RAÍSSA MOREIRA LIMA MENDES MEIOS E AMBIENTES: natureza e produção na carpintaria naval artesanal de Raposa - MA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes Sant´Ana Júnior 1 São Luís 2010 RAÍSSA MOREIRA LIMA MENDES MEIOS E AMBIENTES: natureza e produção na carpintaria naval artesanal de Raposa - MA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes Sant´Ana Júnior Aprovada em _____/_____/______ BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________ Prof. Dr. Horácio Antunes Sant´Ana Júnior (Orientador) _______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Madian de Jesus Frazão Pereira (Co-orientadora) _______________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller _______________________________________________________ 2 Prof.ª Dr.ª Denise Machado Cardoso 3 Mendes, Raíssa Moreira Lima. Meios e Ambientes: natureza e produção na carpintaria naval de Raposa - MA/ Raíssa Moreira Lima Mendes. São Luís: UFMA/CCH/PPGCSOC, 2011. xi, 108 p. il. Dissertação – Universidade Federal do Maranhão, CCH, PPCSOC. 1. Carpintaria Naval. 2. Artesanato Tradicional. 3. Usos sociais dos Recursos Naturais. 4. Dissertação. (Mestrado – UFMA/CCH/PPGCSOC). I. Título Dedico esta obra à fé que em mim depositaram: Minha vida, mãe e eterna professora, Terezinha Moreira Lima. Minha amiga Nicole Costa de Campos. Meu comprometido orientador, Horácio Antunes Sant´Ana Jr. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço aos amigos-professores, prof. Horácio Sant´Ana, prof. Marcelo Carneiro e prof.ª Sandra Nascimento. Ao professor e tutor Paulo Fernandes Keller. Ao prof. Benedito Souza Filho e ao PROCAD (PPGCS-UFPA/ PPGCSoc-UFMA/PPGSAUFRJ) – Territórios Emergentes da Ação Pública Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira e às professoras que me receberam na UFPA, prof.ª Maria José Aquino, prof.ª Denise Cardoso, prof.ª Diana Antonaz, prof.ª Eliane Moreira. Aos artesãos da carpintaria naval interlocutores de minha pesquisa, que dela em diante deixaram rastros em minha história. E em especial, agradeço a Terezinha Moreira Lima, Josefa Batista Lopes e Hugo Graça Pinheiro. 5 6 “[...] que também eles sejam um em nós.” RESUMO Esta pesquisa parte do interesse na compreensão das relações dos profissionais da carpintaria naval artesanal de Raposa – MA com a natureza e recursos naturais. A partir do estudo do trabalho e cotidiano de profissionais buscou-se entender o que determina o uso da natureza na produção naval artesanal, em que medida os profissionais utilizam os recursos disponíveis na região e o que impede ou facilita tal processo. O uso da etnografia permitiu a que se explorasse o modo como representam seus espaços e meios de trabalho e como traduzem suas experiências em relação à produção, à natureza e aos recursos, questões que são discutidas sob o prisma do etnoconhecimento, da sustentabilidade e da instituição de novas territorialidades na Amazônia Legal. Palavras-chave: Carpintaria naval. Artesanato tradicional. Usos sociais dos recursos naturais. 7 ABSTRACT This research is about understanding the relationship of professional naval craft carpentry of the city Raposa - MA with nature and natural resources. From the study of work and daily life of professionals sought to understand what determines the use of nature in naval craft producing, the extent to which professionals use the resources available in the region and what facilitates or hinders this process. The use of ethnography allowed to explore how to represent their areas and ways of working and how they translate their experiences in relation to production, nature and resources, issues that are discussed under the prism of ethnic knowledge, and sustainability, and of the institution the new territoriality in the Legal Amazon. Keywords: Naval Carpentry. Traditional crafts. Social uses of natural resources. 8 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Rede – Estaleiro de Anselmo................................................................. p. 34 Figura 2: Mestre Osmar Melo na Oficina de Modelismo Naval............................ p. 37 Figura 3: Bote proa de risco................................................................................... p. 39 Figura 4: Biana....................................................................................................... p. 39 Figura 5: Casquinho............................................................................................... p. 41 Figura 6: Bianas e casquinhos em Raposa – MA................................................... p. 58 Figura 7: Município de Raposa – MA................................................................... p. 59 Figura 8: Localização do Município de Raposa – MA.......................................... p. 58 Figura 9: Embarcações de Turismo no Cais da Raposa......................................... p. 74 Figura 10: Passeio em Carimã............................................................................... p. 74 Figura 11: Fazenda de ostras.................................................................................. p. 75 Figura 12: Barcos de pesca em Raposa – MA....................................................... p. 75 9 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Entrevistas realizadas no trabalho de campo......................................... p. 05 10 LISTA DE ANEXOS Anexo 1: Questões aplicadas nas entrevistas......................................................... p.116 11 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO Erro! Indicador não definido. 2 TRABALHADORES DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL Erro! Indicador não definido. 2.1 Caracterização dos atores sociais .................................. Erro! Indicador não definido. 2.1.1 Apresentação dos carpinteiros navais interlocutores da pesquisa Erro! Indicador não definido. 2.1.2 2.2 3 Breve leitura de variações e aproximações ........... Erro! Indicador não definido. A dinâmica da cadeia de valor ...................................... Erro! Indicador não definido. O FAZER ARTESÃO, A TRADIÇÃO 23 3.1 Etnoconhecimento, etnomatemática ............................................................................ 41 3.2 Discussão a partir da categoria população tradicional .. Erro! Indicador não definido. 4 O MUNICÍPIO DE RAPOSA NO CONTEXTO DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL Erro! Indicador não definido. 4.1 5 Apresentando o Município ............................................ Erro! Indicador não definido. NATUREZA E USOS SOCIAIS NA PRODUÇÃO LOCAL 5.1 Erro! Indicador não definido. Usos sociais e técnicas de obtenção da matéria-prima .. Erro! Indicador não definido. 5.2 Inserção e efeitos de novos elementos e atores na dinâmica da cadeia produtiva ...........................................................................................................................Erro! Indicador não definido. 5.3 6 Concepções de possibilidades e limites: predisposição ao uso sustentável da natureza? Erro! Indicador não definido. CONCLUSÃO Erro! Indicador não definido. REFERÊNCIAS Erro! Indicador não definido. ANEXO I......................................................................................................................116 12 1. INTRODUÇÃO A realização do estudo proposto pautou-se no interesse de compreender a realidade social no que tange aos usos sociais dos recursos naturais em territórios amazônicos. Quanto às trajetórias vivenciadas para se chegar ao objeto de estudo, vale ressaltar o histórico da pesquisadora a respeito da produção de embarcações artesanais, que conta com quatro anos de interesse. E que, em um primeiro momento, em sede de trabalho de conclusão de graduação no curso de Direito, versou sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial brasileiro e se buscou demonstrar que os modos de fazer constituídos na carpintaria naval artesanal maranhense deveriam alcançar status de bem cultural imaterial pelas peculiaridades e modo de transmissão dos saberes instituídos na prática dos profissionais envolvidos na produção de embarcações tipicamente maranhenses. Já com um novo viés, a partir das observações e entrevistas que encabeçaram a pesquisa da graduação, com o ingresso no curso de mestrado em Ciências Sociais, o interesse pautou-se em compreender sociologicamente relações da produção da carpintaria naval com o uso de recursos naturais legalmente protegidos ou preservados. Compreender a importância destes recursos para a reprodução da materialidade da produção naval, de que maneira se dá tal processo entre os atores da carpintaria naval. Ressaltamos que o interesse por questões ambientais é constante no histórico da pesquisadora desde a graduação, reforçada pela inserção no ano de 2009 no GEDMMA (Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (PPGCSoc/UFMA), coordenado pelos professores, Dr. Horácio Antunes de Sant´Ana Júnior, Madian de Jesus Pereira Frazão, Ms. Elio de Jesus Pantoja Alves e Ms. Bartolomeu Rodrigues Mendonça. No referido Grupo, questões como socioambientalismo, impactos socioambientais de projetos de desenvolvimentos sobre grupos sociais locais, serviram de aporte para desenvolver reflexões sobre a relação dos operários navais artesanais com a natureza. Reforço ainda maior ocorreu com a participação em missão de estudos em Belém-PA no ano de 2010, por meio do PROCAD (PPGCS-UFPA/ PPGCSocUFMA/PPGSA-UFRJ) – Territórios Emergentes da Ação Pública Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira, visto que dentre seus objetivos 13 encontramos abordagens que se afinam com o objetivo desta pesquisa, especialmente por proporcionar a participação em duas disciplinas do Programa de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará – UFPA que incluíram temáticas sobre usos sociais de recursos naturais, forte linha de pesquisa na referida instituição, além de proporcionar o afinamento com docentes na discussão sobre uso de recursos naturais em unidades de conservação de uso sustentável. Assim, no trabalho proposto, procuramos acompanhar as relações com a natureza e os recursos naturais na produção da carpintaria naval artesanal no Município de Raposa, parte integrante da Amazônia Legal Brasileira, situado no Estado do Maranhão. Já que o município contém dezenas de atores sociais envolvidos na produção de embarcações artesanais, em torno de cinqüenta, e abriga grande comunidade pesqueira do Estado, necessitando de profissionais que assegurem sua construção e manutenção. Devemos ressaltar, entretanto, que o uso das embarcações artesanais oriundas da produção de tais profissionais não se restringe ao município da Raposa, visto que a demanda surge de diversas localidades, especialmente do norte e nordeste brasileiros. Assim, embarcações artesanais são importantes elementos para a reprodução da vida material em Raposa. O surgimento do interesse sociológico pela produção da carpintaria naval artesanal raposense surgiu da observação do fenômeno da indefinição do que é possível ou não quanto à utilização dos recursos naturais disponíveis na região na produção naval artesanal. Ou seja, os atores sociais envolvidos na confecção de embarcações artesanais em Raposa não têm claro o que podem ou não podem extrair da natureza para utilizarem em sua produção. Assim, buscamos entender quais as representações de “natureza” e “recursos naturais” elencadas pelos atores sociais em questão, o que determina o uso da natureza na produção naval artesanal, em que medida os profissionais utilizam os recursos disponíveis na região, o que impede ou facilita e como se processa o uso de recursos naturais, se há uma predisposição por parte dos mesmos ao uso “sustentável” destes recursos, se há um enfrentamento diante da falta de clareza das normas do possível e se há reinvenções no processo de produção decorrentes da atual relação dos atores sociais com a natureza e recursos legalmente protegidos ou preservados. As questões abordadas inspiram-se na busca de produção do conhecimento para uma nova sociabilidade, e, à universidade pública está posta a urgência na produção 14 qualificada do conhecimento (LIMA, 2006). Essa atual conjuntura é vista nesta proposta como configurações que envolvam a gestão da natureza e de seus recursos, de modo que é necessário compreender a relação dos atores sociais com seu ambiente natural. Assim, o método etnográfico é o aporte para a construção da pesquisa, bem como a utilização de investigação documental, especialmente na coleta de dados geográficos, estatísticos e a respeito das leis e normas oficiais vigentes, bem como a contextualização das instituições envolvidas. A etnografia se mostra necessária para compreender a relação dos atores sociais com sua atividade profissional e, portanto, com os recursos utilizados na produção. Mostra-se como esforço intelectual do pesquisador através de uma antropologia interpretativa (GEERTZ, 1978), cuja pretensão é seguir o trabalho antropológico de olhar, ouvir e escrever, proposto por Roberto Cardoso de Oliveira (2006, p. 31). Para este autor, saber como os homens vivem é saber como pensam, como representam seus espaços de trabalho e traduzem suas experiências. O trabalho, assim, inclui a observação (com uso do caderno de campo) e entrevistas abertas (nas quais o entrevistado é livre para discorrer sobre o assunto), com questionário semi-estruturado, no qual novas perguntas surgem a partir das respostas anteriores e da observação imediata. Tal método é utilizado a partir do pressuposto de que o papel da antropologia interpretativa não se resume a responder às questões mais profundas, mas visa colocar à nossa disposição a resposta que outros deram (GEERTZ, 1978). Sabendo que compreender não consiste simplesmente em representar “o ponto de vista do nativo, numa romântica pretensão de igualdade ou numa difícil orquestração polifônica”, concorda-se que as interpretações antropológicas devem diferir dos relatórios dos nativos e que a força da interpretação reside nessa distância que permite ao analista construir o sentido (MALIGNHETTI, 2004, p. 114). Assim, propõe-se uma compreensão que requer uma relação dialética entre nossas pré-compreensões e as formas de vida que estamos tratando de compreender, colhendo a “sua” visão com o “nosso” vocabulário, a nossa linguagem, a nossa escritura (MALIGNHETTI, 2004, p. 114). Vale ressaltar que “a pesquisa não consiste só em aprender as regras locais do saber-viver, a se deixar viver e a explicitar o que acontece” e que: O saber-fazer do etnógrafo consiste essencialmente em técnicas gráficas, em sistemas de anotações: o diário de campo, a transcrição da entrevista. Fazer observações e entrevistas e analisá-las são as duas pernas sobre as quais se sustenta para fazer avançar a pesquisa (BEAUD e WEBER, 2007, p. 93). 15 A análise da configuração em questão leva em conta que se pode qualificar “configuração” como um “espaço de pertinência”: que “é uma situação, com dimensão espaço-temporal variável, a tal ponto que o que se passa ali produz um efeito sobre todos os seres que nela estão implicados, que contribuem, eles mesmos, com suas ações, para modificar esta situação” (HEINICH, 2001, p. 122-123). As formas materiais e simbólicas com as quais os atores dessa dinâmica agem sobre seu espaço natural, suas estratégias técnicas e sociais e as influências dos fatores ambientais são aportes já utilizados em estudos de populações pesqueiras (SANTANA, 2006), de onde se extrai inspiração para a reflexão a respeito de atores sociais da carpintaria naval artesanal. Dos estudos entre populações pesqueiras, destaca-se a proposição de que cada forma de produção determina modos e normas de utilização da natureza, representações do meio sobre o qual essas práticas se realizam e de um código de interação entre os homens (SANTANA, 2006, p. 375). De forma que, indagamo-nos sobre a possibilidade de argumento semelhante advindo do sistema de relações sociais em que estão inseridos os operários da carpintaria naval maranhense da região indicada. Assim, a pesquisa iniciou com survey na região, com idas a campo que lograram êxito na instituição dos primeiros contatos com atores locais, depois de esclarecido que se tratava de um trabalho acadêmico, já que, a princípio, um dos interlocutores (carpinteiro naval) se mostrou apreensivo quanto ao interesse da pesquisadora sobre o assunto, o que o levou a perguntar se seria da “fiscalização ambiental”. A observação contou com outras seis idas a campo, nas quais foram entrevistados sete carpinteiros navais, sendo seis de Raposa – MA e um de São José de Ribamar - MA, além da esposa de um carpinteiro que executa tarefas na produção naval artesanal em Raposa - MA, duas analistas da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão – SEMA em São Luís. Contou ainda com a participação da pesquisadora em atividades que envolviam o uso de embarcações artesanais e visita a quatro estaleiros artesanais. Além de pesquisa bibliográfica, de dados referentes a estudos científicos, boletins oficiais e normas ambientais. Por tratar de questões que envolvem a legalidade de práticas e circunstâncias às quais os atores objeto de estudo estão relacionados, optou-se por manter em sigilo as identidades dos carpinteiros navais e de seus estaleiros, utilizando nomes fictícios para entrevistados e estabelecimentos. Os nomes das entrevistadas da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão – SEMA só foram mantidos quanto ao que foi publicado em documentos oficiais utilizados no trabalho. 16 Tabela 1: Entrevistas realizadas no trabalho de campo ENTREVISTADO ATIVIDADE LOCAL DATA Waldy Araújo Carpinteiro naval Raposa – MA 07-08-2010 José Ribeiro Carpinteiro naval São José de 14-08-2010 Ribamar – MA Anselmo Góes Carpinteiro naval Raposa – MA 30-11-2010 Carlos Magalhães Carpinteiro naval Raposa – MA 28-12-2010 Davi Martins Carpinteiro naval Raposa – MA 29-12-2010 Roberto Leite Carpinteiro naval Raposa – MA 03-01-2011 Diego Vieira Carpinteiro naval/ Raposa – MA 03-12-2010 Raposa – MA 02-01-2011 São Luís – MA 05-12-2010 São Luís –MA 17-01-2011 São Luís – MA 28-12-2010 guia de ecoturismo Cristina Siqueira Professora/ Comerciante/ Esposa de carpinteiro naval Maria Luiza Costa Analista ambiental da Secretaria Estadual de Meio Ambiente – SEMA Andressa Melo Chefe da APA Upaon-Açu (...) Carlos Magalhães Sub-oficial da capitania dos portos Assim, o trabalho foi dividido em quatro capítulos além da introdução e conclusão. O primeiro capítulo aborda a caracterização dos atores sociais da carpintaria naval artesanal, apresentando os interlocutores da pesquisa e elementos constantes na dinâmica da cadeia de valor do resultado da produção. O segundo capítulo apresenta o processo artesanal de construção de embarcações, a tradição e a discussão a partir da categoria “população tradicional”. Junto a isso aponta a questão do etnoconhecimento e inclui o enfoque da etnomatemática na carpintaria naval artesanal. 17 No terceiro momento, adentramos a contextualização da carpintaria naval no Município de Raposa-MA, apresentando o meio natural local de interesse para a pesquisa e questões sobre “natureza”, bem como os usos sociais das embarcações artesanais nas atividades locais. Também neste capítulo, estão inseridas as normas ambientais relacionadas ao uso social de recursos naturais, o que se mostrou relevante para a compreensão da falta de clareza sobre o que é ou não possível a respeito do uso dos recursos na região, e de como os atores dialogam com estas normas. No quarto capítulo procuramos apontar, de modo mais específico, os usos da natureza na produção naval artesanal local e, a partir da análise da configuração em questão, refletimos sobre a existência de alterações no processo produtivo e seus efeitos em relação aos atores da carpintaria naval da região. Tal reflexão, que enfoca a alocação da matéria-prima e das técnicas utilizadas para a obtenção desta, proporcionou, por fim, a abordagem da existência de uma potencial predisposição ao uso sustentável da natureza por parte dos atores em questão e sobre possibilidades e limites do uso dos recursos naturais entre os interlocutores da carpintaria naval artesanal de Raposa – MA. 2. TRABALHADORES DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL 2.1. Caracterização dos atores sociais Primeiramente devemos especificar a categoria da atividade “carpintaria naval artesanal”. Sob o prisma institucional, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego brasileiro, a atividade não está na listagem de profissões regulamentadas, entretanto, aparece na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, que é o documento normalizador do reconhecimento, nomeação e codificação dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares (http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf, 2010). Segundo Boudon, de modo geral, para se considerar uma atividade “profissão” geralmente se pressupõe que haja: a especialização do saber, que, segundo o autor traz consigo uma determinação precisa e autónoma das regras da atividade; uma formação intelectual de nível superior, que supõe a existência de escolas de formação 18 devidamente reconhecidas; e um ideal de serviço, o que sugeriria o estabelecimento de um código deontológico e ao seu controle pelos pares (BOUDON, 1990, p. 198). Se levarmos em conta as considerações de Boudon, especialmente no que tange à suposição de escolas de formação devidamente reconhecidas, restaria dificultada a relação do termo profissão à carpintaria naval artesanal, visto que aquisição dos conhecimentos necessários para o exercício da atividade não inclui, obrigatoriamente, formação intelectual de nível superior. Oficialmente, profissão diz respeito a formação do individuo, seja ela obtida em um curso superior, seja num curso técnico. Já ocupação refere-se ao tipo de trabalho que o individuo desenvolve, podendo estar ou não relacionada à sua profissão (MACHADO, 2007). Assim, entre as ocupações constantes na Classificação Brasileira de Ocupação – CBO relacionadas à atividade se encontram a de Carpinteiro naval (construção de pequenas embarcações), com o código 7771-05, a de Carpinteiro naval (estaleiros), de código 7771-15, e a de mestre carpinteiro, de código 7701-10. De modo geral, as descrições apontam as atividades de: modelagem de fôrmas, preparação de quilhas (peças estruturais básicas do casco de uma embarcação) e montagem de cavernas (cada uma das peças curvas que formam o arcabouço de uma embarcação), construção de costados (revestimento ou forro exterior do casco da embarcação) ou tabuados, convés (qualquer dos pavimentos de uma embarcação), casaria (parte coberta), porão da embarcação, móveis e seus acessórios e estrutura de lançamento e de docagem, preparação de bases para equipamentos e ferragens, reparação de embarcações, avaliação de forma e dimensões de navalhas e moldes (MTECBO.GOV, 2010). As descrições seguem apontando que nestas ocupações devem ser seguidas normas de segurança, higiene, qualidade e preservação ambiental e que os indivíduos são frequentemente expostos a materiais tóxicos, ruídos e altas temperaturas, trabalhando em grandes alturas ou em locais subterrâneos, sujeitos ao estresse e a permanecer em posições desconfortáveis por longos períodos. Porém, não apontam quais órgãos estão incumbidos da fiscalização de tais normas, tampouco dos locais de trabalho relacionados. Constam entre os dados que o trabalho é presencial, realizado de forma individual (sem supervisão) ou em equipe (sob supervisão ocasional), de atuação a céu aberto, no horário diurno (http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf, 2010). 19 Porém, as informações dadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego merecem relativização, visto que são modelos gerais de atividades que de acordo com costumes e regiões tendem a ser diferenciadas. É interessante a este estudo apontar, no que possível for, as peculiaridades encontradas junto aos interlocutores. Apesar de não estar instituída como “profissão” pelo órgão oficial brasileiro, esta é a categoria nativa acionada para a indicação do conjunto de atividades que envolvam carpinteiros navais. Assim, notamos a recorrência das denominações “profissão”, “ofício”, ou “trabalho”, nos discursos dos próprios carpinteiros navais, fato demonstrado com maior clareza no subitem seguinte do trabalho. Para compreender a identidade no que tange ao trabalho na carpintaria naval da localidade estudada, recorre-se a Denys Cuche. Segundo ele, “a identidade é uma construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros grupos com os quais está em contato” (CUCHE, 1999, p. 25). Ao exemplo disso, temos a fala do carpinteiro naval artesanal Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010) ao revelar o sentimento de desvalorização do trabalho que realiza em relação aos “políticos em época de eleição” no Município de Raposa – MA, diz: O trabalho na carpintaria naval não é divulgado, é discriminado, nos discursos falam de rendeiras, motoqueiros, pescadores, comerciantes, donas de casa, até do time de futebol, mas ninguém fala dos carpinteiros navais (...). Para Cuche, a defesa da autonomia cultural está estreitamente ligada à preservação da identidade coletiva. “‟Cultura‟ e „identidade‟ são conceitos que remetem para uma mesma realidade, vista de dois ângulos diferentes. A identidade cultural de um dado grupo não pode compreender-se a não ser pelo estudo das suas relações com os grupos vizinhos” (1999, p. 25). E, ainda segundo Cuche, “o longo processo de hominização, iniciado há mais ou menos quinze milhões de anos, consistiu fundamentalmente na passagem de uma adaptação genética à sua adaptação cultural à natureza do meio ambiente” (1999, p. 25). Assim, “a cultura permite ao homem não só adaptar-se ao meio, mas também adaptar este a si próprio, às suas necessidades e aos seus projetos, ou seja, e por outras palavras, a cultura torna possível a transformação da natureza” (1999, p. 26). As características de sua interação com a natureza e com o universo são elementos de referência de sua identidade coletiva. Assim, a materialização da cultura a 20 partir do trabalho dos profissionais da carpintaria naval artesanal é proporcionada pela adaptação da natureza às suas necessidades. Vale destacar que a carpintaria naval artesanal vem sendo investigada sob diferentes óticas no Brasil. Como exemplos, há o curta metragem de Gavin Andrews, intitulado Barco do Mestre (2007), realizado na foz do Rio Amazônia entre Pará e Amapá, que apresenta a profissão a partir de exposições a alguns dos municípios com tradição na atividade. Há ainda a dissertação de mestrado de Rodrigues (2004) sobre etnomatemática na construção de uma canoa no Paraná. Bem como, o curta metragem “Canoa de um pau roxo” de Gabriela Piccolo e Alberto Greciano sobre a construção da canoa de um pau roxo às margens do rio Munin no Estado do Maranhão. Além da pesquisa “Embarcações do Maranhão” sob a coordenação de Luiz Phellipe Andrés (1998) e a monografia de Mendes (2007) sobre as tradicionais técnicas de construção naval maranhense como bem cultural imaterial. A obra de Luiz Phellipe Andrés (1998) acima mencionada apresenta diferentes funções dentro da carpintaria naval artesanal identificadas no estado do Maranhão, quais sejam: carpinteiro, calafate, pintor e veleiro. Lembramos que nossa pesquisa identificou que nem sempre estas funções estão em pessoas diferentes, já que há trabalhadores que efetuam uma ou mais funções, admitindo-se mesmo os que efetuam todas as funções, em campo, identificamos ainda outras funções indicadas pelos interlocutores, tais como a de “sentar” o motor, instalação elétrica e hidráulica. Assim, a carpintaria naval artesanal não abrange somente a função de carpinteiros, que, a priori, são os que possuem o conhecimento de como lidar com madeira no seu estado natural (madeira maciça), o que teoricamente os diferenciaria dos marceneiros. Ademais disso, temos no trabalho de Andrès (1998): 1) a função de carpinteiro naval, que seria a de “conhecer as proporções corretas para embarcações de comprimentos diversos, ou seja, as medidas que irão garantir sua estabilidade, saber definir qual tipo de madeira para cada peça, o modelo adequado em função do uso a que se destina e para cada tipo de água, etc” (ANDRÉS, 1998, pág. 32); 2) o calafate tem a função de “calafetar”, que é preencher os interstícios entre do tabuado com estopa de algodão torcido e umedecido, bem como impermeabilizar o local com um preparado que impede infiltrações e a 21 ação de microorganismos que atacam a madeira dentro da água, que, também é aplicada para o prolongamento da vida útil da embarcação após certo tempo de uso (ANDRÉS, 1998, p. 117); 3) o pintor dá acabamento ao trabalho do calafate, influenciando na conservação da madeira, evitando danos produzidos pelo “gusano” ou “turú” (sem nome científico identificado), espécie de molusco xilófago (denominação utilizada para indicar animais que se alimentam de madeira), fazendo uso de uma tinta especial que traz em sua composição química um veneno que o intoxica, chamada “tinta envenenada”, e que é aplicada na parte do casco que fica abaixo da linha d‟água, região chamada de “obras vivas”, tratada com cores escuras como o preto e o marrom; o pintor, também, aplica tinta na parte acima da linha d‟água, chamada “obras mortas” com cores fortes e vibrantes, coloca o nome na embarcação e pequenos elementos decorativos a gosto do proprietário; 4) o veleiro é quem confecciona e instala as velas, utilizando lonas de algodão, adequando o tecido ao mastro (longa peça de madeira erguida acima do convés para sustentar as velas), à retranca (grande peça de madeira de secção circular por onde a esteia da vela é fixada) e ao pique (peça de madeira de secção circular armada em ângulo com o mastro) da embarcação, geralmente utiliza o tanino (substância extraída da raspagem da casca de pau do mangue) para tingir o tecido e assim o proteger do sol, águas do mar e das chuvas, podendo fazer uso ainda do sumo de talos de bananeira, que funciona como fixador da cor (ANDRÈS, 1998, p. 34). E, além dessas funções, segundo Andrès haveria uma hierarquia entre os trabalhadores da carpintaria, segundo a qual seriam identificados os mestres, tendo o mestre uma “aura de respeitabilidade” adquirida entre os companheiros. Ele aponta ainda a classificação de ajudante e a de aprendiz, que é a pessoa instruída e acompanhada por alguém reconhecido como mestre, e que, através da prática e observação, adquire os conhecimentos necessários (ANDRÈS, 1998). A nosso entender, ajudante e aprendiz são classificações que se confundem, visto que a maioria dos relatos aponta um aprendizado que ocorre quando o indivíduo está “ajudando” outro carpinteiro. 