RAÍSSA MOREIRA LIMA MENDES
MEIOS E AMBIENTES: natureza e produção na carpintaria naval artesanal de
Raposa - MA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA, como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes Sant´Ana
Júnior
1
São Luís
2010
RAÍSSA MOREIRA LIMA MENDES
MEIOS E AMBIENTES: natureza e produção na carpintaria naval artesanal de
Raposa - MA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA, como requisito parcial para
a obtenção do grau de Mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes Sant´Ana
Júnior
Aprovada em _____/_____/______
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Prof. Dr. Horácio Antunes Sant´Ana Júnior (Orientador)
_______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Madian de Jesus Frazão Pereira (Co-orientadora)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller
_______________________________________________________
2
Prof.ª Dr.ª Denise Machado Cardoso
3
Mendes, Raíssa Moreira Lima.
Meios e Ambientes: natureza e produção na carpintaria naval de
Raposa - MA/ Raíssa Moreira Lima Mendes. São Luís:
UFMA/CCH/PPGCSOC, 2011.
xi, 108 p. il.
Dissertação – Universidade Federal do Maranhão, CCH, PPCSOC.
1. Carpintaria Naval. 2. Artesanato Tradicional. 3. Usos sociais
dos Recursos Naturais. 4. Dissertação.
(Mestrado – UFMA/CCH/PPGCSOC). I. Título
Dedico esta obra à fé que em mim depositaram:
Minha vida, mãe e eterna professora, Terezinha Moreira Lima.
Minha amiga Nicole Costa de Campos.
Meu comprometido orientador, Horácio Antunes Sant´Ana Jr.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos amigos-professores, prof. Horácio Sant´Ana, prof. Marcelo
Carneiro e prof.ª Sandra Nascimento. Ao professor e tutor Paulo Fernandes Keller. Ao
prof. Benedito Souza Filho e ao PROCAD (PPGCS-UFPA/ PPGCSoc-UFMA/PPGSAUFRJ) – Territórios Emergentes da Ação Pública Local e Desenvolvimento Sustentável
na Amazônia Brasileira e às professoras que me receberam na UFPA, prof.ª Maria José
Aquino, prof.ª Denise Cardoso, prof.ª Diana Antonaz, prof.ª Eliane Moreira. Aos
artesãos da carpintaria naval interlocutores de minha pesquisa, que dela em diante
deixaram rastros em minha história. E em especial, agradeço a Terezinha Moreira Lima,
Josefa Batista Lopes e Hugo Graça Pinheiro.
5
6
“[...] que também eles sejam um em nós.”
RESUMO
Esta pesquisa parte do interesse na compreensão das relações dos profissionais
da carpintaria naval artesanal de Raposa – MA com a natureza e recursos naturais. A
partir do estudo do trabalho e cotidiano de profissionais buscou-se entender o que
determina o uso da natureza na produção naval artesanal, em que medida os
profissionais utilizam os recursos disponíveis na região e o que impede ou facilita tal
processo. O uso da etnografia permitiu a que se explorasse o modo como representam
seus espaços e meios de trabalho e como traduzem suas experiências em relação à
produção, à natureza e aos recursos, questões que são discutidas sob o prisma do
etnoconhecimento, da sustentabilidade e da instituição de novas territorialidades na
Amazônia Legal.
Palavras-chave: Carpintaria naval. Artesanato tradicional. Usos sociais dos recursos
naturais.
7
ABSTRACT
This research is about understanding the relationship of professional naval craft
carpentry of the city Raposa - MA with nature and natural resources. From the study of
work and daily life of professionals sought to understand what determines the use of
nature in naval craft producing, the extent to which professionals use the resources
available in the region and what facilitates or hinders this process. The use of
ethnography allowed to explore how to represent their areas and ways of working and
how they translate their experiences in relation to production, nature and resources,
issues that are discussed under the prism of ethnic knowledge, and sustainability, and of
the institution the new territoriality in the Legal Amazon.
Keywords: Naval Carpentry. Traditional crafts. Social uses of natural resources.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Rede – Estaleiro de Anselmo.................................................................
p. 34
Figura 2: Mestre Osmar Melo na Oficina de Modelismo Naval............................ p. 37
Figura 3: Bote proa de risco...................................................................................
p. 39
Figura 4: Biana....................................................................................................... p. 39
Figura 5: Casquinho...............................................................................................
p. 41
Figura 6: Bianas e casquinhos em Raposa – MA................................................... p. 58
Figura 7: Município de Raposa – MA...................................................................
p. 59
Figura 8: Localização do Município de Raposa – MA..........................................
p. 58
Figura 9: Embarcações de Turismo no Cais da Raposa......................................... p. 74
Figura 10: Passeio em Carimã...............................................................................
p. 74
Figura 11: Fazenda de ostras.................................................................................. p. 75
Figura 12: Barcos de pesca em Raposa – MA.......................................................
p. 75
9
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Entrevistas realizadas no trabalho de campo.........................................
p. 05
10
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1: Questões aplicadas nas entrevistas.........................................................
p.116
11
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO Erro! Indicador não definido.
2
TRABALHADORES DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL Erro! Indicador não definido.
2.1
Caracterização dos atores sociais .................................. Erro! Indicador não definido.
2.1.1
Apresentação dos carpinteiros navais interlocutores da pesquisa Erro! Indicador
não definido.
2.1.2
2.2
3
Breve leitura de variações e aproximações ........... Erro! Indicador não definido.
A dinâmica da cadeia de valor ...................................... Erro! Indicador não definido.
O FAZER ARTESÃO, A TRADIÇÃO
23
3.1
Etnoconhecimento, etnomatemática ............................................................................ 41
3.2
Discussão a partir da categoria população tradicional .. Erro! Indicador não definido.
4
O MUNICÍPIO DE RAPOSA NO CONTEXTO DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL Erro!
Indicador não definido.
4.1
5
Apresentando o Município ............................................ Erro! Indicador não definido.
NATUREZA E USOS SOCIAIS NA PRODUÇÃO LOCAL
5.1
Erro! Indicador não definido.
Usos sociais e técnicas de obtenção da matéria-prima .. Erro! Indicador não definido.
5.2
Inserção e efeitos de novos elementos e atores na dinâmica da cadeia produtiva
...........................................................................................................................Erro!
Indicador não definido.
5.3
6
Concepções de possibilidades e limites: predisposição ao uso sustentável da natureza?
Erro! Indicador não definido.
CONCLUSÃO
Erro! Indicador não definido.
REFERÊNCIAS Erro! Indicador não definido.
ANEXO I......................................................................................................................116
12
1. INTRODUÇÃO
A realização do estudo proposto pautou-se no interesse de compreender a
realidade social no que tange aos usos sociais dos recursos naturais em territórios
amazônicos.
Quanto às trajetórias vivenciadas para se chegar ao objeto de estudo, vale
ressaltar o histórico da pesquisadora a respeito da produção de embarcações artesanais,
que conta com quatro anos de interesse. E que, em um primeiro momento, em sede de
trabalho de conclusão de graduação no curso de Direito, versou sobre a tutela do
patrimônio cultural imaterial brasileiro e se buscou demonstrar que os modos de fazer
constituídos na carpintaria naval artesanal maranhense deveriam alcançar status de bem
cultural imaterial pelas peculiaridades e modo de transmissão dos saberes instituídos na
prática dos profissionais envolvidos na produção de embarcações tipicamente
maranhenses.
Já com um novo viés, a partir das observações e entrevistas que encabeçaram a
pesquisa da graduação, com o ingresso no curso de mestrado em Ciências Sociais, o
interesse pautou-se em compreender sociologicamente relações da produção da
carpintaria naval com o uso de recursos naturais legalmente protegidos ou preservados.
Compreender a importância destes recursos para a reprodução da materialidade da
produção naval, de que maneira se dá tal processo entre os atores da carpintaria naval.
Ressaltamos que o interesse por questões ambientais é constante no histórico da
pesquisadora desde a graduação, reforçada pela inserção no ano de 2009 no GEDMMA
(Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão
(PPGCSoc/UFMA), coordenado pelos professores, Dr. Horácio Antunes de Sant´Ana
Júnior, Madian de Jesus Pereira Frazão, Ms. Elio de Jesus Pantoja Alves e Ms.
Bartolomeu
Rodrigues
Mendonça.
No
referido
Grupo,
questões
como
socioambientalismo, impactos socioambientais de projetos de desenvolvimentos sobre
grupos sociais locais, serviram de aporte para desenvolver reflexões sobre a relação dos
operários navais artesanais com a natureza.
Reforço ainda maior ocorreu com a participação em missão de estudos em
Belém-PA no ano de 2010, por meio do PROCAD (PPGCS-UFPA/ PPGCSocUFMA/PPGSA-UFRJ) – Territórios Emergentes da Ação Pública Local e
Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira, visto que dentre seus objetivos
13
encontramos abordagens que se afinam com o objetivo desta pesquisa, especialmente
por proporcionar a participação em duas disciplinas do Programa de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Pará – UFPA que incluíram temáticas sobre usos sociais de
recursos naturais, forte linha de pesquisa na referida instituição, além de proporcionar o
afinamento com docentes na discussão sobre uso de recursos naturais em unidades de
conservação de uso sustentável.
Assim, no trabalho proposto, procuramos acompanhar as relações com a
natureza e os recursos naturais na produção da carpintaria naval artesanal no Município
de Raposa, parte integrante da Amazônia Legal Brasileira, situado no Estado do
Maranhão. Já que o município contém dezenas de atores sociais envolvidos na produção
de embarcações artesanais, em torno de cinqüenta, e abriga grande comunidade
pesqueira do Estado, necessitando de profissionais que assegurem sua construção e
manutenção.
Devemos ressaltar, entretanto, que o uso das embarcações artesanais oriundas
da produção de tais profissionais não se restringe ao município da Raposa, visto que a
demanda surge de diversas localidades, especialmente do norte e nordeste brasileiros.
Assim, embarcações artesanais são importantes elementos para a reprodução da vida
material em Raposa.
O surgimento do interesse sociológico pela produção da carpintaria naval
artesanal raposense surgiu da observação do fenômeno da indefinição do que é possível
ou não quanto à utilização dos recursos naturais disponíveis na região na produção
naval artesanal.
Ou seja, os atores sociais envolvidos na confecção de embarcações artesanais em
Raposa não têm claro o que podem ou não podem extrair da natureza para utilizarem em
sua produção. Assim, buscamos entender quais as representações de “natureza” e
“recursos naturais” elencadas pelos atores sociais em questão, o que determina o uso da
natureza na produção naval artesanal, em que medida os profissionais utilizam os
recursos disponíveis na região, o que impede ou facilita e como se processa o uso de
recursos naturais, se há uma predisposição por parte dos mesmos ao uso “sustentável”
destes recursos, se há um enfrentamento diante da falta de clareza das normas do
possível e se há reinvenções no processo de produção decorrentes da atual relação dos
atores sociais com a natureza e recursos legalmente protegidos ou preservados.
As questões abordadas inspiram-se na busca de produção do conhecimento para
uma nova sociabilidade, e, à universidade pública está posta a urgência na produção
14
qualificada do conhecimento (LIMA, 2006). Essa atual conjuntura é vista nesta proposta
como configurações que envolvam a gestão da natureza e de seus recursos, de modo que
é necessário compreender a relação dos atores sociais com seu ambiente natural.
Assim, o método etnográfico é o aporte para a construção da pesquisa, bem
como a utilização de investigação documental, especialmente na coleta de dados
geográficos, estatísticos e a respeito das leis e normas oficiais vigentes, bem como a
contextualização das instituições envolvidas.
A etnografia se mostra necessária para compreender a relação dos atores sociais
com sua atividade profissional e, portanto, com os recursos utilizados na produção.
Mostra-se como esforço intelectual do pesquisador através de uma antropologia
interpretativa (GEERTZ, 1978), cuja pretensão é seguir o trabalho antropológico de
olhar, ouvir e escrever, proposto por Roberto Cardoso de Oliveira (2006, p. 31). Para
este autor, saber como os homens vivem é saber como pensam, como representam seus
espaços de trabalho e traduzem suas experiências. O trabalho, assim, inclui a
observação (com uso do caderno de campo) e entrevistas abertas (nas quais o
entrevistado é livre para discorrer sobre o assunto), com questionário semi-estruturado,
no qual novas perguntas surgem a partir das respostas anteriores e da observação
imediata. Tal método é utilizado a partir do pressuposto de que o papel da antropologia
interpretativa não se resume a responder às questões mais profundas, mas visa colocar à
nossa disposição a resposta que outros deram (GEERTZ, 1978).
Sabendo que compreender não consiste simplesmente em representar “o ponto
de vista do nativo, numa romântica pretensão de igualdade ou numa difícil orquestração
polifônica”, concorda-se que as interpretações antropológicas devem diferir dos
relatórios dos nativos e que a força da interpretação reside nessa distância que permite
ao analista construir o sentido (MALIGNHETTI, 2004, p. 114).
Assim, propõe-se uma compreensão que requer uma relação dialética entre
nossas pré-compreensões e as formas de vida que estamos tratando de compreender,
colhendo a “sua” visão com o “nosso” vocabulário, a nossa linguagem, a nossa escritura
(MALIGNHETTI, 2004, p. 114).
Vale ressaltar que “a pesquisa não consiste só em aprender as regras locais do
saber-viver, a se deixar viver e a explicitar o que acontece” e que:
O saber-fazer do etnógrafo consiste essencialmente em técnicas gráficas, em
sistemas de anotações: o diário de campo, a transcrição da entrevista. Fazer
observações e entrevistas e analisá-las são as duas pernas sobre as quais se
sustenta para fazer avançar a pesquisa (BEAUD e WEBER, 2007, p. 93).
15
A análise da configuração em questão leva em conta que se pode qualificar
“configuração” como um “espaço de pertinência”: que “é uma situação, com dimensão
espaço-temporal variável, a tal ponto que o que se passa ali produz um efeito sobre
todos os seres que nela estão implicados, que contribuem, eles mesmos, com suas ações,
para modificar esta situação” (HEINICH, 2001, p. 122-123).
As formas materiais e simbólicas com as quais os atores dessa dinâmica agem
sobre seu espaço natural, suas estratégias técnicas e sociais e as influências dos fatores
ambientais são aportes já utilizados em estudos de populações pesqueiras (SANTANA,
2006), de onde se extrai inspiração para a reflexão a respeito de atores sociais da
carpintaria naval artesanal. Dos estudos entre populações pesqueiras, destaca-se a
proposição de que cada forma de produção determina modos e normas de utilização da
natureza, representações do meio sobre o qual essas práticas se realizam e de um código
de interação entre os homens (SANTANA, 2006, p. 375). De forma que, indagamo-nos
sobre a possibilidade de argumento semelhante advindo do sistema de relações sociais
em que estão inseridos os operários da carpintaria naval maranhense da região indicada.
Assim, a pesquisa iniciou com survey na região, com idas a campo que lograram
êxito na instituição dos primeiros contatos com atores locais, depois de esclarecido que
se tratava de um trabalho acadêmico, já que, a princípio, um dos interlocutores
(carpinteiro naval) se mostrou apreensivo quanto ao interesse da pesquisadora sobre o
assunto, o que o levou a perguntar se seria da “fiscalização ambiental”.
A observação contou com outras seis idas a campo, nas quais foram
entrevistados sete carpinteiros navais, sendo seis de Raposa – MA e um de São José de
Ribamar - MA, além da esposa de um carpinteiro que executa tarefas na produção naval
artesanal em Raposa - MA, duas analistas da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos
Naturais do Maranhão – SEMA em São Luís. Contou ainda com a participação da
pesquisadora em atividades que envolviam o uso de embarcações artesanais e visita a
quatro estaleiros artesanais. Além de pesquisa bibliográfica, de dados referentes a
estudos científicos, boletins oficiais e normas ambientais.
Por tratar de questões que envolvem a legalidade de práticas e circunstâncias às
quais os atores objeto de estudo estão relacionados, optou-se por manter em sigilo as
identidades dos carpinteiros navais e de seus estaleiros, utilizando nomes fictícios para
entrevistados e estabelecimentos. Os nomes das entrevistadas da Secretaria de Meio
Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão – SEMA só foram mantidos quanto ao que
foi publicado em documentos oficiais utilizados no trabalho.
16
Tabela 1: Entrevistas realizadas no trabalho de campo
ENTREVISTADO
ATIVIDADE
LOCAL
DATA
Waldy Araújo
Carpinteiro naval
Raposa – MA
07-08-2010
José Ribeiro
Carpinteiro naval
São José de
14-08-2010
Ribamar – MA
Anselmo Góes
Carpinteiro naval
Raposa – MA
30-11-2010
Carlos Magalhães
Carpinteiro naval
Raposa – MA
28-12-2010
Davi Martins
Carpinteiro naval
Raposa – MA
29-12-2010
Roberto Leite
Carpinteiro naval
Raposa – MA
03-01-2011
Diego Vieira
Carpinteiro naval/
Raposa – MA
03-12-2010
Raposa – MA
02-01-2011
São Luís – MA
05-12-2010
São Luís –MA
17-01-2011
São Luís – MA
28-12-2010
guia de ecoturismo
Cristina Siqueira
Professora/
Comerciante/
Esposa de
carpinteiro naval
Maria Luiza Costa
Analista ambiental
da Secretaria
Estadual de Meio
Ambiente – SEMA
Andressa Melo
Chefe da APA
Upaon-Açu (...)
