142 ANT6NIO SIi:RGIO - Uma Antologia ANTóNIO SÉRGIO - Uma Antologia texto é verdadeiro ou suposto; e, admitido isso, examina qual foi o intento do Santo, com os socorros tirados da história ... O novo método está hoje estabelecido em França, Germânia, Uál'ia, ete.; mas observam os estrengeiros que semelhante método não passara dos Pire,néus a esta parte, principalmente para este reino, no qual ainda não amanheceu neste particular. O que lhe chama medo do vácuo diz uma palavras que nada significam; porque, se Vossa Paternidade o aperta, e lhe mostra que aquele medo cessa a determinada altura! (verbi gratia, 132 pés de água, ?u 28 polegadas de azougue), pois de ali pam cima, ainda que se retIre o êmbolo, não sobe o Iíquido--mostra;..lhe evidentemente que não sabe o que diz. Nos trechos de Verney que acabo de ler acentua-se um rasgo da cultura moderna, desconhecida em Portugal: a disciplina crítica; vejamo-lo acentuar este segundo: o experimentalismo, ou experimentação acompanhada do raciocínio matemático. Diz assIm: Por estes termos, concretamente, vai demonstrando Luís Verney o infinito ridículo do nosso estado, o costume caricato de alegarmos ainda, no século XVIII, as «razões subidas» dos «doutos varões», as quimeras verbais da ciência escolástica. Nada chegara a Portugal da grande novidade do século XVII, donde resultara a incompatibilidade do pensar aristotélico e do pensar científico: isto é, a criação de uma forma de conhecimento segundo a ordem do juízo, da relacionação matemática, da experimentação decisória, e não do conceito, ou da percepção. Ao mesmo tempo, busca Verney convencer-nos do que se sabia há muito tempo, quero eu dizer: que a Física é uma ciência experimental, e que exige a aplicação da Matemática. Assim, diz ele o seguinte: Destes dois princlpIOs: ignorância e preocupação, nasceram aqu'eIas infinitas arengas a que se chama filosofia neste país. Embebidos daqueles princípios, não se querem abaixar às experiências, acompanhadas do raciocínio. Todo o ponto está em fazerem disputas sobre as formas cadavéricas e a ordem transcendenta~ entre Deus e as 'criaturas, com outralS semelhantes ridicularias que descem daquele primeiro e errado princípio; e com muito trabalho ficam ignorantes de Física!. Tantos anos de disputas, tantas subti'lezas, não dei,tam uma oitam de verdadeiro espírito fi'Iosófico, quero dizer, de um juízo prudentoe e crítico, capaz de fazer obSlervações útelis e discor.er com fundamento sobre as causas de qualquer efeito natural. A três ali quatro palavras se reduz toda a sua filosofia natural Pasma um homem de ver a faciHd'ade com que explicam qualquer fenómeno que se oferece. Fala Vossa' Paternidade do mio, e respondem-lhe que se compõe de matéria, forma e privação: <lomaJtéria são os «vapores ígneos», nos quais se introduziu a «forma do fogo», que o fez romper para a terra. Isso é qUal!1do pode dizer, slegundo os seus princípios, um Peripatético 20. Diz a verdade: mas ,não chega a explicar que coi~la é raio, nem nos faz a mercê de dizer por que razão a «forma do fogo», que em todos os indivíduos é a mesma, na chama suba para cima, e no 'raio caia para baixo. E que se chamem filósofos estes tais! E que condenem os que observam nitidamente a Natureza! Se a Física é o conhecimento da Natureza-quem mais observou a Natureza com dis'Cursos aéreos? Tanto sabe um puro Peripatético dos efeitos natura'is quanto sabe um cego de cores. Ambos falam do que não viram: o cego porque não tem olhos, o outro porque os não quer ter ... Os seus tratados são disputas d'e nomes aplicadas aos céus, meteoros, gemção,etc. Estas matérias estudam eles peIo Suares lusitano, ou pelo Comptono, ou Rhodes, oucois8i que o valha ... ; e, como estes livros são públicos, nele pode Vossa Paternidade informar-se d<l verda'de do que digo. Estes bons religiosos passa,ram a vida' no seu cubículo, escrevendo: e assim não podiam