22 2.1.1. Apresentação dos carpinteiros navais interlocutores da pesquisa Em nossa pesquisa, entrevistamos oito pessoas que atuam na carpintaria naval. Em Raposa, a maioria das escolhas dos entrevistados ocorreu de acordo com as indicações dos carpinteiros, daqueles que, em suas opiniões, eram os mais conhecidos no município. Porém, chegamos ao primeiro carpinteiro (Waldy Araújo) a partir da indicação de informantes da colônia de pescadores da cidade. O entrevistado do município de São José de Ribamar (José Ribeiro) foi escolhido por ter sido indicado por pescadores locais como uma referência para a carpintaria naval em todo o Estado do Maranhão. Em sede de apresentação dos interlocutores, escolhemos os seguintes itens das entrevistas para abordarmos neste momento do trabalho: nome; gênero; idade; naturalidade; profissão declarada; atividades que exerce na carpintaria; informações sobre o estaleiro onde executa suas atividades; número de embarcações construídas ou reformadas; se o entrevistado possui embarcações para uso próprio; relações com sindicatos; relações de hierarquia entre os trabalhadores; se o entrevistado trocaria sua profissão por outra e, em caso afirmativo, por qual seria; e, colocações espontâneas sobre a carpintaria naval. Waldy Araújo Waldy Araújo (entrevista realizada em 07 de agosto de 2010), gênero masculino, 60 anos, natural do Porto Mucaítuba, beira-rio, Município de São José de Ribamar, mora e trabalha em Raposa, onde executa as funções de mestre carpinteiro, calafate, pintor e veleiro, e “ainda bota o motor”. Constrói as embarcações no quintal de sua casa cujos fundos dão para o mangue. Segundo ele, aterrou “uma partezinha do mangue pra fazer uma passagem para o rio” e, em 40 anos de trabalho, construiu mais de cinco mil embarcações artesanais, geralmente sozinho ou com um ajudante. Identifica-se como “mestre” e, segundo ele, não trocaria seu trabalho por nenhum outro. A partir de mestre Waldy, conhecemos um de seus aprendizes que abriu estaleiro próprio, Anselmo Góes. 23 José Ribeiro José Ribeiro (entrevista realizada em 14 de agosto de 2010), gênero masculino, 80 anos, natural de São José de Ribamar, mora e trabalha naquele município, além de diversas atividades que executou ao longo da vida, “sete categorias de trabalho”, a principal fonte de renda adveio da carpintaria naval. Hoje, não pode mais construir embarcações devido problemas de saúde. Na carpintaria naval, executava as tarefas de carpintaria, calafetagem, pintura e parte elétrica (motor e iluminação) das embarcações, construindo, inclusive vários motores para as mesmas. Sua oficina (como denomina seu local de trabalho) fica ao lado de sua residência, não tem proximidade com o mar, motivo pelo qual não leva a denominação de estaleiro. A distância do mar o levou a adequar carroças para levar as embarcações para seus destinos. Em mais de 50 anos de trabalho perdeu a conta de quantas embarcações já construiu. Também perdeu as contas de quantas pessoas já ensinou o “ofício”. Na maioria das vezes trabalhou sozinho. José revela: “as pessoas dizem que eu sou um mestre, um artilheiro, um faz tudo”. Segundo ele, com a construção de embarcações ajudou muitas pessoas em localidades de difícil acesso a meios de transporte: “Deixei rastros de trabalho, fui abraçado pelo povo, assim as pessoas tinham pra onde correr era rápido”, acredita que ajudou a desenvolver o transporte e o comércio em São José de Ribamar e em várias cidades por onde construiu embarcações, e, em sua opinião, “transporte é vida”. Anselmo Góes Anselmo Góes (entrevista realizada em 30 de novembro de 2010), gênero masculino, 50 anos, natural de Rosário – MA, mora em Raposa – MA, é carpinteiro naval, e dentre outras atividades destaca: “E eu tenho também canoa de pesca, sou carpinteiro e também tenho canoa de passar gente aqui, no turismo. Não é a única fonte de renda. Mas eu trabalho mais aqui, porque eu gosto da área. Eu me baseio mais aqui na carpintaria”. Perguntado sobre as funções que executa diz: “Tudo, tudo. Pinto, calafeto, sento o motor, faço irrigação. Tudo da embarcação eu faço. Você quer pra classificar? É confeccionar o barco, pintura, calafeto e sentação de motor”. Por irrigação entende-se a parte de encanamento das embarcações. Segundo ele: “água por dentro do barco, água doce, que tem banheiro. Colocar uma bomba pra 24 irrigar, chuveiro, pia, em embarcação de grande porte, até mesmo o motor que tem que ser irrigado água que é pra refrigerar”. Anselmo é proprietário de um estaleiro com acesso a um igarapé que fica a 50 metros de distância de sua casa. Já fez mais de 400 embarcações para vender no município de Raposa. E tem duas embarcações para uso próprio, uma para pesca e uma para turismo. Segundo ele, está vinculado ao sindicato naval e da pesca, contribui com a instituição há quatro anos. Diz ele: “Mas eu zelo mais pela pesca. Da pesca porque é ela que vai me garantir o meu futuro. O sindicato naval até agora, eu acho que não tem vínculo até agora com o INSS. Então, é a única forma de eu me manter mais tarde, pra pegar algum beneficio do INSS, tem que ser pela pesca. A gente tem que ir por onde dá mais certo”. Anselmo trabalha com mais três pessoas que considera profissionais que “já sabem fazer tudo” e já haviam aprendido antes de trabalhar com ele. E não trocaria seu trabalho na carpintaria naval “de jeito nenhum”, que esse trabalho, em suas palavras: “daria, é certo, pra sustentar bem minha família, tranquilo”. Diego Vieira Diego Vieira (entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011), gênero masculino, 24 anos, declara a profissão de guia de turismo, atuando na travessia de turistas, também exerce a carpintaria naval trabalhando no estaleiro de seu pai, Anselmo Góes, sabe carpintar, calafetar, pintar e sentar motor. É, dentre os entrevistados, o mais jovem. E argumenta que a juventude não tem mais tanto interesse pelo trabalho por falta de valorização no mercado de trabalho. Sozinho já construiu por volta de cinco embarcações, incluindo a embarcação que utiliza na travessia de turistas. Não está vinculado a sindicato. Não se considera um mestre, “ajudo meu pai e meus tios no ofício de carpinteiro”. Não trocaria sua profissão por outra e frisa: “inclusive tenho um irmão que trabalha em comércio que me chamou pra trabalhar com ele, mas eu não troco minha vida por nada”. Cristina Siqueira Cristina Siqueira (entrevista realizada em 02 de janeiro de 2011), gênero feminino, 42 anos, natural de Humberto de Campos – MA, mudou-se para Raposa em 1981. É professora do ensino fundamental público, também é técnica em enfermagem, além de proprietária de duas canoas, uma de travessia e uma de pesca. 25 Cristina também possui um mercadinho em Raposa. Interessante notar que declara o dinheiro do companheiro como outra fonte de renda que possui, assim: o “dinheiro do Anselmo” (de quem é companheira há seis anos e é carpinteiro naval). Cristina ajuda Anselmo na construção e reforma de embarcações, em sua opinião, de forma esporádica: “Duas vezes por semana, às vezes duas vezes por mês, às vezes tem mês que nem vou. Faço só pra ele terminar mais rápido”. Dentre as atividades que exerce ao ajudar o companheiro estão: segurar tábua pra medição; pregar pregos; emassar (passar massa por cima do calefeto); pintura nas partes de cima e de baixo das embarcações (só não pinta o nome das embarcações); “observar se tem buraco, botar defeito” (observar detalhes, defeitos eventuais) e “observar quanto de madeira precisa pra cada coisa”, ou seja, sem ela, em sua opinão, Anselmo poderia cometer erros quanto à quantidade de material necessária para cada coisa. Ela faz questão de frisar que suas embarcações de uso pessoal foram feitas pelo companheiro. E, segundo ela, não conhece nenhuma outra mulher que exerça atividades na carpintaria naval. Seria “a única no Maranhão”. Carlos Magalhães Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010), gênero masculino, 49 anos, natural de Santo Amaro-MA, trabalha em Raposa como carpinteiro naval. Dentre suas atividades: “Eu construo, eu reformo, eu sento motor, eu prendo o calafeto, eu só não faço só pintar e a parte elétrica, mas as outras atividades da embarcação eu faço tudo”. Carlos tem estaleiro próprio que fica a cem metros de distância de sua casa. Já fez quatro embarcações para si, hoje não tem mais nenhuma. Quanto às embarcações para venda construiu mais de 40. É vinculado ao sindicato de pescadores, porém, não pesca. Em relação à essa vinculação profissional diferente da que realmente exerce e à preocupação com aposentadoria, explica: “Porque quando chegasse a época da aposentadoria da gente, a gente ser aposentado pela própria profissão que a gente exerceu durante a vida inteira. Mas aqui na Raposa não tem. Então a gente é associado na colônia(de pescadores)”. Carlos sempre trabalha com alguém, ao contrário de carpinteiros como Waldy Araújo. Segundo ele “Eu nunca fiquei só. Não tem como a gente trabalhar só”. Quanto 26 à remuneração do “ajudante” diz que “depende”, que ele mesmo (Carlos) determina, assim: Dependendo exatamente do grau de conhecimento dele, quando ele vem só pra ajudar, no caso como aprendiz, eu faço um salário pra ele, só pra ele não ficar desanimado no final da semana, né? Aí quando vem uma pessoa que já tem conhecimento bom, aí é um salário já compatível com o conhecimento que ele tem. Não se considera um mestre, pois, em sua opinião: Pra mim me considerar mestre só se eu fosse assim o mais sábio de todos. Mas tem gente melhor do que eu. Ai, eu não posso. Tem muita coisa ainda pra eu chegar a me considerar mestre. Eu faço meu trabalho da melhor maneira possível, sempre pensando em agradar os clientes. Eles é que vão dizer se é bem feito ou não porque eu não posso dizer que tá bem feito e o usuário, o dono do objeto vai dizer que fez bem ou não, que não ficou do seu agrado. O dono é que vê se tá bem feito ou se não tá. Perguntado se trocaria sua profissão por outra, responde que “se tivesse uma outra atividade assim, uma outra atividade mais leve que pudesse ganhar o meu sustento, eu mudava de profissão sim”. Ao contrário da maioria dos carpinteiros entrevistados. Carlos possui um problema na coluna e acredita que o trabalho na carpintaria é um dos grandes responsáveis por isso. Davi Martins Davi Martins (entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010), gênero masculino, 60 anos, natural de Axixá-MA, mora em Raposa desde 1974. Segundo ele, exerce somente a “profissão de carpinteiro naval”. Dentre as atividades só trabalha com reforma. Não tem condições de fazer embarcações novas. Segundo ele “Fazer novo é com Carlos, com o Waldy que é estaleiro próprio mesmo, mas nós, só reforma mesmo” (Carlos e Waldy são os acima citados). Na reforma “pinta, calafeta, mete tabua”, não trabalha com a parte hidráulica. Seu estaleiro leva o seu nome e o que mais chamou atenção foi o fato de que quando perguntamos se era terreno próprio obtivemos as seguintes respostas: Quem deu foi o IBAMA, eles deram, deram e não pagamos nada. O IBAMA deu pra nós, mas ficou garantia. Isso foi em 2002. Deram pra nós ficarmos de fiscal, pra outras pessoas não desmatarem. E qualquer material nosso, desse aqui, era pra chegar em algum lugar, pra não prejudicar a natureza. A colônia, ela só podia dar o terreno. Mandaram nós irmos ao IBAMA. Aí nós fomos, falamos com o gerente lá. Primeiro era uma mulher que era gerente lá. Falamos. Ela mandou o fiscal do IBAMA vir olhar. Aí depois que ele veio olhar e que nós fomos lá de novo por que ela conseguiu fazer a liberação, e 27 depois voltaríamos de novo, foi mais ou menos uma semana. Mas, pra fazer, foram uns 15 dias. Para compreendermos melhor essa forma de liberação de uso do terreno fizemos algumas indagações sem muito sucesso. Assim, afirmou que “Deram um papel. Data de validade não tinha.” Desta forma, não conseguimos obter o nome do papel. O estaleiro, porém, está instalado ao lado de um manguezal e a residência de Davi dista alguns quilômetros de seu local de trabalho. Davi afirma ter reformado em torno de 300 embarcações. E que toda semana tem embarcação pra reconstruir. Davi não tem embarcações para uso próprio, pois, para ele, “pescador é bicho muito complicado”. Estava vinculado ao sindicato de carpinteiros navais de São Luís, mas parou de pagar, pois não estava vendo vantagens. Quanto à hierarquia, diz: “O chefe é todo mundo aqui. Aqui todo mundo é chefe. Não tem ajudante. Não tem nada. Todo mundo é mestre e tal. Cada qual na sua área. Ele (apontando um companheiro de trabalho) é mestre na área dele, de eletricista, de desenho, de pintura de tudo” (ele, no caso, é Roberto Leite, apresentado abaixo). Davi não trocaria sua profissão por outra e diz que o que mais gosta em seu trabalho “é meter tábua na embarcação, é calafetar”, e que: “ sou bom na profissão, nunca me acidentei e gosto de trabalhar na área mesmo”. Davi se orgulha da profissão, segundo ele: “A gente é gavado (elogiado), faz bem. E vem embarcação de tudo quanto é lado pra gente construir. Eu já fui construir embarcação até em algumas cidades daqui do Maranhão”. Em suas colocações sobre a profissão expôs que, em sua opinião, os órgãos públicos poderiam tomar providências pela carpintaria naval. Sugere: “Galpão bem feito, normalizar o carpinteiro, providenciar uma farda, uma bota, uma luva, só isso era suficiente. Porque o trabalho é arriscado demais”. Roberto Leite Roberto Leite (entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011), gênero masculino, 37 anos, natural de Axixá – MA, trabalha em Raposa com “manutenção em geral”, preferindo ser reconhecido como eletricista, também é carpinteiro naval, atividade que exerce há 19 anos. Sobre a carpintaria naval: “Construo, faço montagem, só não calafeto, a única parte da carpintaria naval que eu não faço é o calafeto, as outras partes de manutenção, 28 pintura, elétrica, motor, tudo isso eu vou levando”. Roberto não é vinculado a sindicato algum. Nunca fez embarcações pra uso próprio, declara: “eu nunca tive tempo não, quando tava fazendo uma já tavam querendo aí, eu fiz muito”. Não tem noção de quantas embarcações já construiu. É, aparentemente, o carpinteiro naval mais procurado em Raposa, segundo ele, “tem gente que espera, se possível, um serviço meu três meses, quatro meses. Por isso que eu tenho muito serviço, eu não paro, de jeito nenhum.” 2.1.2 Breve leitura de variações e aproximações Pudemos perceber que a maioria dos interlocutores de Raposa – MA não são naturais do município, salvo Diego Vieira que é o mais novo de todos. Porém, todos eles têm no município residência e local de trabalho fixo, apesar de poderem se deslocar com suas ferramentas para construir ou reformar embarcações fora do município. Percebemos também que a maioria dos estaleiros tem saída para água, seja rio, igarapé ou praia, com exceção da oficina de José Ribeiro, em São José de Ribamar. Outra análise parte da proximidade do local de trabalho da residência dos carpinteiros, Waldy e José trabalham em seus quintais, Anselmo, Diego, Cristina e Carlos moram a poucos metros dos estaleiros e Roberto e Davi moram a uma distância maior, não sendo, pois, determinante que as residências sejam contíguas aos estaleiros, o que talvez influencie nos horários de trabalho dos carpinteiros. Quanto à vinculação a sindicato, notamos que alguns procuraram o sindicato de carpinteiros navais de São Luís, mas deixaram de contribuir e que outros se vincularam à colônia de pescadores, mesmo sem serem pescadores, e que outros não se vincularam a nenhum. Nota-se assim, a fraqueza da categoria e o desconhecimento dos direitos previdenciários e da possibilidade acesso a linhas de crédito para produção. As falas deixam a impressão de que para instituições como sindicatos e INSS, por exemplo, a atividade não é subsidiada ou reconhecida, tendo os mesmos que acionar a pesca como principal atividade exercida. Quanto ao reconhecimento do título de mestre, apenas dois o aceitaram abertamente, alguns, apesar da experiência, não o aceitaram. Observamos ainda que a maioria costuma trabalhar acompanhado, com exceção de José. Quanto à hierarquia, pudemos observar nas visitas aos estaleiros que havia subordinação dos ajudantes aos carpinteiros entrevistados, especialmente em relação a Waldy e Carlos, somente não 29 estando explícita entre Anselmo Góes e seus familiares e entre Davi Martins e Roberto Leite, que trabalham juntos fazendo atividades diferentes, porém, notamos subordinação dos demais ajudantes do estaleiro em relação aos últimos dois carpinteiros citados. Nota-se, de maneira geral, que as funções são múltiplas e que a maioria deles exerce ou sabe exercer a maioria delas. Notamos que a maioria tem ou já teve embarcações construídas por eles mesmos, o que revela uma relação entre produtor e produto notável. Notamos também que somente Waldy, Carlos e Davi trabalham exclusivamente com a carpintaria naval, apesar de Anselmo acreditar que ela garantiria o sustento de sua família e, apesar de Roberto trabalhar como eletricista e ter constante procura por seus serviços na área da carpintaria naval. De todos os entrevistados, com exceção de José que já não trabalha mais e de Cristina que só ajuda “para o Anselmo terminar mais rápido”, notamos que somente Carlos trocaria seu trabalho, especialmente por apresentar problemas de saúde diretamente relacionados à atividade, e que os demais não o fariam, apesar de apontarem diversos pontos de desestímulo como a desvalorização e o perigo da profissão. Assim, de modo geral, podemos observar que a atividade é exercida com bastante orgulho, com status de profissão principal e que garante sustento próprio e da família e que é algo que, feito para uso próprio, propicia a execução de outras atividades como a pesca, transporte ou o turismo. 2.2. A dinâmica da cadeia de valor Adotando a noção de cadeia de valor ou cadeia da mercadoria de acordo com Keller, “enquanto um conjunto de atividades econômicas sucessivas e necessárias para levar um produto ou um serviço, desde a sua concepção, passando por diferentes fases de sua produção e comercialização, até o consumidor final” (2010, p. 29), procuramos identificar dentro do conjunto de atividades de trabalho e de produção de valor da carpintaria naval artesanal, questões referentes à obtenção de créditos ou financiamentos de qualquer natureza, os processos de design, manufatura, comercialização e entrega das embarcações, além disso, incluímos entre as perguntas questões relacionadas à concorrência e demanda locais. 30 Por tratarmos da forma artesanal de construção e da matéria-prima em outros momentos do trabalho, o quesito manufatura não aparecerá neste tópico. Desta forma, apresentamos o que segue. Quanto a créditos e financiamentos, grande parte dos carpinteiros nunca pediu empréstimos à instituições bancárias, arcando por conta própria com os custos da produção ou contratando com “clientes ou donos” (destinatários finais das embarcações) que encomendam embarcações, geralmente dividindo o pagamento em dois momentos, 50% antes de iniciada a produção e 50% no momento da entrega. Assim, destacamos os casos de Carlos e Anselmo para elucidar o tema. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010), explica que investimento na produção é feito diretamente por quem encomenda a embarcação. E que inicialmente pede 50%, e parcela o restante de três a quatro vezes. O contrato é verbal e segundo ele, quando termina de fazer vai ao cartório, reconhece firma e dá o recibo de construção. Observamos que há certa facilidade caso o profissional procure instituições bancárias e se adapte às suas formalidades, como retratado no caso de Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010): Anselmo: Eu trabalho com o banco Real. Compro alguns materiais com o banco real. Ele vem aqui, o rapaz do banco real, ele vem, eu peço o dinheiro e compro alguma coisa e tudo aquilo que é preciso pra trabalhar. Quando o dono da embarcação que vem fazer, ele não tem, eu vou e peço no banco Real. Aí pago de 5 vezes, 6 vezes. É 1,5% de juros que eles cobram ao mês. É pouca coisa. Pesquisadora: Mas é exatamente para essa função ou... Anselmo: É pra essa função. Eles abrem uma linha de crédito pra microempresário e até pra individual assim autônomo, eles abrem uma linha de crédito. Ele vem, olha o estabelecimento, fiscalizam. Vem algum fiscal. Mas também, eu acho que eles são rápidos. O mais tardar é quatro dias. Aí eles já ligam: “tá liberado”. Pesquisadora: E é só o Banco Real que faz isso? Anselmo: Eu trabalho também com o banco do Nordeste. Pesquisadora: E pelo banco do Nordeste é a mesma coisa? Anselmo: É também. Os juros são bem baixos. Quanto ao Design, pudemos reunir o que segue. No caso de Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010): 31 Pesquisadora: O Sr. faz do jeito que quem encomenda quiser. Mas, o Sr. desenha no papel? Carlos: Não. É tudo na cabeça. Às vezes eu pergunto o seguinte, se ele já viu alguma por aqui que seja do agrado dele: “olha eu quero que o Sr faça do jeito daquela que eu vi acolá”, a gente vai lá e olha. Só isso aí. Mas quando ele encomenda e diz “faça do seu jeito, do jeito que você sabe”. Aí, eu já tenho uma linha especificamente pra aquilo, tem raciocínio pra aquilo ali. Pesquisadora: E tudo na cabeça, não anota nada? Carlos: Não anoto nada. Já Roberto Leite (entrevista realizada em 03/12/2010), apresenta propostas em desenho livre. Pesquisadora: E o desenho da embarcação, é o senhor que faz ou o mandam fazer? Roberto: Eu faço, mostro de cinco a seis desenhos. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) elucida esta forma de apresentação do modelo. Anselmo: Fica com o dono que quer. Ele pede o feitio e pede pra gente fazer o modelo no papel. Pesquisadora: O Sr. faz o modelo no papel? Anselmo: Faço. Eu tô armando assim, aí ele vem pra dizer como é que ele quer. Se é mais aberta, se é mais fechada Pesquisadora: E quando o Sr. faz o modelo assim no papel, o Sr. faz de mão livre, assim só a caneta e o papel ou o Sr. faz com a régua, instrumento pra ficar bem certinho? Anselmo: Não. É só pra mostrar como é mesmo que é. É uma coisa simples. Em papel mesmo natural. Não é computadorizado. A gente faz mesmo tudo manual, artesanal. Quanto à comercialização das embarcações, podemos observar que geralmente é feita diretamente com os carpinteiros, sem intermediação de terceiros. São produtores e vendedores finais. Assim: Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Carlos: O dono sempre me procura, a gente fecha o negócio. Ai, quando termina de construir, eu entrego pra ele. Ou de reformar, entrego diretamente para ele sem intermediário nenhum. 32 Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011): Pesquisadora: É com o senhor mesmo que se dá a comercialização? O cliente conversa direto com o Sr.? Roberto: Sim. Sempre fazendo a empreita. Quanto à entrega do produto observamos que geralmente é feita no local da produção, o cliente recebe e se encarrega do transporte facilitado pelo acesso dos estaleiros à água. Salvo casos como os de Anselmo, que leva pessoalmente algumas embarcações a pedido do cliente. Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010): Pesquisadora: Para trazer a embarcação, para reformar, os clientes que trazem ou o Sr. vai buscar? Davi: Eles que trazem, deixa aqui só pra eu fazer o serviço. Pesquisadora: E eles que vêm buscar? Davi: Sim, eles vêm buscar. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010): Pesquisadora: E o cliente vem buscar ou o Sr. tem como entregar? Carlos: Não. Eu recebo aqui e entrego aqui também. Tanto como reforma como construir. Se é pra reformar, o dono traz pra cá. Daqui eu me encarrego de puxar pra cima, né? (da água para a parte seca do estaleiro). Mas eu recebo e entrego tudo aqui. Agora, o material, eu saio com o dono, às vezes ele me dá o dinheiro e eu procuro. Porque eu que vou trabalhar, eu faço questão de eu mesmo escolher o material que eu vou trabalhar. Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011): Pesquisadora: E para entregar a embarcação, o Sr. manda levar ou eles vêm pegar? Roberto: O dono recebe aí. Não tem mais condições como antes que tinha estaleiro próprio, a carreta que vinha buscar, agora não tem mais isso. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010): Pesquisadora: E o consumo, o Sr. leva a embarcação ou eles vem buscar aqui mesmo? 33 Anselmo: Eu já tenho levado várias e outros vêm buscar aqui mesmo. Mora aqui, vem buscar aqui mesmo. Pesquisadora: Quando o Sr. leva, o Sr. leva como? Anselmo: A maioria dela já sai com o motor daqui. Com o motor funcionado daqui. Pesquisadora: Aí, o Sr. leva pelo mar? Anselmo: Sim, pelo mar. Mas tem umas que sai de caminhão, mas é pouco. Pesquisadora: Aí, quando é de caminhão, tem que pagar o caminhão? Anselmo: Não, eles pagam. O dono leva. Quanto à concorrência e demanda de modo geral, podemos perceber que a demanda é bem razoável. Pelo menos uma embarcação por carpinteiro em um mês, o que no município equivale ao número aproximado de cinquenta. E a concorrência se dá de acordo com a preferência do cliente pelo modo de fazer dos carpinteiros ou pela disponibilidade dos mesmos, sendo que alguns são extremamente procurados e outros têm a demanda para suprir a manutenção do mês. Davi e Anselmo acreditam que depende da simpatia, de o cliente “se engraçar” do carpinteiro e que a demanda pelas reformas ou construções é maior que a oferta de serviço. Já Roberto acredita que a procura se dá pelo melhor acabamento. Carlos, talvez por ter ficado muito tempo parado, passa por um momento de pouca demanda por seu serviço. Davi (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: O Sr. acha que entre os carpinteiros têm concorrência? Davi: Não, aí vai depender dos donos da embarcação. Se ele se engraçar de ti, ele vai mandar fazer o barco contigo. Aqui pra mim não falta é serviço. Pesquisadora: E quanto ao preço que vocês cobram? Davi: É justo. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Pesquisadora: Como é que tá a concorrência aqui na Raposa? E a demanda para o Sr.? Carlos: A demanda pelo meu serviço tá baixa, no momento só estou fazendo um barco para fora. Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2010) Pesquisadora: O senhor acha que existe uma concorrência? 34 Roberto: Sim, entre aqueles que têm mais acabamento de serviço e aqueles que não tem acabamento. Pesquisadora: E a demanda? Roberto: No meu caso, tem muito serviço e muita concorrência pelo acabamento. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) Anselmo: Aqui a oferta é pequena, a procura é maior. Aqui na Raposa, cada um faz seu preço, o cliente faz a licitação ele próprio porque se agrada da canoa ou da conversa do carpinteiro. 3. O FAZER ARTESÃO, A TRADIÇÃO Segundo Marx, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza em que o ser humano impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Assim, para o autor, o ser humano defronta-se com a natureza como uma de suas forças e põe em movimento as forças de seu corpo, “braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana” (1975, p.202). Para o autor, dessa forma, o homem atuaria sobre a natureza externa e a modificaria ao mesmo tempo em que modifica sua própria natureza, desenvolvendo potencialidades nela adormecidas (na natureza) e submetendo ao seu domínio o jogo das forças naturais (MARX, 1975). Assim, a transformação da natureza para a impressão de formas úteis aos seres humanos pressupõe um processo de trabalho que, de acordo com Marx, é uma atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, sendo condição necessária de um “intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais” (1975, p. 205). Deste modo, o processo de trabalho vai depender de um projeto consciente do trabalhador para a materialização de sua vontade. Assim: (...) o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. (MARX, 1975, p. 202) 35 Essa construção na mente do trabalhador e a impressão de seu projeto ao material são partes fundamentais da produção. E temos, no processo de produção artesanal, a presença destes elementos, figuração na mente e subordinação de sua vontade. O processo de trabalho na carpintaria naval artesanal proporciona criações para uso próprio do artesão bem como de criações que se configurem mercadorias. Assim, produzirá não só “valores-de-uso”, mas valores-de-uso para os outros, “valores-de-uso sociais” (MARX, 1975). Nossa intenção neste momento do trabalho não é adentrar profundamente a discussão a respeito de modos e processos de produção, mas de demonstrar como se dá entre os interlocutores o controle sobre os meios de produção (ferramentas e matériaprima) e sobre o processo de trabalho, que a nosso ver ocorre de forma artesanal. Devemos, porém, apontar que existem diferenças entre artesanato e manufatura, desta forma, entendemos que a produção artesanal tem sua principal característica no completo controle que o trabalhador possui sobre os meios de produção (tanto os instrumentos de trabalho quanto a matéria-prima) e sobre o processo de trabalho. O controle total sobre o trabalho e seu produto pertence apenas a ele. O determinante é a união entre o trabalhador e os instrumentos de trabalho, somada ao saber particular e à habilidade pessoal que permite a produção de certos objetos (SANTIAGO, 1980). A manufatura, segundo Santiago, tem como traço distintivo o aparecimento do trabalhador coletivo através de cooperação. O produto final que antes era alcançado por um só trabalhador agora depende do trabalho cooperativo, tornando-se então obra de um trabalhador coletivo. Ainda que o processo de trabalho continue, tal como no artesanato, dependendo diretamente do trabalhador e, portanto, sendo por ele até certa parte controlado, o produto final não é mais individualizado. Torna-se o resultado, nas palavras de Marx (1975), do entrelaçamento de trabalhos isolados (cooperação simples) ou de operações complementares que apenas o seu conjunto dá lugar a um produto acabado (cooperação complexa). Observando os interlocutores da pesquisa, pudemos constatar que alguns deles trabalham no que está aqui enquadrado como manufatura, por admitirem ajudantes ou por não exercerem determinadas funções na confecção das embarcações. Outros, porém, têm controle total sobre todo o processo de trabalho. 