Carlos Magalhães
Sub-oficial da
capitania dos portos
Assim, o trabalho foi dividido em quatro capítulos além da introdução e
conclusão. O primeiro capítulo aborda a caracterização dos atores sociais da carpintaria
naval artesanal, apresentando os interlocutores da pesquisa e elementos constantes na
dinâmica da cadeia de valor do resultado da produção. O segundo capítulo apresenta o
processo artesanal de construção de embarcações, a tradição e a discussão a partir da
categoria “população tradicional”. Junto a isso aponta a questão do etnoconhecimento e
inclui o enfoque da etnomatemática na carpintaria naval artesanal.
17
No terceiro momento, adentramos a contextualização da carpintaria naval no
Município de Raposa-MA, apresentando o meio natural local de interesse para a
pesquisa e questões sobre “natureza”, bem como os usos sociais das embarcações
artesanais nas atividades locais. Também neste capítulo, estão inseridas as normas
ambientais relacionadas ao uso social de recursos naturais, o que se mostrou relevante
para a compreensão da falta de clareza sobre o que é ou não possível a respeito do uso
dos recursos na região, e de como os atores dialogam com estas normas.
No quarto capítulo procuramos apontar, de modo mais específico, os usos da
natureza na produção naval artesanal local e, a partir da análise da configuração em
questão, refletimos sobre a existência de alterações no processo produtivo e seus efeitos
em relação aos atores da carpintaria naval da região. Tal reflexão, que enfoca a alocação
da matéria-prima e das técnicas utilizadas para a obtenção desta, proporcionou, por fim,
a abordagem da existência de uma potencial predisposição ao uso sustentável da
natureza por parte dos atores em questão e sobre possibilidades e limites do uso dos
recursos naturais entre os interlocutores da carpintaria naval artesanal de Raposa – MA.
2. TRABALHADORES DA CARPINTARIA NAVAL ARTESANAL
2.1.
Caracterização dos atores sociais
Primeiramente devemos especificar a categoria da atividade “carpintaria naval
artesanal”. Sob o prisma institucional, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego
brasileiro, a atividade não está na listagem de profissões regulamentadas, entretanto,
aparece na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, que é o documento
normalizador do reconhecimento, nomeação e codificação dos títulos e conteúdos das
ocupações do mercado de trabalho brasileiro para fins classificatórios junto aos registros
administrativos
e
domiciliares
(http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf,
2010).
Segundo Boudon, de modo geral, para se considerar uma atividade “profissão”
geralmente se pressupõe que haja: a especialização do saber, que, segundo o autor traz
consigo uma determinação precisa e autónoma das regras da atividade; uma formação
intelectual de nível superior, que supõe a existência de escolas de formação
18
devidamente reconhecidas; e um ideal de serviço, o que sugeriria o estabelecimento de
um código deontológico e ao seu controle pelos pares (BOUDON, 1990, p. 198).
Se levarmos em conta as considerações de Boudon, especialmente no que tange
à suposição de escolas de formação devidamente reconhecidas, restaria dificultada a
relação do termo profissão à carpintaria naval artesanal, visto que aquisição dos
conhecimentos necessários para o exercício da atividade não inclui, obrigatoriamente,
formação intelectual de nível superior.
Oficialmente, profissão diz respeito a formação do individuo, seja ela obtida em
um curso superior, seja num curso técnico. Já ocupação refere-se ao tipo de trabalho que
o individuo desenvolve, podendo estar ou não relacionada à sua profissão (MACHADO,
2007).
Assim, entre as ocupações constantes na Classificação Brasileira de Ocupação –
CBO relacionadas à atividade se encontram a de Carpinteiro naval (construção de
pequenas embarcações), com o código 7771-05, a de Carpinteiro naval (estaleiros), de
código 7771-15, e a de mestre carpinteiro, de código 7701-10. De modo geral, as
descrições apontam as atividades de: modelagem de fôrmas, preparação de quilhas
(peças estruturais básicas do casco de uma embarcação) e montagem de cavernas (cada
uma das peças curvas que formam o arcabouço de uma embarcação), construção de
costados (revestimento ou forro exterior do casco da embarcação) ou tabuados, convés
(qualquer dos pavimentos de uma embarcação), casaria (parte coberta), porão da
embarcação, móveis e seus acessórios e estrutura de lançamento e de docagem,
preparação de bases para equipamentos e ferragens, reparação de embarcações,
avaliação de forma e dimensões de navalhas e moldes (MTECBO.GOV, 2010).
As descrições seguem apontando que nestas ocupações devem ser seguidas
normas de segurança, higiene, qualidade e preservação ambiental e que os indivíduos
são frequentemente expostos a materiais tóxicos, ruídos e altas temperaturas,
trabalhando em grandes alturas ou em locais subterrâneos, sujeitos ao estresse e a
permanecer em posições desconfortáveis por longos períodos. Porém, não apontam
quais órgãos estão incumbidos da fiscalização de tais normas, tampouco dos locais de
trabalho relacionados. Constam entre os dados que o trabalho é presencial, realizado de
forma individual (sem supervisão) ou em equipe (sob supervisão ocasional), de atuação
a céu aberto, no horário diurno (http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf,
2010).
19
Porém, as informações dadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego merecem
relativização, visto que são modelos gerais de atividades que de acordo com costumes e
regiões tendem a ser diferenciadas. É interessante a este estudo apontar, no que possível
for, as peculiaridades encontradas junto aos interlocutores.
Apesar de não estar instituída como “profissão” pelo órgão oficial brasileiro,
esta é a categoria nativa acionada para a indicação do conjunto de atividades que
envolvam carpinteiros navais. Assim, notamos a recorrência das denominações
“profissão”, “ofício”, ou “trabalho”, nos discursos dos próprios carpinteiros navais, fato
demonstrado com maior clareza no subitem seguinte do trabalho.
Para compreender a identidade no que tange ao trabalho na carpintaria naval da
localidade estudada, recorre-se a Denys Cuche. Segundo ele, “a identidade é uma
construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros grupos com os
quais está em contato” (CUCHE, 1999, p. 25). Ao exemplo disso, temos a fala do
carpinteiro naval artesanal Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28 de dezembro
de 2010) ao revelar o sentimento de desvalorização do trabalho que realiza em relação
aos “políticos em época de eleição” no Município de Raposa – MA, diz:
O trabalho na carpintaria naval não é divulgado, é discriminado, nos
discursos falam de rendeiras, motoqueiros, pescadores, comerciantes,
donas de casa, até do time de futebol, mas ninguém fala dos
carpinteiros navais (...).
Para Cuche, a defesa da autonomia cultural está estreitamente ligada à
preservação da identidade coletiva. “‟Cultura‟ e „identidade‟ são conceitos que remetem
para uma mesma realidade, vista de dois ângulos diferentes. A identidade cultural de um
dado grupo não pode compreender-se a não ser pelo estudo das suas relações com os
grupos vizinhos” (1999, p. 25).
E, ainda segundo Cuche, “o longo processo de hominização, iniciado há mais ou
menos quinze milhões de anos, consistiu fundamentalmente na passagem de uma
adaptação genética à sua adaptação cultural à natureza do meio ambiente” (1999, p. 25).
Assim, “a cultura permite ao homem não só adaptar-se ao meio, mas também adaptar
este a si próprio, às suas necessidades e aos seus projetos, ou seja, e por outras palavras,
a cultura torna possível a transformação da natureza” (1999, p. 26).
As características de sua interação com a natureza e com o universo são
elementos de referência de sua identidade coletiva. Assim, a materialização da cultura a
20
partir do trabalho dos profissionais da carpintaria naval artesanal é proporcionada pela
adaptação da natureza às suas necessidades.
Vale destacar que a carpintaria naval artesanal vem sendo investigada sob
diferentes óticas no Brasil. Como exemplos, há o curta metragem de Gavin Andrews,
intitulado Barco do Mestre (2007), realizado na foz do Rio Amazônia entre Pará e
Amapá, que apresenta a profissão a partir de exposições a alguns dos municípios com
tradição na atividade. Há ainda a dissertação de mestrado de Rodrigues (2004) sobre
etnomatemática na construção de uma canoa no Paraná. Bem como, o curta metragem
“Canoa de um pau roxo” de Gabriela Piccolo e Alberto Greciano sobre a construção da
canoa de um pau roxo às margens do rio Munin no Estado do Maranhão. Além da
pesquisa “Embarcações do Maranhão” sob a coordenação de Luiz Phellipe Andrés
(1998) e a monografia de Mendes (2007) sobre as tradicionais técnicas de construção
naval maranhense como bem cultural imaterial.
A obra de Luiz Phellipe Andrés (1998) acima mencionada apresenta diferentes
funções dentro da carpintaria naval artesanal identificadas no estado do Maranhão, quais
sejam: carpinteiro, calafate, pintor e veleiro.
Lembramos que nossa pesquisa identificou que nem sempre estas funções estão
em pessoas diferentes, já que há trabalhadores que efetuam uma ou mais funções,
admitindo-se mesmo os que efetuam todas as funções, em campo, identificamos ainda
outras funções indicadas pelos interlocutores, tais como a de “sentar” o motor,
instalação elétrica e hidráulica.
Assim, a carpintaria naval artesanal não abrange somente a função de
carpinteiros, que, a priori, são os que possuem o conhecimento de como lidar com
madeira no seu estado natural (madeira maciça), o que teoricamente os diferenciaria dos
marceneiros.
Ademais disso, temos no trabalho de Andrès (1998):
1) a função de carpinteiro naval, que seria a de “conhecer as proporções
corretas para embarcações de comprimentos diversos, ou seja, as
medidas que irão garantir sua estabilidade, saber definir qual tipo de
madeira para cada peça, o modelo adequado em função do uso a que se
destina e para cada tipo de água, etc” (ANDRÉS, 1998, pág. 32);
2) o calafate tem a função de “calafetar”, que é preencher os interstícios
entre do tabuado com estopa de algodão torcido e umedecido, bem como
impermeabilizar o local com um preparado que impede infiltrações e a
21
ação de microorganismos que atacam a madeira dentro da água, que,
também é aplicada para o prolongamento da vida útil da embarcação
após certo tempo de uso (ANDRÉS, 1998, p. 117);
3) o pintor dá acabamento ao trabalho do calafate, influenciando na
conservação da madeira, evitando danos produzidos pelo “gusano” ou
“turú” (sem nome científico identificado), espécie de molusco xilófago
(denominação utilizada para indicar animais que se alimentam de
madeira), fazendo uso de uma tinta especial que traz em sua composição
química um veneno que o intoxica, chamada “tinta envenenada”, e que é
aplicada na parte do casco que fica abaixo da linha d‟água, região
chamada de “obras vivas”, tratada com cores escuras como o preto e o
marrom; o pintor, também, aplica tinta na parte acima da linha d‟água,
chamada “obras mortas” com cores fortes e vibrantes, coloca o nome na
embarcação e pequenos elementos decorativos a gosto do proprietário;
4) o veleiro é quem confecciona e instala as velas, utilizando lonas de
algodão, adequando o tecido ao mastro (longa peça de madeira erguida
acima do convés para sustentar as velas), à retranca (grande peça de
madeira de secção circular por onde a esteia da vela é fixada) e ao pique
(peça de madeira de secção circular armada em ângulo com o mastro) da
embarcação, geralmente utiliza o tanino (substância extraída da raspagem
da casca de pau do mangue) para tingir o tecido e assim o proteger do
sol, águas do mar e das chuvas, podendo fazer uso ainda do sumo de
talos de bananeira, que funciona como fixador da cor (ANDRÈS, 1998,
p. 34).
E, além dessas funções, segundo Andrès haveria uma hierarquia entre os
trabalhadores da carpintaria, segundo a qual seriam identificados os mestres, tendo o
mestre uma “aura de respeitabilidade” adquirida entre os companheiros. Ele aponta
ainda a classificação de ajudante e a de aprendiz, que é a pessoa instruída e
acompanhada por alguém reconhecido como mestre, e que, através da prática e
observação, adquire os conhecimentos necessários (ANDRÈS, 1998).
A nosso entender, ajudante e aprendiz são classificações que se confundem,
visto que a maioria dos relatos aponta um aprendizado que ocorre quando o indivíduo
está “ajudando” outro carpinteiro.
22
2.1.1. Apresentação dos carpinteiros navais interlocutores da pesquisa
Em nossa pesquisa, entrevistamos oito pessoas que atuam na carpintaria naval.
Em Raposa, a maioria das escolhas dos entrevistados ocorreu de acordo com as
indicações dos carpinteiros, daqueles que, em suas opiniões, eram os mais conhecidos
no município. Porém, chegamos ao primeiro carpinteiro (Waldy Araújo) a partir da
indicação de informantes da colônia de pescadores da cidade. O entrevistado do
município de São José de Ribamar (José Ribeiro) foi escolhido por ter sido indicado por
pescadores locais como uma referência para a carpintaria naval em todo o Estado do
Maranhão.
Em sede de apresentação dos interlocutores, escolhemos os seguintes itens das
entrevistas para abordarmos neste momento do trabalho: nome; gênero; idade;
naturalidade; profissão declarada; atividades que exerce na carpintaria; informações
sobre o estaleiro onde executa suas atividades; número de embarcações construídas ou
reformadas; se o entrevistado possui embarcações para uso próprio; relações com
sindicatos; relações de hierarquia entre os trabalhadores; se o entrevistado trocaria sua
profissão por outra e, em caso afirmativo, por qual seria; e, colocações espontâneas
sobre a carpintaria naval.
Waldy Araújo
Waldy Araújo (entrevista realizada em 07 de agosto de 2010), gênero masculino,
60 anos, natural do Porto Mucaítuba, beira-rio, Município de São José de Ribamar,
mora e trabalha em Raposa, onde executa as funções de mestre carpinteiro, calafate,
pintor e veleiro, e “ainda bota o motor”.
Constrói as embarcações no quintal de sua casa cujos fundos dão para o mangue.
Segundo ele, aterrou “uma partezinha do mangue pra fazer uma passagem para o rio” e,
em 40 anos de trabalho, construiu mais de cinco mil embarcações artesanais, geralmente
sozinho ou com um ajudante.
Identifica-se como “mestre” e, segundo ele, não trocaria seu trabalho por
nenhum outro. A partir de mestre Waldy, conhecemos um de seus aprendizes que abriu
estaleiro próprio, Anselmo Góes.
23
José Ribeiro
José Ribeiro (entrevista realizada em 14 de agosto de 2010), gênero masculino,
80 anos, natural de São José de Ribamar, mora e trabalha naquele município, além de
diversas atividades que executou ao longo da vida, “sete categorias de trabalho”, a
principal fonte de renda adveio da carpintaria naval.
Hoje, não pode mais construir embarcações devido problemas de saúde. Na
carpintaria naval, executava as tarefas de carpintaria, calafetagem, pintura e parte
elétrica (motor e iluminação) das embarcações, construindo, inclusive vários motores
para as mesmas.
Sua oficina (como denomina seu local de trabalho) fica ao lado de sua
residência, não tem proximidade com o mar, motivo pelo qual não leva a denominação
de estaleiro. A distância do mar o levou a adequar carroças para levar as embarcações
para seus destinos.
Em mais de 50 anos de trabalho perdeu a conta de quantas
embarcações já construiu. Também perdeu as contas de quantas pessoas já ensinou o
“ofício”. Na maioria das vezes trabalhou sozinho.
José revela: “as pessoas dizem que eu sou um mestre, um artilheiro, um faz
tudo”. Segundo ele, com a construção de embarcações ajudou muitas pessoas em
localidades de difícil acesso a meios de transporte: “Deixei rastros de trabalho, fui
abraçado pelo povo, assim as pessoas tinham pra onde correr era rápido”, acredita que
ajudou a desenvolver o transporte e o comércio em São José de Ribamar e em várias
cidades por onde construiu embarcações, e, em sua opinião, “transporte é vida”.
Anselmo Góes
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30 de novembro de 2010), gênero
masculino, 50 anos, natural de Rosário – MA, mora em Raposa – MA, é carpinteiro
naval, e dentre outras atividades destaca: “E eu tenho também canoa de pesca, sou
carpinteiro e também tenho canoa de passar gente aqui, no turismo. Não é a única fonte
de renda. Mas eu trabalho mais aqui, porque eu gosto da área. Eu me baseio mais aqui
na carpintaria”.
Perguntado sobre as funções que executa diz: “Tudo, tudo. Pinto, calafeto, sento
o motor, faço irrigação. Tudo da embarcação eu faço. Você quer pra classificar? É
confeccionar o barco, pintura, calafeto e sentação de motor”.
Por irrigação entende-se a parte de encanamento das embarcações. Segundo ele:
“água por dentro do barco, água doce, que tem banheiro. Colocar uma bomba pra
24
irrigar, chuveiro, pia, em embarcação de grande porte, até mesmo o motor que tem que
ser irrigado água que é pra refrigerar”.
Anselmo é proprietário de um estaleiro com acesso a um igarapé que fica a 50
metros de distância de sua casa. Já fez mais de 400 embarcações para vender no
município de Raposa. E tem duas embarcações para uso próprio, uma para pesca e uma
para turismo. Segundo ele, está vinculado ao sindicato naval e da pesca, contribui com a
instituição há quatro anos. Diz ele:
“Mas eu zelo mais pela pesca. Da pesca porque é ela que vai me garantir o
meu futuro. O sindicato naval até agora, eu acho que não tem vínculo até
agora com o INSS. Então, é a única forma de eu me manter mais tarde, pra
pegar algum beneficio do INSS, tem que ser pela pesca. A gente tem que ir
por onde dá mais certo”.
