PALESTRA DE PETER HUBERTUS NA 56ª FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE
Analfabetismo Funcional: também no país dos poetas e pensadores
Prezadas senhoras, prezados senhores,
Meu nome é Peter Hubertus e eu trabalho junto ao Bundesverband Alphabetisierung und
Grundbildung (Associação Federal de Alfabetização e Educação Básica) na Alemanha. Esta é uma instituição
de utilidade pública que trabalha em prol de pessoas que não sabem ler e escrever ou que o sabem de
maneira muito rudimentar.
Vocês provavelmente se perguntarão como é que existem na Alemanha pessoas que tem
problemas com a escrita. Por acaso não existem escolas na terra de Goethe, no país dos poetas e
pensadores?
Obviamente existem escolas na Alemanha. Existe há muitos no país o ensino obrigatório. E nós
presumíamos até há aproximadamente 30 anos atrás que todos os adultos soubessem ler e escrever –
talvez com a exceção de imigrantes.
Há 200 anos atrás isso era diferente. Naquela época, havia ainda muitos analfabetos. Quem não
sabia assinar fazia três cruzes ao invés da assinatura. Aqui nós vemos as três cruzes de Elisabeth Göbel, que
queria unir-se a seu noivo. O padre anotou ao lado que as três cruzes serviam para substituir sua assinatura
nominal.
Com a introdução do ensino obrigatório, o analfabetismo foi sendo gradativamente erradicado na
Alemanha. Um levantamento do ano de 1871 indicava 10% de homens e 15% de mulheres que não sabiam
fazer sua assinatura nominal nas certidões de casamento.
O último levantamento empírico, do ano de 1912, indicou uma proporção de apenas 0,01 % a 0,02
% de analfabetos. Praticamente todas as pessoas sabiam assinar seu nome. Eles tinham a capacidade de
assinar e, portanto, segundo a concepção da época, não eram analfabetos.
Assim como na Alemanha, em que a introdução e o estabelecimento do ensino obrigatório
erradicaram o analfabetismo primário, em vários outros países elevaram-se as taxas de alfabetização nas
últimas décadas.
Entretanto, segundo dados da UNESCO, ainda existem 759 milhões de pessoas analfabetas no
mundo inteiro. Quase dois terços (2/3) destas pessoas são mulheres. Até o ano de 2012 tem lugar a Década
mundial de alfabetização das Nações Unidas, que tem como objetivo reduzir significativamente o número
de analfabetos no mundo.
O motivo principal para o analfabetismo primário é a falta de escolas. Outros motivos são o
trabalho infantil, a discriminação das meninas e a exclusão de minorias étnicas.
Nos anos 70 do último século, o analfabetismo voltou a ser tematizado não apenas na Alemanha,
mas também em outros países europeus como a Grã-Bretanha ou a Holanda. Este novo analfabetismo é o
analfabetismo funcional.
Analfabetismo funcional é um fenômeno da nova sociedade do conhecimento. Trata-se de
analfabetismo apesar do ensino obrigatório. Mas o analfabetismo funcional também é um fenômeno em
países como o Brasil ou a Turquia. Paralelamente aos analfabetos primários, existem os analfabetos
funcionais.
Mas o que significa analfabetismo funcional?
Um analfabeto funcional é uma pessoa que, via de regra, freqüentou a escola e dispõe de
determinadas competências de leitura e escrita. Estas, porém, não são suficientes para satisfazer as
exigências da sociedade. Um analfabeto funcional não consegue “funcionar” em sua sociedade no que
tange a escrita. Ele não consegue utilizar funcionalmente a escrita para seus próprios objetivos na vida
quotidiana ou profissional.
Em que medida pessoas funcionalmente analfabetas conseguem ler e escrever? O analfabetismo
funcional não está associado a um determinado nível fixo de competência de leitura ou escrita.
Analfabetismo funcional é, antes, um “conceito relativo”, como, por exemplo, também o conceito de
“pobreza”. Pobreza em um país como Bangladesh tem uma outra forma de manifestação do que na
Alemanha. Mas isso não impede que exista pobreza em países ricos.
É considerado como em situação de risco de pobreza aquela pesssoa que dispõe de menos de 60%
da renda média. Essa avaliação - isto é, se alguém está ou não na linha da pobreza - pode ser feita apenas
na situação histórico-social em que a pessoa vive.
O conceito de analfabetismo funcional deve ser entendido de maneira análoga: Existe
analfabetismo funcional quando os conhecimentos de leitura e escrita de alguém estão aquém dos
conhecimentos necessários e pressupostos como óbvios.