36 Ademais disso, chamaremos artesanal mesmo ao que foi enquadrado acima pelos autores como manufatura, por considerarmos relevante o fato de que há controle do trabalho e do produto, por parte dos interlocutores, em todas as situações observadas. Consideramos, assim, o conceito de Boudon, de que geralmente o artesão é identificado como sendo um trabalhador manual, formado no trabalho, por aprendizagem direta e independente, exercendo criações por sua conta, sozinho ou com a ajuda de membros da sua família e de alguns companheiros (1990). Visto isso, Wright Mills (1982) trata do ideal do artesanato como modelo de satisfação no trabalho, e propõe uma categoria analítica que envolve seis características principais, que seriam: 1. Não há nenhum motivo velado em ação além do produto que está sendo feito e dos processos de sua criação; 2. Os detalhes do trabalho diário são significativos porque não são dissociados, na mente do trabalhador, do produto do trabalho; 3. O trabalhador é livre para controlar sua própria ação de trabalho; o artesão é, por conseguinte, livre para aprender com seu trabalho e para usar e desenvolver suas capacidades e habilidades na execução do mesmo; 4. Não há ruptura entre trabalho e diversão, ou trabalho e cultura; o modo como o artesão ganha seu sustento determina e impregna todo o seu modo de vida. Em busca da articulação de alguns destes elementos da categoria proposta por Mills com nossas observações em campo, procuramos articular elementos que nos possibilitassem visualizar a existência de categorias nativas no processo artesanal de construção das embarcações. Assim, indagamos os carpinteiros e aqui expomos alguns trechos das entrevistas que podem nos ajudar a compreender o processo de produção de suas embarcações, suas ferramentas e se consideram a atividade uma atividade artesanal, em casos afirmativos indagamos o porquê, tentando extrair suas concepções de artesanato. Assim, Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: O Sr. considera essa atividade artesanal? Davi: Sim. Pesquisadora: Por quê? O que o Sr. entende por artesanal? 37 Davi: A gente trabalha só com um tipo de embarcação, é tudo manual mesmo. Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011) já apresenta uma concepção de artesanato por parte de terceiros em relação às embarcações e, assim, aparentemente, faz distinção entre profissão e artesanato: Pesquisadora: E o Sr. acha que trabalhar com embarcação é um tipo de artesanato ou não? Roberto: Se torna profissão, né? O artesanato é pra quem admira, quem vem curiar, vem olhar, se torna turismo. E pra gente é, é profissão mesmo. Pesquisadora: O Sr. acha que o artesanato pode ser uma profissão também? Roberto: Pode. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Sobre a forma artesanal da atividade: Pesquisadora: O Sr. acha que é um artesanato o que faz? Carlos: Rapaz eu acho que é um artesanato, porque a gente só tem a gente mesmo, que mete a mão na massa, como se diz. Quer dizer, pra não ser artesão só se fosse uma fábrica computadorizada. O cara não pegava em nada. Mas aqui é a gente mesmo que pega. A gente que pega todo o trabalho na mão da gente mesmo. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) Pesquisadora: E o Sr. considera que esse trabalho é um artesanato? Anselmo: Considero um trabalho artesanal. Pesquisadora: Por quê? Anselmo: Por que exerce muito as mãos. No caso das mãos, da cabeça e a gente vai fazendo assim cada peça no seu lugar. Ele é artesão. Até porque depois de pronto é como se tivesse uma obra. Uma obra. É artesão. Das respostas, pudemos observar na fala de Roberto Leite que este entende que o produto final de seu trabalho pode ser considerado como artesanato a partir dos olhares dos turistas, mas que para ele é profissão, apesar de achar que o artesanato pode ser considerado profissão, notamos que a resposta foi colocada como se houvesse diferença entre esse olhar alheio e o seu olhar diante do produto. Todas as demais respostas envolveram o aspecto do fazer manual, a de Carlos é proposta a partir da 38 noção de fábrica, onde o “cara não pegava em nada”, e a de Anselmo a partir da noção de obra e de domínio das etapas do processo “cada peça em seu lugar”. Perguntamos ainda se havia um estilo próprio de cada carpinteiro impresso nas embarcações construídas por eles, se reconheciam os produtos de seu trabalho (ao vê-las mesmo anos depois de vendidas, por exemplo) e, ainda, se reconheciam o trabalho de outros carpinteiros pelo feitio (design) das embarcações. Assim, Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: Suas embarcações são diferentes das dos outros carpinteiros? Davi: É. Pesquisadora: O Sr. acha que tem alguma diferença assim? O Sr. olhando uma que o Sr. reformou o Sr. sabe se é sua? Davi: Sei. Pesquisadora: Mesmo sendo há muito anos? Davi: Mesmo sendo. Eu sei se é qual embarcação que eu reformei qual não foi. Pesquisadora: Por quê? Como é que o Sr. sabe? Davi: Porque uma embarcação não é o mesmo feitio da outra. Ai, assim, a gente sabe se a gente já reformou ela. Pesquisadora: Em relação a dos outros, o Sr. já olha alguma assim e sabe quem produziu? Davi: Essa daqui foi fulano de tal que reformou. Pesquisadora: Mas o Sr. sabe porque o Sr. viu ele fazer ou porque é do feitio dele? Davi: Porque a gente vê lá, quando vai sair de qualquer um lá, a gente vê a embarcação lá.aíquando chega dentro d‟agua,aíque vem pra reforma de novo, a gente já sabe que foi fulano de tal que reformou. Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011) Pesquisadora: E o seu tipo de fazer a embarcação, o Sr. constrói e sabe que é a sua? Roberto: Conheço tudinho. Pesquisadora: E as pessoas conhecem que aquela embarcação é sua? Roberto: Conhecem. Pesquisadora: Por quê? O Sr. acha que tem alguma coisa de diferente? 39 Roberto: Tudo diferente, as minhas pinturas são diferentes, letreiro diferente, tudo diferente, logo, porque eu não gosto de copiar nada que as outras pessoas fazem. Até meus móveis mesmo são todos diferentes. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Pesquisadora: Mas a sua forma é diferente das outras? Carlos: Foge um pouco. Cada um tem sua maneira de ter sua própria forma. Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2010) Pesquisadora: as suas embarcações são diferentes umas das outras? Assim, se for o mesmo tipo, são diferentes? Anselmo: São diferentes. Nunca fica parecida assim igual. Ela pode ser do mesmo tamanho, mas sempre ela tem uma diferença. Nunca parece. De dizer, assim, é igualzinha à aquela ali, não, é difícil ficar igual. Uma folha ou outra não dá pra ficar igual. Pesquisadora: Pode ser do mesmo tamanho? Anselmo: Acho que se for industrializada é fácil, né? Porque foi lá pela indústria. Aqui, artesanal fica diferente. Pesquisadora: Mas o Sr. queria que fosse tudo igual ou o Sr. acha melhor ser tudo diferente? Anselmo: Diferente. Até pra divulgar: essa aqui é a minha, essa aqui é a minha. Pesquisadora: O Sr. olhando, o Sr. sabe que aquela foi sua? Anselmo: Sei. Às vezes roubam, aíele vai atrás e sabe, “Essa aqui é a minha. Porquê? Por que essa aqui é a minha”, tem essa diferença. Pesquisadora: Se o Sr. olhar uma do seu Waldy, o Sr. sabe que é dele? Anselmo: Sei. Eu conheço. Pesquisadora: Porque tem um jeito diferente? Anselmo: É. Perguntamos ainda, se eram eles quem indicavam nomes para as embarcações (todas devem ter um nome para posterior inscrição na Marinha Brasileira). Assim, Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011) 40 Pesquisadora: O nome das embarcações, o Sr. que costuma dar? Roberto: Às vezes, sou eu mesmo. Eu tenho tudo gravado na cabeça, as embarcações tudinho que eu fiz. Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2011) Pesquisadora: O Sr. quem dá o nome das embarcações que o Sr. faz? Anselmo: Não. Cada pessoa é que dá o nome, que coloca o nome que ele quer. O cliente. Desta forma, pudemos perceber que todos conhecem e reconhecem seus produtos, e que sabem que nenhuma de suas embarcações é igual à outra, bem como que as pessoas reconhecem seus feitios e que alguns reconhecem o feitio de outros carpinteiros. E que, a exemplo de Roberto, costumam participar da escolha do nome das embarcações que produzem. O que, a nosso ver, são fatores que poupam os trabalhadores da carpintaria naval artesanal da alienação com relação ao produto do trabalho, “alienação da coisa”, ou seja, o estranhamento diante do que se produziu. Quando o trabalhador não se reconhece enquanto produtor, não encontra identidade. O objeto do trabalhador encontra-se “fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele, a vida a que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica” (MARX, 1975, p.112). Indagamos a eles se possuem aspirações para seu modo de produção, no sentido de modificar algo no processo produtivo que acarretasse mudanças benéficas. Desta forma, temos, Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: O Sr. tem alguma pretensão, vontade de ter um estaleiro próprio ou embarcação própria? Davi: Uma embarcação e um estaleiro próprio. Mas, isso ai, é na frente. Mas, não que um dia a gente não consiga. Pesquisadora: Embarcação, o Sr. não tem? Davi: Embarcação, eu não tenho. Pesquisadora: Mas, por quê? É por que o Sr. não usa? 41 Davi: Não dá muito certo ter embarcação, porque pescador é bicho muito complicado. É complicado demais, tem que ter paciência. É uma luta com esses animais aqui. Pesquisadora: Não tem paciência. Mas queria com empregados, com um estaleiro grande? Davi: Ah, isso aí que era normal se a gente pudesse. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) Pesquisadora: O Sr. acha que industrializado é melhor que fazer manual? Ou o Sr. prefere continuar no manual? Anselmo: Eu falo assim, em algumas máquinas mais, mas continua tudo sendo manual pra mim. Porque na indústria, máquina movimenta mais e tem várias máquinas que ajudam a gente mais. Vai mais rápido, tem algumas máquinas que ajudam a gente fazer. Na carpintaria naval é difícil. A gente tem que fazer de modo artesanal mesmo. Cada peça, a gente prepara. É, tem que ser artesanal mesmo. Pesquisadora: Sempre tem que ser artesanal? Anselmo: Artesanal. Outro ponto das entrevistas foi se os carpinteiros produziam tendo em vista os quesitos beleza e utilidade e qual deles era considerado mais importante. Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: Mas aí, quando o Sr. reforma, o Sr. faz pensando na beleza ou na utilidade? Davi: Rapaz, é na utilidade mesmo. Porque a beleza quem faz é o pintor.aíquem faz a embarcação é na utilidade. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010): Pesquisadora: Faz pela utilidade da embarcação e não pela beleza? Pela encomenda? Carlos: É, pela encomenda. Eu acho que pela utilidade, como é, pela beleza e pela utilidade. Quer dizer, a gente não faz especificamente uma arte. É pela necessidade de uma embarcação. Até porque eu faço da maneira que o dono pede. Embora que fuja, que saia do padrão da minha forma, mas se o dono quer naquele sentido eu faço. Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2010): Pesquisadora: Fazer embarcação. O Sr. faz pela beleza ou pela utilidade da embarcação? Ela é uma obra como o Sr. disse ou pelo que ela representa para quem vai comprar? 42 Anselmo: É pelo que ela representa para a pessoa que vai comprar. Geralmente as pessoas, elas escolhem o feitio que eles querem, o tamanho, a largura, o comprimento. Eles é que vem dizer. Cada pessoa, isso é normal, eles é que falam “eu quero de tal tamanho”. Às vezes a gente quando vai armar, a gente chama o dono pra olhar, “tá bom, assim desse jeito?”. Aí ele vem “não, quero mais assim” aí a gente vai lá modifica novamente até depois pra ele ficar agradado. Nesta senda, a observação da dinâmica da carpintaria naval leva à concordância do que Mills descreveu com exatidão: Na maioria das descrições do artesanato, há uma confusão entre suas condições técnicas e estéticas e a organização legal (propriedade) do trabalho e do produto. O que é realmente necessário para o trabalho-como-artesanato, contudo, é que o vínculo entre o produto e o produtor seja psicologicamente possível; se o produtor não possui legalmente o produto, deve possuí-lo psicologicamente, no sentido de saber do que ele é feito no que diz respeito a habilidade, suor e materiais, e de sua própria habilidade e suor serem visíveis para ele. Evidentemente, se as condições legais forem tais que o vínculo entre o trabalho e o ganho material do trabalhador seja transparente, esta é uma gratificação adicional, mas ela é subordinada àquela habilidade que persistia por si só, mesmo se não remunerada (MILLS, 1982, p. 59). Podemos perceber que este vínculo psicológico existe entre os atores observados, já que os mesmos detêm habilidades, condições técnicas e estéticas em relação ao produto de seu trabalho. Sobre a habilidade artesanal, Sennett estabelece uma relação direta entre as habilidades do artífice e a esfera do desejo, supondo haver nele a busca pela qualidade, vontade de um trabalho bem feito. Exemplo prático desta relação apontada por Sennett está evocada na fala de Anselmo quando diz: Eu admiro o máximo quando eu termino uma obra, eu fico assim namorando aquela obra que eu fiz e que ficou linda. Eu fico assim, horas inteiras olhando. Puxa, eu consegui fazer isso aqui. É serio, é complicado. Um engenheiro que faz o navio, entra nele e depois pensa assim “éguas, rapaz. Fui eu que programei tudo isso aqui?” (entrevista realizada em 30 de novembro de 2010) Retomando as considerações de Mills, há concordância do resultado da pesquisa quanto à liberdade para início do trabalho e modificação de sua forma e maneira de criação, a exemplo de Waldy, carpinteiro naval artesanal no município de Raposa quando fala “não tenho hora certa pra trabalhar, mas também não sei ficar parado” (entrevista realizada em 30/11/2010). Assim: (No trabalho artesanal) O trabalhador é livre para iniciar seu trabalho segundo seu próprio plano e, durante a atividade pela qual o trabalhador é moldado, é livre para modificar sua forma e a maneira de sua criação. (...) e o 43 artesão é Sr. da atividade e de si no processo. (...) sua esfera de ação independente é vasta e racional para ele. Ele é responsável por seu trabalho e livre para assumir essa responsabilidade. Seus problemas e dificuldades devem ser resolvidos por ele, em termos da forma que deseja que o resultado final assuma (MILLS, 1982, p. 61 grifo nosso). Sobre a jornada de trabalho dos carpinteiros, temos: Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: E o Sr., como é sua jornada de trabalho? Davi: É das 07h00 às 11h00 e 13h00 às 17h00. Tem gente que passa do horário. Eu não passo do horário não. Pesquisadora: O Sr. não faz só quando o Sr. quer? Davi: Não, não. Pesquisadora: todo dia é esse horário? Davi: todo dia o mesmo horário. Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011) Pesquisadora: E como é sua jornada, seu horário de trabalho? Roberto: Não tem limite. Eu trabalho até duas horas da madrugada, quatro horas, trabalho até em casa. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Pesquisadora: E sua jornada de trabalho. O tempo de trabalho? Carlos: eu entro 07h30, 07h45, às vezes. Aí eu largo 11h30. Volto 14h00. De 14h00 tem vez que eu largo 17h00 horas, 05h30 aí até 18h00. Dependendo do que a gente tá fazendo ali no momento. Porque às vezes é uma coisa que a gente tem que deixar terminada e, aí, a gente não pode deixar pra amanhã. Aí, nós vamos até 18h00. Pesquisadora: Então, todo dia o Sr. procura cumprir esse horário? Carlos: Sim. E eu comecei a fazer isso agora, depois que eu andei adoentado ai. Mas antes eu chegava aqui 06h30 e largava 11h30. Era ponto sempre, era escala certa. Aí eu voltava 13h15 e largava 17h30 Mas ai, eu tive uns problemas de saúde. Tive que poupar mais isso ai. Eu poupei mais. Eu não venho mais pra cá 13h00, 13h30. Eu venho 13h45, 14h00. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2011) 44 Pesquisadora: E sua jornada de trabalho? Como é que é? Os dias, os horários de trabalho? Anselmo: Digamos assim, não é de 07h00 as 12h00, 11h00. De 13h00 as 17h00, porque às vezes varia. Eu domino, tem vezes que vem 08h00 ou 09h00. Pesquisadora: Vem a hora que quer? Anselmo: Vem a hora que quer. Pesquisadora: E isso pro Sr. é uma coisa positiva ou o Sr preferia cumprir o horário certo? O Sr. preferia ser autônomo mesmo? Anselmo: É, ser autônomo. Têm dias às vezes que, dia de segunda-feira, eu não vou lá de jeito nenhum. Pesquisadora: Não quer ir, é o dono do seu horário. Anselmo: Não quer ir trabalhar hoje, não vai. Armo minha rede lá em cima da casa e vou dormir, vou descansar, não vou fazer nada não. Pesquisadora: Mas também tem dia que... Anselmo: Tem dia que anoitece. Tem vez que eles vem de noite me buscar pra ver barco que tá afundando. Ai, a gente vai lá. Tem que ir, é o jeito, livrar o prejuízo de alguém. A gente vai, é amigo, a gente vai. “Olha aminha canoa bateu lá, tá afundando lá na pedra”, pois então vamos buscar lá agora. Levanta da rede e sai. Figura 1: Rede - estaleiro de Anselmo. Fonte: arquivo pessoal, em 30/11/2010 45 Assim, acreditamos que Anselmo e Waldy tenham maior flexibilidade de horários por seus estaleiros serem perto da casa e em casa (respectivamente). O que não é determinante na conduta, já que Carlos mora a cem metros e procura cumprir seus horários rigidamente, o que demonstra que não há uma regra fixa, mas que ela pode ser estabelecida pelo próprio carpinteiro, conforme seus interesses, condições e características pessoais. Quanto às técnicas na produção, partimos da observação da relação manual x intelectual no processo de criação das embarcações. Neste sentido, de acordo com o Brighton Labour Process Group (apud KELLER, 2010, p. 28) a divisão (intelectual x manual, concepção x execução) “não tem nada a ver com a divisão entre funções mentais e físicas do organismo humano, tomadas num sentido puramente abstrato”. O que tende a se afinar com o pensamento de Sennett de que: “o artífice representa uma condição humana especial: a do engajamento. (...) as pessoas se engajam de uma forma prática, mas não necessariamente instrumental” (2009, p. 30), ou ainda quando afirma que “a técnica tem má-fama; pode parecer destituída de alma. Mas, não é assim que é vista pelas pessoas que adquirem nas mãos um alto grau de capacitação” (2009, p. 169). Ainda segundo o autor: (...) a coordenação manual chama a atenção para um grande equívoco sobre os processos de capacitação. Consiste ele em imaginar que adquirimos controle técnico partindo da parte para o todo, aprofundando o trabalho em cada parte separadamente e em seguida unindo as partes – como se a competência técnica se assemelhasse a produção industrial em uma linha de montagem. A coordenação manual não funciona bem se for organizada dessa maneira. Em vez de resultar da combinação de atividades distintas, separadas e individualizadas, a coordenação funciona muito melhor se as duas mãos operarem juntas desde o início (SENNETT, 2009, p. 185). Sennett (2009) propõe que se saiba se o que vem primeiro é o fazer ou o pensar, a mão ou a cabeça. Neste sentido, Andrès (1998) afirma que a construção das embarcações procedida de maneira artesanal é advinda de projetos guardados “na cabeça”, pois cada trabalhador utiliza seus próprios procedimentos e cada tipo de canoa requer método diferenciado ou combinação de métodos. Assim, a nossos interlocutores indagamos a respeito de onde consideravam ter habilidade para o trabalho, quais seriam os papéis das mãos e da cabeça nesse sentido. Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010): Pesquisadora: E o Sr. considera a sua habilidade na construção vem das mãos ou da cabeça? 46 Davi: Rapaz, vem das mãos e da cabeça. Porque só as mãos, como é que se diz? Só as mãos não trabalham. Agora a cabeça trabalha mais. Carlos (entrevista realizada em 28/12/2010): Pesquisadora: O Sr. acha que as habilidades do Sr. vêm das mãos ou do intelecto? Carlos: Não sei nem como, eu acho que é mais artesanal. Que a gente tem, eu acho que é um pouco dos dois. Por que tem muitas coisas que a gente bota na mente tudinho, mas não tem o mínimo de habilidade pra fazer. Então, tem que ter a metade de cada um. Tem que ter na mente e tem que ter habilidade nas mãos também. Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2010) Pesquisadora: O Sr. acha que a habilidade do Sr. está nas mãos ou na cabeça? Ou nas duas? Anselmo: Nas duas. Na mão é a parte boa e na cabeça é a principal. Pesquisadora: É a cabeça quem manda e a mão quem obedece? Anselmo: É isso mesmo. Tem vez que a gente já pega assim. E já vai fazendo. E já sabe como vai fazer cada peça. Desta forma, acreditamos que o artesanato atua na manifestação da cultura e, assim sendo, se transforma, é dinâmico. E, de acordo com as palavras de Nestor Canclini, (2000, p. 202), Parece que devem importar-nos mais os processos e os objetos, e não sua capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua representatividade sociocultural. Nessa perspectiva, a investigação, a restauração e a difusão do patrimônio não teriam por finalidade central almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas reconstruir a verossimilhança histórica e estabelecer bases comuns para uma reelaboração de acordo com as necessidades do presente. Consideramos, então, que o tipo de artesanato produzido na carpintaria naval é de modalidade artesanal. Da mesma forma Sennett observa que “Seria um equívoco imaginar que, pelo fato de as comunidades artesanais tradicionais transmitirem as habilitações de uma geração a outra, essas habilitações terão sido fixadas de maneira rígida; em absoluto.” (2009, p. 36). Segundo Helena Sampaio (2003), o artesanato tradicional é aquele que faz parte do modo de vida das pessoas que o realizam. Seguindo padrões estéticos próprios e transmitidos espontaneamente de geração para geração, muitas vezes utilizando matériaprima disponível nas regiões onde ele é feito. 47 No mesmo sentido aponta Vives (1983, p. 140), na sociedade contemporânea, será tradicional a expressão de uma experiência peculiar a dado grupo humano coletivamente aceita e reconhecida. “Tal expressão poderá contar, ou não, com muitos anos de presença. A cristalização dessa aceitação poderá ser rápida – até súbita – e a tradição estará formada, pois, modernamente, é mais o consenso do que o tempo que faz a tradição”. Ainda em Vives (1983), compreendemos como artesão tradicional aquele que emprega e transmite, em seu trabalho, valores, técnicas e signos amadurecidos e aceitos no sistema cultural a que ele mesmo pertence. É o intérprete das técnicas tradicionalmente conservadas, como herdeiro, que é, dos motivos que as originaram. No ato de criar uma cesta, por exemplo, reproduzirá padrões recebidos da cultura a que pertence, porque ditos padrões traduzem, primordialmente, a resposta a determinada necessidade do meio onde surgiram, seja tal necessidade ligada ao trabalho, à vida doméstica, à devoção ou à diversão. Seu produto é assim extremamente objetivo, jamais sem função. Participa da vida, e não só da vida do artesão, senão também da existência coletiva (VIVES, 1983). Indo além na reflexão de Vives, acreditamos que tais necessidades também estão relacionadas à disponibilidade dos materiais na região, a saber, dos recursos, notadamente os naturais que convenham à produção. Corroborando com a linha de raciocínio de Marx exposta acima, para a autora, o artesão tradicional é um profundo e instintivo conhecedor do meio onde se situa, tem intimidade e domínio sobre os materiais que esse meio oferece, podendo transformá-los com propriedade na matéria-prima dos objetos artesanais que produz, testemunhando, em seu trabalho, o próprio meio ambiente onde se desenvolve sua cultura (VIVES, 1983). No Maranhão, o artesanato na confecção de embarcações é marcado também no modelismo, conforme Andrès (1998, p. 42), “[..] Artesãos constroem réplicas perfeitas, “no olho”, pelo prazer estético e também hoje para vender a turistas. Servem como registro tridimensional dos diferentes modelos [...]”. 48 Figura 2: Mestre Osmar Melo na Oficina de Modelismo Naval - Fonte: Arquivo pessoal de Luiz Phellipe Andrès Não poderíamos falar sobre produção artesanal sem explorarmos o instrumental a ela relacionado. Na carpintaria naval artesanal maranhense, a pesquisa coordenada por Andrès apontou em alguns dos maiores estaleiros visitados, a introdução do uso de ferramentas e máquinas elétricas para a execução de algumas tarefas em busca do aumento de produtividade. Porém, de acordo com o autor, “Apesar dessa tendência, a manutenção das práticas elementares na maior parte dos procedimentos construtivos garante a preservação das características das construções artesanais” (1998, p. 39). Afirma ainda que: Materiais e ferramentas simples e tradicionais como lona, prego, parafuso, tinta, breu, algodão, nylon, serra de disco, formão (utensílio com uma extremidade chata e cortante e outra embutida em cabo), goiva (formão que tem o chanfro do corte no lado côncavo e usado em marcenaria e escultura), alicate, torques (espécie de tenaz ou alicate), platina, enxó (instrumento de cabo curto e com chapa de aço cortante, para desbatar), trado (verruma, instrumento cuja ponta é lavrada em hélice, usada para abrir furos na madeira, grande, usada por carpinteiros e tanoeiros), arco-de-pua, broca (instrumento que, com movimento de rotação abre orifícios circulares; pua – ponta aguda, bico de verruma), machado, marreta, martelo, alicate, pé-decabra, serrotão, serrote, serrote de ponta fina, serra de voltear, galopa, plaina, pok-shé, besouro, prumo (instrumento formado de uma peça de metal ou de pedra suspensa por um fio com o que se determina a linha vertical, aparelho para determinar a profundidade das águas em que se encontra a embarcação), escala, graminho, nível, suta, esquadro, pincel, ferro e macete de calafate, lixadeira e etc., fazem parte do cotidiano nos estaleiros artesanais (ANDRÈS, 1998, p. 39, (as definições entre parênteses são nossas). Um fato que coaduna o fazer artesão é que, de modo geral, o carpinteiro pode, eventualmente, mudar de lugar, inclusive de cidade, em função da solicitação de uma nova encomenda, levando consigo apenas seus instrumentos (ANDRÉS, 1998). O que foi constatado em campo, entre os interlocutores de nossa pesquisa. 49 Para a carpintaria naval o adjetivo tradicional, além de aparecer para “artesão tradicional” (Vives), aparece também para os estaleiros, “por estaleiro artesanal, entende-se o espaço coberto, de uso permanente, contíguo ou não à residência do artesão e dotado do ferramental necessário para que tenha condições de construir ou recuperar embarcações” (ANDRÈS, 1998, p. 37 e 38). Estes, geralmente estão localizados nas proximidades da beira de um rio, lago ou mar, apesar de não ser fator determinante. Quanto ao resultado do trabalho dos carpinteiros, foram identificados quinze modelos de embarcações artesanais tipicamente maranhenses, e que estão detalhadamente descritas em seu trabalho (Andrès, 1998). Aqui, apresentaremos as embarcações artesanais tradicionais mais frequentes entre os carpinteiros de Raposa, lembrando, porém, que há carpinteiros que afirmam saber fazer qualquer modelo a depender da demanda, - a exemplo de Carlos Magalhães: “às vezes eu pergunto o seguinte, se ele já viu alguma por aqui que seja do agrado dele „olha eu quero que o Sr. faça do jeito daquela que eu vi acolá‟ a gente vai lá e olha”. Assim, vejamos as embarcações: Bote proa de risco: Modelo que pode ser encontrado no litoral, apresenta armação com duas velas, uma grande, a “carangueja”, e outra menor armada na popa, a vela de estai (é a vela situada à proa, frente ao mastro vertical). (ANDRÈS, 1998, p. 55). Nesta embarcação a bita (peça de madeira de secção circular localizada na proa) poderá estar eventualmente esculpida com forma de cabeça humana (chamada carranca da bita), que segundo Andrès, em entrevista do dia 12 de novembro de 2007, trata-se de um símbolo de proteção para garantir maior segurança à embarcação. “Trata-se de uma crença muito restrita ao universo dos embarcadiços e da qual eles evitam falar como assunto que paira no plano das superstições” (MENDES, 2007, p.50). Além disso, é comum aparecerem símbolos como “a lua e estrela”, no talhamar (peça de madeira situada na proa da embarcação) ou no alto do mastro (ANDRÈS, p. 55). Em Raposa, pudemos observar que a carranca da bita não é recorrente, estando a bita sem carranca e sendo chamada de “castanha”, segundo Waldy Araújo. 50 Figura 3: Bote proa de risco Fonte: Andrés (1998, p.53) Figura 4: Botes-proa-de-risco em Raposa-MA Fonte: arquivo pessoal, em 30/11/2010 Biana: De pequeno porte, construção simplificada e origem cearense, que nas últimas décadas sofreu nítidas influências maranhenses, passando por um processo de adaptação construtiva que permite classificá-la como embarcação do Maranhão (ANDRÈS, 1998, p. 56). A biana possui leme (dispositivo situado na proa destinado a governar a embarcação) com grandes proporções e ferragens de diversas alturas para que possa ser levantadas quando a biana estiver em águas rasas. Existem ainda variações que 51 apresentam convés e casario, neste último utilizando motor e saída d‟água mais larga que a dos modelos à vela (ANDRÈS, 1998, p. 61). Figura 5: Biana Fonte: Andrés (1998, p. 57) Casquinho É utilizada na pesca de camarão e peixe e também no transporte de passageiros para outros barcos de maior porte e afastados do cais, podendo possuir toldo móvel confeccionado de arame e talas de madeira, cobertos de talhão ou lona. (ANDRÈS, 1998, p. 72). Figura 6: Casquinho Fonte: Andrès (1998 p.73) 52 Das embarcações que vimos em estaleiros, em processo de reforma ou construção, a grande maioria eram bianas, geralmente empregadas no transporte de passageiros, especialmente no turismo, comumente vistas em Raposa com convés e casario, movidas a motor a diesel. Também observamos grande quantidade de casquinhos, com uma variedade de tamanhos, a ocorrência de botes proa de risco se dá pela utilização dos mesmos na pesca local. Figura 7: Bianas e casquinhos em Raposa-MA. Fonte: arquivo pessoal, em 30/11/2010 3.1. Etnoconhecimento, etnomatemática Para traçarmos um caminho até ao conceito de etnoconhecimento, devemos relembrar “etnia”, que segundo Boudon, define-se, geralmente, como uma população designada por um nome (etnónimo), “que se reclama de uma mesma origem, que possui uma tradição cultural comum, especificado por uma consciência de pertença ao mesmo grupo cuja unidade se apoia em geral numa língua, num território e numa história idênticos”. Porém, segundo Sturtevant o prefixo “etno-” adquiriu, com a etnociência, um sentido diferente do que era anteriormente empregado pelos cientistas sociais, passando a referir-se ao “sistema de conhecimento e cognição característico de uma determinada cultura”, para ele, a “etnociência de uma sociedade” seria representada pelas “classificações „folk‟ características de uma sociedade (apud ALVES, 2008, p. 01). 