Anselmo trabalha com mais três pessoas que considera profissionais que “já
sabem fazer tudo” e já haviam aprendido antes de trabalhar com ele. E não trocaria seu
trabalho na carpintaria naval “de jeito nenhum”, que esse trabalho, em suas palavras:
“daria, é certo, pra sustentar bem minha família, tranquilo”.
Diego Vieira
Diego Vieira (entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011), gênero masculino,
24 anos, declara a profissão de guia de turismo, atuando na travessia de turistas, também
exerce a carpintaria naval trabalhando no estaleiro de seu pai, Anselmo Góes, sabe
carpintar, calafetar, pintar e sentar motor. É, dentre os entrevistados, o mais jovem. E
argumenta que a juventude não tem mais tanto interesse pelo trabalho por falta de
valorização no mercado de trabalho.
Sozinho já construiu por volta de cinco embarcações, incluindo a embarcação
que utiliza na travessia de turistas. Não está vinculado a sindicato. Não se considera um
mestre, “ajudo meu pai e meus tios no ofício de carpinteiro”. Não trocaria sua profissão
por outra e frisa: “inclusive tenho um irmão que trabalha em comércio que me chamou
pra trabalhar com ele, mas eu não troco minha vida por nada”.
Cristina Siqueira
Cristina Siqueira (entrevista realizada em 02 de janeiro de 2011), gênero
feminino, 42 anos, natural de Humberto de Campos – MA, mudou-se para Raposa em
1981. É professora do ensino fundamental público, também é técnica em enfermagem,
além de proprietária de duas canoas, uma de travessia e uma de pesca.
25
Cristina também possui um mercadinho em Raposa. Interessante notar que
declara o dinheiro do companheiro como outra fonte de renda que possui, assim: o
“dinheiro do Anselmo” (de quem é companheira há seis anos e é carpinteiro naval).
Cristina ajuda Anselmo na construção e reforma de embarcações, em sua
opinião, de forma esporádica: “Duas vezes por semana, às vezes duas vezes por mês, às
vezes tem mês que nem vou. Faço só pra ele terminar mais rápido”.
Dentre as atividades que exerce ao ajudar o companheiro estão: segurar tábua
pra medição; pregar pregos; emassar (passar massa por cima do calefeto); pintura nas
partes de cima e de baixo das embarcações (só não pinta o nome das embarcações);
“observar se tem buraco, botar defeito” (observar detalhes, defeitos eventuais) e
“observar quanto de madeira precisa pra cada coisa”, ou seja, sem ela, em sua opinão,
Anselmo poderia cometer erros quanto à quantidade de material necessária para cada
coisa.
Ela faz questão de frisar que suas embarcações de uso pessoal foram feitas pelo
companheiro. E, segundo ela, não conhece nenhuma outra mulher que exerça atividades
na carpintaria naval. Seria “a única no Maranhão”.
Carlos Magalhães
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010), gênero
masculino, 49 anos, natural de Santo Amaro-MA, trabalha em Raposa como carpinteiro
naval. Dentre suas atividades: “Eu construo, eu reformo, eu sento motor, eu prendo o
calafeto, eu só não faço só pintar e a parte elétrica, mas as outras atividades da
embarcação eu faço tudo”.
Carlos tem estaleiro próprio que fica a cem metros de distância de sua casa. Já
fez quatro embarcações para si, hoje não tem mais nenhuma. Quanto às embarcações
para venda construiu mais de 40.
É vinculado ao sindicato de pescadores, porém, não pesca. Em relação à essa
vinculação profissional diferente da que realmente exerce e à preocupação com
aposentadoria, explica: “Porque quando chegasse a época da aposentadoria da gente, a
gente ser aposentado pela própria profissão que a gente exerceu durante a vida inteira.
Mas aqui na Raposa não tem. Então a gente é associado na colônia(de pescadores)”.
Carlos sempre trabalha com alguém, ao contrário de carpinteiros como Waldy
Araújo. Segundo ele “Eu nunca fiquei só. Não tem como a gente trabalhar só”. Quanto
26
à remuneração do “ajudante” diz que “depende”, que ele mesmo (Carlos) determina,
assim:
Dependendo exatamente do grau de conhecimento dele, quando ele vem só
pra ajudar, no caso como aprendiz, eu faço um salário pra ele, só pra ele não
ficar desanimado no final da semana, né? Aí quando vem uma pessoa que já
tem conhecimento bom, aí é um salário já compatível com o conhecimento
que ele tem.
Não se considera um mestre, pois, em sua opinião:
Pra mim me considerar mestre só se eu fosse assim o mais sábio de todos.
Mas tem gente melhor do que eu. Ai, eu não posso. Tem muita coisa ainda
pra eu chegar a me considerar mestre. Eu faço meu trabalho da melhor
maneira possível, sempre pensando em agradar os clientes. Eles é que vão
dizer se é bem feito ou não porque eu não posso dizer que tá bem feito e o
usuário, o dono do objeto vai dizer que fez bem ou não, que não ficou do seu
agrado. O dono é que vê se tá bem feito ou se não tá.
Perguntado se trocaria sua profissão por outra, responde que “se tivesse uma
outra atividade assim, uma outra atividade mais leve que pudesse ganhar o meu
sustento, eu mudava de profissão sim”. Ao contrário da maioria dos carpinteiros
entrevistados. Carlos possui um problema na coluna e acredita que o trabalho na
carpintaria é um dos grandes responsáveis por isso.
Davi Martins
Davi Martins (entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010), gênero
masculino, 60 anos, natural de Axixá-MA, mora em Raposa desde 1974. Segundo ele,
exerce somente a “profissão de carpinteiro naval”.
Dentre as atividades só trabalha com reforma. Não tem condições de fazer
embarcações novas. Segundo ele “Fazer novo é com Carlos, com o Waldy que é
estaleiro próprio mesmo, mas nós, só reforma mesmo” (Carlos e Waldy são os acima
citados). Na reforma “pinta, calafeta, mete tabua”, não trabalha com a parte hidráulica.
Seu estaleiro leva o seu nome e o que mais chamou atenção foi o fato de que
quando perguntamos se era terreno próprio obtivemos as seguintes respostas:
Quem deu foi o IBAMA, eles deram, deram e não pagamos nada. O IBAMA
deu pra nós, mas ficou garantia. Isso foi em 2002. Deram pra nós ficarmos de
fiscal, pra outras pessoas não desmatarem. E qualquer material nosso, desse
aqui, era pra chegar em algum lugar, pra não prejudicar a natureza. A colônia,
ela só podia dar o terreno. Mandaram nós irmos ao IBAMA. Aí nós fomos,
falamos com o gerente lá. Primeiro era uma mulher que era gerente lá.
Falamos. Ela mandou o fiscal do IBAMA vir olhar. Aí depois que ele veio
olhar e que nós fomos lá de novo por que ela conseguiu fazer a liberação, e
27
depois voltaríamos de novo, foi mais ou menos uma semana. Mas, pra fazer,
foram uns 15 dias.
Para compreendermos melhor essa forma de liberação de uso do terreno fizemos
algumas indagações sem muito sucesso. Assim, afirmou que “Deram um papel. Data de
validade não tinha.” Desta forma, não conseguimos obter o nome do papel. O estaleiro,
porém, está instalado ao lado de um manguezal e a residência de Davi dista alguns
quilômetros de seu local de trabalho.
Davi afirma ter reformado em torno de 300 embarcações. E que toda semana
tem embarcação pra reconstruir. Davi não tem embarcações para uso próprio, pois, para
ele, “pescador é bicho muito complicado”. Estava vinculado ao sindicato de carpinteiros
navais de São Luís, mas parou de pagar, pois não estava vendo vantagens.
Quanto à hierarquia, diz: “O chefe é todo mundo aqui. Aqui todo mundo é chefe.
Não tem ajudante. Não tem nada. Todo mundo é mestre e tal. Cada qual na sua área. Ele
(apontando um companheiro de trabalho) é mestre na área dele, de eletricista, de
desenho, de pintura de tudo” (ele, no caso, é Roberto Leite, apresentado abaixo).
Davi não trocaria sua profissão por outra e diz que o que mais gosta em seu
trabalho “é meter tábua na embarcação, é calafetar”, e que: “ sou bom na profissão,
nunca me acidentei e gosto de trabalhar na área mesmo”.
Davi se orgulha da profissão, segundo ele: “A gente é gavado (elogiado), faz
bem. E vem embarcação de tudo quanto é lado pra gente construir. Eu já fui construir
embarcação até em algumas cidades daqui do Maranhão”. Em suas colocações sobre a
profissão expôs que, em sua opinião, os órgãos públicos poderiam tomar providências
pela carpintaria naval. Sugere: “Galpão bem feito, normalizar o carpinteiro,
providenciar uma farda, uma bota, uma luva, só isso era suficiente. Porque o trabalho é
arriscado demais”.
Roberto Leite
Roberto Leite (entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011), gênero masculino,
37 anos, natural de Axixá – MA, trabalha em Raposa com “manutenção em geral”,
preferindo ser reconhecido como eletricista, também é carpinteiro naval, atividade que
exerce há 19 anos.
Sobre a carpintaria naval: “Construo, faço montagem, só não calafeto, a única
parte da carpintaria naval que eu não faço é o calafeto, as outras partes de manutenção,
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pintura, elétrica, motor, tudo isso eu vou levando”. Roberto não é vinculado a sindicato
algum.
Nunca fez embarcações pra uso próprio, declara: “eu nunca tive tempo não,
quando tava fazendo uma já tavam querendo aí, eu fiz muito”. Não tem noção de
quantas embarcações já construiu. É, aparentemente, o carpinteiro naval mais procurado
em Raposa, segundo ele, “tem gente que espera, se possível, um serviço meu três meses,
quatro meses. Por isso que eu tenho muito serviço, eu não paro, de jeito nenhum.”
2.1.2 Breve leitura de variações e aproximações
Pudemos perceber que a maioria dos interlocutores de Raposa – MA não são
naturais do município, salvo Diego Vieira que é o mais novo de todos. Porém, todos
eles têm no município residência e local de trabalho fixo, apesar de poderem se deslocar
com suas ferramentas para construir ou reformar embarcações fora do município.
Percebemos também que a maioria dos estaleiros tem saída para água, seja rio, igarapé
ou praia, com exceção da oficina de José Ribeiro, em São José de Ribamar.
Outra análise parte da proximidade do local de trabalho da residência dos
carpinteiros, Waldy e José trabalham em seus quintais, Anselmo, Diego, Cristina e
Carlos moram a poucos metros dos estaleiros e Roberto e Davi moram a uma distância
maior, não sendo, pois, determinante que as residências sejam contíguas aos estaleiros,
o que talvez influencie nos horários de trabalho dos carpinteiros.
Quanto à vinculação a sindicato, notamos que alguns procuraram o sindicato de
carpinteiros navais de São Luís, mas deixaram de contribuir e que outros se vincularam
à colônia de pescadores, mesmo sem serem pescadores, e que outros não se vincularam
a nenhum. Nota-se assim, a fraqueza da categoria e o desconhecimento dos direitos
previdenciários e da possibilidade acesso a linhas de crédito para produção. As falas
deixam a impressão de que para instituições como sindicatos e INSS, por exemplo, a
atividade não é subsidiada ou reconhecida, tendo os mesmos que acionar a pesca como
principal atividade exercida.
Quanto ao reconhecimento do título de mestre, apenas dois o aceitaram
abertamente, alguns, apesar da experiência, não o aceitaram. Observamos ainda que a
maioria costuma trabalhar acompanhado, com exceção de José. Quanto à hierarquia,
pudemos observar nas visitas aos estaleiros que havia subordinação dos ajudantes aos
carpinteiros entrevistados, especialmente em relação a Waldy e Carlos, somente não
29
estando explícita entre Anselmo Góes e seus familiares e entre Davi Martins e Roberto
Leite, que trabalham juntos fazendo atividades diferentes, porém, notamos subordinação
dos demais ajudantes do estaleiro em relação aos últimos dois carpinteiros citados.
Nota-se, de maneira geral, que as funções são múltiplas e que a maioria deles exerce ou
sabe exercer a maioria delas.
Notamos que a maioria tem ou já teve embarcações construídas por eles
mesmos, o que revela uma relação entre produtor e produto notável. Notamos também
que somente Waldy, Carlos e Davi trabalham exclusivamente com a carpintaria naval,
apesar de Anselmo acreditar que ela garantiria o sustento de sua família e, apesar de
Roberto trabalhar como eletricista e ter constante procura por seus serviços na área da
carpintaria naval.
De todos os entrevistados, com exceção de José que já não trabalha mais e de
Cristina que só ajuda “para o Anselmo terminar mais rápido”, notamos que somente
Carlos trocaria seu trabalho, especialmente por apresentar problemas de saúde
diretamente relacionados à atividade, e que os demais não o fariam, apesar de
apontarem diversos pontos de desestímulo como a desvalorização e o perigo da
profissão.
Assim, de modo geral, podemos observar que a atividade é exercida com
bastante orgulho, com status de profissão principal e que garante sustento próprio e da
família e que é algo que, feito para uso próprio, propicia a execução de outras atividades
como a pesca, transporte ou o turismo.
2.2. A dinâmica da cadeia de valor
Adotando a noção de cadeia de valor ou cadeia da mercadoria de acordo com
Keller, “enquanto um conjunto de atividades econômicas sucessivas e necessárias para
levar um produto ou um serviço, desde a sua concepção, passando por diferentes fases
de sua produção e comercialização, até o consumidor final” (2010, p. 29), procuramos
identificar dentro do conjunto de atividades de trabalho e de produção de valor da
carpintaria naval artesanal, questões referentes à obtenção de créditos ou financiamentos
de qualquer natureza, os processos de design, manufatura, comercialização e entrega das
embarcações, além disso, incluímos entre as perguntas questões relacionadas à
concorrência e demanda locais.
30
Por tratarmos da forma artesanal de construção e da matéria-prima em outros
momentos do trabalho, o quesito manufatura não aparecerá neste tópico. Desta forma,
apresentamos o que segue.
Quanto a créditos e financiamentos, grande parte dos carpinteiros nunca pediu
empréstimos à instituições bancárias, arcando por conta própria com os custos da
produção ou contratando com “clientes ou donos” (destinatários finais das embarcações)
que encomendam embarcações, geralmente dividindo o pagamento em dois momentos,
50% antes de iniciada a produção e 50% no momento da entrega. Assim, destacamos os
casos de Carlos e Anselmo para elucidar o tema.
Carlos Magalhães
(entrevista realizada em
28/12/2010), explica que
investimento na produção é feito diretamente por quem encomenda a embarcação. E
que inicialmente pede 50%, e parcela o restante de três a quatro vezes. O contrato é
verbal e segundo ele, quando termina de fazer vai ao cartório, reconhece firma e dá o
recibo de construção.
Observamos que há certa facilidade caso o profissional procure instituições
bancárias e se adapte às suas formalidades, como retratado no caso de Anselmo Góes
(entrevista realizada em 30/11/2010):
Anselmo: Eu trabalho com o banco Real. Compro alguns materiais com o banco real.
Ele vem aqui, o rapaz do banco real, ele vem, eu peço o dinheiro e compro alguma coisa
e tudo aquilo que é preciso pra trabalhar. Quando o dono da embarcação que vem fazer,
ele não tem, eu vou e peço no banco Real. Aí pago de 5 vezes, 6 vezes. É 1,5% de juros
que eles cobram ao mês. É pouca coisa.
Pesquisadora: Mas é exatamente para essa função ou...
Anselmo: É pra essa função. Eles abrem uma linha de crédito pra microempresário e até
pra individual assim autônomo, eles abrem uma linha de crédito. Ele vem, olha o
estabelecimento, fiscalizam. Vem algum fiscal. Mas também, eu acho que eles são
rápidos. O mais tardar é quatro dias. Aí eles já ligam: “tá liberado”.
Pesquisadora: E é só o Banco Real que faz isso?
Anselmo: Eu trabalho também com o banco do Nordeste.
Pesquisadora: E pelo banco do Nordeste é a mesma coisa?
Anselmo: É também. Os juros são bem baixos.
Quanto ao Design, pudemos reunir o que segue.
No caso de Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010):
31
Pesquisadora: O Sr. faz do jeito que quem encomenda quiser. Mas, o Sr. desenha no
papel?
Carlos: Não. É tudo na cabeça. Às vezes eu pergunto o seguinte, se ele já viu alguma
por aqui que seja do agrado dele: “olha eu quero que o Sr faça do jeito daquela que eu vi
acolá”, a gente vai lá e olha. Só isso aí. Mas quando ele encomenda e diz “faça do seu
jeito, do jeito que você sabe”. Aí, eu já tenho uma linha especificamente pra aquilo, tem
raciocínio pra aquilo ali.
Pesquisadora: E tudo na cabeça, não anota nada?
Carlos: Não anoto nada.
Já Roberto Leite (entrevista realizada em 03/12/2010), apresenta propostas em
desenho livre.
Pesquisadora: E o desenho da embarcação, é o senhor que faz ou o mandam fazer?
Roberto: Eu faço, mostro de cinco a seis desenhos.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010) elucida esta forma de
apresentação do modelo.
Anselmo: Fica com o dono que quer. Ele pede o feitio e pede pra gente fazer o modelo
no papel.
Pesquisadora: O Sr. faz o modelo no papel?
Anselmo: Faço. Eu tô armando assim, aí ele vem pra dizer como é que ele quer. Se é
mais aberta, se é mais fechada
Pesquisadora: E quando o Sr. faz o modelo assim no papel, o Sr. faz de mão livre, assim
só a caneta e o papel ou o Sr. faz com a régua, instrumento pra ficar bem certinho?