compor obras melhores do que aquelas por que se guiaram. D';ga~me Vossa Paternidade quem ensinou filosofia natural ao Suares, ou Comptano, ou Ardaga, ou ,aos outros que os seguiram? Onde fizeram as experiências? Que autores citam? .. Neste particular, não há meio: quem recebe as experiências, e em virtude delas quer discorrer -- vêem subir a água na' seringa; contudo, o Peripatodeve renundar as eX!pe,riências. São coisas totalmente opostas: uma lbestrói 'a outra. Todos vêem subir 'a água na seringa contudo, o Peripatético chama-lhe «medo do vácuo»; o moderno, «peso do ar». R'afinando os homens os seus pensamentos, e achando que se não deve admitir nada sem prova, desprezaram ,todas as hipóteses e uniram-se à experiência eao que deJla se .tira ... põem-se OS olhos na experiência e procura-se tirar prova daquilo que se vê ... Este é o sistema moderno: não ,ter sistema; e só assim é que se tem descoberto 'alguma v'erdade 21. Livre de pa-ixão, calda filósofo propõe as suas razões sobre as coisas que observa: as que são claras e certas abraçam-se; as duvidos'as -- ou se rejeitam, ou se recebem no grau de conjecturas enquanto 'não aparecem outras melhores: e assim é que se forma o corpo da doutrinal. Estes P,eripatéticos, quando ouvem dizer que um homem não tem sistema nem lautor determinado a quem siga, fazem grande ga'lhofa: mas 'nisto mesmo mostram não saberem que co:sa; é Físic~; porque, se o soubeS&em, dieveriam estimar quem se >,ale do seu juízo e não quem o cat,iva; 22. O f1im do físico é descobri'r a verdadeira causa dos efeitos natura'is; e, para conseguir este fim, não deve f'a:uer caso do que dizem os outros, e sim do que mostra a, experiência' ... A Física não recebeu aumento senão depois que a começaram a tratar os matemáticos ... mas a maior parte dos professores deste reino considemm a Matemática como alheia à Física, e, quando ouvem falar em ma-temátUco, logo lhe perguntam se há-de chover ou fazer bom tempo ... Eu já assisti a umas conclusões de MMemátka em que, vendo-se o defendente obrigado a mostrar o que dizia com uma figura, gritou o arguente: -- «Que bicharoco é esse? Tire para- lá isso!» O auditório aplaudiu muito este dito; mas eu tive compaixão de uns e outros, tal é a ignorância destes países! Cito as palavras do autor do Método, porque creio ser este o melhor processo de dar a quem ouve uma ideia concreta da situação mental do nosso país, no tempo de Luís Verney. Depois 144 ANTONIO S~RGIO - Uma Antologia disto, pelo que era a clencia e a filosofia, prevê-se o que a literatura poderia ser. A ciência, a filosofia, a crítica, fornecem à literatura o ambiente vital, o ar que respira e que lhe dá seu tom. Quando elas lhe faltam, limita-se o espírito do homem que escreve aos afãs mesquinhos dos artifícios do estilo, ao simples pitoresco, às superficiais narrações. Perde-se a intensidade do interesse humano; não há profundeza de emoção ou ideia; cai-se no bonito e no ornamental. De aí a indigência do Seiscentism,), tão evidente e incontestável na substância da sua prosa, por mais que queiramos admirar em auge as historietas pueris de um Manuel Bernardes e o conceptismo da parenética de um António Vieira. Faltou a este, precisamente, para nos dar uma obra das que ferem fundo, das que têm garra, das que marcam almas - um ambiente vital de inteligência crítica, uma s'éria cultura nacional. O homem é de génio: a obra, não. O indivíduo, aí, teve o estro: foi a nação que lhe faltou. «E5tão todos persuadidos» - diz Luís Vemey, falando dos escritores do Seiscentismo e da primeira metade do seu próprio século-, «'estão todos persuadidos de que a eloquência consiste na: ~ectação e singu'laridade; e por esta regr'a querendo ser eloquentes, procuram ser mui afectados nas palavras, mui singulares nas ideias, e mui fora de propósito nas aplicações ... Não se acha mais que equívocos, pala. vras sem significado, pensamentos