53 A esta concepção de etnociência, relacionamos o etnoconhecimento, que neste trabalho é alimentado pela definição de conhecimento tradicional de Diegues e Arruda (2001), como o conjunto de saberes e práticas a respeito do mundo natural e sobrenatural transmitido oralmente, de geração em geração. Assim, levamos em conta que esse conhecimento tradicional está materializado no artesão tradicional, que, de acordo com Vives: É um ser criador, que no seu fazer revela habilidade, destreza, e elevada disciplina manual. Posto que intérprete de tradições herdadas, acrescentará, ainda assim, sinais de sua própria criatividade aos objetos produzidos, ajuntando seu eu-criador à grande cópia de informações recolhidas da tradição. Porque é um criador, será capaz de adaptar-se a novas realidades, e enquanto mantém técnicas e padrões adquiridos por herança, inovará, principalmente no que se refere a materiais. Escasseando aqueles antes abundantes no meio, utilizará outros, através dos quais veiculará as técnicas e manterá as tradições do fazer artesanal(1983.p. 140). Para relacionarmos o etnoconhecimento aos carpinteiros navais interlocutores da pesquisa, perguntamos a eles seus modos de aquisição e transmissão do conhecimento, bem como os locais onde aprenderam o ofício. Assim, trazemos alguns exemplos: Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: Quando o Sr. aprendeu, o Sr. aprendeu vendo, fazendo ou inventando sozinho? Davi: Eu aprendi vendo o mestre que me ensinava: “olha isso aqui é desse jeito”. A gente também não tem cabeça só pra piolho. A gente vai olhando e vai aprendendo. Pesquisadora: Então o Sr. aprendeu com? Davi: Chico, de Axixá/MA. Pesquisadora: Na sua família alguém faz isso? Davi: Não, ninguém nunca fez. Pesquisadora: O Sr. tem filhos? Ensinou pros seus filhos? Davi: Tenho. Pesquisadora: Não quiseram aprender? Mas o Sr. quis ensinar pra eles? Davi: Não quiseram aprender. Não, também não quis ensinar. Pesquisadora: Por que? Davi: Carpintaria mais é interesse. Tem gente que é curioso e acha bonito. Mas tem outros que não quer nem saber, a gente convida, mas só se o rapaz achar bonito mesmo o trabalho. 54 Pesquisadora: E quantas pessoas o Sr. já ensinou a reformar? O Sr. já ensinou a alguém o ofício? Davi: Não. Ninguém não. Ninguém quer aprender essa profissão. Roberto Alves (entrevista realizada em 03/01/2011) Pesquisadora: E o Sr. aprendeu a fazer isso lá (Axixá) ou aqui (Raposa)? Roberto: Aqui. Pesquisadora: Com quem? Roberto: Com meu pai mesmo. Pai de criação. Pesquisadora: O seu pai é carpinteiro naval? Roberto: Era. Pesquisadora: E o Sr. ensinou para mais alguém? Roberto: Não, não, a parte de carpintaria não. Eles são muito desinteressados. Os alunos que eu tenho são da parte de pintura e de eletricista, aí tem muitos. Agora a parte de carpintaria é difícil. Geralmente eles não se interessam em fazer as coisas. A gente vai mais é pela prática, né? Pelo interesse de quem aprende. Pior que eu nunca tive um professor para nenhuma das profissões. Aprendi mesmo por curiosidade em tudo. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Pesquisadora: O Sr. aprendeu com quem? Carlos: Aprendi tinha 14 anos com meu pai... Pesquisadora: O Sr. disse que aprendeu com o seu pai. Só som ele? Carlos: Só. Pesquisadora: Quando o Sr. aprendeu, o Sr. aprendeu vendo, fazendo ou algumas coisas, aprendeu sozinho? Carlos: Não, inventando não. Eu aprendi ajudando também, porque eu ajudava ele. Aí naquilo eu fui me empenhando também pra aprender. Eu vivia aí, eu ajudava ele, mas não era também só pra ajudar. Eu também tinha o desejo de aprender. Porque eu achava bonito depois que formava tudinho, eu achava bonito, depois de pintada, eu achava que eu nunca ia ter a capacidade de fazer tudo aquilo, por que eu achava muito difícil. A embarcação é a profissão mais difícil que tem de aprender. O pedreiro, de uma semana pra outra ele se forma em pedreiro. Mas, o carpinteiro, ele não é macho. Ele não aprende dentro de dois anos, de três anos, não. Carece de muito tempo e ele também tem que ter uma boa inteligência, uma boa cabeça porque cada uma pecinha que você 55 vai fazendo, ela tem um significado diferente, um detalhe diferente. Então, não é tudo a mesma coisa. Do jeito que você aprendeu uma, você não pode fazer todas. Não é? Pesquisadora: Aprendeu com quem? Carlos: Com os outros. Trabalhando também com terceiro por ai. Pesquisadora: Qual foi o local do aprendizado? Carlos: Eu sou desse povoadozinho de Travosa. Pesquisadora: A Sr. aprendeu lá ou aqui? Carlos: Aprendi lá, mas vim terminar o curso, bem dizer, aqui. Pesquisadora: E os seus filhos trabalham com o Sr? Carlos: Já trabalharam. Hoje não trabalham mais. Arrumaram outro serviço fora. Cristina (entrevista realizada em 02/01/2011) Pesquisadora: Como a Sra. aprendeu? Cristina: Só ajudando mesmo. Pesquisadora: Foi aqui mesmo? Cristina: Foi. Pesquisadora: A Sra. ajuda a ensinar alguém? Cristina: Queria que um filho meu aprendesse, mas ele não quis ir. Diego Vieira (entrevista realizada em 03/01/2011) Pesquisadora: Como você aprendeu? Diego: Inventando sozinho, fazendo, olhando. Pesquisadora: Com quem você aprendeu? Diego: Com meu pai e meus tios. Pesquisadora: Onde foi? Diego: Aqui em Raposa mesmo. Pesquisadora: Já ensinou pra alguém? Diego: Eu mais meu irmão às vezes inventamos, ele me ensina e eu ensino pra ele. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) Pesquisadora: E o Sr. aprendeu com? Anselmo: Com o meu pai. Pesquisadora: Que também é carpinteiro? 56 Anselmo: Ainda é. Tá velhinho, mas alguma coisa ele ainda faz ainda. Aprendi com ele e com seu Waldy ali. Seu Waldy me ensinou muita coisa, que ele é um bom profissional. Pesquisadora: Onde seu pai mora? Anselmo: Lá no Jacamim, é perto da estiva. Pesquisadora: Aí ele aprendeu com quem? Anselmo: Ele aprendeu com um Sr. lá em Rosário chamado, esqueci o nome do cidadão agora. Lá que ele aprendeu. Pesquisadora: Mas é da família? Anselmo: Não, não. Pesquisadora: Ai, o Sr. aprendeu vendo fazendo ou inventando sozinho? Anselmo: Não. Uma boa parte foi inventando sozinho mesmo. Uma boa parte. Porque nem tudo papai sabia naquele tempo que vivia no interior. Ele não trabalhava com embarcação de grande porte. Era mais embarcação pequena. Mas já foi assim um começo. Pesquisadora: Mas com ele o Sr. aprendeu foi fazendo e olhando? Ele mostrava e o Sr. fazia? Anselmo: É: “guenta aqui, segura aqui”. Quando a gente parte pra fazer, a gente já tinha uma ideia, uma noção das coisas. Pesquisadora: aprendeu a fazer lá e aqui também? Anselmo: Papai que aprendeu em Rosário, eu aprendi aqui em Raposa. Pesquisadora: E o Sr. ensinou pra um monte de gente. Mas e da sua família? Anselmo: Não, todos os meus irmãos aprenderam com papai. Ele fazia, nós ficávamos pertinho e fazendo. Pesquisadora: E o Sr. já ensinou pra alguém? Anselmo: Já. O menino que trabalhava aqui, já trabalha por conta própria já. Meus filhos, tudinho sabem fazer. Pesquisadora: O Sr. tem quantos filhos? Anselmo: Tenho dois filhos. E todos dois sabem fazer. Um trabalha no comércio, mas eles sabem fazer. E o outro (Diego Vieira) tá na minha canoa ali na passagem. Quando eu quero trabalhar, eu convido, ele vem. Em relação ao modo de obtenção e transmissão dos conhecimentos, percebemos que a grande maioria atribui a uma interação de parentesco ou de afinidades dentro da 57 comunidade, podendo relacioná-las a uma mesma origem ou tradição cultural comum, de história correlata. Apontando um sistema de conhecimento e cognição característico de uma determinada cultura. Neste sentido, pudemos perceber a importância da matemática na produção artesanal de embarcações. Assim, indagamos aos interlocutores a influência da matemática em seu trabalho. Temos em Rodrigues (2004) que a matemática representa mais do que um corpo de conhecimento elaborado e sistematizado pelo grupo profissional dos matemáticos. Que se pode encontrar uma matemática sistematizada de forma diferenciada, que possui uma forma própria de representação, dependendo da cultura na qual ela está inserida. De acordo com o autor, a etnomatemática pode ser entendida como um “programa” que dá atenção a resultados de um processo de organização intelectual, social e de difusão a partir das relações interculturais no decorrer da história das civilizações (RODRIGUES, 2004, p. 24). Em seus estudos sobre canoeiros no Paraná, Rodrigues averiguou que o canoeiro, para fazer a escolha da madeira, leva em consideração a melhor época para o corte, tais como as fases da lua, o tamanho da espessura do tronco da árvore; leva em consideração também o desperdício e a agressão ao meio ambiente, aproveitando primeiramente madeiras de árvores que tenham sofrido alguma agressão pela natureza. Para os canoeiros entrevistados, as épocas boas para o corte seguem as fases da lua, sendo a minguante a fase ideal para o corte da árvore, pois segundo os canoeiros existe a crença de que é nesta lua que a água que se encontra na copa e nos galhos da árvore descem para a raiz, o que reduz a quantidade de água na madeira, facilitando a secagem do tronco, evitando a deterioração da madeira (RODRIGUES, 2004, p. 37 e 38). Tendo uma abordagem das ciências exatas, a etnomatemática necessita aporte na etnografia, o que demanda maior interlocução das ciências. Em nossa pesquisa de campo pudemos observar na produção naval artesanal em Raposa-MA elementos passíveis de abordagem etnomatemática, a exemplo do retratado na dificuldade encontrada para a realização do levantamento das formas e dimensões das embarcações pela pesquisa de Andrès (1998, p. 114), “ressaltamos a resposta dada pelo mestre Pedro Alcântara a Luiz Phelipe Andrés ao expor sua inquietação pelo fato de a embarcação não possuir linhas retas que pudessem servir de base a seus desenhos.” Disse o mestre que “o barco é feito assim todo torto pra ficar direito na água”. 58 A matemática escolar oficial, porém, de acordo com nossas observações, tem importância considerável entre nossos entrevistados, desta forma: Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010) Pesquisadora: Mas, o Sr. aprendeu a matemática? Davi: Aprendi. Pesquisadora: O Sr. acha que sem a matemática dava pra ser carpinteiro? Davi: Não dava, porque a gente faz um orçamento, a gente dando o material, a ideia de quantos dias a gente vai gastar trabalhando. Ai, a gente tem que fazer o orçamento, a matemática pra fazer. Pesquisadora: Se o Sr. não soubesse a matemática, o Sr. ia ter dificuldade? Davi: No orçamento. Pesquisadora: Como o Sr. sabe já ajudou muito? Davi: Mesmo porque a gente já tem a prática. Só a embarcação que chega pra gente construir ela, a gente olha logo, vê o que dá pra fazer. Ai, a gente pede o dinheiro pro dono. Ai, ele reclama, ai, vai diminuindo até que a gente chega num acordo. Pesquisadora: Na construção mesmo, a matemática influi alguma coisa? Na métrica? Pra medir as partes? Davi: A gente mede a embarcação, mede a embarcação pra poder comprar o material. Pesquisadora: Então pra medir as partes da embarcação, o Sr. usa algum instrumento? Davi: Eu uso a régua e a escala. Pesquisadora: Se o Sr não soubesse usar a escala, o Sr. iria medir como? Davi: Aí não tinha como medir, né? Como é que a gente ia medir? Pesquisadora: Então um rapaz lá que ele não tem régua, essas coisas, ele consegue medir? Davi: Ai, ele não consegue medir. Ele já tem aquela prática de dizer quantas talas dá. Pesquisadora: Pelo número de talas. Mas assim, não existe um outro tipo de medida? Braçada? Davi: Palmo. Ele já tem a metragem, parece que com tantos palmo é um metro. Aí já dá. Roberto (entrevista realizada em 03/01/2011) Pesquisadora: Qual a escolaridade do Sr.? Roberto: Só tenho o segundo grau mesmo. Pesquisadora: E o uso da matemática no seu trabalho? Influi muito? 59 Roberto: Influi muito, principalmente a parte elétrica. Se você não souber somar, não tem rendimento de corrente. Pesquisadora: E em relação à medição? Escala de medidas? Roberto: Sei, entendi. Pesquisadora: Sem a matemática, o Sr. saberia se virar? Roberto: Sim, com certeza. Pesquisadora: E como o Sr. trabalharia? Roberto: Depende do decorrer do serviço né? Aí tem que ter a metragem correta, né? Pesquisadora: Aí, na metragem, o Sr. ia se basear com o quê? Roberto: Geralmente escala, né? Pesquisadora: Sem a matemática o Sr. ia fazer isso como? Roberto: Ia ter minha escala própria. Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010) Pesquisadora: Quanto a sua escolaridade, o Sr. estudou ou só foi mesmo estudar o oficio? Carlos: Não, eu estudei. Só que foi pouco, né? Eu fiz só o primeiro ano, como é que se diz? Porque na minha época a gente chamava de primeiro ano. Porque vem a cartilha do ABC, depois vem o primeiro ano... Só que ai, quando chegou no segundo ano, ainda não tava nem no meio do ano, eu fui expulso do colégio. Pesquisadora: Faz muitos anos? Carlos: Faz. Eu já tenho o quê? 49 anos, eu acho que eu tinha uns 12 anos. Aí já, depois que eu tô aqui, depois de casado, eu fiz um supletivo. Mas, também, eu não recebi o diploma, não fiz nada. Pesquisadora: Mas terminou? Carlos: Terminei. Eu fiz o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) também. Pesquisadora: E a matemática, o uso da matemática? Carlos: Só mesmo da cabeça. As poucas contas que eu sei fazer é só na cabeça, porque pra fazer assim no lápis eu não sei nada. Pesquisadora: Mas, pra medir as coisas, o Sr. mede com a régua? Carlos: Com a escala. Eu uso a escala, e uma ferramenta chamada compasso. É o que mais o carpinteiro usa. Pesquisadora: Escala e compasso. Mas não usa mais outras medidas? 60 Carlos: É. Braças e palmos, mas a gente não usa mais muito aqui não. Pesquisadora: Mas, o Sr. acha que ter estudado ajudou o Sr. em alguma coisa na carpintaria? Ter estudado matemática no colégio? Carlos: Se eu tivesse aprendido ela, talvez. Na hora de fazer o orçamento, eu peço pros meninos ou então pra minha esposa fazer. E isso me incomoda, sabe? Porque às vezes eu tô na rua e as pessoas me encontram por aí, eles pedem um negócio desse aí, eu tenho que pedir um tempo pra ele, vou em casa mandar fazer, aí, depois eu trago. Pesquisadora: É mais nessa parte do orçamento? Aqui na confecção não muda nada? Carlos: Não... Mais de quanto ele vai me dar, de quanto ainda tá faltando. O resto aqui é isso aí tudo, a confecção é na cabeça. Não carece de matemática. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) Pesquisadora: O Sr. cursou até que ano? Anselmo: Terceiro ano do ensino médio, comecei com 44 anos. Pesquisadora: Usou alguma coisa do colégio aqui na carpintaria? Anselmo: Essa parte da matemática. Pesquisadora: A matemática melhorou o trabalho? Anselmo: Melhorou. Pesquisadora: Me fale mais sobre essa matemática. No que é que a matemática lhe ajuda? Anselmo: Pra medir a largura, a profundidade e até mesmo pra afiar uma tábua. A gente usa números. Pra fiar a tábua. Pesquisadora: E como é isso? Anselmo: A gente coloca a régua na tabua, coloca o número com o compasso pra fazer ela. Em grande embarcação tem que ser passeado a tábua. É numerada. Caverna por caverna. 1,2,3,4, aí vai e coloca o ponto. 5,6,7 aí vai. Depois da tábua toda numerada, riscada, aí vai agora pro motor pra cortar, né? Fazer tudo numerada. Passeada. Chama passeada. Pesquisadora: Numera pra depois fazer, na sequência, o certo. Antes de o Sr. usar a matemática, como é que o Sr. fazia isso? Anselmo: Eu fazia assim mesmo, sem usar. Colocava uma linha e ia olhando, ia dando certo. Era mais assim. Tinha vez que a gente errava. Agora não, ficou mais fácil. Às vezes faz a embarcação na medida do palmo do cliente. 61 Deste modo, pudemos perceber na fala de Anselmo, que aprendeu matemática há poucos anos, que o “sistema” matemático que empregava com a linha era diferente do que emprega hoje com o auxílio de instrumentos numerados. Outro fato que chama atenção na fala de Anselmo é que, às vezes, mede a embarcação pelo palmo do cliente, ou seja, o cliente diz quantos palmos deseja e ele mede o tamanho do palmo do cliente e depois multiplica. Percebemos ainda que Roberto acredita que poderia fazer sua própria escala, sem a matemática escolar. Já Carlos atribui grande importância à matemática para o cálculo dos orçamentos, já para a confecção acredita ser prescindível. Davi, por seu turno, acredita que, sem números e instrumentos, não daria para medir, porém, que olhando daria para perceber o número de talas necessárias. Outros pontos de conhecimento em carpintaria naval artesanal maranhense foram observados na pesquisa coordenada por Andrès. Assim, a utilização dos materiais na produção, calafetagem e pintura das embarcações, a escolha da madeira a ser utilizada em cada circunstância, o conhecimento de onde encontrar a árvore mais retilínea, sabendo-se necessária a presença de várias árvores próximas umas das outras evitando o envergamento (SILVEIRA, 1998 p. 120), a substituição de pregos e parafusos por cavilhas de madeira com diferentes coeficientes de dilatação (ANDRÈS, 1998, p. 36), a retirada do oco da árvore com o uso de fogo e forquilhas naturais (ANDRÈS, 1998, p. 108), também demonstram a transformação da natureza pelo homem através de seu trabalho. A tendência à combinação de cores complementares sem o conhecimento acadêmico da física ótica (ANDRÈS, 1998, p 115); o “macete do calafate” para saber com segurança, pela intensidade do som, se a estopa atingiu o ponto exato de sua penetração, pois sabe que se passar deste ponto acarretará danos sérios ao tabuado (ANDRÈS, 1998, p. 117); a utilização da substância extraída da raspagem do pau de mangue para tingir as velas, bem como o uso de talos de bananeira para a fixação da cor (ANDRÈS, 1998, p. 34), são conhecimentos empíricos que revelam as particularidades do modo de construção utilizado na produção de uma embarcação pelos atores da carpintaria naval maranhense. Preocupação de Zequinha, que, perguntado sobre ao futuro da profissão (entrevista realizada em 17 de novembro de 2007), responde que “é difícil o pessoal querer aprender, eles querem estudo mais leve, da minha família só eu herdei o trabalho do meu pai” e complementa “acho meio ruim isso, porque o pessoal estuda, estuda, e 62 não inventa mais nada” (MENDES, 2007, p. 74). Em matéria publicada no dia 23 de julho de 2007 no portal da Univima na Internet, Andrès fala: Eles não têm estudo, mas são doutores, são os nossos professores, porque detêm a ciência do momento certo para o corte da madeira, por exemplo, sem afetar o meio-ambiente; sabem como construir algo simples e perfeito como a jangada; dominam o mar à noite, sem iluminação e segurança, tudo somente com o conhecimento que eles têm da natureza. Diante dos elementos acima expostos, convém apontar nesse sentido, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada na 33ª Conferência Geral da Unesco, em 20 de outubro de 2005, que reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais e da cultura para todos e em especial às pessoas pertencentes às minorias e aos povos autóctones (naturais de uma determinada região), cuja promoção deve ser feita de modo consciente e responsável, sob o princípio da dignidade e respeito a todas as culturas. Neste sentido, convém apontar que a Constituição Federal de 1988 prevê a instituição de bens de natureza material e imaterial que tenham referência à identidade, ação e memória dos grupos formadores da sociedade brasileira a partir dos modos de criar, fazer e viver, da seguinte maneira: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. § 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: I - despesas com pessoal e encargos sociais; II - serviço da dívida; III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. 63 A definição de patrimônio cultural imaterial está expressa no artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, oriunda da 32ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, realizada em 17 de outubro de 2003, com entrada em vigor em 20 de abril de 2006 e opera-se nas seguintes palavras: Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável. De acordo com a Convenção, este patrimônio (aqui entendido por conjunto de bens de valor cultural) se manifesta nos seguintes campos: tradições e expressões culturais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; expressões artísticas; práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e técnicas artesanais tradicionais. Este, por seu turno, não é um rol taxativo. Convém apontarmos que o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, de 2007, tem como linhas de ação: o incentivo a ações de reconhecimento e valorização de detentores de conhecimentos e formas de expressão tradicionais e apoio às condições sociais e materiais de continuidade destes conhecimentos; o apoio a ações que visem à organização comunitária e gerencial de produtores ou detentores de bens culturais; e o apoio a ações de melhoria das condições de produção e circulação de bens culturais imateriais, numa perspectiva de preservação de meio ambiente e de proteção de contextos culturais específicos. Assim, vinculamos os modos de fazer da carpintaria naval com o conceito ideal de bem cultural imaterial, apesar de que, para se configurar legitimamente como tal, seria necessário que passasse por processo de registro pelos órgãos oficiais competentes (MENDES, 2007), o que, até o presente momento, não aconteceu, carecendo disto, portanto, para que usufrua das linhas de ação vistas acima. 64 A nosso ver, essas questões ligadas ao modo de fazer e de viver, estão intimamente ligadas ao etnoconhecimento, e aqui, faz-se necessário lembrar a indagação de Arturo Escobar (2005, p. 138), qual seja: Podemos elevar os imaginários – incluindo modelos locais da natureza – à linguagem da teoria social, e projetar seu potencial a tipos novos de globalidade, de maneira que se erija como formas alternativas de organizar a vida social? Em resumo, em que medidas podemos reinventar tanto o pensamento como o mundo, de acordo com a lógica de culturas baseadas no lugar? É possível lançar uma defesa do lugar com o lugar como um ponto de construção da teoria e da ação política? Quem fala em nome do lugar? Quem o defende? É possível encontrar nas práticas baseadas no lugar uma crítica do poder e da hegemonia sem ignorar seu arraigamento nos circuitos do capital e da modernidade? Segundo Escobar (2005) a questão do “conhecimento local” e do conhecimento dos sistemas naturais, tem sido abordada nos últimos anos de várias óticas (cognitiva, epistemológica, etnobiológica e, de maneira mais geral, antropológica) e em conexão com uma variedade de temas, desde as taxonomias primitivas e a conservação da biodiversidade, até a política de territorialidade e dos movimentos sociais. Segundo o autor, há recontagens vez mais sofisticadas sobre as construções da natureza elaboradas pelas pessoas, o que talvez tenha oferecido a possibilidade do desfazimento da relação binária entre a natureza e a cultura que tem sido tão predominante e prejudicial para a antropologia ecológica e campos relacionados. Ingold (apud ESCOBAR 2005, p. 144), sustenta que “vivemos num mundo que não está separado de nós e nosso conhecimento do mundo pode ser descrito como um processo de adestramento no contexto do envolver-se com o meio ambiente”. E os seres humanos, estão arraigados na natureza imersos em atos e práticas, localizados. Para Escobar, os modelos locais são “experiências de vida”; “desenvolvem-se através do uso” na imbricação das práticas locais, com processos e compensações mais amplos. Para ele, o lugar, como a cultura local, pode ser considerado „o outro‟ da globalização, de maneira que uma discussão do lugar deveria oferecer uma perspectiva importante para repensar a globalização e a questão das alternativas ao capitalismo e à modernidade. Assim “as economias das comunidades baseiam-se no lugar (mesmo que não amarrados-ao-lugar, porque, participam de mercados translocais) frequentemente mantêm o espaço comum que consiste em terra, recursos materiais, conhecimento, ancestrais, espíritos, e etc.” (idem, p. 157). 65 De acordo com Escobar, os lugares e as localidades entram na política da mercantilização de bens e a massificação cultural, mas “o conhecimento do lugar e da identidade podem contribuir para produzir diferentes significados – de economia, natureza e deles mesmos – dentro das condições do capitalismo e da modernidade que o rodeia” (ESCOBAR, 2005, p. 161). Para ele, as esferas ecológicas públicas alternativas podem abrir-se desta maneira contra as ecologias imperialistas da natureza e da identidade na modernidade capitalista. É nessa intercessão dos modelos da natureza “baseados-no-lugar” e na economia, por um lado, na teorização de racionalidades produtivas, por outro, que, segundo ele, “poderemos encontrar um contexto de referências mais amplo no qual situar os debates sobre a sustentabilidade cultural e ecológica.” (ESCOBAR, 2005, p. 161). Diante dessa lógica, procuramos observar entre os interlocutores suas relações com o lugar, qual o papel do lugar na provisão dos meios de trabalho da carpintaria naval, de que maneira a natureza está arraigada em suas práticas, já que seus meios de produção provém necessariamente da natureza e suas práticas de sua racionalidade produtiva. Assim, apresentada sobre o enfoque do etnoconhecimento, no sentido de conhecimento associado a populações tradicionais, podemos observar modelos de natureza a partir das relações dos carpinteiros com os recursos disponíveis em sua região, e através dos usos sociais que fazem dos recursos naturais em suas atividades. 3.2. Discussão a partir da categoria população tradicional Seguindo a linha de raciocínio de Diegues e Arruda, Utilizamos neste estudo a noção de “sociedades tradicionais” para definir grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a seguimentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 27). Little faz uma exegese da categoria população tradicional a partir da análise de alguns fatores como a territorialidade que, para ele, seria “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de 66 seu ambiente biofísico (...)” (LITTLE, 2002, p. 04). E afirma que a territorialidade humana teria uma multiplicidade de expressões, o que produziria um leque muito amplo de tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais, de modo que se faz necessário entender as formas específicas dessa diversidade para se entender a relação particular que um grupo social mantém com seu respectivo território. No caso dos carpinteiros navais, observaremos no decorrer do trabalho que a particularidade dos mesmos frente à territorialidade decorre do fato de os trabalhadores recorrerem há anos a recursos naturais constantes no município de Raposa em áreas próximas a ele, territórios que, conforme veremos, são parte integrante de área legalmente protegida do ponto de vista ambiental. Little inclui em sua discussão sobre populações tradicionais a noção de cosmografia cujo significado é “definido como os saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território” (LITTLE, 2002, p. 05). Esta cosmografia de determinado grupo deve incluir, segundo o autor, “seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele” (LITTLE, 2002, p. 05). Little procura desvincular a territorialidade de uma necessária etnicidade ou raça, que, segundo ele, tenderiam a ser avaliadas em termos de pureza, mas insiste em uma relação com um espaço físico determinado. Entretanto, o autor não exclui a possibilidade de que a categoria de identidade possa ser ampliada, “à medida que a identidade de um grupo passa, entre outras coisas, pela relação com os territórios construídos com base nas suas respectivas cosmografias” (LITTLE, 2002, p. 11). Quanto à relação destes povos com uma forma de desenvolvimento dita sustentável, expõe analisando situações no Brasil: Na busca por uma alternativa viável de desenvolvimento sustentável, os povos tradicionais foram considerados pelos ambientalistas como parceiros com muitas afinidades, devido a suas práticas históricas de adaptação. Ou seja, a dimensão ambientalista dos territórios sociais se expressa na sustentabilidade ecológica dão por parte desses povos durante longos períodos de tempo, baseada nas formas de exploração pouco depredadoras de seus respectivos ecossistemas. A profundidade histórica dessa sustentabilidade é complementada por sua abrangência geográfica, encontrável nos mais diversos ecossistemas do país (LITTLE, 2002, p. 18). O enfoque do autor na dimensão fundiária evoca sua “razão histórica”, que seria pautada em três elementos − regime de propriedade comum, sentido de pertencimento a 67 um lugar específico e profundidade histórica da ocupação guardada na memória coletiva – ressaltando que as semelhanças nesse plano não obrigam, na visão de Little, que nos outros planos da prática sociocultural − religioso, identitário, cosmológico, linguístico, etc. – existam semelhanças. Já que “A demonstração de semelhanças num plano da vida social não tem que valer para outros e, de fato, raras vezes acontece, dada a complexidade sociocultural do mundo contemporâneo.” (LITTLE, 2002, p. 23). Aponta os usos políticos e sociais do conceito de povos tradicionais, que seria evocado tanto por grupos sociais que defendem seus respectivos territórios frente à usurpação por parte do Estado-nação, quanto pelos preservacionistas em lidar com todos os grupos sociais residentes ou usuários das unidades de conservação de proteção integral, entendidos como obstáculos para a implementação plena das metas dessas unidades. Já no contexto socioambientalista, o conceito é evocado, segundo o autor, no sentido de que distintos grupos que historicamente mostraram ter formas sustentáveis de exploração dos recursos naturais gerando formas de cogestão de território. (LITTLE, 2002) Mais adiante entenderemos a importância desta referência feita por Little aos grupos sociais residentes ou usuários de unidades de conservação. No site do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), http://www.ibama.gov.br/resex/pop.htm, há o reconhecimento de que existem populações capazes de utilizar e ao mesmo tempo conservar recursos ambientais, configuradas no texto como "Populações Tradicionais”. Este texto elenca possíveis características de “culturas tradicionais”, dentre elas: Dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir do qual se constrói um "modo de vida"; Conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral; Noção de território ou espaço onde o grupo se reproduz econômica e socialmente; Importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica numa relação com o mercado; Reduzida acumulação de capital; Importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou de compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; Importância de mito e rituais associados à caça, à pesca e a atividades extrativistas; A tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o trabalho artesanal. Nele, o produtor e sua família, dominam o processo de trabalho até o produto final; 68 Fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos centros urbanos; O Decreto nº 6.040/07 (que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais) e a Instrução Normativa nº 01 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBIO (autarquia federal responsável pela gestão e criação das Unidades de Conservação Federais) definem população tradicional como: grupos diferenciados e que se reconhecem como tais; que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. O decreto define ainda Desenvolvimento Sustentável como o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração garantido às mesmas possibilidades para as gerações futuras. Dentre as categorias oficiais acima dispostas, destacamos no que tange à carpintaria naval os fatores utilização de conhecimentos e práticas transmitidos pela tradição, tecnologia utilizada relativamente simples, uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o trabalho artesanal, restando ainda discutirmos o impacto limitado sobre o meio ambiente. Para melhor entendermos o contexto da carpintaria naval artesanal a que nos referimos, faz-se necessária a apresentação do território escolhido para a pesquisa. Sabemos que o sentido de território é mais amplo que a delimitação política de Município, mas, a título de delimitação para a pesquisa, escolhemos acompanhar as dinâmicas que ocorrem na unidade política municipal como foco da nossa pesquisa. 