Anselmo: Não. É só pra mostrar como é mesmo que é. É uma coisa simples. Em papel
mesmo natural. Não é computadorizado. A gente faz mesmo tudo manual, artesanal.
Quanto à comercialização das embarcações, podemos observar que geralmente é
feita diretamente com os carpinteiros, sem intermediação de terceiros. São produtores e
vendedores finais.
Assim:
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Carlos: O dono sempre me procura, a gente fecha o negócio. Ai, quando termina de
construir, eu entrego pra ele. Ou de reformar, entrego diretamente para ele sem
intermediário nenhum.
32
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011):
Pesquisadora: É com o senhor mesmo que se dá a comercialização? O cliente conversa
direto com o Sr.?
Roberto: Sim. Sempre fazendo a empreita.
Quanto à entrega do produto observamos que geralmente é feita no local da
produção, o cliente recebe e se encarrega do transporte facilitado pelo acesso dos
estaleiros à água. Salvo casos como os de Anselmo, que leva pessoalmente algumas
embarcações a pedido do cliente.
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010):
Pesquisadora: Para trazer a embarcação, para reformar, os clientes que trazem ou o Sr.
vai buscar?
Davi: Eles que trazem, deixa aqui só pra eu fazer o serviço.
Pesquisadora: E eles que vêm buscar?
Davi: Sim, eles vêm buscar.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010):
Pesquisadora: E o cliente vem buscar ou o Sr. tem como entregar?
Carlos: Não. Eu recebo aqui e entrego aqui também. Tanto como reforma como
construir. Se é pra reformar, o dono traz pra cá. Daqui eu me encarrego de puxar pra
cima, né? (da água para a parte seca do estaleiro). Mas eu recebo e entrego tudo aqui.
Agora, o material, eu saio com o dono, às vezes ele me dá o dinheiro e eu procuro.
Porque eu que vou trabalhar, eu faço questão de eu mesmo escolher o material que eu
vou trabalhar.
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011):
Pesquisadora: E para entregar a embarcação, o Sr. manda levar ou eles vêm pegar?
Roberto: O dono recebe aí. Não tem mais condições como antes que tinha estaleiro
próprio, a carreta que vinha buscar, agora não tem mais isso.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010):
Pesquisadora: E o consumo, o Sr. leva a embarcação ou eles vem buscar aqui mesmo?
33
Anselmo: Eu já tenho levado várias e outros vêm buscar aqui mesmo. Mora aqui, vem
buscar aqui mesmo.
Pesquisadora: Quando o Sr. leva, o Sr. leva como?
Anselmo: A maioria dela já sai com o motor daqui. Com o motor funcionado daqui.
Pesquisadora: Aí, o Sr. leva pelo mar?
Anselmo: Sim, pelo mar. Mas tem umas que sai de caminhão, mas é pouco.
Pesquisadora: Aí, quando é de caminhão, tem que pagar o caminhão?
Anselmo: Não, eles pagam. O dono leva.
Quanto à concorrência e demanda de modo geral, podemos perceber que a
demanda é bem razoável. Pelo menos uma embarcação por carpinteiro em um mês, o
que no município equivale ao número aproximado de cinquenta. E a concorrência se dá
de acordo com a preferência do cliente pelo modo de fazer dos carpinteiros ou pela
disponibilidade dos mesmos, sendo que alguns são extremamente procurados e outros
têm a demanda para suprir a manutenção do mês. Davi e Anselmo acreditam que
depende da simpatia, de o cliente “se engraçar” do carpinteiro e que a demanda pelas
reformas ou construções é maior que a oferta de serviço. Já Roberto acredita que a
procura se dá pelo melhor acabamento. Carlos, talvez por ter ficado muito tempo
parado, passa por um momento de pouca demanda por seu serviço.
Davi (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: O Sr. acha que entre os carpinteiros têm concorrência?
Davi: Não, aí vai depender dos donos da embarcação. Se ele se engraçar de ti, ele vai
mandar fazer o barco contigo. Aqui pra mim não falta é serviço.
Pesquisadora: E quanto ao preço que vocês cobram?
Davi: É justo.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Pesquisadora: Como é que tá a concorrência aqui na Raposa? E a demanda para o Sr.?
Carlos: A demanda pelo meu serviço tá baixa, no momento só estou fazendo um barco
para fora.
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2010)
Pesquisadora: O senhor acha que existe uma concorrência?
34
Roberto: Sim, entre aqueles que têm mais acabamento de serviço e aqueles que não tem
acabamento.
Pesquisadora: E a demanda?
Roberto: No meu caso, tem muito serviço e muita concorrência pelo acabamento.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010)
Anselmo: Aqui a oferta é pequena, a procura é maior. Aqui na Raposa, cada um faz seu
preço, o cliente faz a licitação ele próprio porque se agrada da canoa ou da conversa do
carpinteiro.
3. O FAZER ARTESÃO, A TRADIÇÃO
Segundo Marx, o trabalho é um processo de que participam o homem e a
natureza em que o ser humano impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material
com a natureza. Assim, para o autor, o ser humano defronta-se com a natureza como
uma de suas forças e põe em movimento as forças de seu corpo, “braços e pernas,
cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma
útil à vida humana” (1975, p.202).
Para o autor, dessa forma, o homem atuaria sobre a natureza externa e a
modificaria ao mesmo tempo em que modifica sua própria natureza, desenvolvendo
potencialidades nela adormecidas (na natureza) e submetendo ao seu domínio o jogo das
forças naturais (MARX, 1975).
Assim, a transformação da natureza para a impressão de formas úteis aos seres
humanos pressupõe um processo de trabalho que, de acordo com Marx, é uma atividade
dirigida com o fim de criar valores-de-uso, sendo condição necessária de um
“intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida
humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a
todas as suas formas sociais” (1975, p. 205). Deste modo, o processo de trabalho vai
depender de um projeto consciente do trabalhador para a materialização de sua vontade.
Assim:
(...) o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na
mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do
processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na
imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual
opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira,
o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de
subordinar sua vontade. (MARX, 1975, p. 202)
35
Essa construção na mente do trabalhador e a impressão de seu projeto ao
material são partes fundamentais da produção. E temos, no processo de produção
artesanal, a presença destes elementos, figuração na mente e subordinação de sua
vontade.
O processo de trabalho na carpintaria naval artesanal proporciona criações para
uso próprio do artesão bem como de criações que se configurem mercadorias. Assim,
produzirá não só “valores-de-uso”, mas valores-de-uso para os outros, “valores-de-uso
sociais” (MARX, 1975).
Nossa intenção neste momento do trabalho não é adentrar profundamente a
discussão a respeito de modos e processos de produção, mas de demonstrar como se dá
entre os interlocutores o controle sobre os meios de produção (ferramentas e matériaprima) e sobre o processo de trabalho, que a nosso ver ocorre de forma artesanal.
Devemos, porém, apontar que existem diferenças entre artesanato e manufatura,
desta forma, entendemos que a produção artesanal tem sua principal característica no
completo controle que o trabalhador possui sobre os meios de produção (tanto os
instrumentos de trabalho quanto a matéria-prima) e sobre o processo de trabalho. O
controle total sobre o trabalho e seu produto pertence apenas a ele. O determinante é a
união entre o trabalhador e os instrumentos de trabalho, somada ao saber particular e à
habilidade pessoal que permite a produção de certos objetos (SANTIAGO, 1980).
A manufatura, segundo Santiago, tem como traço distintivo o aparecimento do
trabalhador coletivo através de cooperação. O produto final que antes era alcançado por
um só trabalhador agora depende do trabalho cooperativo, tornando-se então obra de um
trabalhador coletivo. Ainda que o processo de trabalho continue, tal como no artesanato,
dependendo diretamente do trabalhador e, portanto, sendo por ele até certa parte
controlado, o produto final não é mais individualizado.
Torna-se o resultado, nas palavras de Marx (1975), do entrelaçamento de
trabalhos isolados (cooperação simples) ou de operações complementares que apenas o
seu conjunto dá lugar a um produto acabado (cooperação complexa).
Observando os interlocutores da pesquisa, pudemos constatar que alguns deles
trabalham no que está aqui enquadrado como manufatura, por admitirem ajudantes ou
por não exercerem determinadas funções na confecção das embarcações. Outros, porém,
têm controle total sobre todo o processo de trabalho.
36
Ademais disso, chamaremos artesanal mesmo ao que foi enquadrado acima
pelos autores como manufatura, por considerarmos relevante o fato de que há controle
do trabalho e do produto, por parte dos interlocutores, em todas as situações observadas.
Consideramos, assim, o conceito de Boudon, de que geralmente o artesão é
identificado como sendo um trabalhador manual, formado no trabalho, por
aprendizagem direta e independente, exercendo criações por sua conta, sozinho ou com
a ajuda de membros da sua família e de alguns companheiros (1990).
Visto isso, Wright Mills (1982) trata do ideal do artesanato como modelo de
satisfação no trabalho, e propõe uma categoria analítica que envolve seis características
principais, que seriam:
1. Não há nenhum motivo velado em ação além do produto que está sendo feito
e dos processos de sua criação;
2. Os detalhes do trabalho diário são significativos porque não são dissociados,
na mente do trabalhador, do produto do trabalho;
3. O trabalhador é livre para controlar sua própria ação de trabalho; o artesão é,
por conseguinte, livre para aprender com seu trabalho e para usar e
desenvolver suas capacidades e habilidades na execução do mesmo;
4.
Não há ruptura entre trabalho e diversão, ou trabalho e cultura; o modo
como o artesão ganha seu sustento determina e impregna todo o seu modo de
vida.
Em busca da articulação de alguns destes elementos da categoria proposta por
Mills com nossas observações em campo, procuramos articular elementos que nos
possibilitassem visualizar a existência de categorias nativas no processo artesanal de
construção das embarcações.
Assim, indagamos os carpinteiros e aqui expomos alguns trechos das entrevistas
que podem nos ajudar a compreender o processo de produção de suas embarcações, suas
ferramentas e se consideram a atividade uma atividade artesanal, em casos afirmativos
indagamos o porquê, tentando extrair suas concepções de artesanato.
Assim,
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: O Sr. considera essa atividade artesanal?
Davi: Sim.
Pesquisadora: Por quê? O que o Sr. entende por artesanal?
37
Davi: A gente trabalha só com um tipo de embarcação, é tudo manual mesmo.
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011) já apresenta uma concepção de
artesanato por parte de terceiros em relação às embarcações e, assim, aparentemente, faz
distinção entre profissão e artesanato:
Pesquisadora: E o Sr. acha que trabalhar com embarcação é um tipo de artesanato ou
não?
Roberto: Se torna profissão, né? O artesanato é pra quem admira, quem vem curiar, vem
olhar, se torna turismo. E pra gente é, é profissão mesmo.
Pesquisadora: O Sr. acha que o artesanato pode ser uma profissão também?
Roberto: Pode.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Sobre a forma artesanal da atividade:
Pesquisadora: O Sr. acha que é um artesanato o que faz?
Carlos: Rapaz eu acho que é um artesanato, porque a gente só tem a gente mesmo, que
mete a mão na massa, como se diz. Quer dizer, pra não ser artesão só se fosse uma
fábrica computadorizada. O cara não pegava em nada. Mas aqui é a gente mesmo que
pega. A gente que pega todo o trabalho na mão da gente mesmo.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010)
Pesquisadora: E o Sr. considera que esse trabalho é um artesanato?
Anselmo: Considero um trabalho artesanal.
Pesquisadora: Por quê?
Anselmo: Por que exerce muito as mãos. No caso das mãos, da cabeça e a gente vai
fazendo assim cada peça no seu lugar. Ele é artesão. Até porque depois de pronto é
como se tivesse uma obra. Uma obra. É artesão.
Das respostas, pudemos observar na fala de Roberto Leite que este entende que
o produto final de seu trabalho pode ser considerado como artesanato a partir dos
olhares dos turistas, mas que para ele é profissão, apesar de achar que o artesanato pode
ser considerado profissão, notamos que a resposta foi colocada como se houvesse
diferença entre esse olhar alheio e o seu olhar diante do produto. Todas as demais
respostas envolveram o aspecto do fazer manual, a de Carlos é proposta a partir da
38
noção de fábrica, onde o “cara não pegava em nada”, e a de Anselmo a partir da noção
de obra e de domínio das etapas do processo “cada peça em seu lugar”.
Perguntamos ainda se havia um estilo próprio de cada carpinteiro impresso nas
embarcações construídas por eles, se reconheciam os produtos de seu trabalho (ao vê-las
mesmo anos depois de vendidas, por exemplo) e, ainda, se reconheciam o trabalho de
outros carpinteiros pelo feitio (design) das embarcações.
Assim,
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: Suas embarcações são diferentes das dos outros carpinteiros?
Davi: É.
Pesquisadora: O Sr. acha que tem alguma diferença assim? O Sr. olhando uma que o Sr.
reformou o Sr. sabe se é sua?
Davi: Sei.
Pesquisadora: Mesmo sendo há muito anos?
Davi: Mesmo sendo. Eu sei se é qual embarcação que eu reformei qual não foi.
Pesquisadora: Por quê? Como é que o Sr. sabe?
Davi: Porque uma embarcação não é o mesmo feitio da outra. Ai, assim, a gente sabe se
a gente já reformou ela.
Pesquisadora: Em relação a dos outros, o Sr. já olha alguma assim e sabe quem
produziu?
Davi: Essa daqui foi fulano de tal que reformou.
Pesquisadora: Mas o Sr. sabe porque o Sr. viu ele fazer ou porque é do feitio dele?
Davi: Porque a gente vê lá, quando vai sair de qualquer um lá, a gente vê a embarcação
lá.aíquando chega dentro d‟agua,aíque vem pra reforma de novo, a gente já sabe que foi
fulano de tal que reformou.
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011)
Pesquisadora: E o seu tipo de fazer a embarcação, o Sr. constrói e sabe que é a sua?
Roberto: Conheço tudinho.
Pesquisadora: E as pessoas conhecem que aquela embarcação é sua?
Roberto: Conhecem.
Pesquisadora: Por quê? O Sr. acha que tem alguma coisa de diferente?
39
Roberto: Tudo diferente, as minhas pinturas são diferentes, letreiro diferente, tudo
diferente, logo, porque eu não gosto de copiar nada que as outras pessoas fazem. Até
meus móveis mesmo são todos diferentes.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Pesquisadora: Mas a sua forma é diferente das outras?
Carlos: Foge um pouco. Cada um tem sua maneira de ter sua própria forma.
Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2010)
Pesquisadora: as suas embarcações são diferentes umas das outras? Assim, se for o
mesmo tipo, são diferentes?
Anselmo: São diferentes. Nunca fica parecida assim igual. Ela pode ser do mesmo
tamanho, mas sempre ela tem uma diferença. Nunca parece. De dizer, assim, é
igualzinha à aquela ali, não, é difícil ficar igual. Uma folha ou outra não dá pra ficar
igual.
Pesquisadora: Pode ser do mesmo tamanho?
Anselmo: Acho que se for industrializada é fácil, né? Porque foi lá pela indústria. Aqui,
artesanal fica diferente.
Pesquisadora: Mas o Sr. queria que fosse tudo igual ou o Sr. acha melhor ser tudo
diferente?
Anselmo: Diferente. Até pra divulgar: essa aqui é a minha, essa aqui é a minha.
Pesquisadora: O Sr. olhando, o Sr. sabe que aquela foi sua?
Anselmo: Sei. Às vezes roubam, aíele vai atrás e sabe, “Essa aqui é a minha. Porquê?
Por que essa aqui é a minha”, tem essa diferença.
Pesquisadora: Se o Sr. olhar uma do seu Waldy, o Sr. sabe que é dele?
Anselmo: Sei. Eu conheço.
Pesquisadora: Porque tem um jeito diferente?
Anselmo: É.
Perguntamos ainda, se eram eles quem indicavam nomes para as embarcações
(todas devem ter um nome para posterior inscrição na Marinha Brasileira).
Assim,
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011)
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Pesquisadora: O nome das embarcações, o Sr. que costuma dar?
Roberto: Às vezes, sou eu mesmo. Eu tenho tudo gravado na cabeça, as embarcações
tudinho que eu fiz.
Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2011)
Pesquisadora: O Sr. quem dá o nome das embarcações que o Sr. faz?
Anselmo: Não. Cada pessoa é que dá o nome, que coloca o nome que ele quer. O
cliente.
Desta forma, pudemos perceber que todos conhecem e reconhecem seus
produtos, e que sabem que nenhuma de suas embarcações é igual à outra, bem como
que as pessoas reconhecem seus feitios e que alguns reconhecem o feitio de outros
carpinteiros. E que, a exemplo de Roberto, costumam participar da escolha do nome das
embarcações que produzem.
O que, a nosso ver, são fatores que poupam os trabalhadores da carpintaria naval
artesanal da alienação com relação ao produto do trabalho, “alienação da coisa”, ou seja,
o estranhamento diante do que se produziu.
Quando o trabalhador não se reconhece enquanto produtor, não encontra
identidade. O objeto do trabalhador encontra-se “fora dele e a ele estranho, e se torna
um poder autônomo em oposição a ele, a vida a que deu ao objeto se torna uma força
hostil e antagônica” (MARX, 1975, p.112).
Indagamos a eles se possuem aspirações para seu modo de produção, no sentido
de modificar algo no processo produtivo que acarretasse mudanças benéficas.