Em todas as sociedades existe, entre a população, um continuum de competências de leitura e
escrita. Provavelmente, não existe ninguém que nunca cometa um erro e que atinja a marca de 100 %. Do
mesmo modo, provavelmente não existe ninguém que nunca tenha absolutamente visto uma letra e que se
encontre na marca 0. Onde se deve demarcar um limite? Até que grau de competência alguém pode ser
definido como analfabeto funcional? E a partir de que grau de competência ele deixa der ser um analfabeto
funcional?
Estas não são perguntas fáceis de se responder. Vamos supor que a linha limítrofe seja o percentil
10. Isso é algo que, aliás, eu considero bastante realista. Adultos que saibam ler e escrever até no máximo o
percentil 10 seriam analfabetos funcionais.
Se este percentil marca a fronteira entre analfabetismo funcional e conhecimentos de língua escrita
ainda suficientes – onde se encontrava o limite há 200 anos?
Por volta de 1800, muitas pessoas conseguiam arranjar-se sem conhecimentos de leitura e escrita:
percentil 0.
No ano de 1900, o percentil 2 era suficiente, e no ano de 1970 eram necessários 7 pontos
percentuais.
Esse gráfico é uma demonstração simplificada e não se baseia em dados e fatos empíricos. Pois estes não
existem.
Mas o gráfico deixa clara uma tendência: nos últimos anos, tornaram-se necessárias competências
de leitura e escrita cada vez mais altas. A evolução social exige que as pessoas saibam ler e escrever cada
vez melhor.
A escrita penetra em todas as esferas da vida. Uma atividade profissional sem educação básica
suficiente é praticamente impossível em países como a Alemanha. A transformação social e as exigências
sempre crescentes em termos de língua escrita tornam-se, assim, elas próprias uma causa de
analfabetismo funcional.
Por exemplo: Antigamente, o mestre-pintor dizia para o seu aprendiz que parede ele deveria pintar
e mostrava para ele como misturar a tinta: era o tempo da oralidade.
Algumas décadas mais tarde, o aprendiz teve que ler o endereço do cliente. E ele teve que ler e
entender como misturar e compor a tinta. Sem competência de leitura, ele praticamente não podia
desempenhar seu trabalho.
Hoje, ele não precisa apenas saber ler. Ele precisa também anotar por quanto tempo trabalhou, de
quanta tinta precisou, que tarefas ainda restam para ser cumpridas por seus colegas no dia seguinte, etc.
Em algumas fábricas, existem às vezes ainda tarefas simples, em que o operário só precisa acionar a
alavanca de uma máquina durante o dia inteiro e assim produzir peças. Para isso, ele não precisa ler ou
escrever.
Mas se a máquina enguiçar ou se a alimentação de material emperrar, então ele precisa anotar por
que não conseguiu cumprir seu encargo. A organização e a administração da fábrica tornam necessário
que ele disponha de conhecimentos suficientes de leitura e escrita.
Pessoas que não sabem ler e escrever suficientemente tem cada vez menos chances – eles não são autosuficientes, não podem desempenhar uma profissão, não podem participar da vida social.
O que conseguem ler e escrever pessoas funcionalmente analfabetas?
Alguns tem muito poucos conhecimentos: eles conhecem letras frequentes e sabem escrever o seu
nome. Outros tem a capacidade de ler ou escrever palavras simples. Um terceiro grupo consegue ler e
compreender textos simples. Mas inclusive aqueles com as competências mais avançadas tem graves
problemas de escrita.
Basicamente, é mais fácil dar conta das exigências relativas à leitura. Escrever de forma suficiente é
definitivamente mais difícil.
Para um país como a Alemanha, pode-se dizer: é um analfabeto funcional o adulto que escreve e lê
pior do que normalmente o faz uma criança depois de três anos de escola.
Eu mesmo lecionei por mais de 20 anos para analfabetos funcionais. Volta e meia, eu pedia para
alguns alunos escreverem “vierzehn Steine” (catorze pedras). Assim se escrevem estas duas palavras
corretamente e assim ela foi escrita por adultos nos meus cursos (escrito de várias formas).
Aqui vocês podem ver tentativas autênticas de escrita de adultos que passaram pelo ensino
obrigatório.
Aqui também fica claro que essas pessoas dispõem de competências bem diferentes.
Por que estes adultos não aprenderam a ler e escrever corretamente na escola?
Pode-se depreender que o motivo principal é elas terem crescido em uma família da qual não
receberam bastante apoio. Os pais precisam falar com seus filhos. Os pais precisam ler histórias para seus
filhos.
