se sbriciolona, que quer dizer "esfarelona".
A tradição ensina a aproveitar o suíno todo. Com a bochecha se faz guanciale, usado para envolver assados; ela
também entra em receitas de massas. Cabeça e pescoço viram capocollo, curado e amadurecido no escuro,
temperado com alho e erva-doce - é o que na Emilia-Romagna se chama coppa. Soppressata também se faz com
a cabeça do porco. E tem ainda a salsiccia (linguiça fresca e seca)...
Mas será que ninguém come essa carne fresca? A resposta de Paolo Nocentini vem na forma de sua receita
preferida: arista al forno. É o carré do suíno, temperado com alecrim, alho e limão-siciliano e assado lentamente.
Roberto Smeraldi - ESPECIAL PARA O ESTADO
Quando pisei pela primeira vez no Antica Macelleria Falorni, nos anos 70, foi para comprar a mítica bisteca
fiorentina. Ali acabei ouvindo falar da cinta senese. Na época, o estabelecimento comemorava respeitáveis 250
anos de atividade. Mas enquanto empresa - por foco de negócio, tamanho e divulgação - guardava mais
proximidade com a de 1729, quando a atividade começou sob os pórticos da praça triangular na vila de Greve in
Chianti, do que com a atual.
Hoje, Falorni é uma marca conhecida em 70 países e Lorenzo Bencistà Falorni, da oitava geração de açougueiros,
foi escolhido em junho pela revista inglesa Decanter um dos 50 homens mais influentes do mundo do vinho. Do
vinho? Pois é. Em primeiro lugar, o vinho local sempre foi ingrediente quase tão importante quanto a carne na
confecção e cura da maioria dos embutidos dos quais Falorni se tornou símbolo. A finocchiona, o salame, a
salsiccia, o capocollo... nenhum deles seria o mesmo sem a provocatória acidez do Chianti Classico.
Mas quando você entrava na loja da praça de Greve, a estratégia de venda centenária era aquela de fazer degustar
os produtos. Eles sabiam que, depois de experimentar, eram poucos os que saíam de lá sem comprar.
A cultura da degustação se justificava não só com algum forasteiro atraído pela novidade, mas até mesmo com o
freguês antigo, pois a ideia era a de conhecer um produto sempre diferente.
Cada detalhe de clima, de mudança de cura, de peso do animal era objeto de conversa e ilustração por parte dos
experientes artesãos (e vendedores ainda mais experientes, eu acrescentaria).
Se já era difícil resistir ao salame e à conversa, a tarefa se tornava improvável quando ambos eram ainda regados
com um dedo daquele Chianti.
E os irmãos Lorenzo e Stefano não gostavam de desperdiçar nada, ainda menos um bom vinho. Eis que em
2000 cogitaram usar uma tecnologia - baseada na ação preservadora do nitrogênio - para manter várias garrafas
de vinhos, de diferentes anos e produtores, abertas e aptas para servir doses de degustação.
Isso viraria a Enomatic, a empresa que é hoje sinônimo, mundo afora, de dispensers para vinho, mas também
licores, destilados e azeites. E foi o que tornou Lorenzo um dos homens mais influentes do mundo do vinho.
Até porque, ao mesmo tempo, ele também se tornou produtor, criou um museu do vinho e várias outras coisas.
Mas e a cinta? Sim, também nos anos 70 não se falava muito em cinta, e as indicações geográficas ainda eram
limitadas a meia dúzia de consórcios de produtos famosos, como o parmigiano. Hoje a Itália tem 216 indicações
reconhecidas e lidera, dentro da União Europeia, em quantidade e diversidade, seguida pela França com 177 e
pela Espanha com 143. Mas aquela era ainda a época em que apenas lhe diziam, de trás do balcão do Falorni,
"Experimente aqui este porco de cinta, que lá em Florença não se encontra". O fato é que em meados dos 90 o
risco era que não se encontrasse mais em lugar algum.
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Lenta recuperação dos ambientes naturais locais, reintrodução paciente e trabalho de genética fizeram com que,
em final de 2006, fosse possível comemorar a tutela, a qualidade e a sustentabilidade da produção com um
consórcio reconhecido.
Falorni foi importante nesse processo. Claro, hoje seus produtos são mais padronizados, menos personalizados
do que já foram, ou do que, hoje, são aqueles de certos novos produtores que entraram para ocupar o nicho do
artesanato de pequeno porte.
Falorni exporta, construiu um novo laboratório com 60 empregados; em suma, não é mais apenas o antigo
açougue. Mas seu crescimento não implicou a descaracterização nem na perda de compromisso com a qualidade:
pelo contrário, alavancou uma geração de novos jovens apaixonados por investir no território, articulando terroir
com diversidade, inovação, tecnologia. Uma história bonita, até mesmo por ser verdadeira.
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Não é que eu queira me exibir... Mas não há salame (e prosciutto