Desta forma, temos,
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: O Sr. tem alguma pretensão, vontade de ter um estaleiro próprio ou
embarcação própria?
Davi: Uma embarcação e um estaleiro próprio. Mas, isso ai, é na frente. Mas, não que
um dia a gente não consiga.
Pesquisadora: Embarcação, o Sr. não tem?
Davi: Embarcação, eu não tenho.
Pesquisadora: Mas, por quê? É por que o Sr. não usa?
41
Davi: Não dá muito certo ter embarcação, porque pescador é bicho muito complicado. É
complicado demais, tem que ter paciência. É uma luta com esses animais aqui.
Pesquisadora: Não tem paciência. Mas queria com empregados, com um estaleiro
grande?
Davi: Ah, isso aí que era normal se a gente pudesse.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010)
Pesquisadora: O Sr. acha que industrializado é melhor que fazer manual? Ou o Sr.
prefere continuar no manual?
Anselmo: Eu falo assim, em algumas máquinas mais, mas continua tudo sendo manual
pra mim. Porque na indústria, máquina movimenta mais e tem várias máquinas que
ajudam a gente mais. Vai mais rápido, tem algumas máquinas que ajudam a gente
fazer. Na carpintaria naval é difícil. A gente tem que fazer de modo artesanal mesmo.
Cada peça, a gente prepara. É, tem que ser artesanal mesmo.
Pesquisadora: Sempre tem que ser artesanal?
Anselmo: Artesanal.
Outro ponto das entrevistas foi se os carpinteiros produziam tendo em vista os
quesitos beleza e utilidade e qual deles era considerado mais importante.
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: Mas aí, quando o Sr. reforma, o Sr. faz pensando na beleza ou na
utilidade?
Davi: Rapaz, é na utilidade mesmo. Porque a beleza quem faz é o pintor.aíquem faz a
embarcação é na utilidade.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010):
Pesquisadora: Faz pela utilidade da embarcação e não pela beleza? Pela encomenda?
Carlos: É, pela encomenda. Eu acho que pela utilidade, como é, pela beleza e pela
utilidade. Quer dizer, a gente não faz especificamente uma arte. É pela necessidade de
uma embarcação. Até porque eu faço da maneira que o dono pede. Embora que fuja,
que saia do padrão da minha forma, mas se o dono quer naquele sentido eu faço.
Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2010):
Pesquisadora: Fazer embarcação. O Sr. faz pela beleza ou pela utilidade da embarcação?
Ela é uma obra como o Sr. disse ou pelo que ela representa para quem vai comprar?
42
Anselmo: É pelo que ela representa para a pessoa que vai comprar. Geralmente as
pessoas, elas escolhem o feitio que eles querem, o tamanho, a largura, o comprimento.
Eles é que vem dizer. Cada pessoa, isso é normal, eles é que falam “eu quero de tal
tamanho”. Às vezes a gente quando vai armar, a gente chama o dono pra olhar, “tá bom,
assim desse jeito?”. Aí ele vem “não, quero mais assim” aí a gente vai lá modifica
novamente até depois pra ele ficar agradado.
Nesta senda, a observação da dinâmica da carpintaria naval leva à concordância
do que Mills descreveu com exatidão:
Na maioria das descrições do artesanato, há uma confusão entre suas
condições técnicas e estéticas e a organização legal (propriedade) do trabalho
e do produto. O que é realmente necessário para o trabalho-como-artesanato,
contudo, é que o vínculo entre o produto e o produtor seja psicologicamente
possível; se o produtor não possui legalmente o produto, deve possuí-lo
psicologicamente, no sentido de saber do que ele é feito no que diz respeito a
habilidade, suor e materiais, e de sua própria habilidade e suor serem visíveis
para ele. Evidentemente, se as condições legais forem tais que o vínculo entre
o trabalho e o ganho material do trabalhador seja transparente, esta é uma
gratificação adicional, mas ela é subordinada àquela habilidade que persistia
por si só, mesmo se não remunerada (MILLS, 1982, p. 59).
Podemos perceber que este vínculo psicológico existe entre os atores
observados, já que os mesmos detêm habilidades, condições técnicas e estéticas em
relação ao produto de seu trabalho.
Sobre a habilidade artesanal, Sennett estabelece uma relação direta entre as
habilidades do artífice e a esfera do desejo, supondo haver nele a busca pela qualidade,
vontade de um trabalho bem feito. Exemplo prático desta relação apontada por Sennett
está evocada na fala de Anselmo quando diz:
Eu admiro o máximo quando eu termino uma obra, eu fico assim namorando
aquela obra que eu fiz e que ficou linda. Eu fico assim, horas inteiras
olhando. Puxa, eu consegui fazer isso aqui. É serio, é complicado. Um
engenheiro que faz o navio, entra nele e depois pensa assim “éguas, rapaz.
Fui eu que programei tudo isso aqui?” (entrevista realizada em 30 de
novembro de 2010)
Retomando as considerações de Mills, há concordância do resultado da pesquisa
quanto à liberdade para início do trabalho e modificação de sua forma e maneira de
criação, a exemplo de Waldy, carpinteiro naval artesanal no município de Raposa
quando fala “não tenho hora certa pra trabalhar, mas também não sei ficar parado”
(entrevista realizada em 30/11/2010). Assim:
(No trabalho artesanal) O trabalhador é livre para iniciar seu trabalho
segundo seu próprio plano e, durante a atividade pela qual o trabalhador é
moldado, é livre para modificar sua forma e a maneira de sua criação. (...) e o
43
artesão é Sr. da atividade e de si no processo. (...) sua esfera de ação
independente é vasta e racional para ele. Ele é responsável por seu trabalho e
livre para assumir essa responsabilidade. Seus problemas e dificuldades
devem ser resolvidos por ele, em termos da forma que deseja que o resultado
final assuma (MILLS, 1982, p. 61 grifo nosso).
Sobre a jornada de trabalho dos carpinteiros, temos:
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: E o Sr., como é sua jornada de trabalho?
Davi: É das 07h00 às 11h00 e 13h00 às 17h00. Tem gente que passa do horário. Eu não
passo do horário não.
Pesquisadora: O Sr. não faz só quando o Sr. quer?
Davi: Não, não.
Pesquisadora: todo dia é esse horário?
Davi: todo dia o mesmo horário.
Roberto Leite (entrevista realizada em 03/01/2011)
Pesquisadora: E como é sua jornada, seu horário de trabalho?
Roberto: Não tem limite. Eu trabalho até duas horas da madrugada, quatro horas,
trabalho até em casa.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Pesquisadora: E sua jornada de trabalho. O tempo de trabalho?
Carlos: eu entro 07h30, 07h45, às vezes. Aí eu largo 11h30. Volto 14h00. De 14h00 tem
vez que eu largo 17h00 horas, 05h30 aí até 18h00. Dependendo do que a gente tá
fazendo ali no momento. Porque às vezes é uma coisa que a gente tem que deixar
terminada e, aí, a gente não pode deixar pra amanhã. Aí, nós vamos até 18h00.
Pesquisadora: Então, todo dia o Sr. procura cumprir esse horário?
Carlos: Sim. E eu comecei a fazer isso agora, depois que eu andei adoentado ai. Mas
antes eu chegava aqui 06h30 e largava 11h30. Era ponto sempre, era escala certa. Aí eu
voltava 13h15 e largava 17h30 Mas ai, eu tive uns problemas de saúde. Tive que poupar
mais isso ai. Eu poupei mais. Eu não venho mais pra cá 13h00, 13h30. Eu venho 13h45,
14h00.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2011)
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Pesquisadora: E sua jornada de trabalho? Como é que é? Os dias, os horários de
trabalho?
Anselmo: Digamos assim, não é de 07h00 as 12h00, 11h00. De 13h00 as 17h00, porque
às vezes varia. Eu domino, tem vezes que vem 08h00 ou 09h00.
Pesquisadora: Vem a hora que quer?
Anselmo: Vem a hora que quer.
Pesquisadora: E isso pro Sr. é uma coisa positiva ou o Sr preferia cumprir o horário
certo? O Sr. preferia ser autônomo mesmo?
Anselmo: É, ser autônomo. Têm dias às vezes que, dia de segunda-feira, eu não vou lá
de jeito nenhum.
Pesquisadora: Não quer ir, é o dono do seu horário.
Anselmo: Não quer ir trabalhar hoje, não vai. Armo minha rede lá em cima da casa e
vou dormir, vou descansar, não vou fazer nada não.
Pesquisadora: Mas também tem dia que...
Anselmo: Tem dia que anoitece. Tem vez que eles vem de noite me buscar pra ver
barco que tá afundando. Ai, a gente vai lá. Tem que ir, é o jeito, livrar o prejuízo de
alguém. A gente vai, é amigo, a gente vai. “Olha aminha canoa bateu lá, tá afundando lá
na pedra”, pois então vamos buscar lá agora. Levanta da rede e sai.
Figura 1: Rede - estaleiro de Anselmo.
Fonte: arquivo pessoal, em 30/11/2010
45
Assim, acreditamos que Anselmo e Waldy tenham maior flexibilidade de
horários por seus estaleiros serem perto da casa e em casa (respectivamente). O que não
é determinante na conduta, já que Carlos mora a cem metros e procura cumprir seus
horários rigidamente, o que demonstra que não há uma regra fixa, mas que ela pode ser
estabelecida pelo próprio carpinteiro, conforme seus interesses, condições e
características pessoais.
Quanto às técnicas na produção, partimos da observação da relação manual x
intelectual no processo de criação das embarcações. Neste sentido, de acordo com o
Brighton Labour Process Group (apud KELLER, 2010, p. 28) a divisão (intelectual x
manual, concepção x execução) “não tem nada a ver com a divisão entre funções
mentais e físicas do organismo humano, tomadas num sentido puramente abstrato”. O
que tende a se afinar com o pensamento de Sennett de que: “o artífice representa uma
condição humana especial: a do engajamento. (...) as pessoas se engajam de uma forma
prática, mas não necessariamente instrumental” (2009, p. 30), ou ainda quando afirma
que “a técnica tem má-fama; pode parecer destituída de alma. Mas, não é assim que é
vista pelas pessoas que adquirem nas mãos um alto grau de capacitação” (2009, p. 169).
Ainda segundo o autor:
(...) a coordenação manual chama a atenção para um grande equívoco sobre
os processos de capacitação. Consiste ele em imaginar que adquirimos
controle técnico partindo da parte para o todo, aprofundando o trabalho em
cada parte separadamente e em seguida unindo as partes – como se a
competência técnica se assemelhasse a produção industrial em uma linha de
montagem. A coordenação manual não funciona bem se for organizada dessa
maneira. Em vez de resultar da combinação de atividades distintas, separadas
e individualizadas, a coordenação funciona muito melhor se as duas mãos
operarem juntas desde o início (SENNETT, 2009, p. 185).
Sennett (2009) propõe que se saiba se o que vem primeiro é o fazer ou o pensar,
a mão ou a cabeça. Neste sentido, Andrès (1998) afirma que a construção das
embarcações procedida de maneira artesanal é advinda de projetos guardados “na
cabeça”, pois cada trabalhador utiliza seus próprios procedimentos e cada tipo de canoa
requer método diferenciado ou combinação de métodos. Assim, a nossos interlocutores
indagamos a respeito de onde consideravam ter habilidade para o trabalho, quais seriam
os papéis das mãos e da cabeça nesse sentido.
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010):
Pesquisadora: E o Sr. considera a sua habilidade na construção vem das mãos ou da
cabeça?
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Davi: Rapaz, vem das mãos e da cabeça. Porque só as mãos, como é que se diz? Só as
mãos não trabalham. Agora a cabeça trabalha mais.
Carlos (entrevista realizada em 28/12/2010):
Pesquisadora: O Sr. acha que as habilidades do Sr. vêm das mãos ou do intelecto?
Carlos: Não sei nem como, eu acho que é mais artesanal. Que a gente tem, eu acho que
é um pouco dos dois. Por que tem muitas coisas que a gente bota na mente tudinho, mas
não tem o mínimo de habilidade pra fazer. Então, tem que ter a metade de cada um.
Tem que ter na mente e tem que ter habilidade nas mãos também.
Anselmo (entrevista realizada em 30/11/2010)
Pesquisadora: O Sr. acha que a habilidade do Sr. está nas mãos ou na cabeça? Ou nas
duas?
Anselmo: Nas duas. Na mão é a parte boa e na cabeça é a principal.
Pesquisadora: É a cabeça quem manda e a mão quem obedece?
Anselmo: É isso mesmo. Tem vez que a gente já pega assim. E já vai fazendo. E já sabe
como vai fazer cada peça.
Desta forma, acreditamos que o artesanato atua na manifestação da cultura e,
assim sendo, se transforma, é dinâmico. E, de acordo com as palavras de Nestor
Canclini, (2000, p. 202),
Parece que devem importar-nos mais os processos e os objetos, e não sua
capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua
representatividade sociocultural. Nessa perspectiva, a investigação, a
restauração e a difusão do patrimônio não teriam por finalidade central
almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas reconstruir a verossimilhança
histórica e estabelecer bases comuns para uma reelaboração de acordo com as
necessidades do presente.
Consideramos, então, que o tipo de artesanato produzido na carpintaria naval é
de modalidade artesanal. Da mesma forma Sennett observa que “Seria um equívoco
imaginar que, pelo fato de as comunidades artesanais tradicionais transmitirem as
habilitações de uma geração a outra, essas habilitações terão sido fixadas de maneira
rígida; em absoluto.” (2009, p. 36).
Segundo Helena Sampaio (2003), o artesanato tradicional é aquele que faz parte
do modo de vida das pessoas que o realizam. Seguindo padrões estéticos próprios e
transmitidos espontaneamente de geração para geração, muitas vezes utilizando matériaprima disponível nas regiões onde ele é feito.
47
No mesmo sentido aponta Vives (1983, p. 140), na sociedade contemporânea,
será tradicional a expressão de uma experiência peculiar a dado grupo humano
coletivamente aceita e reconhecida. “Tal expressão poderá contar, ou não, com muitos
anos de presença. A cristalização dessa aceitação poderá ser rápida – até súbita – e a
tradição estará formada, pois, modernamente, é mais o consenso do que o tempo que faz
a tradição”.
Ainda em Vives (1983), compreendemos como artesão tradicional aquele que
emprega e transmite, em seu trabalho, valores, técnicas e signos amadurecidos e aceitos
no sistema cultural a que ele mesmo pertence.
É o intérprete das técnicas tradicionalmente conservadas, como herdeiro, que
é, dos motivos que as originaram. No ato de criar uma cesta, por exemplo,
reproduzirá padrões recebidos da cultura a que pertence, porque ditos padrões
traduzem, primordialmente, a resposta a determinada necessidade do meio
onde surgiram, seja tal necessidade ligada ao trabalho, à vida doméstica, à
devoção ou à diversão. Seu produto é assim extremamente objetivo, jamais
sem função. Participa da vida, e não só da vida do artesão, senão também da
existência coletiva (VIVES, 1983).
Indo além na reflexão de Vives, acreditamos que tais necessidades também estão
relacionadas à disponibilidade dos materiais na região, a saber, dos recursos,
notadamente os naturais que convenham à produção.
Corroborando com a linha de raciocínio de Marx exposta acima, para a autora, o
artesão tradicional é um profundo e instintivo conhecedor do meio onde se situa, tem
intimidade e domínio sobre os materiais que esse meio oferece, podendo transformá-los
com propriedade na matéria-prima dos objetos artesanais que produz, testemunhando,
em seu trabalho, o próprio meio ambiente onde se desenvolve sua cultura (VIVES,
1983).
No Maranhão, o artesanato na confecção de embarcações é marcado também no
modelismo, conforme Andrès (1998, p. 42), “[..] Artesãos constroem réplicas perfeitas,
“no olho”, pelo prazer estético e também hoje para vender a turistas. Servem como
registro tridimensional dos diferentes modelos [...]”.
48
Figura 2: Mestre Osmar Melo na Oficina de Modelismo Naval - Fonte: Arquivo pessoal de Luiz Phellipe
Andrès
Não poderíamos falar sobre produção artesanal sem explorarmos o instrumental
a ela relacionado. Na carpintaria naval artesanal maranhense, a pesquisa coordenada por
Andrès apontou em alguns dos maiores estaleiros visitados, a introdução do uso de
ferramentas e máquinas elétricas para a execução de algumas tarefas em busca do
aumento de produtividade. Porém, de acordo com o autor, “Apesar dessa tendência, a
manutenção das práticas elementares na maior parte dos procedimentos construtivos
garante a preservação das características das construções artesanais” (1998, p. 39).
Afirma ainda que:
Materiais e ferramentas simples e tradicionais como lona, prego, parafuso,
tinta, breu, algodão, nylon, serra de disco, formão (utensílio com uma
extremidade chata e cortante e outra embutida em cabo), goiva (formão que
tem o chanfro do corte no lado côncavo e usado em marcenaria e escultura),
alicate, torques (espécie de tenaz ou alicate), platina, enxó (instrumento de
cabo curto e com chapa de aço cortante, para desbatar), trado (verruma,
instrumento cuja ponta é lavrada em hélice, usada para abrir furos na
madeira, grande, usada por carpinteiros e tanoeiros), arco-de-pua, broca
(instrumento que, com movimento de rotação abre orifícios circulares; pua –
ponta aguda, bico de verruma), machado, marreta, martelo, alicate, pé-decabra, serrotão, serrote, serrote de ponta fina, serra de voltear, galopa, plaina,
pok-shé, besouro, prumo (instrumento formado de uma peça de metal ou de
pedra suspensa por um fio com o que se determina a linha vertical, aparelho
para determinar a profundidade das águas em que se encontra a embarcação),
escala, graminho, nível, suta, esquadro, pincel, ferro e macete de calafate,
lixadeira e etc., fazem parte do cotidiano nos estaleiros artesanais (ANDRÈS,
1998, p. 39, (as definições entre parênteses são nossas).