4. O MUNICÍPIO DE RAPOSA NO CONTEXTO DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL 4.1. Apresentando o Município Segundo Silva (2009), após a chegada dos jesuítas na ilha de Upaon-Açu1, foi descoberta uma praia no extremo norte da ilha. O nome Raposa surge da percepção dos 1 Um dos nomes da ilha. Oficialmente é chamada de Ilha do Maranhão, onde estão localizados os quatro municípios: São Luís, Raposa, Paço do Lumiar e São José de Ribamar. 69 pescadores da grande quantidade de raposas na região, que se aproveitavam do pescado que os pescadores deixavam para salgar no sol (MARANHÃO apud SILVA, 2009). De acordo com o portal de turismo do Maranhão na internet (http://www.turismo.ma.gov.br/pt/polos/sao_luis/raposa.htm), o município de Raposa fica a 28 quilômetros do centro de São Luís – MA, e abriga a maior colônia de pesca do Estado. Segundo Silva, Raposa surge como povoado a partir dos anos 1950 e começou a se desenvolver com a chegada de pescadores e rendeiras cearenses oriundos do município de Acaraú – CE (2009). No Corredor da Rendeira (avenida principal da cidade) há intenso comércio de toalhas de mesa, panos de prato, passadeiras, saídas de praia, chapéus, cortinas, além de uma série de outros artefatos confeccionados em renda. O município tem como referência seu píer de atracação onde ficam barcos de pesca, e, do outro lado do píer, a Praia de Carimã, com dunas e lagoas, de extensão aproximada de 15 km. O município de Raposa limita-se ao Norte com o Oceano Atlântico; a Leste, a Oeste e ao Sul com o município de Paço do Lumiar. Até o ano de 1994, Raposa recebeu a categoria de município e distrito com a denominação de Raposa, pela lei estadual nº 6132, de 10-11-1994, desmembrando-se do município de Paço do Lumiar. N Na divisão regional do Maranhão, o município se situa na Microrregião da Aglomeração Urbana de São Luís e na Mesorregião do Norte do Estado. Tem como principal via de acesso a Rodovia MA-203 (IBGE, 2010). Raposa pertence à região metropolitana de São Luís e o município localiza-se na parte nordeste da ilha do Maranhão, tendo como coordenadas geográficas 02º 21‟ a 02º30‟ de latitude sul e 43º58‟ a 44º11‟ de longitude oeste aproximadamente, com altitude média de 3m. A área foi estimada em 64,18 km², com população de 25.837 habitantes e o bioma apresentado nos dados oficiais é: Amazônia. Segundo o IBGE (2010), a população absoluta do município, em 2010 totalizou 26.280 habitantes distribuídos em uma área de 64 km². O PIB, em 2005, chegou a R$ 55.787.000,00 (cinqüenta e cinco milhões, setecentos e oitenta e sete mil reais). O município de Raposa possui uma das maiores colônias de pescadores do Estado do Maranhão, atingindo a renda anual de 7,1 milhões de reais e correspondendo a quase 10% do faturamento total do estado nesse ramo da economia (CEPENE, 2006). 70 Figura 8: Município de Raposa-MA Fonte: IBGE, 2010 Figura 9: Localização do Município de Raposa – MA Fonte: SILVA, 2009 Segundo Silva (2009), as duas principais espécies vegetais encontradas em Raposa são o mangue, presentes nas áreas constituídas por gleissolos sálicos e a vegetação de restinga, presentes nas áreas formadas por areias quartzíticas marinhas e dunas. Manguezais são ecossistemas costeiros, estaurinos, sujeitos a inundação periódica pela ação das marés e também pela influência das águas doces. A composição florística dos manguezais brasileiros é constituída por três gêneros: Rhizophora, 71 Avicennia e Laguncularia e quatro espécies Rhizophora mangle (mangue vermelho, mangue verdadeiro) , Avicennia schaueriana, Avicenia germinnans (mangue preto, siriúba, mangue cortume), Laguncularia racemosa (mangue branco, mangue rasteiro). O ecossistema manguezal é maioria vegetal no espaço pesquisado. Os principais tipos de mangue encontrados são: Rhizophora mangle, Avicenia germinnans, Cornucapus erectus e Laguncularia racemosa. Tais espécies vegetais possuem adaptações como: habilidade de extrair água doce do mar, órgãos especiais para a excreção de sal, caules modificados para sustentação que permitem a respiração da planta; raízes escoras e adventícias que permitem a sustentação do vegetal em substratos moles, e sementes (propágulos) que flutuam na água salgada. Esses sistemas servem também de refúgio natural para várias espécies de animais marinhos que, em fase jovem e em época de reprodução, aumentam sua sobrevivência graças ao sistema radicular da vegetação, que fornece proteção contra a ação de predadores e alimento rico em proteínas (SILVA, 2009). Entre os dados do IBGE (2007) sobre produção de madeira em tora e em lenha, aparecem para o município de Raposa-MA como zero o valor da produção em tora e zero a quantidade de lenha produzida. A Raposa divide-se em duas áreas de concentração populacional, a Vila Bom Viver e o Centro. Segundo o IBGE, em 2004, o analfabetismo foi de 23,1% enquanto o analfabetismo funcional chegou a 40% (IBGE, 2008). Não há registro de uma pessoa com ensino superior (SILVA, 2009). Silva (2009) aponta que com baixos salários e baixo poder aquisitivo, a realidade financeira das famílias residentes na Raposa, não é diferente do resto dos municípios do Maranhão. A baixa renda é compatível com a baixa escolaridade e com as ocupações. O vínculo da maioria dos carpinteiros navais com o município não é, como vimos na apresentação dos interlocutores, de naturalidade. A maioria chegou para trabalhar no local na adolescência ou juventude e lá se estabeleceu. Sobre a influência do Ceará para a carpintaria da região, temos na fala de Davi Martins (entrevistado dia 29/12/2010) o que segue: Pesquisadora: Dizem que aqui era colônia de pescadores do Ceará? O Sr. sabe alguma coisa sobre essa história? Davi: Eu tô sabendo agora que você tá contando. E as colônias aqui da Raposa, eu acho que não passa a ser de gente do Ceará não. Essa historia é só porque tinha muito jagunço lá. 72 Pesquisadora: Mas na construção naval tem algum cearense? Davi: Não. Que eu saiba não. Pesquisadora: E os barcos da Raposa, tem alguma coisa de cearense neles? Davi: Tem mesmo não. Tudo maranhense mesmo. Feito tudo do jeito dos carpinteiros de Raposa mesmo. Tão importante quanto descrever o vínculo com o município em que habitam e trabalham os carpinteiros navais de Raposa, é descrever a relação de suas práticas com as normas legais vigentes. Deste modo, passamos a apresentar a legislação ambiental a que estão submetidos e sua relação com a mesma. 4.2. Legislação ambiental relacionada A noção de justiça ambiental deve, em tese, guiar a elaboração das leis ambientais de um Estado. Conforme Castells (1999, p. 166) justiça ambiental é noção que “reafirma o valor da vida em todas as suas manifestações, contra os interesses de riqueza, poder e tecnologia” e esta noção “vem conquistando gradativamente as mentes e as políticas, à medida que o movimento ambientalista ingressa em um novo estágio de desenvolvimento”. E, segundo Lenir Moraes Muniz (2009, p. 186-187): (...) nos últimos anos o campo de discussão da ecologia política tem sido revigorado pela discussão sobre a justiça ambiental, para qual serve como base teórica ao analisar os conflitos distributivos a partir das desigualdades decorrentes de processos econômicos e sociais, que acabam por concentrar as principais cargas de poluição e demais efeitos deletérios do desenvolvimento sobre as populações mais pobres, discriminadas e socialmente excluídas. Continua a autora argumentando que existem populações tradicionais de extrativistas e pequenos produtores “perdendo o acesso à terra, às matas e aos rios dos quais depende sua sobrevivência, ou são forçadas a conviver com a degradação ambiental e social produzida por estes empreendimentos” (MUNIZ, 2009, p. 187-188). Essa situação, de acordo com a autora, reflete o processo de concentração de poder na apropriação e nos recursos ambientais. E a América Latina, de acordo com Souza Filho (2003, p. 93), vive uma fase de novos direitos que “têm como principal característica o fato de sua titularidade não ser individualizada”. Segundo o autor, direitos coletivos não nascem de uma relação jurídica determinada, mas de uma realidade, como pertencer a um povo ou formar um grupo que necessita ou deseja ar puro, água, floresta e marcos culturais preservados, ou garantias para viver em sociedade, como trabalho, moradia e certeza de qualidade dos bens adquiridos. O autor lembra que estes direitos não são exclusivos dos povos 73 indígenas. Assim “as constituições da Colômbia e do Brasil abrem brechas para a constituição de direitos das comunidades negras tradicionais e de todos os que reconhecem direitos coletivos admitem genericamente que outras comunidades podem reivindicá-los” (SOUZA FILHO, 2003, p. 94). Quanto à aplicação destes direitos e suas dificuldades, entendemos que, ao falar em “atuação dos povos indígenas”, pode-se estender a noção a comunidades locais ou tradicionais. Assim: O Poder Judiciário tem tido papel preponderante na aplicação desses novos direitos, mas mantido uma posição conservadora na maioria das vezes. As ferramentas jurídicas estão razoavelmente construídas na América Latina e acrescidas de instrumentos que servem a outros direitos coletivos reconhecidos genericamente à população, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, consumidores e patrimônio cultural. Em geral tem sido necessário apelar à justiça para obtê-los (...). Isto limita a atuação dos povos indígenas, que precisam criar organizações segundo os parâmetros ocidentais – não tradicionais – para conseguir o reconhecimento de seus direitos mesmo na Amazônia (SOUZA FILHO, 2003. p. 96). O autor reflete a questão da verdadeira “função social da terra”, visto que as elites identificam a função social como produtividade capitalista, quer dizer, considerar que cumpria a função social toda a terra que oferecesse renda pela produção. A função social propriamente dita seria, então, o seu papel integrador de culturas e protetor de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantias da vida no planeta. Por isso, argumenta o autor que “apesar das mudanças legais introduzidas pelas constituições, ainda é muito difícil que os juízes interpretem as leis contra interesse da propriedade privada” (SOUZA FILHO, 2003, p. 96). Assim, em relação aos direitos coletivos antes da Constituição de 1988, entendese que os mesmos eram pedidos utópicos que entraram no direito e podem ser reivindicados como concretização jurídica e devem ser reconhecidos pela Administração Pública, mas que, quando não o são, podem ser garantidos em decisões judiciais (SOUZA FILHO, 1993). Segundo Eliane Moreira, Na luta pela afirmação do meio ambiente como direito humano existem avanços e recuos, porém, os sistemas internacionais de direitos humanos tem se mostrado terreno fértil para a efetivação do direito ao meio ambiente, e por isto mesmo, pode ser visto como uma forma de fortalecer a defesa deste direito (MOREIRA, mimio, p. 25) Neste sentido, interessa à América Latina, o Sistema Americano de Direitos Humanos, que entrou em vigor em 1978. A Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) é instituição judicial autônoma que objetiva a aplicação e 74 interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (vale lembrar que o Brasil se submete a este sistema). Com função jurisdicional e consultiva, analisa casos apresentados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que recebe as petições ou comunicações referentes à violação de direitos humanos, realiza uma análise prévia e decide pela submissão ou não à Corte). Em 2007, a Corte apreciou o caso do Povo Saramaka (comunidade tribal não indígena) contra o Suriname que aprecia direitos territoriais sob a alegação de que o Estado deixou de adotar medidas efetivas para reconhecer o direito do povo ao uso e gozo do território tradicionalmente ocupado, além de negar o acesso à justiça, sendo negado o reconhecimento de sua personalidade jurídica, bem como, impactos ambientais ocasionados pela construção de uma hidroelétrica na década de 1970 que teria inundado seus territórios tradicionais. Dentre outras coisas, a Corte determinou que: (...) o Estado delimitasse, demarcasse e outorgasse o título coletivo das terras, ressaltando a obrigação de que neste processo fossem realizadas consultas prévias efetivas e plenamente informadas; que se abstivesse de atos que pudessem afetar a existência, valor, uso ou gozo do território; que deveria sempre obter o consentimento prévio, livre e informado deste povo; que fossem revistas as concessões já outorgadas dentro das terras indígenas Saramaka com a finalidade de verificar a necessidade de modificação dos direitos dos concessionários, à luz da decisão e da jurisprudência da Corte; que fosse reconhecida a capacidade jurídica coletiva a fim de garantir o gozo de seus direitos, inclusive o acesso à justiça; que fossem eliminadas as disposições legais que constituíssem óbice à proteção do direito de propriedade dos membros deste povo e adoção uma legislação interna, precedida de consultas prévias, efetivas e informadas com o objetivo de efetivar seus direitos sobre as terras e os recursos naturais, bem como uma revisão legislativa que garantisse os direitos destes povos serem consultados de acordo com seus costumes e tradições sobre o direito de outorgar ou não consentimento para a implantação de projetos ou atividades que possam afetar seu território e compartilhas dos benefícios derivados por estes projetos. (...) (MOREIRA, mimio, p. 17) Este tipo de decisão reforça a efetivação de direitos humanos relacionados ao meio ambiente, visto ser um mecanismo de defesa de populações locais em relação a seus respectivos Estados quando os mesmos descumprem o que acima foi chamado de “função social da propriedade”. Segundo Bursztyn (2004), o governo brasileiro vem, há algumas décadas, sofrendo pressões de ONG ambientalistas, nacionais e internacionais, e de instituições financiadoras do desenvolvimento para a adoção de estratégias e ações de proteção ambiental pra Região Amazônica. Lembra que a questão ambiental no Brasil passou a ocupar espaço nos debates nacionais e a constar da agenda governamental após a 75 realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano em 1972. E que no ano seguinte de sua realização, o governo criou a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema), vinculada ao Ministério do Interior, com a finalidade de controlar as atividades produtivas mais poluentes e modificadoras do meio ambiente. Continua a contextualização dizendo que, de início, a atuação de controle ambiental da Sema concentrava-se basicamente nos estados das Regiões Sul e Sudeste do país, que enfrentavam sérios problemas de poluição. Essa atuação foi ampliada, no fim dos anos 1980, com a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a partir da fusão da SEMA (órgão de controle ambiental) com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IDBF), a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e a Superintendência da Borracha (Sudhevea) – órgãos setoriais responsáveis pelo uso e pela conservação dos recursos naturais renováveis, floresta, pesca e borracha (BURSZTYN, 2004, p. 265). Considerando o acima exposto, podemos visualizar que as concepções de justiça ambiental levam em consideração a manutenção da vida no sentido ecológico e social. Vale lembrar o condão que seguiu a legislação brasileira neste sentido. Assim, é competência comum de todos os entes federativos “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23 da Constituição Federal de 1988). Temos o disposto no artigo 225, § 1º, inc. III, da CF, que assegura a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. Ainda no artigo 225, temos que para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (inc. I), e que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. (§3º). O artigo prescreve ainda que a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais (§4º). 76 Visto isso, é nossa intenção abordar a legislação a qual está submetido o município de Raposa – MA, somente no que diz respeito aos elementos de interesse para nossa pesquisa. Vale lembrar que para a escolha da legislação pertinente, entrevistamos uma bióloga analista ambiental da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, Maria Luiza Costa. Para tanto, indagamos qual a legislação referente às seguintes espécies vegetais: Pequi – Caryocar brasiliensis; Tatajuba – Bagassa guianensis; Angelim – Dinizia excelsa; Louro rosa - Octoea rubra; Jaca – Artocarpus heterophyllus; Mangue vermelho – Rhyzophora mangle; e Mangue branco – Aviccenia sp. Essas espécies foram selecionadas por serem espécies correntemente referenciadas pelos carpinteiros entrevistados. Desta forma, a analista discorreu sobre as espécies, relacionando cada uma à sua respectiva legislação correspondente e esclarecendo quais delas seriam imunes ao corte e as consequências para os agentes que as utilizam, inclusive para subsistência. Indaguei ainda sobre a necessidade de licença para a instalação de estaleiros artesanais, a analista respondeu que de forma genérica há previsão para construções que deixem vestígios de óleos, substâncias tóxicas e madeira no ambiente, e que a configuração de poluição neste sentido seria acentuada se a construção se procedesse em regiões com acesso direto a águas de rios, mares, mangues, açudes, etc. Assim, a nível federal, temos a Lei 4.771 de 1965, o Código Florestal, a lei 9.605 de 1998, Lei de Crimes Ambientais, e o Decreto 6514 de 2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente. E o Decreto n º 1.282 de 1994, que trata da exploração das florestas primitivas e demais formas de vegetação arbórea da Amazônia. Comecemos por este último, que, em seu artigo primeiro diz que, considera-se bacia amazônica a área abrangida pelos Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia e Mato Grosso, além das regiões situadas ao Norte do paralelo de 13º S, nos Estados de Tocantins e Goiás, e a Oeste do meridiano de 44º W, no Estado do Maranhão (§1). Assim, podemos perceber que a Raposa está localizada entre 43º58‟ a 44º11‟ logo, grande parte de seu território é legalmente Amazônia. Visto isso, o artigo 15 do decreto, diz que a exploração das florestas primitivas da bacia amazônica (e aqui podemos relacionar a maioria das espécies indagadas à analista da SEMA) de que trata o art. 15 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal), e demais formas de vegetação arbórea natural, somente será permitida sob a forma de manejo 77 florestal sustentável, segundo os princípios gerais e fundamentos técnicos estabelecidos no decreto. O artigo conceitua manejo florestal sustentável a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos e sociais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo (§2º). Outro ponto que se relaciona com o município da Raposa, pela presença da vegetação de mangue, é o previsto na Lei 4.771/1965, que em seu artigo 2° diz: consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues (alínea f); Importante notar a previsão de que o órgão ambiental competente poderá autorizar a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de preservação permanente (art. 2º, § 3o ). E que tal supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto (§4º), e que a supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, ou de dunas e mangues, somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública (§5º). Assim, segundo esta lei, em seu artigo 26, constituem contravenções penais, puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a cem vezes o salário-mínimo mensal, do lugar e da data da infração ou ambas as penas cumulativamente, dentre outras coisas, cortar árvores em florestas de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente (alínea b), receber madeira, lenha, carvão e outros produtos procedentes de florestas, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto, até final beneficiamento (alínea h), e transportar ou guardar madeiras, lenha, carvão e outros produtos procedentes de florestas, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente. Por sua vez, a supracitada lei 9.605 de 1998, a respeito dos crimes contra a flora, dispõe que cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente (no caso estudado, o mangue), sem permissão da autoridade competente acarreta pena de detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente (art. 39) esta multa varia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), 78 por hectare ou fração, de acordo com artigo 46 do decreto 6.514 de 2008. E que causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação independentemente de sua localização acarreta pena de reclusão, de um a cinco anos (art.40). Considera ainda que destruir ou danificar florestas nativas ou plantadas ou vegetação fixadora de dunas, protetora de mangues, objeto de especial preservação com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa (art. 50). Ainda nesta lei temos que desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente acarreta pena de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa. Não sendo crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família. (§ 1º) – aqui, a lei não especifica o que é considerado subsistência imediata, mas vale lembrar que se tratam de terras de domínio público ou devolutas. E por fim, lembramos o artigo 51, ao dispor que comercializar motosserra ou utilizá-la em florestas e nas demais formas de vegetação, sem licença ou registro da autoridade competente acarreta pena de detenção, de três meses a um ano, e multa - de R$ 1.000,00 (mil reais), por unidade de acordo com o artigo 57 do decreto 6.517 de 2008. O Decreto nº 6.517 de 2008, apregoa que receber ou adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira serrada ou em tora, lenha, carvão ou outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento enseja multa de R$ 300,00 (trezentos reais) por unidade e que incorre nas mesmas multas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou guarda madeira, lenha, carvão ou outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente ou em desacordo com a obtida (art. 47). Ou seja, não se pode adquirir produtos sem licença do vendedor, nem transportar sem licença de autoridade competente, e isso vale para qualquer tipo de madeira. O mesmo decreto, ao tratar das infrações relativas à poluição e outras infrações ambientais diz que causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da biodiversidade enseja multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais) e que estas multas e demais penalidades serão aplicadas após laudo técnico elaborado pelo órgão ambiental 79 competente, identificando a dimensão do dano decorrente da infração e em conformidade com a gradação do impacto (art. 61). O artigo 62 dispõe que incorre nas mesmas multas do art. 61 quem lançar resíduos sólidos, líquidos ou gasosos ou detritos, óleos ou substâncias oleosas em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou atos normativos (inciso V) e deixar, aquele que tem obrigação, de dar destinação ambientalmente adequada a produtos, subprodutos, embalagens, resíduos ou substâncias quando assim determinar a lei ou ato normativo (inciso VI) – entre os resíduos podemos elencar os compostos por substâncias como colas, tintas, raspas de madeira, estopas de nylon. Por fim, no artigo 66, temos que construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em desacordo com a licença obtida ou contrariando as normas legais e regulamentos pertinentes enseja multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). E que incorre nas mesmas multas quem constrói, reforma, amplia, instala ou faz funcionar estabelecimento, obra ou serviço sujeito a licenciamento ambiental localizado em unidade de conservação ou em sua zona de amortecimento, sem anuência do respectivo órgão gestor (inciso I), e aqui podemos relacionar os estaleiros. Quanto ao pequi (Caryocar brasiliense), existe a Portaria 113 de 1995 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que em seu artigo 16 dispõe que é proibido o corte e a comercialização do Pequizeiro (Caryocar spp) e demais espécies protegidas por normas específicas, nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. Finalmente, a Constituição Estadual do Maranhão em seu artigo 240, dispõe que a atividade econômica e social conciliar-se-á com a proteção ao meio ambiente e que a utilização dos recursos naturais será feita de forma racional para preservar as espécies nos seus caracteres biológicos, na sua ecologia, harmonia e funcionalidade dos ecossistemas, para evitar danos à saúde, à segurança e ao bem estar das populações. Assim, perguntamos à analista Maria Luiza Costa se haveria alguma medida que autorizasse o uso de madeira para populações tradicionais do município de Raposa MA. Obtivemos como resposta que autorizações neste sentido devem ser públicas, atos oficiais das instituições responsáveis, pressupondo a existência de planos de manejo e estudos prévios. 80 4.3. Paradigmas e representações de natureza Segundo os autores Lenir Muniz e Horácio Sant‟Ana Júnior (2006, p. 255-256), se pode constatar uma crise ambiental percebida desde a década de 1960, marcada pela percepção dos efeitos nefastos causados pela disseminação da revolução industrial e consequente difusão de práticas relacionadas à indústria. Esta crise, segundo os autores, “tem provocado crescentes demandas por uma nova lógica de civilização, baseada em novos valores, novos modelos societários, novos padrões de acumulação, a partir dessas formas de relacionamento com a natureza e seus recursos” (MUNIZ e SANT‟ANA JÚNIOR 2009, p. 255-256). Sendo assim, os problemas ambientais ultrapassam as fronteiras nacionais, tendo consequências globais e os atores envolvidos transcendem uma única região ou país (MUNIZ e SANT‟ANA JÚNIOR 2009). Neste contexto mundial, devemos destacar a Amazônia Brasileira, que: Se constituiu num gigantesco mosaico, historicamente configurado em permanente configuração, composto em uma grande diversidade de ecossistemas e de distintas situações sociais, econômicas, culturais, políticas, ecológicas. A incorporação da Amazônia ao território brasileiro, desde o período colonial, ocorreu em consonância com os interesses dos centros mais dinâmicos da economia mundial moderna, de maneira gradativa e irregular, baseada na extração de produtos naturais, de origem animal, vegetal ou mineral, segundo os interesses, necessidades e possibilidades de extração por parte dos grandes centros econômicos (SANT‟ANA JÚNIOR,2004, p. 56) A Região Amazônica se refere aos nove estados que compõem a Amazônia Legal (AC, AP, AM, MA, MT, PA, RO, RR). E falar em Região Amazônica não comporta as especificidades das “regiões” que a compõem, assim, “os modos de exploração das florestas, os sistemas de produção agrícola, as cadeias, as formas de uso da terra variam de um desses novos contextos regionais para outro” (SAYAGO et.al., p. 22). Aqui cabe tomar a concepção de Carlos Walter Porto Gonçalves (2002), de que toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada ideia do que seja a natureza. Para ele, o conceito de natureza não é natural, sendo criado e instituído pelos homens. Assim “constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura” (GONÇALVES, 2002, p. 23). 