inverosímeis, encarecimentos inauditos;, em uma paJ:lav'ra,uma lín.gua !!lova, que selrve para toda oo['te de assuntos, sem distinção ... Os seiscentistas são os que caímm nesta ridicularia ... mas 'agora, que o mundo abriu os o,lhos e ,todos procumm explicar-se bem, não se pode sof'rer: e vale o mesmo que mostrar que não entendem em que consiste a elegâncita, da língua ea força da eloquência.» Eis aí está. Caindo assim, como uma bomba, no sono do «Reino da Estupidez», a crítica de Verney dispara em escândalo, abre uma polémica estrepitosa, ergue um turbilhão de berreiro e pó. Estoira em insultos, calúnias, impropérios, ódios, toda a boçal idade da Nação ... Deixá-lo. A reforma, apesar disso, veio a tentar-se: mas não tão boa como se quisera: porque a torceu. ou amesquinhou, a estreiteza de espírito do marquês de Pombal, um desses ilusórios «grandes estadistas», de acção mais espectaculosa que verdadeiramente benéfica. «Este ministro» -- diz R.ibeim dos Sanlos -- «quis um impossÍ'vd político; quis civvHmr a Nação e ao mesmo tempo fazê../a esCI'av'a; quis espalhar, a Iluz das cliêndas fHosóficas e ao mesmo tempo e1ev"1:ro poder ,real ao despotismo; inculcou muito o estudo do Direito Natural e das Gentes e do Direito Público Universal e lhes erigiu c,a'tleiras na Universidade; mas não via que dava luzes ANTONIO S~RGIO - Uma Al1>tologia 145 aos povos para conhecer por eles que o poder soberano c,ro unic,amente est,abelecido para bem comum da nação e não do prfncipe, e que linha ~imites e batJizas ,em que se devi'a conter.» Depois da queda do marquês, adoptou-se um processo que eu creio melhor. Com efeito, fora de aparato, em boa parte, a reforma pombalina da Universidade, e a acção dos ministros d<: D. Maria I aparece aos olhos do pedagogista como mais eficaz. Entra-se na época que se caracteriza pelas pensões de estudo no estrangeiro e pelo trabalho metódico da Academia instituição em que se concretizaram (e bem) as ideias fecundas dos «estrangeirados». As invasões francesas, infelizmente, vieram perturbar toda esta faina. Mas mais tarde as lutas do Constitucionalismo, pro. movendo a forçada emigração de grande número de portugueses, levaram alguns a tomar contacto, no estrangeiro com o "el'dadeiro espírito da cultura crítica. Dess~s _e~i~ra~os ,constitucionais, um ocupa neste processo uma poslçao ldentlca a de Verney: Alexandre Herculano. E porquê? Porque é que a pubHcação da sua História é um facto saliente da nossa história? Porque é que levantou tão grande bulha? Porque é que houve, então, uma polémica semelhante à de Verney? Basta, para responder, que se leia o prefácio da primeira edição daquela História de Portugal. Diz aí Herculano: Esta primeira tentativa de uma história crítíca de Portug.aL .. Não ignoro o ,risco da si.tuaçãoem que me coloouei. Há muitos para quem os séculos legitimam e santifioam todõ o género de fábulas, como legitimam e santificam as dinastias nascidas de uma u~urpação. Ao~. olhos .destes, as cãs da mentira são também respeitavels. A «CntJ?a», dizem eles, mata' a poesia das eras antigascomo. se a p~la de qualquer época estivesse nas patra,nhas muito postenormente Inventadas. São excelentes ta'lvez as suas int'enções' não sei se o mesmo se poderá dizer da' sua iintdigência .... Sei qu~ a ciência da história caminha na Europa com passos :ao mesmo tempo firmes e rápidos, e que, se não tivermos o ge.neroso ânimo de dizermos a nós próprios a verdade, os estranhos no"la virão dizer com mais cruel rranq ueza ... Creio que se vê claro, por aqui, donde vem o valor preeminent: da His/~ria de Porrugal de Alexandre Herculano, e porque e ela própna, por seu turno, um dos grandes acontecimentos da nossa história, como o Verdadeiro Método de Estudar. São estes dois livros de diversa índole os dois grandes golpes do Espírito Crítico na muralha que nos separa da Europa culta desde o fim da época das