Um fato que coaduna o fazer artesão é que, de modo geral, o carpinteiro pode,
eventualmente, mudar de lugar, inclusive de cidade, em função da solicitação de uma
nova encomenda, levando consigo apenas seus instrumentos (ANDRÉS, 1998). O que
foi constatado em campo, entre os interlocutores de nossa pesquisa.
49
Para a carpintaria naval o adjetivo tradicional, além de aparecer para “artesão
tradicional” (Vives), aparece também para os estaleiros, “por estaleiro artesanal,
entende-se o espaço coberto, de uso permanente, contíguo ou não à residência do
artesão e dotado do ferramental necessário para que tenha condições de construir ou
recuperar embarcações” (ANDRÈS, 1998, p. 37 e 38). Estes, geralmente estão
localizados nas proximidades da beira de um rio, lago ou mar, apesar de não ser fator
determinante.
Quanto ao resultado do trabalho dos carpinteiros, foram identificados quinze
modelos
de embarcações
artesanais
tipicamente maranhenses,
e que estão
detalhadamente descritas em seu trabalho (Andrès, 1998). Aqui, apresentaremos as
embarcações artesanais tradicionais mais frequentes entre os carpinteiros de Raposa,
lembrando, porém, que há carpinteiros que afirmam saber fazer qualquer modelo a
depender da demanda, - a exemplo de Carlos Magalhães: “às vezes eu pergunto o
seguinte, se ele já viu alguma por aqui que seja do agrado dele „olha eu quero que o Sr.
faça do jeito daquela que eu vi acolá‟ a gente vai lá e olha”. Assim, vejamos as
embarcações:
Bote proa de risco:
Modelo que pode ser encontrado no litoral, apresenta armação com duas velas,
uma grande, a “carangueja”, e outra menor armada na popa, a vela de estai (é a vela
situada à proa, frente ao mastro vertical). (ANDRÈS, 1998, p. 55). Nesta embarcação a
bita (peça de madeira de secção circular localizada na proa) poderá estar eventualmente
esculpida com forma de cabeça humana (chamada carranca da bita), que segundo
Andrès, em entrevista do dia 12 de novembro de 2007, trata-se de um símbolo de
proteção para garantir maior segurança à embarcação. “Trata-se de uma crença muito
restrita ao universo dos embarcadiços e da qual eles evitam falar como assunto que paira
no plano das superstições” (MENDES, 2007, p.50). Além disso, é comum aparecerem
símbolos como “a lua e estrela”, no talhamar (peça de madeira situada na proa da
embarcação) ou no alto do mastro (ANDRÈS, p. 55).
Em Raposa, pudemos observar que a carranca da bita não é recorrente, estando a
bita sem carranca e sendo chamada de “castanha”, segundo Waldy Araújo.
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Figura 3: Bote proa de risco
Fonte: Andrés (1998, p.53)
Figura 4: Botes-proa-de-risco em Raposa-MA
Fonte: arquivo pessoal, em 30/11/2010
Biana:
De pequeno porte, construção simplificada e origem cearense, que nas últimas
décadas sofreu nítidas influências maranhenses, passando por um processo de adaptação
construtiva que permite classificá-la como embarcação do Maranhão (ANDRÈS, 1998,
p. 56). A biana possui leme (dispositivo situado na proa destinado a governar a
embarcação) com grandes proporções e ferragens de diversas alturas para que possa ser
levantadas quando a biana estiver em águas rasas. Existem ainda variações que
51
apresentam convés e casario, neste último utilizando motor e saída d‟água mais larga
que a dos modelos à vela (ANDRÈS, 1998, p. 61).
Figura 5: Biana
Fonte: Andrés (1998, p. 57)
Casquinho
É utilizada na pesca de camarão e peixe e também no transporte de passageiros
para outros barcos de maior porte e afastados do cais, podendo possuir toldo móvel
confeccionado de arame e talas de madeira, cobertos de talhão ou lona. (ANDRÈS,
1998, p. 72).
Figura 6: Casquinho
Fonte: Andrès (1998 p.73)
52
Das embarcações que vimos em estaleiros, em processo de reforma ou
construção, a grande maioria eram bianas, geralmente empregadas no transporte de
passageiros, especialmente no turismo, comumente vistas em Raposa com convés e
casario, movidas a motor a diesel. Também observamos grande quantidade de
casquinhos, com uma variedade de tamanhos, a ocorrência de botes proa de risco se dá
pela utilização dos mesmos na pesca local.
Figura 7: Bianas e casquinhos em Raposa-MA.
Fonte: arquivo pessoal, em 30/11/2010
3.1. Etnoconhecimento, etnomatemática
Para traçarmos um caminho até ao conceito de etnoconhecimento, devemos
relembrar “etnia”, que segundo Boudon, define-se, geralmente, como uma população
designada por um nome (etnónimo), “que se reclama de uma mesma origem, que possui
uma tradição cultural comum, especificado por uma consciência de pertença ao mesmo
grupo cuja unidade se apoia em geral numa língua, num território e numa história
idênticos”. Porém, segundo Sturtevant o prefixo “etno-” adquiriu, com a etnociência,
um sentido diferente do que era anteriormente empregado pelos cientistas sociais,
passando a referir-se ao “sistema de conhecimento e cognição característico de uma
determinada cultura”, para ele, a “etnociência de uma sociedade” seria representada
pelas “classificações „folk‟ características de uma sociedade (apud ALVES, 2008, p.
01).
53
A esta concepção de etnociência, relacionamos o etnoconhecimento, que neste
trabalho é alimentado pela definição de conhecimento tradicional de Diegues e Arruda
(2001), como o conjunto de saberes e práticas a respeito do mundo natural e
sobrenatural transmitido oralmente, de geração em geração.
Assim, levamos em conta que esse conhecimento tradicional está materializado
no artesão tradicional, que, de acordo com Vives:
É um ser criador, que no seu fazer revela habilidade, destreza, e elevada
disciplina manual. Posto que intérprete de tradições herdadas, acrescentará,
ainda assim, sinais de sua própria criatividade aos objetos produzidos,
ajuntando seu eu-criador à grande cópia de informações recolhidas da
tradição. Porque é um criador, será capaz de adaptar-se a novas realidades, e
enquanto mantém técnicas e padrões adquiridos por herança, inovará,
principalmente no que se refere a materiais. Escasseando aqueles antes
abundantes no meio, utilizará outros, através dos quais veiculará as técnicas e
manterá as tradições do fazer artesanal(1983.p. 140).
Para relacionarmos o etnoconhecimento aos carpinteiros navais interlocutores da
pesquisa, perguntamos a eles seus modos de aquisição e transmissão do conhecimento,
bem como os locais onde aprenderam o ofício. Assim, trazemos alguns exemplos:
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: Quando o Sr. aprendeu, o Sr. aprendeu vendo, fazendo ou inventando
sozinho?
Davi: Eu aprendi vendo o mestre que me ensinava: “olha isso aqui é desse jeito”. A
gente também não tem cabeça só pra piolho. A gente vai olhando e vai aprendendo.
Pesquisadora: Então o Sr. aprendeu com?
Davi: Chico, de Axixá/MA.
Pesquisadora: Na sua família alguém faz isso?
Davi: Não, ninguém nunca fez.
Pesquisadora: O Sr. tem filhos? Ensinou pros seus filhos?
Davi: Tenho.
Pesquisadora: Não quiseram aprender? Mas o Sr. quis ensinar pra eles?
Davi: Não quiseram aprender. Não, também não quis ensinar.
Pesquisadora: Por que?
Davi: Carpintaria mais é interesse. Tem gente que é curioso e acha bonito. Mas tem
outros que não quer nem saber, a gente convida, mas só se o rapaz achar bonito mesmo
o trabalho.
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Pesquisadora: E quantas pessoas o Sr. já ensinou a reformar? O Sr. já ensinou a alguém
o ofício?
Davi: Não. Ninguém não. Ninguém quer aprender essa profissão.
Roberto Alves (entrevista realizada em 03/01/2011)
Pesquisadora: E o Sr. aprendeu a fazer isso lá (Axixá) ou aqui (Raposa)?
Roberto: Aqui.
Pesquisadora: Com quem?
Roberto: Com meu pai mesmo. Pai de criação.
Pesquisadora: O seu pai é carpinteiro naval?
Roberto: Era.
Pesquisadora: E o Sr. ensinou para mais alguém?
Roberto: Não, não, a parte de carpintaria não. Eles são muito desinteressados. Os alunos
que eu tenho são da parte de pintura e de eletricista, aí tem muitos. Agora a parte de
carpintaria é difícil. Geralmente eles não se interessam em fazer as coisas. A gente vai
mais é pela prática, né? Pelo interesse de quem aprende. Pior que eu nunca tive um
professor para nenhuma das profissões. Aprendi mesmo por curiosidade em tudo.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Pesquisadora: O Sr. aprendeu com quem?
Carlos: Aprendi tinha 14 anos com meu pai...
Pesquisadora: O Sr. disse que aprendeu com o seu pai. Só som ele?
Carlos: Só.
Pesquisadora: Quando o Sr. aprendeu, o Sr. aprendeu vendo, fazendo ou algumas coisas,
aprendeu sozinho?
Carlos: Não, inventando não. Eu aprendi ajudando também, porque eu ajudava ele. Aí
naquilo eu fui me empenhando também pra aprender. Eu vivia aí, eu ajudava ele, mas
não era também só pra ajudar. Eu também tinha o desejo de aprender. Porque eu achava
bonito depois que formava tudinho, eu achava bonito, depois de pintada, eu achava que
eu nunca ia ter a capacidade de fazer tudo aquilo, por que eu achava muito difícil. A
embarcação é a profissão mais difícil que tem de aprender. O pedreiro, de uma semana
pra outra ele se forma em pedreiro. Mas, o carpinteiro, ele não é macho. Ele não
aprende dentro de dois anos, de três anos, não. Carece de muito tempo e ele também
tem que ter uma boa inteligência, uma boa cabeça porque cada uma pecinha que você
55
vai fazendo, ela tem um significado diferente, um detalhe diferente. Então, não é tudo a
mesma coisa. Do jeito que você aprendeu uma, você não pode fazer todas. Não é?
Pesquisadora: Aprendeu com quem?
Carlos: Com os outros. Trabalhando também com terceiro por ai.
Pesquisadora: Qual foi o local do aprendizado?
Carlos: Eu sou desse povoadozinho de Travosa.
Pesquisadora: A Sr. aprendeu lá ou aqui?
Carlos: Aprendi lá, mas vim terminar o curso, bem dizer, aqui.
Pesquisadora: E os seus filhos trabalham com o Sr?
Carlos: Já trabalharam. Hoje não trabalham mais. Arrumaram outro serviço fora.
Cristina (entrevista realizada em 02/01/2011)
Pesquisadora: Como a Sra. aprendeu?
Cristina: Só ajudando mesmo.
Pesquisadora: Foi aqui mesmo?
Cristina: Foi.
Pesquisadora: A Sra. ajuda a ensinar alguém?
Cristina: Queria que um filho meu aprendesse, mas ele não quis ir.
Diego Vieira (entrevista realizada em 03/01/2011)
Pesquisadora: Como você aprendeu?
Diego: Inventando sozinho, fazendo, olhando.
Pesquisadora: Com quem você aprendeu?
Diego: Com meu pai e meus tios.
Pesquisadora: Onde foi?
Diego: Aqui em Raposa mesmo.
Pesquisadora: Já ensinou pra alguém?
Diego: Eu mais meu irmão às vezes inventamos, ele me ensina e eu ensino pra ele.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010)
Pesquisadora: E o Sr. aprendeu com?
Anselmo: Com o meu pai.
Pesquisadora: Que também é carpinteiro?
56
Anselmo: Ainda é. Tá velhinho, mas alguma coisa ele ainda faz ainda. Aprendi com ele
e com seu Waldy ali. Seu Waldy me ensinou muita coisa, que ele é um bom
profissional.
Pesquisadora: Onde seu pai mora?
Anselmo: Lá no Jacamim, é perto da estiva.
Pesquisadora: Aí ele aprendeu com quem?
Anselmo: Ele aprendeu com um Sr. lá em Rosário chamado, esqueci o nome do cidadão
agora. Lá que ele aprendeu.
Pesquisadora: Mas é da família?
Anselmo: Não, não.
Pesquisadora: Ai, o Sr. aprendeu vendo fazendo ou inventando sozinho?
Anselmo: Não. Uma boa parte foi inventando sozinho mesmo. Uma boa parte. Porque
nem tudo papai sabia naquele tempo que vivia no interior. Ele não trabalhava com
embarcação de grande porte. Era mais embarcação pequena. Mas já foi assim um
começo.
Pesquisadora: Mas com ele o Sr. aprendeu foi fazendo e olhando? Ele mostrava e o Sr.
fazia?
Anselmo: É: “guenta aqui, segura aqui”. Quando a gente parte pra fazer, a gente já tinha
uma ideia, uma noção das coisas.
Pesquisadora: aprendeu a fazer lá e aqui também?
Anselmo: Papai que aprendeu em Rosário, eu aprendi aqui em Raposa.
Pesquisadora: E o Sr. ensinou pra um monte de gente. Mas e da sua família?
Anselmo: Não, todos os meus irmãos aprenderam com papai. Ele fazia, nós ficávamos
pertinho e fazendo.
Pesquisadora: E o Sr. já ensinou pra alguém?
Anselmo: Já. O menino que trabalhava aqui, já trabalha por conta própria já. Meus
filhos, tudinho sabem fazer.
Pesquisadora: O Sr. tem quantos filhos?
Anselmo: Tenho dois filhos. E todos dois sabem fazer. Um trabalha no comércio, mas
eles sabem fazer. E o outro (Diego Vieira) tá na minha canoa ali na passagem. Quando
eu quero trabalhar, eu convido, ele vem.
Em relação ao modo de obtenção e transmissão dos conhecimentos, percebemos
que a grande maioria atribui a uma interação de parentesco ou de afinidades dentro da
57
comunidade, podendo relacioná-las a uma mesma origem ou tradição cultural comum,
de história correlata. Apontando um sistema de conhecimento e cognição característico
de uma determinada cultura.
Neste sentido, pudemos perceber a importância da matemática na produção
artesanal de embarcações. Assim, indagamos aos interlocutores a influência da
matemática em seu trabalho. Temos em Rodrigues (2004) que a matemática representa
mais do que um corpo de conhecimento elaborado e sistematizado pelo grupo
profissional dos matemáticos. Que se pode encontrar uma matemática sistematizada de
forma diferenciada, que possui uma forma própria de representação, dependendo da
cultura na qual ela está inserida.
De acordo com o autor, a etnomatemática pode ser entendida como um
“programa” que dá atenção a resultados de um processo de organização intelectual,
social e de difusão a partir das relações interculturais no decorrer da história das
civilizações (RODRIGUES, 2004, p. 24).
Em seus estudos sobre canoeiros no Paraná, Rodrigues averiguou que o
canoeiro, para fazer a escolha da madeira, leva em consideração a melhor época para o
corte, tais como as fases da lua, o tamanho da espessura do tronco da árvore; leva em
consideração também o desperdício e a agressão ao meio ambiente, aproveitando
primeiramente madeiras de árvores que tenham sofrido alguma agressão pela natureza.
Para os canoeiros entrevistados, as épocas boas para o corte seguem as fases da lua,
sendo a minguante a fase ideal para o corte da árvore, pois segundo os canoeiros existe
a crença de que é nesta lua que a água que se encontra na copa e nos galhos da árvore
descem para a raiz, o que reduz a quantidade de água na madeira, facilitando a secagem
do tronco, evitando a deterioração da madeira (RODRIGUES, 2004, p. 37 e 38).
Tendo uma abordagem das ciências exatas, a etnomatemática necessita aporte na
etnografia, o que demanda maior interlocução das ciências. Em nossa pesquisa de
campo pudemos observar na produção naval artesanal em Raposa-MA elementos
passíveis de abordagem etnomatemática, a exemplo do retratado na dificuldade
encontrada para a realização do levantamento das formas e dimensões das embarcações
pela pesquisa de Andrès (1998, p. 114), “ressaltamos a resposta dada pelo mestre Pedro
Alcântara a Luiz Phelipe Andrés ao expor sua inquietação pelo fato de a embarcação
não possuir linhas retas que pudessem servir de base a seus desenhos.” Disse o mestre
que “o barco é feito assim todo torto pra ficar direito na água”.
58
A matemática escolar oficial, porém, de acordo com nossas observações, tem
importância considerável entre nossos entrevistados, desta forma:
Davi Martins (entrevista realizada em 29/12/2010)
Pesquisadora: Mas, o Sr. aprendeu a matemática?
Davi: Aprendi.
Pesquisadora: O Sr. acha que sem a matemática dava pra ser carpinteiro?
Davi: Não dava, porque a gente faz um orçamento, a gente dando o material, a ideia de
quantos dias a gente vai gastar trabalhando. Ai, a gente tem que fazer o orçamento, a
matemática pra fazer.
Pesquisadora: Se o Sr. não soubesse a matemática, o Sr. ia ter dificuldade?