Para isso, é preciso que os próprios pais saibam ler. E eles precisam de livros, de revistas ou de
internet. Eles precisam saber da importância do papel da família no sentido de preparar a criança para a
vida, para a escola e para a educação.
Quando mãe e pai não sabem ler, quando eles não gostam de ler, quando não há livros, quando
eles não tem interesse em educação, quando não tem tempo, quando negligenciam os filhos, então os
filhos provavelmente terão dificuldades na escola. As escolas na Alemanha não conseguem transmitir a
todos os alunos suficiente competência em leitura e escrita.
A causa principal de analfabetismo funcional na Alemanha é a assim chamada “herança social” de
desfavorecimento educacional.
Não é suficiente, portanto, que um país aposte apenas em uma boa escola para as suas crianças.
Também os adultos com deficiências educacionais precisam de ofertas de aprendizado. Somente assim
pode ser interrompido o círculo vicioso de pais com deficiências e chances menores na educação da
próxima geração.
Cada pai que aprende a ler e escrever e cada mãe que aprende a ler e escrever aprende também o
valor da educação básica, desenvolve a própria personalidade e pode apoiar melhor os seus próprios filhos.
Talvez vocês conheçam a divisa: Alfabetizem as mulheres e estarão alfabetizando uma nação! Isso
deve deixar claro que a alfabetização de adultos não traz efeitos positivos apenas para estes, mas que ela é
uma medida extremamente eficaz na prevenção do analfabetismo. O ensino escolar para crianças e ofertas
de leitura e escrita para adultos devem ser vistos neste contexto.
Como analfabetos funcionais conseguem se arranjar na Alemanha? Existem cada vez menos
chances de trabalho para eles. Muitos dependem do auxílio financeiro do Estado.
Quando se registram para receber o seguro-desemprego, precisam fazer um requerimento por
escrito. Quando se dirigem à Previdência Social, precisam comprar seu bilhete para o transporte público em
uma máquina automática. Eles não conseguem pagar um carro e, em razão de suas deficiências de leitura,
tem dificuldades de passar no exame teórico para fazer a carteira de motorista. Eles vivem em um mundo
do qual não conseguem dar conta sozinhos. Por isso, precisam de pessoas de confiança que leiam e
escrevam aquilo que eles próprios não conseguem ler e escrever. Muitos vivem à margem da sociedade.
Um outro problema é o preconceito de que "quem não sabe ler e escrever direito é burro". Quem
tem dificuldades com a escrita faz de tudo para que ninguém suspeite disso. Quando a pessoa deve ler
alguma coisa, ela se esquiva dizendo ter se esquecido dos óculos e pede, então, que o texto seja lido em
voz alta.
Quando tem que ir a algum órgão oficial, enfaixa a mão e pretexta um machucado. Assim, o
formulário não precisa ser preenchido lá, mas pode ser levado para casa, onde poderá ser preenchido pela
pessoa de confiança.
Na Alemanha, ainda é tabu falar sobre problemas para escrever. Por isso, a Associação de
Alfabetização e Educação Básica apóia os analfabetos funcionais para que estes vão a público. Estes
“embaixadores pela alfabetização” falam em eventos ou na televisão sobre o fato de estarem aprendendo
a ler e escrever, sobre as dificuldades que tinham anteriormente e sobre os progressos que fizeram até o
momento. Com isso, o tabu vai sendo desmontado. Isso motiva outros afetados a também aprender a ler e
escrever.
Há um mês, nós estivemos na Feira do Livro de Frankfurt, a maior feira do livro do mundo. Ali nós
homenageamos os premiados em um concurso de redações – um concurso de redações para analfabetos
funcionais. Eles haviam escrito textos que foram avaliados por um júri. E estes textos serão publicados em
um livro que, por sua vez, será utilizado como leitura inicial em cursos de leitura e escrita.
Este é um importante conceito metodológico: O professor ajuda o aluno a encontrar um tema que
seja importante para ele. Sobre este tema, o aluno deve manifestar-se oralmente. Estas manifestações
orais são escritas com a ajuda do professor. E com essas frases são adquiridos os primeiros conhecimentos
de leitura.
A Associação de Alfabetização e Educação Básica estima o número de analfabetos funcionais na
Alemanha em 4 milhões. Isto são aproximadamente 6% da população. Esta estimativa contempla, porém,
apenas os adultos que frequentaram o ensino obrigatório na Alemanha.
Os imigrantes, que vieram para a Alemanha, por exemplo, aos 14 anos e que não sabem ler e
escrever direito, não foram contemplados. Entre os imigrantes existe, aliás, um número não insignificante
de analfabetos primários.