Navegações. Estabeleciam eles a so~idarielC 146 ANTóNIO S:É:RGIO - Uma Antologia dade intrínseca do progresso moral e da verdade científica; e os furiosos ataques que receberam, os insultos e calúnias que s()~re eles caíram, são compreensíveis e naturais, como .rea~ção lÓgica do ambiente lúrido ao golpe certeiro desses dOIS.glgante<; no ponto essencial de toda a questão - no que há mais fundo, de raiz na decadência do Português ... Sabeis o fim que tudo isso levou. Pouco conseguiu AJemndre Herculano com o seu tentame de renovação mental. E tão pouco, que, passados vinte anos sobre a sua ljistó'!:a, e~ era indispensável mais outro arranco, e a terceira (nao a ultima) das nossas batalhas culturais: a «questão coimbrã». O grande Antcro, nessa polémica, continua a obra de A!exandre Herculan.o, como este reatara a de Luís Verney, e expnme a revolta da lIteratura jovem (que queria ser crítica e europeia) contra uma literatura de mera forma, sem profundidade e sem saber - p~r caUS,l da qual, aliás, foi injusto : arb~trário at~ca~' o CastIl?o. «~as, Ex.mo Senhor, será posslvel viver sem Ideias? Esta e que e a grande questão». Foi nestes termos, como bem sabem, que Antero de Quental colocou o debate. E quem era ele, i~ntero de Quental? Um jovem poeta que escrevia disto: «o entusI~smo é bom, porque eleva o espírito; mas a «Crítica)) é melhor mnda, porque o esclarece)). Os hO'mens que entraram no novo arranco chamaram-se Quentall, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Ramafho Ort,igão, etc., a,fO'ra uma plêÍ>ada de bO'ns emditos, e deram-nos o período de maior fuGgor de toda a literatura nacional., . Venceu.,se, pois, ne'~te novO' esfO'rço para a cultura cnt'lca? Ainda nãO" nãO' se venceu. Olhai o que se passa em torno de vós, e hav~is de concordar que se não venceu. Há casos individuais do maior va!loT' , o que - é neicessáro, pOiTém,é..sim uma colediva ekvação real do nÍve!1de cultura da nossa elIte. E vIsta a genera1idade dessa nossa ellite (o qll'~ .e'l~ aprecia, o qu~ .ela compreende, o que eila faz, a sua sUperflOIahdade, a sua reton:ca, o seu dogmatismo) direis que a cultura verdadeira não eXIste ainda no nosso país - e que dela está longe, que está longíssÍ>mo... É que, nessas campanhas pela mentalidade 'crítica que se têm suoedido desde o Luís Verney, praticámos o e'frO que f0'i tão frequente nas nossascampllJnhas coloniais. Avançava a coluna de operações; ganhava~e o oombate, triunfava a tI~?pa: ma~, vencido 0' gentio e aoabada a guerra, não se desenvo[vla metodIcamente .o trabalho de O'cupação do território, numa colonização de t0'dos os dias, sem desfa<lecere sem parar. De aí a p0'<;~ibHidade de mais revoH,as, e o ser necessária de quando em quando ?5, -- ------------------..•. ANTÓNIO S:É:RGIO - Uma AntclOgla 147 uma nov'a campanha nas tenas de África. Ora bem: na guerra da cultura tem sido assim. De<Íxám0'ssempre a possilbilidade de um retorno ofensivo da gre1i seIViagem, por isso que não víam0'S que também neste cas0' nã0' basta 0' oombate e o fragor das armas - seja o combatente um Luís Verney, um Alexandre Herculano, um Antem de Quentaa. Os argumentos de um He1flcu1lano,ou de um Vemey, convencem a pequení~sima mLnoria lusa d0's h0'mens inteligentes e sabedores - ist0' é, dos que não precisam de ser convencidos; e as trapaças soezes dos seus inimigos reforçam a reacção da gente ignara, que vence por fim, mantendo a incultura tradicional. A polémica é necessária para se abrir a faina; mas, por si só, tcsullta estéril. O que se impõe é o treino metódico, continuado, gene,ra'liZiado,de grande número dos n0'SiSOsjovens nos meUhores centros de inve,stigação; o que cumpre crIar é um ens.ino activ0', que fomente a iniciativa intelectua'l do aluno; o que é ne1oessár.ioé que dia a dia (e passo a passo, e pont0' a ponto) se vá colonizando sistematioamente, com campos de trabalho e c0'm guarnições estáveis, ist0' é, oom