Davi: No orçamento.
Pesquisadora: Como o Sr. sabe já ajudou muito?
Davi: Mesmo porque a gente já tem a prática. Só a embarcação que chega pra gente
construir ela, a gente olha logo, vê o que dá pra fazer. Ai, a gente pede o dinheiro pro
dono. Ai, ele reclama, ai, vai diminuindo até que a gente chega num acordo.
Pesquisadora: Na construção mesmo, a matemática influi alguma coisa? Na métrica?
Pra medir as partes?
Davi: A gente mede a embarcação, mede a embarcação pra poder comprar o material.
Pesquisadora: Então pra medir as partes da embarcação, o Sr. usa algum instrumento?
Davi: Eu uso a régua e a escala.
Pesquisadora: Se o Sr não soubesse usar a escala, o Sr. iria medir como?
Davi: Aí não tinha como medir, né? Como é que a gente ia medir?
Pesquisadora: Então um rapaz lá que ele não tem régua, essas coisas, ele consegue
medir?
Davi: Ai, ele não consegue medir. Ele já tem aquela prática de dizer quantas talas dá.
Pesquisadora: Pelo número de talas. Mas assim, não existe um outro tipo de medida?
Braçada?
Davi: Palmo. Ele já tem a metragem, parece que com tantos palmo é um metro. Aí já dá.
Roberto (entrevista realizada em 03/01/2011)
Pesquisadora: Qual a escolaridade do Sr.?
Roberto: Só tenho o segundo grau mesmo.
Pesquisadora: E o uso da matemática no seu trabalho? Influi muito?
59
Roberto: Influi muito, principalmente a parte elétrica. Se você não souber somar, não
tem rendimento de corrente.
Pesquisadora: E em relação à medição? Escala de medidas?
Roberto: Sei, entendi.
Pesquisadora: Sem a matemática, o Sr. saberia se virar?
Roberto: Sim, com certeza.
Pesquisadora: E como o Sr. trabalharia?
Roberto: Depende do decorrer do serviço né? Aí tem que ter a metragem correta, né?
Pesquisadora: Aí, na metragem, o Sr. ia se basear com o quê?
Roberto: Geralmente escala, né?
Pesquisadora: Sem a matemática o Sr. ia fazer isso como?
Roberto: Ia ter minha escala própria.
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28/12/2010)
Pesquisadora: Quanto a sua escolaridade, o Sr. estudou ou só foi mesmo estudar o
oficio?
Carlos: Não, eu estudei. Só que foi pouco, né? Eu fiz só o primeiro ano, como é que se
diz? Porque na minha época a gente chamava de primeiro ano. Porque vem a cartilha do
ABC, depois vem o primeiro ano... Só que ai, quando chegou no segundo ano, ainda
não tava nem no meio do ano, eu fui expulso do colégio.
Pesquisadora: Faz muitos anos?
Carlos: Faz. Eu já tenho o quê? 49 anos, eu acho que eu tinha uns 12 anos. Aí já, depois
que eu tô aqui, depois de casado, eu fiz um supletivo. Mas, também, eu não recebi o
diploma, não fiz nada.
Pesquisadora: Mas terminou?
Carlos: Terminei. Eu fiz o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização)
também.
Pesquisadora: E a matemática, o uso da matemática?
Carlos: Só mesmo da cabeça. As poucas contas que eu sei fazer é só na cabeça, porque
pra fazer assim no lápis eu não sei nada.
Pesquisadora: Mas, pra medir as coisas, o Sr. mede com a régua?
Carlos: Com a escala. Eu uso a escala, e uma ferramenta chamada compasso. É o que
mais o carpinteiro usa.
Pesquisadora: Escala e compasso. Mas não usa mais outras medidas?
60
Carlos: É. Braças e palmos, mas a gente não usa mais muito aqui não.
Pesquisadora: Mas, o Sr. acha que ter estudado ajudou o Sr. em alguma coisa na
carpintaria? Ter estudado matemática no colégio?
Carlos: Se eu tivesse aprendido ela, talvez. Na hora de fazer o orçamento, eu peço pros
meninos ou então pra minha esposa fazer. E isso me incomoda, sabe? Porque às vezes
eu tô na rua e as pessoas me encontram por aí, eles pedem um negócio desse aí, eu
tenho que pedir um tempo pra ele, vou em casa mandar fazer, aí, depois eu trago.
Pesquisadora: É mais nessa parte do orçamento? Aqui na confecção não muda nada?
Carlos: Não... Mais de quanto ele vai me dar, de quanto ainda tá faltando. O resto aqui é
isso aí tudo, a confecção é na cabeça. Não carece de matemática.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30/11/2010)
Pesquisadora: O Sr. cursou até que ano?
Anselmo: Terceiro ano do ensino médio, comecei com 44 anos.
Pesquisadora: Usou alguma coisa do colégio aqui na carpintaria?
Anselmo: Essa parte da matemática.
Pesquisadora: A matemática melhorou o trabalho?
Anselmo: Melhorou.
Pesquisadora: Me fale mais sobre essa matemática. No que é que a matemática lhe
ajuda?
Anselmo: Pra medir a largura, a profundidade e até mesmo pra afiar uma tábua. A gente
usa números. Pra fiar a tábua.
Pesquisadora: E como é isso?
Anselmo: A gente coloca a régua na tabua, coloca o número com o compasso pra fazer
ela. Em grande embarcação tem que ser passeado a tábua. É numerada. Caverna por
caverna. 1,2,3,4, aí vai e coloca o ponto. 5,6,7 aí vai. Depois da tábua toda numerada,
riscada, aí vai agora pro motor pra cortar, né? Fazer tudo numerada. Passeada. Chama
passeada.
Pesquisadora: Numera pra depois fazer, na sequência, o certo. Antes de o Sr. usar a
matemática, como é que o Sr. fazia isso?
Anselmo: Eu fazia assim mesmo, sem usar. Colocava uma linha e ia olhando, ia dando
certo. Era mais assim. Tinha vez que a gente errava. Agora não, ficou mais fácil. Às
vezes faz a embarcação na medida do palmo do cliente.
61
Deste modo, pudemos perceber na fala de Anselmo, que aprendeu matemática
há poucos anos, que o “sistema” matemático que empregava com a linha era diferente
do que emprega hoje com o auxílio de instrumentos numerados. Outro fato que chama
atenção na fala de Anselmo é que, às vezes, mede a embarcação pelo palmo do cliente,
ou seja, o cliente diz quantos palmos deseja e ele mede o tamanho do palmo do cliente e
depois multiplica. Percebemos ainda que Roberto acredita que poderia fazer sua própria
escala, sem a matemática escolar. Já Carlos atribui grande importância à matemática
para o cálculo dos orçamentos, já para a confecção acredita ser prescindível. Davi, por
seu turno, acredita que, sem números e instrumentos, não daria para medir, porém, que
olhando daria para perceber o número de talas necessárias.
Outros pontos de conhecimento em carpintaria naval artesanal maranhense
foram observados na pesquisa coordenada por Andrès. Assim, a utilização dos materiais
na produção, calafetagem e pintura das embarcações, a escolha da madeira a ser
utilizada em cada circunstância, o conhecimento de onde encontrar a árvore mais
retilínea, sabendo-se necessária a presença de várias árvores próximas umas das outras
evitando o envergamento (SILVEIRA, 1998 p. 120), a substituição de pregos e
parafusos por cavilhas de madeira com diferentes coeficientes de dilatação (ANDRÈS,
1998, p. 36), a retirada do oco da árvore com o uso de fogo e forquilhas naturais
(ANDRÈS, 1998, p. 108), também demonstram a transformação da natureza pelo
homem através de seu trabalho.
A tendência à combinação de cores complementares sem o conhecimento
acadêmico da física ótica (ANDRÈS, 1998, p 115); o “macete do calafate” para saber
com segurança, pela intensidade do som, se a estopa atingiu o ponto exato de sua
penetração, pois sabe que se passar deste ponto acarretará danos sérios ao tabuado
(ANDRÈS, 1998, p. 117); a utilização da substância extraída da raspagem do pau de
mangue para tingir as velas, bem como o uso de talos de bananeira para a fixação da cor
(ANDRÈS, 1998, p. 34), são conhecimentos empíricos que revelam as particularidades
do modo de construção utilizado na produção de uma embarcação pelos atores da
carpintaria naval maranhense.
Preocupação de Zequinha, que, perguntado sobre ao futuro da profissão
(entrevista realizada em 17 de novembro de 2007), responde que “é difícil o pessoal
querer aprender, eles querem estudo mais leve, da minha família só eu herdei o trabalho
do meu pai” e complementa “acho meio ruim isso, porque o pessoal estuda, estuda, e
62
não inventa mais nada” (MENDES, 2007, p. 74). Em matéria publicada no dia 23 de
julho de 2007 no portal da Univima na Internet, Andrès fala:
Eles não têm estudo, mas são doutores, são os nossos professores, porque
detêm a ciência do momento certo para o corte da madeira, por exemplo, sem
afetar o meio-ambiente; sabem como construir algo simples e perfeito como a
jangada; dominam o mar à noite, sem iluminação e segurança, tudo somente
com o conhecimento que eles têm da natureza.
Diante dos elementos acima expostos, convém apontar nesse sentido, a
Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,
aprovada na 33ª Conferência Geral da Unesco, em 20 de outubro de 2005, que
reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais e da cultura para todos e em
especial às pessoas pertencentes às minorias e aos povos autóctones (naturais de uma
determinada região), cuja promoção deve ser feita de modo consciente e responsável,
sob o princípio da dignidade e respeito a todas as culturas.
Neste sentido, convém apontar que a Constituição Federal de 1988 prevê a
instituição de bens de natureza material e imaterial que tenham referência à identidade,
ação e memória dos grupos formadores da sociedade brasileira a partir dos modos de
criar, fazer e viver, da seguinte maneira:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as
formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º - O Poder Público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação. § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão
da documentação governamental e as providências para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem. § 3º - A lei estabelecerá incentivos para
a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e
ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º - Ficam
tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos. § 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito
Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos
por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de
programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no
pagamento de: I - despesas com pessoal e encargos sociais; II - serviço da
dívida; III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos
investimentos ou ações apoiados.
63
A definição de patrimônio cultural imaterial está expressa no artigo 2º da
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, oriunda da 32ª sessão
da Conferência Geral da UNESCO, realizada em 17 de outubro de 2003, com entrada
em vigor em 20 de abril de 2006 e opera-se nas seguintes palavras:
Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações,
expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os
grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante
de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a
natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e
continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade
cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será
levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível
com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os
imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do
desenvolvimento sustentável.
De acordo com a Convenção, este patrimônio (aqui entendido por conjunto de
bens de valor cultural) se manifesta nos seguintes campos: tradições e expressões
culturais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; expressões
artísticas; práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e práticas relacionados
à natureza e ao universo; e técnicas artesanais tradicionais. Este, por seu turno, não é um
rol taxativo.
Convém apontarmos que o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, de
2007, tem como linhas de ação: o incentivo a ações de reconhecimento e valorização de
detentores de conhecimentos e formas de expressão tradicionais e apoio às condições
sociais e materiais de continuidade destes conhecimentos; o apoio a ações que visem à
organização comunitária e gerencial de produtores ou detentores de bens culturais; e o
apoio a ações de melhoria das condições de produção e circulação de bens culturais
imateriais, numa perspectiva de preservação de meio ambiente e de proteção de
contextos culturais específicos.
Assim, vinculamos os modos de fazer da carpintaria naval com o conceito ideal
de bem cultural imaterial, apesar de que, para se configurar legitimamente como tal,
seria necessário que passasse por processo de registro pelos órgãos oficiais competentes
(MENDES, 2007), o que, até o presente momento, não aconteceu, carecendo disto,
portanto, para que usufrua das linhas de ação vistas acima.
64
A nosso ver, essas questões ligadas ao modo de fazer e de viver, estão
intimamente ligadas ao etnoconhecimento, e aqui, faz-se necessário lembrar a indagação
de Arturo Escobar (2005, p. 138), qual seja:
Podemos elevar os imaginários – incluindo modelos locais da natureza – à
linguagem da teoria social, e projetar seu potencial a tipos novos de
globalidade, de maneira que se erija como formas alternativas de organizar a
vida social? Em resumo, em que medidas podemos reinventar tanto o
pensamento como o mundo, de acordo com a lógica de culturas baseadas no
lugar? É possível lançar uma defesa do lugar com o lugar como um ponto de
construção da teoria e da ação política? Quem fala em nome do lugar? Quem
o defende? É possível encontrar nas práticas baseadas no lugar uma crítica do
poder e da hegemonia sem ignorar seu arraigamento nos circuitos do capital e
da modernidade?
Segundo Escobar (2005) a questão do “conhecimento local” e do conhecimento
dos sistemas naturais, tem sido abordada nos últimos anos de várias óticas (cognitiva,
epistemológica, etnobiológica e, de maneira mais geral, antropológica) e em conexão
com uma variedade de temas, desde as taxonomias primitivas e a conservação da
biodiversidade, até a política de territorialidade e dos movimentos sociais.
Segundo o autor, há recontagens vez mais sofisticadas sobre as construções da
natureza elaboradas pelas pessoas, o que talvez tenha oferecido a possibilidade do
desfazimento da relação binária entre a natureza e a cultura que tem sido tão
predominante e prejudicial para a antropologia ecológica e campos relacionados.
Ingold (apud ESCOBAR 2005, p. 144), sustenta que “vivemos num mundo que
não está separado de nós e nosso conhecimento do mundo pode ser descrito como um
processo de adestramento no contexto do envolver-se com o meio ambiente”. E os seres
humanos, estão arraigados na natureza imersos em atos e práticas, localizados.
Para Escobar, os modelos locais são “experiências de vida”; “desenvolvem-se
através do uso” na imbricação das práticas locais, com processos e compensações mais
amplos. Para ele, o lugar, como a cultura local, pode ser considerado „o outro‟ da
globalização, de maneira que uma discussão do lugar deveria oferecer uma perspectiva
importante para repensar a globalização e a questão das alternativas ao capitalismo e à
modernidade.
Assim “as economias das comunidades baseiam-se no lugar (mesmo que não
amarrados-ao-lugar, porque, participam de mercados translocais) frequentemente
mantêm o espaço comum que consiste em terra, recursos materiais, conhecimento,
ancestrais, espíritos, e etc.” (idem, p. 157).
65
De acordo com Escobar, os lugares e as localidades entram na política da
mercantilização de bens e a massificação cultural, mas “o conhecimento do lugar e da
identidade podem contribuir para produzir diferentes significados – de economia,
natureza e deles mesmos – dentro das condições do capitalismo e da modernidade que o
rodeia” (ESCOBAR, 2005, p. 161).
Para ele, as esferas ecológicas públicas alternativas podem abrir-se desta
maneira contra as ecologias imperialistas da natureza e da identidade na modernidade
capitalista.
É nessa intercessão dos modelos da natureza “baseados-no-lugar” e na
economia, por um lado, na teorização de racionalidades produtivas, por outro, que,
segundo ele, “poderemos encontrar um contexto de referências mais amplo no qual
situar os debates sobre a sustentabilidade cultural e ecológica.” (ESCOBAR, 2005, p.
161).
Diante dessa lógica, procuramos observar entre os interlocutores suas relações
com o lugar, qual o papel do lugar na provisão dos meios de trabalho da carpintaria
naval, de que maneira a natureza está arraigada em suas práticas, já que seus meios de
produção provém necessariamente da natureza e suas práticas de sua racionalidade
produtiva.
Assim, apresentada sobre o enfoque do etnoconhecimento, no sentido de
conhecimento associado a populações tradicionais, podemos observar modelos de
natureza a partir das relações dos carpinteiros com os recursos disponíveis em sua
região, e através dos usos sociais que fazem dos recursos naturais em suas atividades.
3.2. Discussão a partir da categoria população tradicional
Seguindo a linha de raciocínio de Diegues e Arruda,
Utilizamos neste estudo a noção de “sociedades tradicionais” para definir
grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem
historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base
na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se
tanto a povos indígenas quanto a seguimentos da população nacional, que
desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos
ecológicos específicos (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 27).
Little faz uma exegese da categoria população tradicional a partir da análise de
alguns fatores como a territorialidade que, para ele, seria “o esforço coletivo de um
grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de
66
seu ambiente biofísico (...)” (LITTLE, 2002, p. 04). E afirma que a territorialidade
humana teria uma multiplicidade de expressões, o que produziria um leque muito amplo
de tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais, de modo que
se faz necessário entender as formas específicas dessa diversidade para se entender a
relação particular que um grupo social mantém com seu respectivo território.
No caso dos carpinteiros navais, observaremos no decorrer do trabalho que a
particularidade dos mesmos frente à territorialidade decorre do fato de os trabalhadores
recorrerem há anos a recursos naturais constantes no município de Raposa em áreas
próximas a ele, territórios que, conforme veremos, são parte integrante de área
legalmente protegida do ponto de vista ambiental.
Little inclui em sua discussão sobre populações tradicionais a noção de
cosmografia cujo significado é “definido como os saberes ambientais, ideologias e
identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social
utiliza para estabelecer e manter seu território” (LITTLE, 2002, p. 05).
Esta cosmografia de determinado grupo deve incluir, segundo o autor, “seu
regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a
história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território
e as formas de defesa dele” (LITTLE, 2002, p. 05).