81 Analisando esta questão, conclui que não é de estranhar que o ecológico fique subordinado ao econômico numa sociedade na qual a generalização das relações mercantis é a tônica. A começar pela separação do trabalhador das condições naturais de produção (GONÇALVES, 2002, p. 113). Visto isso, questionamos a posição do grupo a ser pesquisado quanto a estas condições de produção. Em artigo proposto para responder em que condições podem surgir e consolidarem-se organizações econômicas populares não capitalistas que sejam viáveis num mercado globalizado, intitulado “A natureza do lugar e o lugar da natureza”, Escobar (2005, p. 71 e 72) defende a seguinte proposição: Na busca de alternativas à produção capitalista, a contribuição de culturas minoritárias ou híbridas, marginalizadas pela hegemonia do capitalismo, e da ciência moderna é fundamental. Como sustentaram convincentemente vários dos defensores de alternativas ao desenvolvimento, cujos trabalhos comentamos antes, existem formas de encarar/ver o mundo que estabelecem uma relação radicalmente diferente da capitalista/moderna entre seres humanos e natureza, entre produção e consumo, entre trabalho e tempo livre, entre o uso e o lucro e entre o desenvolvimento e o crescimento. O que é preciso, então, não é apenas respeitar a diversidade cultural que permite a sobrevivência destas visões de mundo, mas também aprender a partir delas para construir um paradigma de conhecimento e ação cosmopolita distinto do que está subjacente à globalização neoliberal. A Lei que define a Política Nacional do Meio Ambiente, 6.938, de 31 de agosto de 1981, em seu artigo 2º, I, considera meio ambiente, patrimônio público a ser assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo, traz em seu art. 3º, inciso I, o conceito legal de Meio Ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências, e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida, em todas as suas formas”. Segundo a autora Marivânia Araújo (2008), as representações sociais são como teorias confeccionadas pelos grupos para apreender e definir os dados com os quais se relacionam. E, para ela, nesse sentido, a utilização teórica das representações sociais pode ser pertinente para a pesquisa antropológica, pois, “a análise das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos de um mesmo grupo procura verificar não somente quais são e em que contexto elas se deram, mas também qual a percepção que os próprios atores sociais têm sobre elas” (ARAÚJO, 2008, p. 117). Para Moscovici (apud ARAÚJO, 2008, p. 117), “as representações individual ou sociais fazem com que o mundo seja o que pensamos que ele é ou deve ser. Mostramnos que, a todo instante, alguma coisa ausente se lhe adiciona e alguma coisa presente se modifica”. 82 Resta concordar apenas no que tange às representações sociais, visto que, para Mauss (1974), é próprio da natureza da sociedade exprimir-se simbolicamente em seus costumes e em suas instituições, e o autor ainda afirma que as condutas individuais jamais serão simbólicas por elas mesmas. Partindo da concepção de representações são formas de interpretar e comunicar, de produzir e elaborar conhecimentos, de que - “são conjuntos dinâmicos, seu status é o de uma produção de comportamentos e de relações com o meio ambiente, de uma ação que modifica aquelas e estas e não de uma reprodução desses comportamentos ou dessas relações, de uma reação a um dado estímulo exterior” (MOSCOVICI, 1978, p.50), pudemos extrair alguns elementos das falas dos interlocutores, no que diz respeito a suas concepções sobre a natureza e sobre os recursos naturais, para tentarmos relacionar as concepções a nós expostas com a forma com a qual lidam com o ambiente. A exemplo disso, temos a fala de Waldy Araújo, carpinteiro naval artesanal do município de Raposa, (entrevista realizada em 07 de agosto de 2010) ao explicar que para cada “tipo de natureza” existe um tipo de embarcação “cada uma tem seu sentido”. Isso pelo fato de existirem embarcações próprias para rios, para lagos, ou para o mar, e de acordo com sua utilidade. Quanto ao calendário das marés, “Até fevereiro o mar é agitado (de agosto a fevereiro), janeiro a julho vai acalmando”. Assim, ele produz tipos específicos de embarcações de acordo com a “agitação do mar”. Já José Ribeiro, carpinteiro naval artesanal do município de São José de Ribamar (entrevista realizada em 14 de agosto de 2010), se refere à natureza da seguinte maneira: “caí no tempo e me vali da natureza pra tirar meu sustento”, e ainda, que “da experiência do tempo, eu vou até uma arte”. Vale apresentar algumas das passagens das entrevistas junto aos interlocutores de Raposa quando indagados a respeito do que seria “natureza”, neste sentido: Davi Martins (entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010): Pesquisadora: Para o Sr. o que é a natureza? Davi: Pra mim, a natureza somos nós mesmos, né? Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010): Pesquisadora: E os recursos naturais aqui? A natureza lhe ajuda nessa atividade de alguma forma? O que é natureza para o Sr.? 83 Carlos: É, eu acho que ajuda. Se não existisse a natureza onde que a gente ia conseguir esse material? Vem da natureza. A natureza que criou. Não foi eu, não foi o ser humano. Isso é obra da natureza que criou esse material. As arvores, a gente vê. Pesquisadora: É somente arvore que o Sr. acha que é da natureza que auxilia o Sr.? Carlos: Perto do rio também é fundamental. Pesquisadora: Aqui atrás é o rio? Carlos: É, aí atrás. Pesquisadora: É fundamental? Por quê? Carlos: é fundamental porque facilita tanto a chegada como as saídas das embarcações. Pesquisadora: E se não tivesse um rio desse, o Sr faria a embarcação? Carlos: De fazer, fazia. De acordo com o meu conhecimento. Mas aí seria mais difícil a deslocação dela daqui pra água. Até o pessoal vir a minha procura, se tornaria mais difícil. Por que já dizia logo “não, o local dele é muito longe” eles observam isso. Geralmente você vê, por onde você andar, pode prestar atenção que as oficinas, os estaleiros que constrói a embarcação sempre tem água por perto. Por causa da dificuldade de levar pra água Pesquisadora: O que mais na natureza o Sr. acha fundamental? Carlos: Eu acho que tudo. Anselmo Góes (entrevista realizada em 30 de novembro de 2010): Pesquisadora: E o Sr. estava falando dos recursos naturais. Para o Sr., o que é natureza? O que são esses recursos naturais? Anselmo: Eu considero como, aqui pra nós, na área que nós estamos são os nossos recursos naturais. Os manguezais. Os manguezais são nossos recursos naturais. E a natureza vem abranger as nossas margens de rios, o mangue é recurso natural e natureza também. O manguezal aqui pra gente. Ele representa até uma parte muito importante pra nós aqui na Raposa. O manguezal, que através desses manguezais a gente tem levado ao conhecimento das agencias de turismo, e aí eles têm vindo ver. E a gente tem preservado a beleza e alguém tem ganhado até dinheiro mesmo. Eu mesmo tenho ganhado dinheiro porque eu tenho uma canoa que transporta gente. Até pra levar, eu tenho levado às vezes pessoas assim pra dentro do mangue, assim pra ir filmarem, gravar. É lindo demais essa parte. É muito bonito demais. 84 Dentre as falas, podemos perceber que Davi relaciona a ideia de natureza a partir da concepção de sociedade, pois ele diz “somos nós mesmos” utilizando o plural, o que no contexto da fala afastou uma interpretação de que os homens fossem o parâmetro primeiro, antropocêntrica, mas como se fizesse parte, estivesse imbricado à natureza. Já Carlos a concebe como algo que ele pode ver, algo tangível “As árvores, agente vê.”, a partir de um olhar que podemos considerar prático, provedor material, uma entidade autônoma “a natureza criou”, desvinculada do ser humano, como força produtiva imediata (MARX, 1975). Quanto a Anselmo, devemos frisar que usou espontaneamente durante a entrevista o termo “recursos naturais”, e considerou natureza a partir de território “na área que nós estamos” e também seus recursos (da natureza). Considerou os recursos a partir da vegetação a que está vinculado seu território, seus manguezais. Corroborando com o exposto em Escobar sobre práticas de pensar, relacionar-se, construir e experimentar o biológico e o natural, em relação à “natureza do lugar” (ESCOBAR, 2005). Além de expor o que entendia pelos termos, explicou a importância a partir do “conhecimento” externo das belezas naturais e no que isso contribui para a vida econômica da região. A nosso ver, tal concepção ainda foge do que Porto Gonçalves (2002) apontou como a tendência de o que o ecológico fique subordinado ao econômico, visto o interlocutor em sua fala nos proporcionou a interpretação do contrário, que o econômico estaria subordinado ao ecológico “a gente tem preservado a beleza e alguém tem ganhado até dinheiro mesmo”. Além do observado em Raposa, podemos nos remontar a representações no âmbito da carpintaria naval maranhense quanto à intimidade dos atores sociais com o produto de seu trabalho, quando dão nomes e desenhos às embarcações, ou quando da ocorrência de festas e celebrações dentro delas (ANDRÉS, 1998). 4.4. Usos sociais das embarcações artesanais nas atividades locais O Maranhão é responsável pela produção de 26% do pescado da Região Nordeste (CEPENE, 2006), destes, 10,9% é proveniente do Município da Raposa (CEPENE, 2005), de acordo com os dados oficiais mais atuais oriundos do Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Nordeste – CEPENE, órgão 85 vinculado ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, que por sua vez, é parte integrante do Ministério do Meio Ambiente – MMA. Assim, por falta de dados atualizados, restou dificultada a informação a respeito do número exato de embarcações no Município, porém, tem-se que a frota artesanal em Raposa era composta de 354 embarcações no ano de 2006 (SOARES et. all, 2006) e correspondia a 3,6 % das embarcações ativas do Maranhão no ano de 2005 (CEPENE, 2005). Além da pesca, as embarcações artesanais são de grande importância para a promoção do turismo em Raposa, havendo dezenas de embarcações, em torno de 40 (número aproximado extraído de observação em campo), destinadas a este fim. A atividade pesqueira é a que mais utiliza embarcações típicas da região, dela sobrevivendo na capital, já que engloba a pesca, o transporte do pescado e sua comercialização. No centro da cidade os pescadores representam 36,67%, dos chefe de família, seguido por outros serviços 26,67% – esse item congrega pedreiros, carpinteiros, encanadores, zeladores, vigia, diaristas, rendeiras, artesãos, dentre outros; em menor número estão os empregados domésticos com 3,33%. Outro bairro expressivo da cidade, a Vila Bom Viver, embora esteja mais distante do mar, o número de pescadores também é considerável 30% estando em menor número os comerciários 3,33% (SILVA, 2009). Em Raposa, as embarcações são fundamentais para a prática do chamado “ecoturismo”, bem como auxiliam na construção do cenário turístico da cidade. De acordo com Waldy, entrevistado em Raposa, “tem dia que fica bem umas duas mil embarcações atracadas na praia no pôr-do-sol”. O portal de turismo do governo do Estado do Maranhão apresenta como atrativos turísticos locais o artesanato, a culinária, os passeios ecológicos nos igarapés, praias desertas, dunas e pequenas ilhotas, a pesca esportiva e artesanal, indicando visitas às Praias de Carimã, Farol e “passeios náuticos em canoa biana motorizada”. (http://www.turismo.ma.gov.br/pt/polos/sao_luis/raposa.htm) Tais passeios, de são realizados diariamente de acordo com a variação da maré e pode conduzir à ponta da Ilha de Curupu, passando por vários igarapés, ilhas, fazenda de criação de ostras e praias desertas. Pode-se visitar a Ilha de Itaputíua de barco ou por uma trilha. 86 Figura 10: (Embarcações de Turismo no Cais da Raposa – Arquivo Pessoal) Figura 11: (Passeio em Carimã – Arquivo Pessoal) Figura 12: (Fazenda de ostras – Fonte: multiplayers.com.br) 87 Figura 13: (Barcos de pesca em Raposa – MA.Fonte:http://nossomaranhao.wordpress.com/2009/11/27/trilha-urbana2/) De modo geral nossos interlocutores de reportaram à importância das embarcações para o município e para as redondezas, especialmente para a pesca, o turismo e transporte para praias do Município de São José de Ribamar, como a praia de Panaquatira, por exemplo. 5. NATUREZA E USOS SOCIAIS NA PRODUÇÃO LOCAL A madeira é a matéria-prima essencial na carpintaria naval artesanal, além de usada para a estrutura das embarcações pode ser empregada na calafetagem, através do emprego da estopa (espécie de tecido grosseiro feito com fibras) vegetal. De acordo com Cláudia Mattos da Silveira a aplicabilidade da madeira na construção naval artesanal maranhense não sofreu alterações com o passar do tempo, “por ser aprendizado transmitido de geração para geração, no qual adquire-se conhecimentos a cerca da anatomia da madeira e seu emprego adequado na peça do barco” (SILVEIRA, 1998, p. 120). Acreditamos que a afirmação da autora não é a regra geral, haja vista a mutabilidade da cultura e também das condições de aquisição da madeira. Para um panorama geral do uso da madeira na carpintaria naval maranhense vale apresentar as dinâmicas de algumas localidades do Estado. O município de Presidente Juscelino, às margens do Rio Munim, possui a cobertura vegetal da bacia do Munim que é constituída por espécies próprias do clima equatorial, e neste caso nota-se bastante semelhança com a vegetação da floresta amazônica, sendo igualmente entrecortada por diversos igarapés. Para a construção da canoa-de-um-pau é necessário que a árvore 88 tenha um tronco retilíneo e que a madeira seja de fácil flutuação. Segundo o carpinteiro Alcídes de Castro Soares, daquele município, “para que a árvore cresça mais e com o tronco reto é necessário a presença de várias árvores próximas umas das outras, pois isto evitará que o vento envergue o tronco, fazendo com que a árvore cresça mais.” (SILVEIRA, 1998, p. 120). Outro carpinteiro naval da região, Jesualdo Pereira também na confecção da canoa-de-um-pau utiliza o guanandi amarelo (Alophyllum brasiliense), retirada de uma mata das redondezas. A escolha dessa espécie deve-se ao fato dela ser freqüente na região por apresentar o tronco retilíneo que se esgalha após uma altura ideal, permitindo que o tronco se desenvolva bastante. (idem, 1998) Já em Tutóia, município pertencente à microrregião do Baixo Parnaíba maranhense, localizada no litoral oriental do Estado, na Baía de Tutóia, a formação do mangue preenche a paisagem nas áreas situadas próximas da costa. A vegetação é constituída basicamente pelo mangue vermelho (Rhizophora magle), árvore bastante freqüente nesse litoral, cuja madeira varia do róseo pardacento ao bege rosado, com raízes aéreas expostas. O mangue branco (A. tomentosa) também ocorre com grande freqüência, mas se desenvolve mais verticalmente, chegando a alcançar dez metros de altura (SILVEIRA, 1998). Do mangue vermelho, retira-se o tanino (substância extraída da casca do mangue é utilizado pelos pescadores para atingir as velas dos barcos e suas próprias roupas de uma cor avermelhada). Além da cor, o tanino possui a propriedade de fortalecer o tecido, que facilmente se desgastaria através do constante contato com a água salgada. O mangue vermelho é destinado às peças como o mastro (peça de madeira de ferro cilíndrica que se ergue acima do convés para suster as velas), falca (espécie de porta), cadaste (peça de madeira situada na popa da embarcação e por onde o leme é fixado) e dormente (peças de madeira presas à cavernas, na parte interna do casco), enquanto o mangue branco é mais usado para a espicha (parte da vela) e a curva, e tem por característica ser um pau fino que não esgalha. Em Tutóia a madeira do mangue é cortada com machado. Segundo o senhor Vicente de Paula, proprietário do estaleiro Empresa Costa, em Bom Gosto – povoado dentro deste município, “existe uma preocupação com a extração indiscriminada do pau-de-mangue. Isto embora o mangue ainda seja abundante na região retiramos a madeira de maneira que evite o seu extermínio. Ao cortar o pau, procuramos escolher aquele que tenha a envergadura natural, o que dá mais resistência à peça do barco. (SILVEIRA, 1998, p. 121-122). Ainda: 89 Além do pau-de-mangue, utiliza-se a madeira do pequi (Caryocar brasiliensis), característica: leve, resistente, não racha, fibras trançadas, de boa flutuação, possui envergadura natural, flexível e não afunda. Sua aplicação é na confecção de peças como o contra-coral; corrimão – peça de madeira longitudinal colocada sobre os cabeços-; escoa – cada uma das tábuas delgadas pregadas sobre a parte interna na quilha [principal peça da estrutura do casco de uma embarcação, situada na parte inferior]; escotilha – abertura feita no convés [nome genérico com que se denomina os pavimentos a bordo] para a passagem de pessoas, cargas, luz ou ar -; leme – peça ou dispositivo situado na popa e destinado a governar a embarcação -; mediania; palmilha; partilhão; pau de giba – peça de madeira situada na proa, fixada à bita [peça de madeira de secção circular por onde a extremidade posterior do pau da giba é encaixado]; e ao talhamar – peça de madeira situada na proa da embarcação; vau – viga transversal que liga as cavernas que se defrontam num e noutro bordo; verdugo – peça de madeira fixada a bordo da embarcação e destinada a proteger o contato contra os choques de outras embarcações). Utiliza-se ainda a Fava d‟anta (Dimorphandra mollis Benth), possui envergadura natural, é resistente, de fibras trançadas, e tem aplicação no cavername e toleteira. e do pau d‟arco (Tabebuia impetignosa, características: dura, resistente, forte e leve, aplicação no beque, bolo, cabeço, cadaste, caixola do leme, cana do leme, carninga, cavalo, cintado, coral, corrimão, cruzeta, cunho, esparradela, espelho de proa, popa, palmilha, pique, quilha, lemo, retranca, sobrequilha, tesoura e verdugo) são considerados ideais para tal fim.De acordo com os carpinteiros navais destes municípios pode-se conjugar as três espécies para a confecção de um bote ou usar apenas uma delas, pois são consideradas suficientemente resistentes, leves e flexíveis. (SILVEIRA, 1998, p.122) Carutapera, município localizado no litoral oeste da denominada microrregião do Gurupi, faz limite com a cidade de Viseu no Estado do Pará. A madeira utilizada na construção naval é proveniente das cidade de Belém (PA) – a 350 km, Capanema (PA) – a 175 km, Bragança (PA) – a 130 km do Incruzo (MA) – a 90 km de Carutapera. A madeira faz o percurso por terra em caminhões até Viseu, atravessando em seguida o Rio Gurupi com destino ao único estaleiro registrado no município, pertencente ao senhor José Maria Pereira Costa. Devido ao intenso movimento de transporte marítimo e fluvial entre Viseu e Carutapera, o estaleiro e frequentemente procurado para serviço de manutenção, tais como reforma de embarcação e calafetagem. (SILVEIRA, 1998) A autora atenta para a falta de autonomia na produção de madeira do município, que segundo ela deve-se principalmente às atividades agropecuárias ali desenvolvidas, que acarretaram um sério desmatamento na região. Assim: A derrubada das matas acabou por modificar a paisagem característica das terras ao longo do rio Gurupi. Onde antes predominava a vegetação florestal tipicamente amazônica, com árvores cujas folhas não caem sem as novas estarem desenvolvidas e muita umidade, hoje prevalece a capoeira em grandes extensões. As áreas menos devastadas apresentam, ainda em abundância, manguezal, vegetação própria desse litoral, ocorrendo nas margens dos rios e igarapés, é desinteressante para a exploração agropecuária. As demarcações da Reservas Florestais do Gurupi, que abrange muitas terras do município, e os postos oficiais da FUNAI (Aldeia de Turiaçu 90 e Caru) não foram suficientes para deter a devastação. Durante recente reunião dos carpinteiros navais do município para definir atuação do sindicato e escolher representante da classe, registrou-se a denúncia de que grandes empresas como a Bom Pastor (originária do Paraná), que ocupam extensas áreas de terras do município de Cândido Mendes e Carutapera, vem praticando queimadas e desmatamentos indiscriminados. O surgimento da capoeira é provocado pelo mau uso da terra. Depois do desmatamento a área é queimada, ou seja, toda a madeira que poderia ser aproveitada é perdida, a fim de viabilizar o plantio, em geral, de mandioca. Sua produção torna-se insuficiente por causa do desgaste da camada de húmus do terreno e rapidamente a área se torna estéril para a agricultura, sendo abandonada às intempéries, o que favorece a formação da capoeira. (SILVEIRA, 1998, p. 123) A título de comparação, vale destacar o que aponta a autora a respeito do município de Bragança - PA, localizado na parte Oriental do Estado. Situa-se às margens do rio Caeté, na parte oriental do Pará. A madeira utilizada pelos estaleiros neste município é adquirida nas serrarias da cidade por um preço bastante elevado por tábua de madeira para uma região onde a vegetação local é suficiente para abastecer o próprio consumo interno. Procede de lugares de Bragança, denominados: Curupativa no km 47 da estrada de Bragança/Viseu e São Miguel Guimar e Santa Maria – na BR Belém/Brasília. (SILVEIRA, 1998). A madeira comprada provém de floresta densa, tipicamente amazônica, com grande variedade de espécies que atingem porte bastante elevado, chegando normalmente a 50 metros de comprimento. Os troncos das árvores são cortados com o uso de motosserras e de tratores quando necessário. Segundo a autora, a retirada da madeira é realizada sem qualquer preocupação com o desenvolvimento do ecossistema, o que resulta na extinção dos elementos componentes da flora e da fauna, específicos desta região e na formação da capoeira, principalmente devido às queimadas (idem). Norteados pelas dinâmicas averiguadas acima pela autora, vamos apresentar as peculiaridades encontradas na pesquisa junto aos interlocutores de Raposa-MA sobre os usos sociais da natureza na produção local. 5.1. Usos sociais e técnicas de obtenção da matéria-prima Durante as entrevistas em Raposa, indagamos sobre as espécies vegetais que os carpinteiros costumam empregar, qual a forma de aquisição da madeira, no caso de haver prática de retirada das espécies pelos próprios carpinteiros quais as técnicas utilizadas e qual a época da retirada e o conhecimento sobre o material. Algumas 91 respostas abarcaram várias perguntas, resultando em alguma redundância na organização das falas. Assim, sobre as espécies que costumam empregar: Waldy Araújo (Entrevista realizada em 07 de agosto de 2010) Pesquisadora: Quais as madeiras que o Sr. costuma utilizar na construção das embarcações? Waldy: Tem o espinhaço (cujo nome científico não foi identificado), mangue branco, mangue-vermelho, madeira segura (também sem nome científico identificável), jaqueira (Artocarpus heterophyllus), pequi (Caryocar brasiliensis), angelim (Dinizia excelsa) e louro rosa (Octoea rubra) Pesquisadora: Por que o Sr. escolhe essas? Waldy: Porque são, resistentes, leves, não racha fácil. Pesquisadora: E o calafeto? De que é feito? Waldy: A gente usa estopa nylon, porque dura uns 5 anos e a estopa de madeira dura uns seis meses. Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010) Pesquisadora: Qual o tipo de madeira que o Sr. faz suas embarcações? São diferentes? Davi: É só um tipo de madeira. Louro, (laurus nobilis). O que eu mais trabalho é com o louro. Pesquisadora: Se é pra reformar, é bom? Davi: Pra reformar uma embarcação. Aí tem uma embarcação lá de Santa Maria, com o fundo dele todinho pra reformar de novo. Metendo tala. É a tatajuba, (bagassa guianensis), e o louro, (laurus nobilis). Pesquisadora: A tatajuba e o louro são pra todas as partes do barco? Davi: Pra todas as partes. Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010) Pesquisadora: E o mangue não presta? Alguns carpinteiros usam o mangue pra algumas coisas? Carlos: É. Eu acho que sim. Pra fazer o mastro, né? Pra fazer o cabo da vela, mas acho que não tem pra uso de embarcação o mangue quase não tem muita utilidade não. Pesquisadora: E o tipo de madeira que o Sr. usa pra fazer a embarcação? 92 Carlos: Depende... Mas o que eu mais uso, e não só eu, a maioria dos carpinteiros daqui da Raposa, nos usamos em primeiro lugar o material pequi, pequirana. E outra madeira que a gente usa bastante é a jaqueira, daqui de dentro da ilha mesmo. Às vezes o dono tem um pé no quintal e já tá morrendo e então ele quer fazer alguma coisa que, e às vezes ela serve pra gente. Aí ele vende. As pessoas vão procurar. Só que eu nunca fiz essa arrumação não, porque gasta muito mão de obra. Tem que pagar gente pra ir lá cortar, tem que pagar um caminhão pra ir buscar, tem que pagar outro pra ir serrar. E hoje em dia não tem mais nem onde serrar. Quem faz isso é quem tem moto-serra hoje, não chega a atender a demanda não. Não faz muita procura por esse tipo de madeira porque não tem onde a gente vá beneficiar ela. Mas aí a gente usa mais é o pequi, a pequirana. A gente compra nos depósitos também e tabuada a gente usa a tatajuba, (bagassa guianensis). Eu uso muito a tatajuba, uso muito a tabua de Angelim (Dinizia excelsa) também. São as madeiras que eu mais uso. Pesquisadora: Se o Sr. trabalhasse só com jaqueira. Dá pra fazer no lugar de pequi? Carlos: Dá. Pesquisadora: Pra fazer o calafeto o Sr. usa que tipo de material? Carlos: a gente usa aquela estopa de carne que é tirada da madeira mesmo de uma árvore que tem na mata. Pesquisadora: É melhor ou pior? Carlos: Pra embarcação nova que a gente tá construindo, que as costuras são bem pequenas, o nylon é melhor. Até porque o fio não apodrece, vai pra dentro da água, a tábua estraga e ela não estraga. Agora já pra embarcação velha, que já tá com as costuras bem abertas, a gente usa essa outra de carne que é melhor. Cada qual tem sua utilidade. Pesquisadora: Então o nylon é melhor quando a embarcação é nova? Carlos: É. nova. Exatamente. Pesquisadora: E madeira quando ela tá mais aberta, o tabuado. Carlos: É a estopa de carne que chamam quando ela já tá com a costura mais aberta. A gente usa ela. Pesquisadora: Costura o Sr. chama o que? Carlos: É a emenda de uma tabua para outra. Como essa daí. Essa daí você vê que ela tá bem aberta. Essa daí se for tentar com nylon não presta. Tem que ser com a estopa. Pesquisadora: Não dá pra fazer a estopa com outra madeira que não seja essa? E tem carpinteiro que trabalha com outra estopa? 93 Carlos: Eles usam algodão e fio, linha. Pesquisadora: Alguns, né? Carlos: É alguns. Só que eu não gosto. Pesquisadora: E o Sr. não gosta por quê? Carlos: Porque eu não gostei mesmo. Cristina Siqueira (Entrevista realizada em 02 de janeiro de 2011) Pesquisadora: Com quais tipos de madeira a você costuma trabalhar? Cristina: Tábua “fede a bosta” (nome científico não identificado), pau d´arco, jaqueira. Diego Vieira (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011) Pesquisadora: Com quais tipos de madeira a você costuma trabalhar? Diego: Mangue vermelho, pequi e tatajuba (bagassa guianensis). Anselmo Góes (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010) Pesquisadora: Com quais tipos de madeira o Sr. costuma trabalhar? Anselmo: A madeira que a gente mais usa aqui é o pequi, cavername de pequi, as tabuas de louro (laurus nobilis), tatajuba (bagassa guianensis) e tábua de pequi também. Pesquisadora: Caverna de pequi. Tatajuba são as tabuas? Anselmo: Tábuas de louro e de pequi também. Podemos perceber que geralmente os tipos de madeira que costumam empregar são os mesmos. Chamando atenção especial o fato de Waldy e Diego usarem mangue e todos os citados falarem que utilizam pequi, com exceção de Davi. Sobre as maneiras de obtenção da madeira, temos: Waldy Araújo (Entrevista realizada em 07 de agosto de 2010) Pesquisadora: E a madeira que o Sr. usa, o senhor corta ou compra? Waldy: Ninguém corta, tira um ou dois da ilha do Sarney. Mas quando tira é mangue morto, que tá seco, é que tá bom. Só que proibiram tirar o mangue, aí eu compro madeira emendada. Mas o ideal mesmo é usar Jaqueira de sítio sem vida, jaqueira de 30-40 anos que cai, não tira madeira nova que ainda dá fruto. Pesquisadora: Como o Sr. sabe que não pode mais usar mangue? Waldy: Andaram dizendo por aqui, né? Dizem que o Ibama que mandou parar. 94 Pesquisadora: E onde o Sr. compra a madeira? Waldy: Lá pelo São Luís, no São Cristóvão, na Cidade Operária... Pesquisadora: E quanto que custa? Waldy: Olha, é R$ 360,00 reais a folha, eu uso umas 50, 60 folhas num barco desses (biana), é um problema por que encarece a embarcação e a pessoa que encomenda tem que adiantar bastante dinheiro, e não é todo mundo que consegue adiantar, então às vezes eu passo meses trabalhando de graça e ainda tem que pagar o ajudante, já viu! Pesquisadora: Mas se pudesse usar do mangue o Sr. preferia? Waldy: Pra umas peças era melhor porque ele já vinha prontinho a forma que a gente queria, né? Pesquisadora: E tem outras árvores que pode pegar? Waldy: A gente pega, mas é lá da Maioba, que tem muita. Pesquisadora: Na Maioba assim, onde? Waldy: Nas matas mesmo. Pesquisadora: Quais tipos? Waldy: Espinhaço mesmo, madeira segura, jaca... Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010) Pesquisadora: O Sr. já precisou tirar madeira da mata pra fazer reforma? Davi: Já. Tive que cortar com o machado. Aí no caso arrancava mesmo. Pesquisadora: Fazendo caverna? Davi: E lavando o pau do comprimento de quatro metros, cinco metros. Pesquisadora: E o Sr. faz isso constantemente, ainda faz? Davi: Não, faz mais não. Pesquisadora: Fazia quando? Davi: Isso eu fazia no ano de 2000. Pesquisadora: Agora não faz mais? Davi: Não faz mais. É tudo elétrica agora. Pesquisadora: Tudo elétrico? Pra cortar que o Sr. diz? Davi: É pra cortar no motor. Corta na moto-serra. Pesquisadora: Mas o Sr. já compra a madeira pronta? Davi: Já compro a madeira pronta. Aí a gente recorta pra botar na embarcação e tudo. Pesquisadora: Seria mais barato se o Sr. pegasse na mata? 95 Davi: Sai mais caro, mais dispendioso porque ainda tem que beneficiar e tudo. Sai muito mais caro. Pesquisadora: E qual o tipo de madeira que o Sr. costumava pegar? Davi: Tatajuba (bagassa guianensis), o louro(laurus nobilis), o pequi, a taúba. Pesquisadora: E onde é que é? Aqui mesmo na raposa? Davi: Aqui mesmo na Raposa a gente compra. Pesquisadora: Mas encontrar aí na mata a gente não encontra? Davi: Ah. Isso é só os madeireiros que ainda encontra. Pesquisadora: Quando o Sr. costumava tirar o Sr. encontrava? Davi: Encontrava. Roberto (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2010) Pesquisadora: E a madeira que o senhor utiliza, é comprada, ou o senhor já retirou madeira? Roberto: Já retirei sim. Agora a gente já compra porque não tem mais mato. Pesquisadora: E para manusear a madeira ao tirá-la da mata, como o senhor fazia? Roberto: Metia catraca. É aquela coisa que bota em cima de caminhão. Sempre a gente vê caminhão madeireiro com cabo de aço. É aquilo. Quando o caminhão não podia entrar, bloqueava né? Aí amarrava um cabo de aço na árvore e puxava com o caminhão. Pesquisadora: E fazendo isso nasciam novas árvores? Roberto: A gente só cortava as que já estavam “predominadas” para queda. No caso, as -furadas, as velhas, que estavam arrancando raiz. Essa a gente mexia. Pesquisadora: E aí nascia por debaixo outras árvores? Roberto: Não. Aí não nascia outra, só se plantar. Pesquisadora: Mas você nunca chegou a plantar? Roberto: Não. Pesquisadora: Você não tinha esse tipo de preocupação? Roberto: Naquele tempo a gente achava que não acabava nunca. Pesquisadora: Você se utilizava de madeira em tora ou em folha? Tem diferença? Roberto: Ela em folha é mais prático pra gente trabalhar. Mas, quando a gente tinha serraria grande usava em tora, que saia mais barato. Aí a gente tirava tudo. Agora até moto-serra é mais difícil ter. Pesquisadora: O senhor acha que era mais cômodo, na época que tinha serraria? Roberto: Saía uma pela outra. 