institutos oientífic0's, com educação aut0'n0'mista, com associações cooperativas, com escolas de ensaio - o nosso Reino da Estupidez. P0'r isso, no pr0'grama da Seara Nova, liminaifmente, como base necessária de tudo mais, pedimos uma Junta de Propulsão dos Estudos, que tenha a seu cargo 0' desenvolv,imento enérgic0' da cultura crítica da mocidade; que dê bolsas de estudo no estrangeiro; quec~ie institutos de investigação científioa onde trabalhem depois os seus bolseiros; que organize o esforço dos nossos mestres e a p~eparaçã0' sistemátka do nosso escol. O mais necessário em Portugal é uma boa elite organizadora, e1lite de saber e de urbanidade, composta de gente de superior cultura, que saiba msolver-nos os problemas téonicos, libertar o agrícola, continuar um Mouzinho, educar-nos para o uso das liberdades cívicas de maneim pacífioa e criadora, sem histéricas dramaNzações da vida pÚb1ioa: e com o f1m de formar esse mesm0' eSC0'1 é que pedimos uma Junta de Propulsão dos Estudos 23. Ent,endamo-nos, porém. O verdadeir0' alvo que se teria em vista com aquela Junta de Propulsão dos Estudos não sedam acréscimos no sabe,r, tão-'só, ou seja um maior número de verdades novas nos nossos conhecimentos sobre a Natureza, 0'U o ape'ffeiçoamento das comodidades da vida e d0's processos me'cânicos da fabricação: seria a e1levaçãoe afinamento constante da própria actividade eSlpkituaJ.do homem; seria a Cultura, para o dizer de um golpe. O que mais vwle, na inve~,tigação, é o trabalho do espírito sob~e si mesmo, no esforço contfnuo de se 148 ANTONIO SÊRGIO - Uma Antologia achar a ~i (de descobrir o Espídto) no que não é espírito - ou no que, pe10 menos, parece não sê~lo. Desejamos o tre1inona investigação científica, mas porque é um treino de educação da psique. a verdadeiro método do descobdmento pressupõe no homem que se consagra à busoa, e para ela vive - a atitude crítica, a problemática, a sinceridade absoluta para consigo próprio, da quwl se segue como a nO'ke ao dia (as1simdiz o Polónio na tragédia do Hamlet) a sinceridade para com os outros homens. a melhor re'~ult'ado da investigação oientífioa - do «delsencüvar a verdade não sabtida de todO's», como diz nos Colóquios o Garcia de arta· do «mostrar ao mundo novos mundos», como diz nos Lusíada; o Luís de Camões - é a realização de uma ve,rdadeira Cultura, da ascensão dO' ,inte1e'oto ao nível divino, ao nível da divinização da no,ssa mente. Ne,la, por necessidade, todos fazemos o sacrifício cO'nstante dos nossos gOl':,tos,individuais rest'dtos; ne[a adquirimos a objectividade, ou seja a dessubjectivação do pensamento próprio; ne:la alprendemos a comungar com os outros pelo que há de universa'l dentro de nós; ne,la nos libertamos do império do hábtito, essa materialização dO' nosso inte1ecto; nela nos afazemos a ver as coisas sub specie a!ternitatis; ne,la aprendemos a ser tolerantes, de amplo horizonte nos nossos gostos, serenos e magnânimos nas re:Jações com os home'ns; ne1la conseguimos libertar o indivíduo das tolas limitações da individualidade, do que é unila,teml e do que é exClluSiivo;por e~a nos instalamos no Universall, pMria vef1dadeira dos que são espírito; neila exercemos a Disciplina Crítica, que nos le'va à Ideia da Humanidade, ao mais alto senso da CiviHzação. Ne:la alargamos a nossa expedência: e a experiência, como v-imos atrás, é «madre das co,is'as»,segundo af,kmava o herói da índia. Repare-se nis:to: porque é mais exa,cta esta frase estranha, e vai mais ao fundo, do que podia pensar o seu próprio autO'r. A experiência, com efeito, não é a consuIta de uma autoridade externa, de um objecto em si, de um sistema de dados het,erogéneos com a natureza do pensamento. Não é uma pass,iva reçepçãü das cO'isas, mas a madre delas: é criação da pe,rcepção sensíve'l, da Forma oientífica e do objecto físko. «Está no pensamento como ideia», usando agora os dizeres