No momento, está sendo feito um estudo empírico na Alemanha para verificar o número de
analfabetos funcionais. Os resultados serão conhecidos no início do próximo ano.
Eu espero, então, que sejam criados mais cursos nos quais adultos possam aprender a ler e
escrever. No momento, a oferta é insuficiente, tanto em termos quantitativos como qualitativos. No
momento, também a disponibilidade dos afetados para frequentar estes cursos é ainda muito limitada.
Menos de 1% dos afetados participa atualmente de cursos de leitura e escrita.
Por isso, precisamos fazer propaganda da educação. A Sociedade de Alfabetização e Educação
Básica iniciou uma campanha social de propaganda para a participação em cursos de leitura e escrita. Os
afetados, suas pessoas de confiança ou também assistentes sociais e outros multiplicadores podem se
dirigir ao telefone alfa. A partir daí, eles recebem orientação e são encaminhados para cursos.
Aqui um pôster: o alfabeto e o analfabeto com as três cruzes.
Neste pôster podem ser vistos adultos que frequentam os cursos. Abaixo está escrito: Agora nós
sabemos escrever.
Especialmente eficazes são campanhas no rádio ou a televisão. No filme a seguir, um trabalhador
dispôs barris em uma prateleira que em seguida desabou. Ele não soube ler o cartaz em que estava escrito
“proibido depositar carga”. O chefe quer mandá-lo embora da firma. Nesse momento, intervém um colega
e explica que o trabalhador não sabe ler. O chefe surpreende-se por nunca ter percebido o fato e lhe
oferece ajuda.
A produção e transmissão televisiva do filme foram financiadas exclusivamente por patrocinadores.
Analfabetos funcionais são desfavorecidos em diversos aspectos. Quem não sabe ler não consegue
realizar o direito fundamental à liberdade de informação. Pôsteres, jornais, revistas, livros, a internet –
esses meios de comunicação são para eles praticamente inacessíveis.
Quem não sabe escrever não pode fazer uso do direito fundamental à liberdade de opinião. Essas
pessoas somente podem fazer um uso de muito limitado de seus direitos e interesses.
Uma vez que existem para eles poucas chances de trabalho, é quase impossível para analfabetos funcionais
uma vida autônoma e independente. Eles são dependentes do auxílio do Estado e do apoio de suas pessoas
de confiança.
Pessoas com deficiências educacionais possuem um status social baixo e tem poucas esperanças
quanto a uma vida melhor. Muitos resignam-se, sentem-se excluídos, tem tendência à depressão e ao
consumo excessivo de álcool. Quanto mais baixo o status social de uma pessoa, menor sua consciência
sobre hábitos de vida saudável e tanto mais baixa sua expectativa de vida.
Educação rudimentar é uma importante causa de baixa renda, baixo status social, risco mais
elevado de doenças, condições de vida desfavoráveis, e isso também para a geração seguinte, para as
crianças. Déficit financeiro e déficit educacional formam um círculo vicioso. Uma sociedade do
conhecimento não deveria permitir um proletariado do conhecimento. Nenhum país tem o direito de negar
educação aos seus cidadãos. Chances educacionais insuficientes são extremamamente antidemocráticas e
antissociais. Mas também do ponto de vista da economia, a falta de instrução é uma catástrofe.
Investimentos em educação custam bastante, mas a falta de investimentos em educação fundamental
custa, ao final das contas, muito mais ainda.
Nós precisamos de educação básica para todos, não apenas para a próxima geração de crianças.
São necessárias ofertas de aprendizado para todas as gerações. Quando o pai ou a mãe levam a criança ao
jardim de infância ou à escola, os pais ficam lá e aprendem junto com outros adultos. Um dos prêmios da
UNESCO deste ano foi concedido a uma iniciativa em Hamburgo que realiza projetos de Family Literacy
para imigrantes.
O problema da educação básica insuficiente deve ser levado a sério – no mundo inteiro.
E não deve tratar-se de uma “alfabetização funcional”, cujo objetivo primordial seja habilitar as
pessoas para que dêem conta das exigências do mercado de trabalho. A alfabetização tem sobretudo a
tarefa de possibilitar às pessoas chances de desenvolvimento para que estas possam organizar sua vida e
fazer escolhas de forma independente e responsável – para o seu bem e para o bem da sociedade em que
vivem. Isto implica naturalmente uma atividade profissional. O trabalho de alfabetização tem sempre
também um caráter emancipatório e se encontra, assim, na tradição do grande pedagogo popular Paulo
Freire.
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