96 Anselmo (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010) Pesquisadora: Pra retirar a madeira da mata? O Sr. já chegou a retirar? Anselmo: Já cheguei a retirar de sitio, não é totalmente da mata. Mas eu também já trabalhei na mata. Já lhe mostrei um serrote que eu tinha aqui. Eu já retirei da mata totalmente a árvore. Já fui lá retirei a tabua da mata. Tudo isso eu já fiz. Hoje não tem mais. A gente não vai mais porque não tem como. E assim se tem alguma coisa por aqui não dá pra tirar porque o IBAMA não deixa. Pesquisadora: E como o Sr. aprendeu a técnica de tirar da mata? Anselmo: Com papai também. Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010) Pesquisadora: O Sr. mesmo procura o material. O Sr. vai comprar essa madeira aonde? O Sr. pega a madeira? Carlos: A madeira a gente compra aí nesses depósitos. Compra aqui na Raposa e compra aí for também. Nos depósitos de São Luís também. Pesquisadora: Mas o Sr. usa madeira em tora, em folha, já vem cortada aqui? Carlos: Não, já vem cortada aqui. Pesquisadora: O nome é beneficiada? Carlos: É beneficiada, acho que sim. A tábua já vem feita a tabua e a madeira do cavername que é o pequi. Quanto à época da retirada: Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010) Pesquisadora: Ah, então tinha uma época certa pra cortar? Davi: Tem, qualquer tipo de madeira tem a época pra cortar. Tem umas que a gente corta pela lua tem umas que corta pelo quarto. Pesquisadora: Pela lua? Quais vocês cortam pela lua? Davi: Pela lua a gente corta o pequi e a taúba. Pesquisadora: E como é pela lua? Davi: É quando a lua tá bonita, tá cheia. Pesquisadora: E quando é pelo quarto, é quarto crescente? Davi: É louro. 97 Pesquisadora: É quando ela tá pela metade, né? Tem mais alguma coisa? Algum outro detalhe pra pegar da natureza, assim que você saiba, pra pegar madeira? Davi: Não, não tem não. Roberto Leite (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011) Pesquisadora: E vocês tiravam qualquer época? Roberto: A gente tirava qualquer hora. Metia a moto-serra, derrubava. Pesquisadora: Mas você observava o feitio da madeira para ver se ela já estava pronta para ser derrubada? Roberto: Os próprios donos do terreno que falavam com a gente, perguntavam se a gente queria derrubar. Eles nem vendiam de primeira, eles ofereciam. Aí a gente cortava. Tem muito sítio aí na Maioba, que o pessoal queria ampliar o terreno, limpar, eles falavam com a gente e a gente cortava. Anselmo (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010) Pesquisadora: E qual o melhor período pra retirada da madeira? O Sr. tem ciência disso? Pra retirar uma madeira, a melhor época? Anselmo: É o escuro. Eles usam a parte escura da lua. Só a referência que as pessoas usam é a parte escura da lua. Toda madeira pra tirar tem que ser na parte escura da lua. Digamos assim, se a lua tiver de fora. De dia mesmo, às vezes ela tá de fora, de dia. Aí naquele período ela não é boa pra tirar. Ela boa quando ela tá escura tanto de dia. A parte de dia que tá escura. Eu não sei por que, mas eles todas as pessoas que trabalham no mato eles falam “ah, não tá bom de tirar a madeira porque a lua ainda tá de fora. Vamos tirar quando ela tiver escura”. Não sei qual é o motivo. Deve ser alguma coisa porque eles todos quase fala. Pesquisadora: Eu já ouvi falar que é porque quando a lua tá nessa parte escura, a água ela não sobe ate a copa da arvore, ela fica na raiz. Ela desce todinha, entendeu? A água. Ela chupa menos água. Então eles cortam porque por dentro ela tá seca, não tá molhada. Anselmo: Esse é o porquê? Eu não sabia. Por isso que eu te falei que eu não sei por que que eles usa essa coisa assim. Isso a ciência descobriu agora, mas essa linguagem vinha de longe. Assim sem saber de nada. Acho que por algumas experiências assim. Por exemplo, bichar. A madeira bicha rápido quando tá na parte clara. Ela custa bichar quando tá na parte escura. Agora nessa parte de água. É, mas tem a ver mesmo. 98 Quanto ao local de onde é retirada a madeira: Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010) Pesquisadora: O senhor encontrava na Raposa mesmo? Davi: Na Raposa não. Lá pras matas de fora. Pra barreirinhas, campos a gente encontrava. Agora, ultimamente, a gente não encontra mais não. Já vem, o material já vem daí de fora. Pesquisadora: O material vindo de fora o Sr. acha que facilita? Davi: Facilita porque vem pros depósitos e nos depósitos, o dono das embarcações compra com a gente aí. Pesquisadora: O dono que... Davi: É, o dono da embarcação que compra. Roberto Leite (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011) Pesquisadora: Mas, daqui da Raposa é que não tem mais? Roberto: Sim, já foi tirado já. Pesquisadora: Qual era o tipo? Roberto: Jatobá, jaqueira. Pesquisadora: Onde tinham essas? Roberto: Nessa mata da Maioba. Pesquisadora: E aí agora não tira mais? Roberto: Não tem mais. Aí a gente já compra fora. Pesquisadora: Mas tem ainda algum lugar por perto que exista? Roberto: Acho que não. Acho que a única que tem por ai, que se usa pra fazer mesas é a mangueira. A jaqueira já está em extinção. Não existe mais madeira velha não, só novinha. Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010) Pesquisadora: E essas madeiras são encontradas onde? Carlos: Aí vem daí, da baixada maranhense, lá do Pará. Daí assim. Aí eu não tenho certeza da onde vem. Pesquisadora: Não é do município? Carlos: Não. Pesquisadora: Aqui no município não tem madeira? 99 Carlos: Além do mangue não tem nada. Anselmo Góes (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010) Pesquisadora: E quando o Sr. tirava as arvores da mata, como é que o Sr. trazia? A distância daqui pro lugar é muito longe? Anselmo: Eu trabalhei mais assim na mata foi lá no Icatu. Era distante. Puxava em costa de animal. Quando eu trabalhava lá, puxava em costa de animal. Pesquisadora: E a jaqueira? Onde tem? Anselmo: Olha tem muita. Aqui na Maioba, na Marajau, Na São Jose de Ribamar tem muita jaqueira já velha que não bota mais. Paço do Lumiar então, tem tanta. Aquelas jaqueiras que já tão morrendo, que não bota mais jaca. Se bota, a jaca é um bago que não enche mais. Têm tantas que eles até cortam e chamam o corpo de bombeiros e usam aqueles caminhão pra botar no lixo. Ou quer fazer uma casa naquele local e aquela jaqueira tá atrapalhando, não acha pra quem dar, não acha pra quem vender. Então pega o carro e bota fora. Não tem pra quem dar. Pesquisadora: Qual o melhor local pra retirar a madeira? Anselmo: É em sítio. Por que tem acesso a carro pra entrar. Na mata, o carro pra entrar é difícil. Tem carro aí que traz, que puxa, é carro especial. É trator, essa coisas assim. Fica até mais fácil assim pro carro ir até lá da casa. Vai lá, corta a madeira. Em sítio é melhor do que na mata. Na mata o cesso é difícil demais. Lá tem as cobras, tem as mutucas. Conhecimento sobre o material: Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010) Pesquisadora: Olhando a madeira o Sr. sabe quando ela tá boa pra tirar? Davi: Assim, porque a madeira estando verde ela não serve pra embarcação. Pesquisadora: Mas o Sr. conhece as madeiras? Sabe como tratar com elas? Davi: A gente tem que saber. Pesquisadora: O Sr. aprendeu como? Davi: Vendo, as pessoas dizendo pra gente como é e como não é. O tipo de madeira. Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010) 100 Pesquisadora: E se morasse num lugar que tivesse madeira própria, o Sr tiraria? Saberia tirar? Aprendeu a tirar? Carlos: Não, mas aí tinha que ter uma outra estrutura, uma ferramenta pra poder beneficiar ela. Porque não adianta se a gente não ferramenta nenhuma, e derrubar uma arvore grande pra fazer o que com ela? Nada. Então, pra isso tem que ter uma estrutura de serra de fita ou um engenho pra rachear a madeira todinha. Aí o investimento já é muito alto. E, além disso, também eu não tenho muito conhecimento nessa área. Pesquisadora: Entendi. Então o Sr não tem muito conhecimento nessa área? Carlos: Não, derruba de madeira eu não tenho conhecimento, não. Pesquisadora: Mas o senhor sabe quando a madeira tá pronta pra usar na embarcação? Carlos: A Jaqueira é quando tá velha, morrendo. Porque o branco dela não tem utilidade nenhuma. Curva depressinha. Quando ela já tá morrendo é porque ela já tá madura. O âmago dela já tá ultrapassando, já tá chegando o limite dela. E quando ela vai engrossando, o âmago dela se chama o miolo, ela vai aumentando, aumentando, até quando ela chega pertinho já da casca aí ela já começa a morrer. Pesquisadora: E como é que o Sr. sabe essas coisas? Carlos: É porque é já de conhecimento mesmo. Se alimenta muito do leite dela porque quanto mais ela tem branco, mais o leite dela é forte. A proporção que o branco dela vai diminuindo, o âmago vai aumentando. O leite dela também vai diminuindo. Aí ela já começa a perder a força Pesquisadora: Então quanto mais ela tem branco mais o âmago dela vai diminuindo. Carlos: diminuindo. Aí quanto mais o âmago dela aumenta o branco é que diminui. Pesquisadora: E quando não tem mais branco é porque ela já tá boa? Carlos: Ela já tá boa. Tá pra morrer. Pesquisadora: Aí pra saber se tem branco vocês fazem um cortezinho, é isso? Carlos: Não. Pesquisadora: Como é que faz? Carlos: É pela idade dela mesmo. Pesquisadora: Pela idade? Vendo ela já dá pra saber? Carlos: Vendo ela já dá de saber logo Pesquisadora: Por que ela fica soltando? Carlos: Não. Porque ela é bem viçosa. Quando você vê o pé de jaqueira quando ela ta bem viçosa é sinal de que o âmago dela tá muito pequeno, então ela não tem utilidade 101 de nada. Aí quando vê ela já dá sinal de já querer morrer, já tem galho seco prum lado, galho seco pra outro. Então já sabe que ela tá no ponto. Pesquisadora: Isso acontece comas outras madeiras também ou é só com essa? Carlos: Eu não sei. Eu digo jaqueira porque eu tenho costume nessa. Agora nos outros tipos de madeira eu não sei. Pesquisadora: Pequirana é diferente de pequi? Carlos: É, porque a pequirana não dá fruta. Anselmo Góes (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010) Pesquisadora: Qual é a diferença da madeira em tora pra madeira em folha que o Sr trabalha? Anselmo: Uma grande diferença. Em tora é muito trabalhosa. Pra gente é mais custoso devido a ter que ter moto-serra. Aí não dá. Em tora é muito difícil. Pesquisadora: E aqui não tem jaqueira por quê? Em Raposa. Anselmo: não tem. Aquela área da vila é uma área toda nova. Tem, mas elas tão bem novinhas. Elas levam muito tempo pra crescer, pra ficar de uma grossura, pra atingir o corpo com 2 metros de roda. É muito tempo. Pesquisadora: Leva quanto tempo mais ou menos? Anselmo: Ela leva quase uns oitenta anos. Por que a árvore, quando ela atinge uma certa idade, ela vai devagar. Pesquisadora: E aí quando tira essas árvores elas não nascem outras assim? Anselmo: Não. Normalmente não. Pesquisadora: Eu digo assim, de como tirar a raiz, ela não brota outra? Anselmo: Não, a jaqueira não. Pesquisadora: E o pequi e os outros? Tem alguma que o Sr conhece que brota outra? Que usa pra embarcação? Anselmo: Não, não. O pequi não brota não. Ele morre completo. Tem umas árvores que brota. A maçaranduba brota. Pesquisadora: E ela dá pra usar? Anselmo: Dá. Isso aí é maçaranduba. Essa bem aí (apontando). Essa compridona aqui é maçaranduba. Ela brota da raiz. O bacuri também brota da raiz. São varias arvores que brotam da raiz, outras não brotam. O mangue não brota da raiz. Pesquisadora: O bacuri dá pra usar também? Anselmo: Dá. É madeira boa pra embarcação. É difícil. 102 Pesquisadora: E tem aqui, maçaranduba e bacuri? Anselmo: Não, não. Nenhuma dessas tem aqui. Assim, árvore viva aqui não. Tem aí por ai. Até em São Luís tem muito bacurizeiro. Ali no Lítero. Aquelas árvores tudo são bacuri. Árvore grande. Pesquisadora: Tem alguma que dá pra tirar só uma parte e ficar o resto ali, o toco? Anselmo: Tem. Só fica lá o toco quando o dono às vezes quer. Às vezes o dono do sitio quer deixar a haste lá no tronco, em pé. Depois brota. Mas normalmente quando eles tiram, eles banem totalmente daquela área. Pra dar lugar a outras construções. Assim fica aqui na cidade. Agora no mato, fica lá. Porque não tem ninguém, não tem o desejo de abolir de lá. Cortou, levou o que quer, o tronco cresce. Alguns crescem. Pesquisadora: Por exemplo? Anselmo: Acho que quase todas elas. Tem umas que morrem. Rapaz, eu acho que todas elas brotam. Pesquisadora: Por exemplo? Anselmo: O pequi brota. Eu já vi o pequi brotando. A mangueira brota. A mangueira a gente não usa pra embarcação não. Quase todas as árvores do bosque brasileiro brotam. Isso aí não brota não. O mangue não brota não. Nenhum do mangue brota. Morre totalmente. Pesquisadora: Quantas jaqueiras o Sr. acha que precisava pra fazer um biana? Anselmo: Depende da grossura do corpo dela. Mas uma faz mais de uma canoa. Tem jaqueira na Maioba que só uma faz, de uma jaqueira eu já fiz oito canoas pequenas. Desse tamanho. Mas assim, só as cavernas, não foi tábua. Eu já fiz oito canoas de uma jaqueira na Maioba. Só que foi assim, aquela coisa mais bruta. Eu levei motoserra, botei no caminhão, trouxe. Quando terminou eu fiz as contas mais meu irmão, a gente fez oito canoas. Era uma coisa absurda demais, três cargas de madeira. Mas nós trouxemos todos os galhos, os finos. Os grossos. Quanto à nossa interlocutora mulher, Cristina Siqueira, a mesma diz que só conhece alguns nomes e precisar a quantidade de toras necessárias para as embarcações de Anselmo, mas que nunca ajudou o companheiro a retirar madeira. Já Diego Vieira construiu sua biana com mangue da região e o considera uma madeira de boa flutuação pareceu não se preocupar com o fato de este tipo de madeira ter o corte proibido. Por outro lado, Waldy tem um conhecimento superficial da proibição do uso do mangue, ele usou a expressão “andaram dizendo” para dizer que já ouviu falar a 103 respeito disso, e costuma retirar a madeira da Maioba bem como comprar folhas de compensado. O mesmo artesão aponta o encarecimento da embarcação pelo alto preço das folhas de compensado. O interlocutor Davi diz preferir comprar madeira beneficiada, porém, utilizava o machado para retirar madeira e que quando retirava costumava encontrar com facilidade a madeira que precisava em Raposa. Já Roberto aponta o uso da catraca para puxar as árvores. Acredita que retirando a madeira seus custos eram reduzidos e aponta certa dificuldade de portar motosserra, porém, nem chega a comentar o fato de que o uso desta ferramenta é proibido. Anselmo, além de mostrar com orgulho no momento da entrevista uma imensa ferramenta parecida com um serrote, explicou como cortava a árvore, e deixou claro que só não tira em maior quantidade pois não tem como, segundo ele, em Raposa a madeira está escassa e quando há madeira o IBAMA não permite a retirada. Já Carlos afirma apenas comprar madeira já em tábua. E nada comenta a respeito de conhecimentos sobre a retirada de madeira disponível na região da Raposa. Todos os interlocutores disseram comprar madeira, a maioria compra pequi, geralmente em Raposa ou em São Luís. E quanto ao procedimento de retirada da madeira a maioria diz que Raposa não tem mais recursos e que costumam ou costumavam retirar madeira de matas e sítios no local ou nas adjacências, como é o caso da Maioba. A proibição da retirada de madeira é assunto pouco explorado nas respostas, mas, de modo geral, é atribuída ao IBAMA, possivelmente pelo fato de este órgão, em sua atuação naquela região, desenvolver apenas a função fiscalizadora, aumentando a distância entre população e os princípios para os quais foi criado. O fato de os carpinteiros se referirem repetidamente à localidade Maioba como local de retirada de madeira merece interpretação. A Maioba é uma região que está dividida entre dois Municípios, sendo “Maioba do Jenipapeiro” em São José de Ribamar e “Maioba” um bairro do Município Paço do Lumiar (cidade da qual o município de Raposa foi desmembrado em 1994), distante apenas quatorze quilômetros de Raposa, e está localizado a longitude oeste 44º,10‟W, portanto, ainda na Amazônia Legal. Acreditamos que o desmembramento deste município por si só não desvincula a relação dos agentes com os recursos lá disponíveis. Especialmente pelo fato de a 104 maioria dos carpinteiros navais nela trabalharem desde antes da ocorrência do referido desmembramento. Podemos conectar as falas de Davi ao conceito de etnoconhecimento anteriormente explora, pois reproduz o conhecimento de que madeira verde não serve para embarcação, o que aprendeu vendo e ouvindo dizer do. E já na fala de Roberto notamos que não há uma preocupação detalhada com a época da retirada de madeira, se dando esta de forma bem pragmática. Fato relevante notamos na fala de Anselmo, que, apesar de não saber exatamente o porquê de “a fase do escuro da lua” ser a ideal, sabe que o conhecimento vêm da experiência e aprendeu ouvindo “pessoas que trabalham no mato” falarem. Carlos não tem conhecimento sobre a derrubada mas sabe que a jaqueira “está no ponto” através do conhecimento de seu âmago, observando a vitalidade da árvore, que quanto mais velha estiver, melhor. Também sabe a diferença entre espécies, como no caso do pequi e pequirana. Tal diferença é importante pelo fato de que, se a pequirana não gera frutos, sua retirada é menos ofensiva que a retirada da árvore que gera frutos. Já Anselmo nos apresenta seu conhecimento sobre o brotamento das espécies, quais brotam ou não da raiz ou do toco, sabe ainda a quantidade de madeira que pode obter observando a grossura do tronco, detalhes que aprendeu com vários anos de manejo das espécies. 5.2. Inserção e efeitos de novos elementos e atores na dinâmica da cadeia produtiva Andrès aponta que no Maranhão muitos estaleiros de razoável porte vêm desaparecendo ao longo das últimas décadas, fato que ocasionou acentuada queda na atividade em vários pontos do estado. Entre os principais fatores apontados estão sempre a redução da oferta de matérias-primas essenciais, como a madeira, também pelo grande distanciamento de qualquer tipo de operação de crédito que eventualmente pudesse garantir novos investimentos para a manutenção de suas atividades (ANDRÈS, 1998). Observando a legislação apontada acima nos deparamos com o que aparenta prática predatória, por outro lado, observando a importância do uso dos recursos, identifica-se o conflito. “Admite–se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações. [...] (o conflito) é uma forma de sociação” (SIMMEL 105 apud ALCÂNTARA JÚNIOR, 2005, p.08). Assim, “(...) o conflito pode possibilitar momentos de construções e destruições, quer sob as instituições, estruturas, arranjos, processos, relações e interações sociais” (ALCÂNTARA JÚNIOR, 2005, p. 08). Bem como o conflito. No âmbito das delações com recursos naturais, “pode derivar da disputa por apropriação de uma mesma base de recursos ou de bases distintas, mas interconectadas por interações ecossistêmicas mediadas pela atmosfera, pelo solo, pela água, etc.” (ACSELRAD apud SANT‟ANA JÚNIOR et all, 2009, p. 19). É válida, portanto, análise da ação local e de processos de mudança e conflitos envolvidos, e avaliação do atendimento aos ditames da “justiça social”. Compreendamos como a nova configuração territorial oficial pode influenciar o contexto que presenciamos. Em cinco de junho de 1992, foi criada no Estado do Maranhão a Área de Proteção Ambiental Upaon-Açu/Miritiba/Alto Preguiças (também conhecida como APA Miritiba), através do decreto 12.428, com publicação em 12 de junho do mesmo ano, com área de 1.535,310 ha (um milhão, quinhentos e trinta e cinco mil, trezentos e dez hectares). De categoria “uso sustentável”, abrange os municípios de Axixá, Barreirinhas, Humberto de Campos, Icatu, Morros, Paço do Lumiar, Presidente Juscelino, Primeira Cruz, Raposa, Rosário, Santa Quitéria, Santa Rita, São Benedito do Rio Preto, São Bernardo, São José de Ribamar, São Luís, Tutóia e Urbano Santos (Vale lembrar que Icatu e Barreirinhas e São José de Ribamar foram cidades apontadas pelos carpinteiros navais como locais de onde costumavam retirar madeira). O decreto considera que a região abrangida é caracterizada pelas formações pioneiras representadas pela vegetação de mangue e restinga, cerrado e áreas de contato floresta decidual/cerrado/caatinga; considera a diversidade de ecossistemas naturais abrangidos: dunas, restingas, manguezais, galerias (renque de buritis), lagoas e matas ciliares sendo considerados Reservas Ecológicas de acordo com o que preceitua a Resolução CONAMA nº 004, de 18 de setembro de 1985; dentre outras coisas, e tem o objetivo de disciplinar o uso e a ocupação do solo, a exploração dos recursos naturais, as atividades de caça e pesca, a proteção à fauna e à flora, a manutenção das biocenoses daqueles ecossistemas e o padrão de qualidade das águas (art. 1º). O decreto determina que na APA de Miritiba, poderão ser desenvolvidas atividades múltiplas, desde que sejam obedecidos critérios de conservação, segurança, racionalidade e observada a Legislação Ambiental (Federal, Estadual e Municipal), excetuando-se aquelas de caráter predatório que possam provocar alterações drásticas na biota local e regional ou causem significativos impactos ambientais (art. 6º). 106 As unidades de conservação do Estado do Maranhão têm como base a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, seguem, portanto, os mesmos protocolos. E somente em 2010 a Portaria nº 95 da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais – SEMA, designou servidores para a chefia de Unidades de Conservação Estadual, nomeando Ana Paula Rios de Melo para a APA Miritiba. Lembramos que o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 impõe ao Poder Público definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção – que se instituiu e consolidou o SNUC. E a definição de Unidade de Conservação surge como “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção” (art. 2º da Lei 9.985/00). As unidades de proteção integral objetivam a preservação da natureza, admitindo apenas o uso indireto dos recursos existentes neste espaço, uso que não envolva consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais, excetuando-se os casos previstos em lei (art. 7º, §1º). Já as unidades de uso sustentável devem compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais (art. 7º §2º). O Decreto nº 4.340/02 regulamenta artigos da supracitada Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, e traz alguns instrumentos para a instituição e gestão de Unidades de Conservação, entre eles, destacam-se os referentes às Unidades de Uso Sustentável como: consulta pública; mosaico de unidades de conservação; plano de manejo da unidade de conservação; contrato de concessão de direito real de uso e termo de compromisso firmados com populações tradicionais das Reservas Extrativistas e Reservas de Uso Sustentável; conselho consultivo ou deliberativo com representação dos órgãos públicos e da sociedade civil (sempre que possível paritária) considerando as peculiaridades regionais; gestão compartilhada de unidade de conservação por OSCIP (Organização Social Civil de Interesse Público) regulada por termo de parceria firmado com o órgão executor; autorização a exploração de produtos, sub-produtos ou serviços inerentes às unidades de conservação, de acordo com os objetivos de cada categoria de unidade. 107 As unidades de conservação são áreas do território nacional estabelecidas pelos governos federal, estaduais e municipais que devem ser preservadas ou utilizadas de forma adequada e sustentável, visando à proteção de ecossistemas significativos, em termos de recursos naturais e/ou culturais e o Maranhão é o estado que se destaca por possuir mais de 12% de seu território em áreas protegidas sob jurisdição estadual (PINTON et all., 2004). Tais instrumentos, porém, não estão, à primeira vista, concatenados prioritariamente aos interesses das populações tradicionais que habitam e ou utilizam os territórios de Uso Sustentável. Se ainda existe uma esperança de que “se pode chegar a constituir novas bases para a existência e rearticulações significativas de subjetividade e alteridade em suas dimensões econômicas, culturais e ecológicas” (ESCOBAR, 2005, p. 163) se faz necessário que os instrumentos que o Poder Público já disponibiliza sejam suficientes e eficazes em prol da efetivação dos direitos das populações tradicionais que utilizam recursos naturais em seus territórios de forma sustentável. Assim, para compreendermos de que modo estão postos os instrumentos do poder público disponíveis, entrevistamos a chefe da APA de Miritiba dia 17 de janeiro de 2011. Dentre as questões invocamos o conhecimento da servidora em relação à APA, em relação à carpintaria naval em Raposa-MA, à vegetação do município, à fiscalização ambiental naquele município, a ferramentas de gestão dos recursos vegetais da região disponíveis aos carpinteiros navais, e atividades em andamento do órgão em relação ao uso dos recursos naturais que possam estar relacionadas à carpintaria naval. A servidora da Sema, analista ambiental, turismóloga, nomeada em outubro de 2010, dispõe que não tem conhecimento em relação à carpintaria naval em Raposa; que conhece um estudo da Universidade Estadual do Maranhão em relação à vegetação do município; que quanto à fiscalização ambiental em Raposa o procedimento é averiguar apenas as denúncias, sendo competência da SEMA e da prefeitura mas não sabe o que está tem feito neste sentido por parte da prefeitura. Assim: Ana Paula (Entrevista realizada em 17 de janeiro de 2011). Pesquisadora: Como são as normas de fiscalização pra essas comunidades tradicionais? Ana Paula: Dependendo do que fez, eles vão responder normalmente como um cidadão comum. Pesquisadora: Dependendo do que aconteceu entram todos nas normas então vigentes? Ana Paula: É, só isso. 108 Pesquisadora: Então por enquanto não tem nenhuma ferramenta, nenhuma atividade em andamento pra comunidade? Ana Paula: Não, mas eles (SEMA) estavam querendo fazer um trabalho com os pescadores de lá. Pesquisadora: Ligado a SEMA? Ana Paula: É. Pesquisadora: E plano de manejo e conselho gestor da unidade, existem? Ana Paula: Pois é, plano de manejo, a criação do conselho gestor, a gente tá tentando ainda fazer. Porque pra fazer o plano de manejo é caro, muito caro. Então a gente tá vendo agora a possibilidade de ser feito um projeto. Inicialmente é um projeto com todas as APAs que não possuem plano de manejo ainda. Aí eles tão querendo propor pra ver se consegue a verba pra fazer o plano de manejo pelo diagnostico da área. É um convênio que eles estão tentando fazer, mas ainda tá só no papel mesmo. Pesquisadora: É caro pra fazer um plano de manejo, por quê? Ana Paula: Olha, o que a gente tem de referência é que não é menos de 1 milhão e assim, numa área que não é tão grande. Essas APAs que são maiores com certeza vai ser mais de 1 milhão por que vai precisar do diagnóstico da área inteira, estudo de flora, fauna. Aí abre edital pra selecionar a instituição que vai fazer. O que é essencial pro plano de manejo da área. Pesquisadora: O conselho de gestor é criado só depois do plano de manejo? Se houvesse um novo conselho de gestor, você ia continuar sendo a chefe da APA? Ana Paula: Isso eu não sei te dizer. Eu sei assim, que quem toma de conta é a SEMA, então a SEMA pode estabelecer essa chefia. O único que parece que já tem conselho novo é uma APA nova e eles ainda não tem plano de manejo. Então pode ser, eles elegeram agora, elegeram recentemente o conselho gestor deles. Pesquisadora: Aí no caso o plano de manejo vai ser mediado pela chefia ou pela Sema? Ana Paula: É pela SEMA, por que no caso, como é o que a gente fez agora recentemente, porque como a gente mudou de secretario, ele solicitou, fez tipo um plano e colocou as diretrizes, que a gente teria que elaborar projetos seguindo essas diretrizes. E pra gente foi proposto exatamente fazer um projeto pra gente ver se conseguia fazer um plano de manejo pras áreas que ainda não tem. Então todas as Unidades que não tem se reuniriam pra fazer um projeto pra encaminhar. Só que ainda tá nisso, a gente não sabe se vai sair. Pesquisadora: Aí, enquanto não sair o plano tem alguma outra medida? 