do Camões; foi no próprio espírito que assumiu o ser: e dessas ideias que a constituem, são verdadeiras, ou aceitáveiis, aque:las que se organizam em sistema lógico e que o contrast,eio da experimentação não infirmou. E, por issü que a experiênoia é «madre das coisas»; por i~&oque a eXJperiência é criação. do objeoto, no conhedmento e pelo conhedmento, e que tem por lei o tiender para una, graças a um e1sforço de dessubjeotivação do pensar - «soubemos. por eila rad~caJmente ANTONIO SÉRGIO - Uma Antologia 149 a verdade». E por isso a via do saber científico (quando é filosófico) coinoide com a marcha da ascensão moral. Sim, senhores meus: abramos trincheira na regiãO' do Espírito, convictos de que o ser é actividade pura e libertos da tir:ania da representação sensívell, o maior pe1cado do pensamento humano; não nos esqueçamos de que a Natureza, como sistema de percepções que se conca,tenam, depende do pensamento e é dada nele; imtalemo-nos assim no dinamismo-e.spírito, no a,cto do juízo que comtitui o eu (fiéis à sede de inte;J.jgibilidade, sem o mínimo vestígio de transcendência, sem separação alguma de substância, vendo nas condições do juizo veTídico o meio de união com o pr:incípio supremo, Pensamento abs'ejluto e impessoal) - e não haverá perigo de qualquer desgarro em relação aos objectivos que nós visamos, ao i'rmos reatar sob forma nova (para além de três séculos de um viver sem a1ma, no Re,inü Cadaveroso da Estupidez) - a faina augusta dos Desoobridores. (ConferênCÍta: pronunciada em Coimbm em 1926) Ensaios, t. NOTA n, 2." ed., pp. 41-·&3. A Encontra-se essa atitude em Damião de Góis, que a atribui ao infante D. Henrique. Segundo ,de, fundava-s'e este na leitura dos geógrafos antigos. «Os verdadeiros autores em que continuadamente estudava» (diz Góis)? «crendo. o quee,sc.revi:am oomo cousas escrit·as por homens, e assi as cna, e dUVIdava" como sle deve fazer 'a todalas que dos homens e de seus juízos procedem, nas quais,com ,a ,certeza, ,está slempre junta a dúvida.» (Crónica do Príncipe Dom João, capo. VII). NOTA B P'ara ,avaliar do que em, iainda no século XVI, a superstição das autoridades antigas, é interessante lembrar 'as opiniões da 'capta de Lambin sobre um colega de Garda de Orta, o naturalista francês Pi,erre Be'lon, que, de 1546 a 49, fez umllJ viagem ao Próximo Oriente também como o nosso Orta, par·a ,estudar as drogas. Belon consignou 'üs result~dos da sua jornada na obro Les observations de plusieurs singulantez et choses mémorables, trouvées en Grece, Asie, Judée, Egypte, Arabie et autres pays étranges, P,a1ris, 1553. A carta de Lambin sobre Belon a que nos referimos, foi publicada por H. Portez na Revue d'histoire iittéraire, 13 (1906), PI?6SS .•9. Belün não sabe grego nem Iatim, nota Lambin; portanto - conclUI eLe- relev'a ler 'com pne'cauçãoe discernimento as suas narrativas de viagem; ,talvez se possa confiar nele para a parte que não respeita à ciência e conhecimento das coisas; naqui,lo, porém, que ele viu, mas que já foi watado pelos antigos, cump'l'e não lhe dar sempre crédito. «Habenda fort,asse est Belonio fides in eis quae ad doctrinam et scientiam 150 ANTONIO SÉRGIO - Uma Antologia rerum nos pertinet, ul 'é:'; 'tO~S xk8'EkcxO"'t'cx quae potest unus perspioere et cons'cqui. Iniis vero quae litteris interioribus p~ti et ha,urire solent, qua,e ab a'ntiquitis gl1a'ecis ac latinis autoribus tradi,ta sunt (quorum testimonium vetustate commendatur et confi'rmao(uret infirmatur) non semper esse Bellonio credendum.» É talvez interessante o recordar que Descartes, assim >como Orta e Galileu, teve também a idei'a de contrapor em um COlóquio o espírito de livre investigação e o autoritarismo dos esco!ásticos. O diálogo a que nos referimos ficou incompleto, e intitula~se Recherche de la vérité par les lumie/'es naturelles. Foi escrito origina'riamente em ~rancês; mas o manuscrito original! perdeu-se e ficou s6 uma tradução latina, de que se não sabe quem seja o autor. Cousin e outros retraduzimm a obra para o francês. Na Recherche, o homem dos textos (equivalente ao Doutor Ruano do nosso Orla) chama-se Epistemon; a personagem de Eudaxo corresponde à do Doutor Orta; simplesmente, não se trata de drogas nem de ciências natul1ais no diálogo de Descartes, mas do próp,rio método da investigação e dos primeiros princípios da fHosofia. A certa aHura, Eudoxo diz o seguinte: «EUD. Pour cette fois je m'em charge volontiers, mais à la condition que vous» (Poliandro, 'ai ~erceira personagem do co'lóquio) «serez juge de notre débat; car je n'ose m~ promettre qu'Epistemon se rende à mes raisons. Celu'i qui, comme lui, est plein d'opinions et de préjugés, tres-difficilement se confie à la seule lumiere de la nature; dês longtemps, en effet, iI s'est accoutumé p!utôt à céder à 1'autorité qu'à prêter !'oreille à ,Ia voix de sa propre raison; ~'l aime mieux int!erroger les autres, peser ce qu'ent écrit les anciens, que se consul1ter lui-même sur 1e jugement qu'i1 doit porter. Et de même que des l'enfance il a pris pom la raison Ce qui ne !I'eposoit que sur l'auoorité de ses précepteurs, de même iI présente maintenant son aulorité comme la raison, et iI veut se faoire payer par :Ies autres le même tribut qu'il a payé autrefois.» NOTA C À Itão cilada frase de Hamlet a Horácio: There are more things ln heaven and earth, Horatlo. Than are dreamt of ln your valn philosophY. costuma dar-se uma 'interpretação de natureza mística'. digamos assim. No entanto, se pensarmos na época em que Shak:espeare a esareveu, podemos atribuir"lhe plausivelmel1Jte um !aJlcance ll1JaJturaJlista,clClIltífico, antiescolástico, idênHco ao das paIa\llnas de Camões e Duar;te Pa'oheco que 'acabamos de citaI1.. isto é: descobrem-se mais coisas na ThITa Ie lIIO Céu, mais fenómenos da Na!tureza, do que sonha! 'aJfilosofia esco1ástica. A mterpretação mÍiStioosó me pareceriaadmissível se o Hamllet e o Shakespeare fossem do século XVIII - e pOJ1tanto naturalista, científica" posHÍ'vista, a filooofia a que eles aludiam. NOTA D As palavras de Verney assemelham-seaqui às de Deslandes. da mesma época: «Je puis même dire qu'en fait dephysique I'on doÍ! rechercher ANTONIO SÉRGIO - Uma Antologia 151 autant les expériences que I'on doit craindre les systemes ... C'est !}ar des expériences fines raisonnées el suivies que I'on force la nature à découvrir son secret; (outes les ~mtres méthodes n'ont j,ama,is réussri.» Deslandes, SUl' la meilleure maniere de faire les expériences, 1736, citado por Momet, La pensée française au XVIIIe sil}cle, :Z.a edl, '1>. 88). NOTA E Fui minis!ro da Instl1lção em 1r923 (a!}esar do meu asco às funções de poder - de poder real ou fictício) unicamente para fundar a Junta a que me l'efiro nesta conferênci,a'. Publiquei o decreto que li instituía, e ao mesmo tempo apresentei ao Parlamento uma proposta de lei que criava 'as Ifeceitas indispensáveis !aJOfUl1Jcionamento da mesma Junta. Como o Padamento. porém, entretido em questõezinhas verdadeiramente reles, não chegou a discutir a proposlta, não nomeei o pessoal que constituiria ·a Junta (seria inÚ'IiJ), e assim a iniciativa resultou improfícu'a, ou, antes, apenas profícua como propagranda' da ideia. Depois a ditadura repulJlicou o meu decreto, introduzindo..IJhe modificações que Ih'e falsifi.cavam completamente a ideia. Ao que me disseram, o Prof. Agostinho de Campos, presidenle, protestou contra essas modificações no seu discurso de abertura. Não menos falsificaram <l1 ideia, determinadas nomeações de pessoal para a Junta. que recaíram em indivíduos de todo indignos de fazerem parte dela, tal como eu a concebi. Assim como ficou, a Junta deveria começar por conceder pensões de estudo a alguns dos seus membros e funcionários. ·a' fim de se irem matricular numa boa escola primária do estrangeiro.