109 Ana Paula: Pras comunidades, o que a gente tava pensando, primeiramente como a gente viu que a dificuldade maior da comunidade é que ela não sabe o que ela pode e o que ela não pode fazer, seriam esses pontos, que são dados em alguns índices e geralmente são solicitados pelo próprio município. Mas a gente que já tá na instituição, já observa essa dificuldade, a gente tá tentando colocar essas atividades dentro das áreas que a gente coordena. Então seria essa. As outras seriam, no caso falando especificamente, projetos que tenham a ver, priorizar os processos que estão relacionados com essas comunidades. Se tem algum conflito. Porque acaba parando o serviço deles, é uma atividade que gera muita renda pra eles, então é muito complicado deixar o projeto parado. Mas geralmente a gente recebe mais denúncias assim, nossa equipe é muito pequena. Na chefia é só essa pessoa pra cuidar da área inteira. Não tem outra pessoa. Se eu for fazer uma fiscalização na Raposa ou em São José de Ribamar, eu tenho que solicitar outro fiscal pra ir comigo que é de outro departamento. Aí às vezes ele já tá com outro serviço, aí eu tenho que esperar. Isso tudo é meio complicado. O que a gente tá pensando em fazer também é justamente tentar identificar os empreendimentos, porque aí fica mais fácil da gente saber se tá tendo conflito ou não. Os empreendimentos dentro da área. Aí iria fazer um banco de dados desses empreendimentos pra ver de onde tá vindo esse material. Só que tudo isso é ideia. Pesquisadora: A Maioba faz parte da APA? Ana Paula: É uma parte. Dentre os interlocutores nenhum sabia que o município de Raposa fazia parte de uma Área de Preservação Ambiental gerida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente – SEMA e apenas Anselmo e Cristina revelaram já ter ouvido falar deste órgão. Diante disso, recorremos a Esterci e Sant‟ana Júnior, As dificuldades de institucionalização das agências ambientais, de captação de recursos, o reduzido corpo de funcionários e politização dos cargos, até o final dos anos 90 resultaram na criação de UC, mas, em poucas medidas concretas para a sua efetiva implantação. A reduzida capacidade do Estado de fazer valer plenamente seu poder de dominação, não impediu que através dos dispositivos legais que nomeiam e redefinem fronteiras, ele impusesse de forma progressiva às populações que legítima e anteriormente habitavam os territórios em áreas protegidas, uma série de limitações administrativas, que passaram a interferir nos modos de vida, nos usos, costumes e formas tradicionais de apropriação da terra, gerando, segundo Sathler (2007), uma situação de desterritorialização subjetiva, ou em outras palavras um estado de desenraizamento; de desvinculação psicológica dos moradores em relação ao seu lugar, às tradições e seu modo de vida. (ESTERCI E SANT‟ANA JUNIOR, 2009, p. 30) 110 Acompanha-se em Raposa-MA esse processo de transformação do território em um espaço de incertezas estando obscuras as regras do possível em relação aos usos sociais dos recursos para a carpintaria naval artesanal. Tomando como exemplo estudos na APA da Costa de Urumajó, no Pará, na Mesorregião do Nordeste Paraense, Município de Augusto Corrêa, “onde incidem ecossistemas costeiros (de restinga e mangue) considerados bastante preservados”, pode-se constatar que o interesse em estudar Unidades de Conservação deve ir além da criação das mesmas e adentrar a seara da continuidade do processo, dos momentos de antes, durantes e depois e das motivações e conflitos configurados. Assim, a referida APA “trata-se de um lugar correspondente a hábitos próprios, modos de ver e viver aquele ambiente que de certo modo conflitam com uma institucionalidade territorial pautada na centralidade da questão ambiental, elaborada pelo saber e práticas científicas” (AQUINO E NAZARÉ, 2009, p. 134). Ressalte-se que foi criada em 1998, e que “(...) não consta ainda um plano de manejo. Resulta disto dificuldades, principalmente para os pescadores artesanais, em se reconhecerem nesta nova institucionalidade territorial” (idem, p. 134). Quanto à coexistência de saberes locais e científicos sobre o ambiente, tratam as autoras: Reconhecer a importância do saber tradicional é, implicitamente, reconhecer que as populações tradicionais são sujeitos históricos, portadores desse conhecimento e que, portanto, devem ser considerados como agentes fundamentais do conhecimento e, sobretudo, a gestão ou manejo das áreas chamadas naturais. Esse reconhecimento poderia retirar uma parte do poder conferido pela ciência às corporações técno-burocráticas e acadêmicas que se autoconferem a exclusividade do saber científico e dos princípios e metodologias que regem os chamados „planos de manejo‟ das áreas naturais protegidas. Desconhecendo e até rejeitando o saber tradicional, as corporações aninhadas nos órgãos ambientais decisórios [...] acabam atribuindo à fiscalização e à repressão policial o papel de „guardiões da biodiversidade‟ e os únicos defensores do „mundo natural‟ (AQUINO E NAZARÉ, 2009, p. 136). As autoras constataram que mesmo em Unidades de Conservação na modalidade APA e RESEX “há uma distância dessas populações e seus saberes sobre tal local, assim como a inexistência de entidades coletivas que as represente, participando efetivamente dos processos de criação” (idem, pág. 138), e que, sendo a relação com estas populações primordiais para a conservação, “seria importante o diálogo entre os saberes local e o científico com vistas à sustentabilidade, numa relação menos assimétrica entre os agentes envolvidos pela política ambiental em execução na 111 Amazônia Brasileira” (idem, p. 139). Ainda de acordo com elas a ausência de saberes, locais e especializados, leva a “dificuldade de identificação com novas territorialidades e o sistema legal que lhes corresponde, desdobrando-se em defasagem significativa entre decretação e elaboração/execução de planos de manejo.” Assim, A ausência dos planos de manejo participativos tem levado a tensões entre as populações que tradicionalmente se relacionam com os recursos disponíveis nestes territórios e outros segmentos sociais locais e com as autoridades públicas responsáveis pelas áreas (municipais, estaduais ou federais), cuja ação tem sido restrita a fiscalização e proibição de atividades econômicas consideradas predatórias. (AQUINO E NAZARÉ, 2009, p.141-142) Continuam as autoras, “Ocorre, porém, que as restrições ao uso desses territórios atingem muito mais os segmentos populacionais chamados tradicionais, cuja integração a estes projetos termina por reproduzir desigualdades sociais mais amplas.” (AQUINO e NAZARÉ, 2009, p. 142). Dentre os interlocutores nenhum sabia que o município de Raposa fazia parte de uma Área de Preservação Ambiental gerida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente – SEMA e apenas Anselmo e Cristina revelaram já ter ouvido falar deste órgão. 5.3. Concepções de possibilidades e limites: predisposição ao uso sustentável da natureza? De acordo com Kitamura, a Região Amazônica brasileira vem sofrendo um processo desordenado de ocupação humana, o que afeta seus ecossistemas e a vida econômica e cultural de seus habitantes humanos mais antigos. Para ele, quando se considera o conceito de “desenvolvimento sustentável” para a Amazônia, é fundamental encará-la como muito mais do que um santuário natural de formas de vida selvagem animal e vegetal e levar em conta as demandas de sua população, principalmente aquelas associadas à sua subsistência (KITAMURA, 2004). Segundo Little (apud BURSZTYN, 2004, p. 330), o preservacionismo nasceu no século XIX em resposta às crescentes industrialização e urbanização dos países do Norte, nos quais a noção de wilderness (a natureza em seu estado selvagem) foi consagrada como uma fonte de inspiração e pureza espiritual a ser apreciada pelo ser humano. Quanto à vertente conservacionista, aponta que surgiu no fim do século XIX, no seio do ofício da engenharia florestal, quando houve um interesse em explorar os recursos naturais de maneira que não os esgotasse. O autor aponta nisso o núcleo ancestral do que se chama hoje de “desenvolvimento sustentável”, esta vertente 112 conservacionista começou a pesquisar formas tradicionais de exploração dos ecossistemas amazônicos praticadas pelos diversos grupos sociais da região, com particular ênfase nas sociedades indígenas. Já quanto à corrente socioambientalista, lembra que seus constituintes optaram por outro tipo de relacionamento com os povos tradicionais. Mediante alianças estratégicas entre setores do movimento ambientalista e grupos sociais, as reivindicações dos direitos dos povos, segundo ele, foram levadas diretamente ao cenário político, no qual, em muitos casos, teriam encontrado ampla ressonância. A outra vertente apontada por Little é o ecologismo, que, segundo ele critica as próprias bases do desenvolvimento capitalista implementado na Amazônia. Essa vertente procuraria, de acordo com o autor, mudanças radicais nas formas atuais de produção, chegando a questionar e atacar as ideologias produtivistas e de mercado que fundamentam as economias nacionais e mundial, sua maneira de incidir nas questões locais varia caso a caso, dependendo tanto da temática ambiental em questão quanto dos grupos locais envolvidos (apud BURSZTYN, 2004). As vertentes expostas ensejaram algumas de nossas análises ao longo do trabalho. A corrente, por exemplo, “ecologismo” suscitou nossa intenção de investigar a forma de produção da carpintaria. Já a corrente socioambientalista serve de aporte para a reflexão sobre aspirações de novas alternativas ao desenvolvimento, quanto à verificação de tendências preservacionistas nas práticas exercidas pelos carpinteiros navais. De posse destas visões, podemos observar entre os interlocutores o que se segue (e aqui tomamos a liberdade de repetir algumas das passagens já expostas em outros momentos do trabalho): José Ribeiro (Entrevistado em 14 de agosto de 2010) Pesquisadora: O que o Sr. poderia me falar sobre a fiscalização ambiental? José: Julgo correto porque alguns pescadores não tem o cuidado de soltar os peixes que não servem, deixando naquela agonia, não se pensa para o dia de amanhã, que se faz falta. Pesquisadora: E quando fiscalizam a retirada da madeira? José: Nesse caso, acho que se não se tirasse madeira muita gente tinha morrido, ou era doente, ou o peixe também apodrecia, ninguém pescava, nem nada. Acho que no Brasil não tem quem ajude, as autoridades, os políticos querem é explorar, nós somos 113 maltratados. Antes eu derrubava o pau pra fazer os feitios no lugar mesmo de onde eu tirava. Agora a gente tira mais pouca porque foi proibida. Waldy Araújo (Entrevistado em 07 de agosto de 2010) Waldy: Ninguém corta, tira um ou dois da ilha do Sarney. Mas quando tira é mangue morto, que tá seco, é que tá bom. Só que proibiram tirar o mangue, aí eu compro madeira emendada. Mas o ideal mesmo é usar Jaqueira de sítio, sem vida, jaqueira de 30-40 anos que cai, não tira madeira nova que ainda dá fruto. Pesquisadora: Como o Sr. sabe que não pode mais usar mangue? Waldy: Andaram dizendo por aqui, né? Dizem que o IBAMA que mandou parar. Dizem que tem que pagar uma multa por cada árvore tirada, isso faz o pessoal tirar mais pouco. Pesquisadora: E o combustível de algumas embarcações, não deixa rastro na água? Waldy: O diesel fuma o óleo, não dá poluição na água. Pesquisadora: E esses restos de madeira, a água leva? Waldy: Fica por aí mesmo, o pó da madeira não dá poluição, não dá catinga de nada. A ilha do Sarney, a qual se referiu, é uma porção do município de Raposa, onde existe uma mansão que recebe helicópteros com membros da família Sarney, historicamente consolidada na gestão do Estado do Maranhão. Tal porção de terra é permanentemente vigiada, podendo adentrar apenas quem tem permissão expressa. Tais informações são extraídas de relatos dos próprios interlocutores. Davi Martins (Entrevistado em 29 de dezembro de 2010) Pesquisadora: Quando você tirava com o machado, nascia por debaixo? Davi: Não. Pesquisadora: Mas, ai, tinha que escolher alguma (árvore)? Davi: Tinha que escolher a que prestasse também. Não ia derrubando toda, a natureza toda não. Pesquisadora: É só uma? Davi: É só uma, uma ou duas. A gente via onde ia cair pra não prejudicar muito a natureza toda. Pesquisadora: Mas porque o Sr. se preocupava em não derrubar a natureza toda? Davi: Pra ver se nascia mais. Hoje me dia, a maior dificuldade é material pra embarcação. 114 Pesquisadora: Não dá pra tirar nem um pau de mangue pra fazer uma parte da embarcação? Davi: Dá pra tirar pra fazer, só que é proibido. Pesquisadora: Como assim? Davi: Porque é proibido tirar o mangue. Pesquisadora: De todos os lugares? Nem se fizer um acordo com o IBAMA? Como o Sr. sabe que é proibido? A fiscalização bate aqui? Davi: A fiscalização, às vezes quando tá aqui, eles chegam. Pesquisadora: E eles ficam perguntando? Davi: Ficam perguntando se tira do mangue. Pesquisadora: Mas eles não querem nem saber para que? Davi: Não querem nem saber. Multa na hora. Pesquisadora: Como é que multa? Davi: Às vezes a gente corta um pau de mangue, um galho desses é uma multa de R$50,00, R$100,00 reais. Aí conforme o tanto. Pesquisadora: Se não fosse proibido tirar o mangue? Davi: Aqui já tava tudo embaixo da água. Aqui tudo era cheio de casa. Pesquisadora: Mas eu digo assim, para fazer os barcos? Davi: Se não fosse proibido, a gente de vez em quando tirava tábua do rio pra fazer. Pesquisadora: Mas o Sr. não acha que ia destruir tudo? Davi: Ia destruir. Pesquisadora: Não dá pra tirar só um aqui e outro ali? Davi: Não, isso aí não. Pesquisadora: Aí ia destruindo? Davi: Ia destruir. Pesquisadora: Então, o Sr. acha que é melhor não tirar mangue? Davi: Não tirar de jeito nenhum. Pesquisadora: E outras árvores? Davi: Aí tem que tirar. Pesquisadora: O pequi tá proibido? Davi: Tá proibido. Pesquisadora: E pra substituir o pequi por um outro que não esteja proibido? Não tem jeito? Davi: Não tem jeito 115 Pesquisadora: Como é que vai fazer quando acabarem todos os pequis? Davi: Aí, eu não sei. Porque aqui é serviço o tempo todo. Pesquisadora: E ai? como é que vão ficar as embarcações? Davi: Fica difícil. Carlos Magalhães (Entrevistado em 28 de dezembro de 2010) Pesquisadora: O Sr. acha que, por exemplo, na região da Maioba, retirar de lá uma jaqueira, daria pra construir uma embarcação ou quantas precisava? Carlos: Às vezes uma, dá mais de uma embarcação porque elas são ramalhudas. Elas não são arvores que crescem só aquela espiga não, né? Às vezes, eles dão, o caule dela dá negocio de três, no máximo, quatro metros. Elas ficam cheias de ramadas, de galhadas. Ai, das galhadas se tira o cavername porque quando ela é grande, às vezes uma só dá várias cavernadas. Pesquisadora: Pelo que eu já ouvi falar, é melhor quando ela já tá morrendo. É isso? Carlos: É. Porque o branco dela não tem utilidade nenhuma. Curva depressinha. Quando ela já tá morrendo é porque ela já tá madura. O âmago dela já tá ultrapassando, já tá chegando o limite dela. E quando ela vai engrossando, o âmago dela se chama o miolo, ela vai aumentando, aumentando, até quando ela chega pertinho já da gente. Aí ela já começa a morrer. Pesquisadora: Então daria pra fazer tudo de jaqueira? Carlos: É por isso que eu estou lhe falando. Ela a gente não procura porque elas tão proibidas, né? Pesquisadora: A jaqueira? Carlos: É. Ela é proibida cortar. Então, às vezes o cara só corta quando ele vai precisar. Por exemplo, ele tem uma... Por exemplo, isso aqui é meu terreno, ali era um pé de jaqueira. Se eu fosse construir uma casa aqui, né? Eu tinha que cortar o pé de jaqueira. E ainda, Carlos: Se não existisse a natureza onde que a gente ia conseguir esse material? Vem da natureza. A natureza que criou. Não foi eu, não foi o ser humano. Isso é obra da natureza que criou esse material. As arvores, a gente vê. Pesquisadora: E onde o Sr. compra a estopa? Carlos: Os comércios. Os comércios que traz pra vender aqui. E o outro tipo de estopa que a gente usa também. Hoje já tá usando muito, até deixando essa estopa de carne (feita de madeira) de lado, até porque ela já tá difícil. Os tiradores não tão podendo mais 116 tirar. O IBAMA também está batendo em cima deles. A gente usa muito a estopa de nylon, nylon de seda. Anselmo Góes (Entrevistado em 30 de novembro de 2010) Pesquisadora: Para retirar a madeira da mata? O Sr. já chegou a retirar? Anselmo: Já cheguei a retirar de sitio, não é totalmente da mata. Mas eu também já trabalhei na mata. Já lhe mostrei um serrote que eu tinha aqui. Eu já retirei da mata totalmente a árvore. Já fui lá retirei a tábua da mata, tudo isso eu já fiz. Hoje não tem mais. A gente não vai mais porque não tem como. E assim se tem alguma coisa por aqui, não dá pra tirar porque o IBAMA não deixa. E ainda, Anselmo: Não. Esse lado do pequi a gente compra em depósito. Mas eu sei que ele tá privado. Ele tá. Mas eles conseguem tirar, não sei como. Eles conseguem tirar que os depósitos aqui tudo tem. As pranchas assim largas pra vender. Tudo não falta aí. Ainda, Pesquisadora: Aí conforme fosse tirando as jaqueiras, como ia ser a ideia pra elas não acabarem? Porque o Sr. já ia tirar ela morta, né? Anselmo: Olha tem muita. Aqui na Maioba, na Marajau, na São Jose de Ribamar tem muita jaqueira já velha que não bota mais. Paço do Lumiar, então, tem tanta. Aquelas jaqueiras que já tão morrendo, que não bota mais jaca. Se bota, a jaca é um bago que não enche mais. Têm tantas que eles até cortam e chamam o corpo de bombeiros e usam aqueles caminhão pra botar no lixo. Ou quer fazer uma casa naquele local e aquela jaqueira tá atrapalhando, não acha pra quem dar, não acha pra quem vender. Então pega o carro e bota fora. Não tem pra quem dar. Pesquisadora: Então o que o Sr. estava dizendo é que tem muita, então não precisa se preocupar em estar plantando outras. Anselmo: Não, não. Tem demais. Eles oferecem pra gente. Às vezes até dão. “leva pra ti, desocupe o lugar”. Roberto Leite (Entrevistado em 03 de janeiro de 2011) Pesquisadora: Mas tem ainda algum outro lugar por perto que ainda exista? Roberto: Acho que não. Só a única que tem ainda é a mangueira, jaqueira já tá em extinção. Não existe mais das velhas não, só novinha. Pesquisadora: E quando fazia isso ainda nascia? 117 Roberto: É porque a gente só fazia isso com aquelas, como é que se diz, predominada pra queda, no caso frágil pra queda, que tava arrancando raiz, essas era a que a gente mexia. Pesquisadora: E aí nascia por baixo? Roberto: Não, aonde arranca uma não nasce outra, só se plantasse. Pesquisadora: Mas o senhor nunca chegou a plantar? Roberto: Não. Ninguém tinha esse tipo de preocupação, né? É porque ninguém achava que ia acabar. Pesquisadora: Mas se fosse depender dos carpinteiros, o senhor acha que já tinha acabado o mangue daqui? Roberto: Já, se ainda tivesse no uso, já tinha acabado já. Pesquisadora: Não tem alguma ideia que o senhor acha que possa ter entre os carpinteiros, para não perder a madeira? Para continuar usando a madeira? Roberto: A ideia que tem, é como se diz. É comprar de fora. Que fora tem recurso de matas né? Aqui dentro do Maranhão, São Luís não tem. Por exemplo, no Pará, em Imperatriz. Para lá tem matas que a gente ainda pode tirar. E ainda Pesquisadora: E a sua relação com os recursos naturais? O que o senhor entende por recursos naturais? Roberto: O que eu entendo é que não se deve extrapolar no benefício da madeira. Porque se começa a tirar muito, depois a gente fica sem. Que nem o mangue, quando a gente tinha serraria mandava derrubar as toras de madeira, para fazer tábua, ripa, telhado de casa, eu tirava muito. Aí depois foi sumindo. Aí agora não se vê mais madeira para benefício. Vê árvore pequena assim, não vê mais como tinha. Até porque naquela época era mais difícil tirar a madeira, agora já tem muita motosserra. Negócio de padaria, as padarias acabaram tudo. Se o IBAMA não tivesse aparecido aqui, não existia mais mangue no Maranhão. As padarias que não trabalhavam com eletricidade, ai, é tudo na base do carvão. Aí proibiram. Neste cenário, convém destacar o questionamento do compromisso das “populações tradicionais” para com a conservação ambiental travado por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro de Almeida (2009), de modo que não podemos afirmar, pelo observado durante a pesquisa, que na carpintaria naval artesanal de Raposa todos os interlocutores sejam dotados de uma consciência ambiental expressiva, a ponto de 118 expressar um perfil pautado em uma predisposição ao uso sustentável da natureza. A exemplo das falas de Roberto: “ninguém achava que ia acabar” e de que se dependesse dos carpinteiros o mangue de Raposa já teria acabado. E a exemplo da interpretação das soluções propostas que geralmente são no sentido de recorrer a recursos em outras localidades que os possuem em abundância. Porém, fatores como a escolha de espécies quando “começam a morrer” ou “ver onde a árvore ia cair pra não prejudicar muito a natureza toda”, ou “se não fosse proibido a gente, de vez em quando, tirava tábua do rio pra fazer” podem estar relacionados a práticas sustentáveis. Talvez pela própria garantia dos meios de produção - “se não existisse a natureza onde que a gente ia conseguir esse material?”. Assim, ocorre atualmente entre os carpinteiros de Raposa uma falta de clareza em relação ao permitido e ao proibido no que tange ao uso dos recursos naturais em suas produções. Além das incertezas quanto às espécies que estão ou não em extinção, muitas falas se revelam contraditórias quanto à disponibilidade dos recursos. Apesar de grande parte das falas ensejar o fato de, atualmente, não haver retirada de madeira da região, observamos que ainda se recorre aos recursos das redondezas - estas também abarcadas pela APA de Miritiba e nos limites da Amazônia legal - e que, talvez, tenha havido omissões durante as falas diante do temor da fiscalização. Conforme visto na legislação ambiental relacionada, portar motosserra sem licença é ilícito penal, fazer construções que deixem resíduos sem licença e controle do órgão competente também é ilícito penal, assim como cortar ou utilizar madeira imune ao corte também o é (caso do pequi), bem como causar destruição a mangue, deixar resíduos da produção sujeitos a escoamento (caso dos estaleiros em contato com a água) e utilizar recursos de Unidade de Conservação sem autorização pública. A ferramenta de gestão que poderia descriminalizar tais condutas a partir da avaliação do nível de impacto das atividades, que é o plano de manejo, não tem previsão para implementação, tampouco existe outra alternativa a qual se possa recorrer, segundo a chefe da APA em questão. 5. CONCLUSÃO Nossa pesquisa buscou compreender no trabalho e no cotidiano de profissionais (e aqui adotamos a categoria nativa) da carpintaria naval de Raposa – MA suas relações 119 com a natureza e recursos naturais, ou seja, em que medida a natureza contribui para a materialidade do trabalho destes profissionais. A escolha do município se deu diante da importância da produção naval artesanal para este e por estar situado na Amazônia legal brasileira, bem como pela observação do fenômeno da indefinição do que é possível ou não quanto à utilização dos recursos naturais disponíveis na região na produção naval artesanal. Assim, buscamos entender o que determina o uso da natureza na produção naval artesanal, em que medida os profissionais utilizam os recursos disponíveis na região, o que impede ou facilita e como se processa o uso de recursos naturais, se há uma predisposição por parte dos mesmos ao uso “sustentável” destes recursos, se há um enfrentamento diante da falta de clareza das normas do possível e se há reinvenções no processo de produção decorrentes da atual relação dos atores sociais com a natureza. Para tanto, apresentamos elementos constitutivos de sua identidade, a partir da análise do uso dos recursos no processo de trabalho, expondo no que tange ao artesanato e à tradição, elementos relativos à identificação profissional, às atividades exercidas, ao local de trabalho, ao histórico de produção, à relação dos profissionais com os produtos de seu trabalho, à relações sindicais, hierárquicas e suas aspirações em relação a produção. Identificamos ainda elementos componentes da cadeia de valor na produção como questões referentes a processos de design, manufatura, comercialização e entrega das embarcações, além de questões relacionadas à concorrência e demanda locais. E discutimos partir da categoria “população tradicional” questões como o processo e local de aprendizado e meios de transmissão do conhecimento, de modo que pudemos observar a importância de suas referências matemáticas para o exercício da profissão sob o prisma do etnoconhecimento. Pudemos perceber que a apropriação dos recursos naturais como meio de produção é ou foi, um dos componentes do processo artesanal de trabalho dos carpinteiros navais estudados. Assim, para compreender em que medida a natureza está relacionada ao trabalho destes profissionais, procuramos identificar paradigmas e representações de natureza a partir de suas associações aos termos “natureza” e “recursos naturais”. Seguimos apresentando o meio natural local, e expusemos a legislação ambiental a que este lugar se relaciona - o que se mostrou relevante para a compreensão da clareza do que é ou não possível a respeito do uso dos recursos na região, e de como os atores 120 dialogam com estas normas -, expondo os usos sociais das embarcações artesanais na região. Em seguida, buscamos compreender a relação dos interlocutores com os recursos utilizados no processo de trabalho, suas maneiras de agir em seu espaço natural, suas estratégias, técnicas, e conhecimentos sobre as influências dos fatores ambientais a seu redor. Contemplamos questões como os modos obtenção da matériaprima, incluindo retirada e ou compra de madeira, espécies que vegetais que costumam empregar, o conhecimento sobre as espécies, técnicas, épocas e locais de retirada. Por fim, ao abordamos a existência de uma potencial predisposição ao uso sustentável da natureza por parte dos atores em questão e sobre possibilidades e limites do uso dos recursos naturais. Observamos que, de maneira geral, os profissionais utilizam tradicionalmente os recursos disponíveis na região (Raposa e redondezas), esta utilização que se dá através da retirada de madeira de matas e sítios, bem como de regiões de mangue. A utilização de recursos também é notada no local de trabalho, na medida em que utilizam a água de igarapés, rios, riachos e praias para a chegada, saída e flutuação de embarcações. Observamos ainda a existência de conhecimentos tradicionalmente adquiridos a respeito das espécies vegetais, suas aplicações, seus melhores períodos de retirada, suas condições para retirada, tempo de vida e influências do calendário lunar em relação à madeira. Concluímos que os interlocutores demonstraram a existência de um temor em relação à fiscalização ambiental, que, entretanto, não impede a retirada de determinadas espécies por parte de alguns carpinteiros. O que transpareceu nas falas foi a atual habitualidade na compra de madeira diante da alegação de impossibilidade pelo risco da aplicação de multas ou de que não exista mais tanta oferta na região. Porém, as falas são bastante controvertidas em relação à oferta de espécies e à supostas ameaças de extinção. A nós, restou a interpretação de que a compra de madeira aparentemente descarta qualquer temor de cometimento de ilicitudes, porém, analisando a legislação relacionada ao tipo de madeira que costumam aplicar, resta a conclusão de que a mera aplicação de tais espécies por si só já configuraria ilícito penal. Não observamos qualquer enfrentamento diante das incertezas quanto ao uso dos recursos no sentido de procura de informações junto a órgãos ambientais. Pudemos perceber que para a maioria dos interlocutores a compra de madeira facilita o trabalho, 121 mas que alguns acreditam que encarece o produto final. Vale lembrar que a grande maioria não tem acesso a créditos que não sejam os adiantamentos dos clientes. De posse destes dados, pudemos concluir que os carpinteiros navais de RaposaMA passam por um processo de transformação do território em que vivem e executam suas atividades, estando, para eles, obscuras as regras do que é ou não possível se fazer em relação aos usos sociais dos recursos tradicionalmente por eles utilizados. Tal observação, ganha maior relevância diante do fato de que os territórios tradicionalmente explorados para a obtenção de matéria-prima entre os carpinteiros se localizam em área legalmente constituída como Unidade de Conservação de Uso Sustentável, qual seja, a APA de Miritiba, criada em junho de 1992, da qual os carpinteiros não têm conhecimento e que, até a presente data, não possui plano de manejo ou qualquer outra ferramenta de gestão disponível na legislação relacionada. De tudo, não podemos afirmar que na carpintaria naval artesanal de Raposa exista um perfil pautado em uma predisposição ao uso sustentável da natureza, fator considerado relevante no que diz respeito ao que aqui expusemos em relação às populações tradicionais. Porém, diversos elementos nas falas dos interlocutores podem estar relacionados a práticas sustentáveis, especialmente aqueles que expressam suas relações de conhecimento em relação às espécies vegetais. Diante dessa lógica, observamos nas relações dos interlocutores com a natureza do lugar a provisão dos meios de trabalho da carpintaria naval, bem como que suas práticas e racionalidades produtivas estão relacionadas a seus conhecimentos quanto às espécies vegetais tradicionalmente utilizadas, bem como a suas cosmologias e, portanto, suas identidades. Nos parece merecer relevância o fato de que a relação dos agentes com a natureza, suas cosmologias e seu modo de vida diferenciado sejam fatores que influenciam na reprodução de suas necessidades materiais, especialmente se levarmos em consideração o processo artesanal de produção que tem reflexos para toda a comunidade do município e adjacências, na medida em que produzem valores de uso social econômica e culturalmente significativos para si e para outrem. 122 REFERÊNCIAS ALCÂNTARA JÚNIOR, J. O. Georg Simmel e o conflito social. Caderno Pós Ciências Sociais - São Luís, v. 2, n. 3, jan./jun, 2005. ANDRÉS, Luiz Phelipe de C. C. 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Gostaria de contratar empregados Gostaria de ter um estaleiro grande Produz tendo em vista quesitos beleza e utilidade e qual é considerado mais importante Liberdade para início do trabalho Habilidade para o trabalho - papéis das mãos e da cabeça nesse sentido Jornada de trabalho Modo de obtenção e transmissão dos conhecimentos influência da matemática em seu trabalho vínculo dos carpinteiros navais com o município concepções sobre a natureza concepções sobre os recursos naturais forma com a qual lidam com o ambiente espécies vegetais que costumam empregar a forma de aquisição da madeira carpinteiros quais as técnicas utilizadas época da retirada da madeira conhecimento sobre o material compra de madeira preço da folha de compensado precisou tirar madeira da mata pra fazer reforma 129 tipo de madeira que costumava pegar (da mata) onde costumava pega encontrava na região da Raposa manusear madeira na mata de suas práticas nasciam novas árvores nasciam mudas por debaixo árvores retiradas chegou a plantar mudas preocupação no replantio diferença no uso de madeira em folha ou em toras relação com o calendário lunar quanto tempo a madeira leva pra crescer quais espécies usadas na produção de embarcações brotam após o corte Número de jaqueiras necessárias para na construção de uma biana Normas ambientais relacionadas quais são são as normas de fiscalização pra essas comunidades tradicionais ferramentas que favorecem o uso sustentável pela comunidade existência de plano de manejo existência de conselho gestor da unidade há acordos para o uso dos recursos como são executadas as multas corte do mangue corte do pequi substituição das espécies sugestões para que não se perca a madeira disponível na região . 130