Little procura desvincular a territorialidade de uma necessária etnicidade ou
raça, que, segundo ele, tenderiam a ser avaliadas em termos de pureza, mas insiste em
uma relação com um espaço físico determinado. Entretanto, o autor não exclui a
possibilidade de que a categoria de identidade possa ser ampliada, “à medida que a
identidade de um grupo passa, entre outras coisas, pela relação com os territórios
construídos com base nas suas respectivas cosmografias” (LITTLE, 2002, p. 11).
Quanto à relação destes povos com uma forma de desenvolvimento dita
sustentável, expõe analisando situações no Brasil:
Na busca por uma alternativa viável de desenvolvimento sustentável, os
povos tradicionais foram considerados pelos ambientalistas como parceiros
com muitas afinidades, devido a suas práticas históricas de adaptação. Ou
seja, a dimensão ambientalista dos territórios sociais se expressa na
sustentabilidade ecológica dão por parte desses povos durante longos
períodos de tempo, baseada nas formas de exploração pouco depredadoras de
seus respectivos ecossistemas. A profundidade histórica dessa
sustentabilidade é complementada por sua abrangência geográfica,
encontrável nos mais diversos ecossistemas do país (LITTLE, 2002, p. 18).
O enfoque do autor na dimensão fundiária evoca sua “razão histórica”, que seria
pautada em três elementos − regime de propriedade comum, sentido de pertencimento a
67
um lugar específico e profundidade histórica da ocupação guardada na memória coletiva
– ressaltando que as semelhanças nesse plano não obrigam, na visão de Little, que nos
outros planos da prática sociocultural − religioso, identitário, cosmológico, linguístico,
etc. – existam semelhanças. Já que “A demonstração de semelhanças num plano da vida
social não tem que valer para outros e, de fato, raras vezes acontece, dada a
complexidade sociocultural do mundo contemporâneo.” (LITTLE, 2002, p. 23).
Aponta os usos políticos e sociais do conceito de povos tradicionais, que seria
evocado tanto por grupos sociais que defendem seus respectivos territórios frente à
usurpação por parte do Estado-nação, quanto pelos preservacionistas em lidar com todos
os grupos sociais residentes ou usuários das unidades de conservação de proteção
integral, entendidos como obstáculos para a implementação plena das metas dessas
unidades.
Já no contexto socioambientalista, o conceito é evocado, segundo o autor, no
sentido de que distintos grupos que historicamente mostraram ter formas sustentáveis de
exploração dos recursos naturais gerando formas de cogestão de território. (LITTLE,
2002) Mais adiante entenderemos a importância desta referência feita por Little aos
grupos sociais residentes ou usuários de unidades de conservação.
No site do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis), http://www.ibama.gov.br/resex/pop.htm, há o reconhecimento de
que existem populações capazes de utilizar e ao mesmo tempo conservar recursos
ambientais, configuradas no texto como "Populações Tradicionais”. Este texto elenca
possíveis características de “culturas tradicionais”, dentre elas:








Dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos
naturais renováveis a partir do qual se constrói um "modo de vida";
Conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na
elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse
conhecimento é transferido de geração em geração por via oral;
Noção de território ou espaço onde o grupo se reproduz econômica e
socialmente;
Importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de
mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica numa
relação com o mercado;
Reduzida acumulação de capital;
Importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de
parentesco ou de compadrio para o exercício das atividades econômicas,
sociais e culturais;
Importância de mito e rituais associados à caça, à pesca e a atividades
extrativistas;
A tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o
meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho,
sobressaindo o trabalho artesanal. Nele, o produtor e sua família, dominam o
processo de trabalho até o produto final;
68

Fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos centros
urbanos;
O Decreto nº 6.040/07 (que institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais) e a Instrução Normativa nº 01 do
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBIO (autarquia federal
responsável pela gestão e criação das Unidades de Conservação Federais) definem
população tradicional como: grupos diferenciados e que se reconhecem como tais; que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição.
O decreto define ainda Desenvolvimento Sustentável como o uso equilibrado
dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração
garantido às mesmas possibilidades para as gerações futuras.
Dentre as categorias oficiais acima dispostas, destacamos no que tange à
carpintaria naval os fatores utilização de conhecimentos e práticas transmitidos pela
tradição, tecnologia utilizada relativamente simples, uma reduzida divisão técnica e
social do trabalho, sobressaindo o trabalho artesanal, restando ainda discutirmos o
impacto limitado sobre o meio ambiente.
Para melhor entendermos o contexto da carpintaria naval artesanal a que nos
referimos, faz-se necessária a apresentação do território escolhido para a pesquisa.
Sabemos que o sentido de território é mais amplo que a delimitação política de
Município, mas, a título de delimitação para a pesquisa, escolhemos acompanhar as
dinâmicas que ocorrem na unidade política municipal como foco da nossa pesquisa.
4. O MUNICÍPIO DE RAPOSA NO CONTEXTO DA CARPINTARIA NAVAL
ARTESANAL
4.1. Apresentando o Município
Segundo Silva (2009), após a chegada dos jesuítas na ilha de Upaon-Açu1, foi
descoberta uma praia no extremo norte da ilha. O nome Raposa surge da percepção dos
1
Um dos nomes da ilha. Oficialmente é chamada de Ilha do Maranhão, onde estão localizados os quatro
municípios: São Luís, Raposa, Paço do Lumiar e São José de Ribamar.
69
pescadores da grande quantidade de raposas na região, que se aproveitavam do pescado
que os pescadores deixavam para salgar no sol (MARANHÃO apud SILVA, 2009).
De
acordo
com
o
portal
de
turismo
do
Maranhão
na
internet
(http://www.turismo.ma.gov.br/pt/polos/sao_luis/raposa.htm), o município de Raposa
fica a 28 quilômetros do centro de São Luís – MA, e abriga a maior colônia de pesca do
Estado. Segundo Silva, Raposa surge como povoado a partir dos anos 1950 e começou a
se desenvolver com a chegada de pescadores e rendeiras cearenses oriundos do
município de Acaraú – CE (2009).
No Corredor da Rendeira (avenida principal da cidade) há intenso comércio de
toalhas de mesa, panos de prato, passadeiras, saídas de praia, chapéus, cortinas, além de
uma série de outros artefatos confeccionados em renda. O município tem como
referência seu píer de atracação onde ficam barcos de pesca, e, do outro lado do píer, a
Praia de Carimã, com dunas e lagoas, de extensão aproximada de 15 km.
O município de Raposa limita-se ao Norte com o Oceano Atlântico; a Leste, a
Oeste e ao Sul com o município de Paço do Lumiar. Até o ano de 1994, Raposa
recebeu a categoria de município e distrito com a denominação de Raposa, pela lei
estadual nº 6132, de 10-11-1994, desmembrando-se do município de Paço do Lumiar. N
Na divisão regional do Maranhão, o município se situa na Microrregião da
Aglomeração Urbana de São Luís e na Mesorregião do Norte do Estado. Tem como
principal via de acesso a Rodovia MA-203 (IBGE, 2010).
Raposa pertence à região metropolitana de São Luís e o município localiza-se na
parte nordeste da ilha do Maranhão, tendo como coordenadas geográficas 02º 21‟ a
02º30‟ de latitude sul e 43º58‟ a 44º11‟ de longitude oeste aproximadamente, com
altitude média de 3m.
A área foi estimada em 64,18 km², com população de 25.837 habitantes e o
bioma apresentado nos dados oficiais é: Amazônia. Segundo o IBGE (2010), a
população absoluta do município, em 2010 totalizou 26.280 habitantes distribuídos em
uma área de 64 km². O PIB, em 2005, chegou a R$ 55.787.000,00 (cinqüenta e cinco
milhões, setecentos e oitenta e sete mil reais).
O município de Raposa possui uma das maiores colônias de pescadores do
Estado do Maranhão, atingindo a renda anual de 7,1 milhões de reais e correspondendo
a quase 10% do faturamento total do estado nesse ramo da economia (CEPENE, 2006).
70
Figura 8: Município de Raposa-MA
Fonte: IBGE, 2010
Figura 9: Localização do Município de Raposa – MA
Fonte: SILVA, 2009
Segundo Silva (2009), as duas principais espécies vegetais encontradas em
Raposa são o mangue, presentes nas áreas constituídas por gleissolos sálicos e a
vegetação de restinga, presentes nas áreas formadas por areias quartzíticas marinhas e
dunas. Manguezais são ecossistemas costeiros, estaurinos, sujeitos a inundação
periódica pela ação das marés e também pela influência das águas doces. A composição
florística dos manguezais brasileiros é constituída por três gêneros: Rhizophora,
71
Avicennia e Laguncularia e quatro espécies Rhizophora mangle (mangue vermelho,
mangue verdadeiro) , Avicennia schaueriana, Avicenia germinnans (mangue preto,
siriúba, mangue cortume), Laguncularia racemosa (mangue branco, mangue rasteiro).
O ecossistema manguezal é maioria vegetal no espaço pesquisado. Os principais
tipos de mangue encontrados são: Rhizophora mangle, Avicenia germinnans,
Cornucapus erectus e Laguncularia racemosa. Tais espécies vegetais possuem
adaptações como: habilidade de extrair água doce do mar, órgãos especiais para a
excreção de sal, caules modificados para sustentação que permitem a respiração da
planta; raízes escoras e adventícias que permitem a sustentação do vegetal em substratos
moles, e sementes (propágulos) que flutuam na água salgada. Esses sistemas servem
também de refúgio natural para várias espécies de animais marinhos que, em fase jovem
e em época de reprodução, aumentam sua sobrevivência graças ao sistema radicular da
vegetação, que fornece proteção contra a ação de predadores e alimento rico em
proteínas (SILVA, 2009).
Entre os dados do IBGE (2007) sobre produção de madeira em tora e em lenha,
aparecem para o município de Raposa-MA como zero o valor da produção em tora e
zero a quantidade de lenha produzida.
A Raposa divide-se em duas áreas de concentração populacional, a Vila Bom
Viver e o Centro. Segundo o IBGE, em 2004, o analfabetismo foi de 23,1% enquanto o
analfabetismo funcional chegou a 40% (IBGE, 2008). Não há registro de uma pessoa
com ensino superior (SILVA, 2009).
Silva (2009) aponta que com baixos salários e baixo poder aquisitivo, a realidade
financeira das famílias residentes na Raposa, não é diferente do resto dos municípios do
Maranhão. A baixa renda é compatível com a baixa escolaridade e com as ocupações.
O vínculo da maioria dos carpinteiros navais com o município não é, como
vimos na apresentação dos interlocutores, de naturalidade. A maioria chegou para
trabalhar no local na adolescência ou juventude e lá se estabeleceu. Sobre a influência
do Ceará para a carpintaria da região, temos na fala de Davi Martins (entrevistado dia
29/12/2010) o que segue:
Pesquisadora: Dizem que aqui era colônia de pescadores do Ceará? O Sr. sabe alguma
coisa sobre essa história?
Davi: Eu tô sabendo agora que você tá contando. E as colônias aqui da Raposa, eu acho
que não passa a ser de gente do Ceará não. Essa historia é só porque tinha muito
jagunço lá.
72
Pesquisadora: Mas na construção naval tem algum cearense?
Davi: Não. Que eu saiba não.
Pesquisadora: E os barcos da Raposa, tem alguma coisa de cearense neles?
Davi: Tem mesmo não. Tudo maranhense mesmo. Feito tudo do jeito dos carpinteiros
de Raposa mesmo.
Tão importante quanto descrever o vínculo com o município em que habitam e
trabalham os carpinteiros navais de Raposa, é descrever a relação de suas práticas com
as normas legais vigentes. Deste modo, passamos a apresentar a legislação ambiental a
que estão submetidos e sua relação com a mesma.
4.2. Legislação ambiental relacionada
A noção de justiça ambiental deve, em tese, guiar a elaboração das leis
ambientais de um Estado. Conforme Castells (1999, p. 166) justiça ambiental é noção
que “reafirma o valor da vida em todas as suas manifestações, contra os interesses de
riqueza, poder e tecnologia” e esta noção “vem conquistando gradativamente as mentes
e as políticas, à medida que o movimento ambientalista ingressa em um novo estágio de
desenvolvimento”. E, segundo Lenir Moraes Muniz (2009, p. 186-187):
(...) nos últimos anos o campo de discussão da ecologia política tem sido
revigorado pela discussão sobre a justiça ambiental, para qual serve como
base teórica ao analisar os conflitos distributivos a partir das desigualdades
decorrentes de processos econômicos e sociais, que acabam por concentrar as
principais cargas de poluição e demais efeitos deletérios do desenvolvimento
sobre as populações mais pobres, discriminadas e socialmente excluídas.
Continua a autora argumentando que existem populações tradicionais de
extrativistas e pequenos produtores “perdendo o acesso à terra, às matas e aos rios dos
quais depende sua sobrevivência, ou são forçadas a conviver com a degradação
ambiental e social produzida por estes empreendimentos” (MUNIZ, 2009, p. 187-188).
Essa situação, de acordo com a autora, reflete o processo de concentração de poder na
apropriação e nos recursos ambientais.
E a América Latina, de acordo com Souza Filho (2003, p. 93), vive uma fase de
novos direitos que “têm como principal característica o fato de sua titularidade não ser
individualizada”. Segundo o autor, direitos coletivos não nascem de uma relação
jurídica determinada, mas de uma realidade, como pertencer a um povo ou formar um
grupo que necessita ou deseja ar puro, água, floresta e marcos culturais preservados, ou
garantias para viver em sociedade, como trabalho, moradia e certeza de qualidade dos
bens adquiridos. O autor lembra que estes direitos não são exclusivos dos povos
73
indígenas. Assim “as constituições da Colômbia e do Brasil abrem brechas para a
constituição de direitos das comunidades negras tradicionais e de todos os que
reconhecem direitos coletivos admitem genericamente que outras comunidades podem
reivindicá-los” (SOUZA FILHO, 2003, p. 94).
Quanto à aplicação destes direitos e suas dificuldades, entendemos que, ao falar
em “atuação dos povos indígenas”, pode-se estender a noção a comunidades locais ou
tradicionais. Assim:
O Poder Judiciário tem tido papel preponderante na aplicação desses novos
direitos, mas mantido uma posição conservadora na maioria das vezes. As
ferramentas jurídicas estão razoavelmente construídas na América Latina e
acrescidas de instrumentos que servem a outros direitos coletivos
reconhecidos genericamente à população, como o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, consumidores e patrimônio cultural. Em geral
tem sido necessário apelar à justiça para obtê-los (...). Isto limita a atuação
dos povos indígenas, que precisam criar organizações segundo os parâmetros
ocidentais – não tradicionais – para conseguir o reconhecimento de seus
direitos mesmo na Amazônia (SOUZA FILHO, 2003. p. 96).
O autor reflete a questão da verdadeira “função social da terra”, visto que as
elites identificam a função social como produtividade capitalista, quer dizer, considerar
que cumpria a função social toda a terra que oferecesse renda pela produção. A função
social propriamente dita seria, então, o seu papel integrador de culturas e protetor de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantias da vida no planeta. Por isso,
argumenta o autor que “apesar das mudanças legais introduzidas pelas constituições,
ainda é muito difícil que os juízes interpretem as leis contra interesse da propriedade
privada” (SOUZA FILHO, 2003, p. 96).
Assim, em relação aos direitos coletivos antes da Constituição de 1988, entendese que os mesmos eram pedidos utópicos que entraram no direito e podem ser
reivindicados
como
concretização
jurídica
e
devem
ser
reconhecidos
pela
Administração Pública, mas que, quando não o são, podem ser garantidos em decisões
judiciais (SOUZA FILHO, 1993).
Segundo Eliane Moreira,
Na luta pela afirmação do meio ambiente como direito humano existem
avanços e recuos, porém, os sistemas internacionais de direitos humanos tem
se mostrado terreno fértil para a efetivação do direito ao meio ambiente, e por
isto mesmo, pode ser visto como uma forma de fortalecer a defesa deste
direito (MOREIRA, mimio, p. 25)
Neste sentido, interessa à América Latina, o Sistema Americano de Direitos
Humanos, que entrou em vigor em 1978. A Corte IDH (Corte Interamericana de
Direitos Humanos) é instituição judicial autônoma que objetiva a aplicação e
74
interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (vale lembrar que o
Brasil se submete a este sistema). Com função jurisdicional e consultiva, analisa casos
apresentados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que recebe as
petições ou comunicações referentes à violação de direitos humanos, realiza uma análise
prévia e decide pela submissão ou não à Corte).
Em 2007, a Corte apreciou o caso do Povo Saramaka (comunidade tribal não
indígena) contra o Suriname que aprecia direitos territoriais sob a alegação de que o
Estado deixou de adotar medidas efetivas para reconhecer o direito do povo ao uso e
gozo do território tradicionalmente ocupado, além de negar o acesso à justiça, sendo
negado o reconhecimento de sua personalidade jurídica, bem como, impactos
ambientais ocasionados pela construção de uma hidroelétrica na década de 1970 que
teria inundado seus territórios tradicionais. Dentre outras coisas, a Corte determinou
que:
(...) o Estado delimitasse, demarcasse e outorgasse o título coletivo das terras,
ressaltando a obrigação de que neste processo fossem realizadas consultas
prévias efetivas e plenamente informadas; que se abstivesse de atos que
pudessem afetar a existência, valor, uso ou gozo do território; que deveria
sempre obter o consentimento prévio, livre e informado deste povo; que
fossem revistas as concessões já outorgadas dentro das terras indígenas
Saramaka com a finalidade de verificar a necessidade de modificação dos
direitos dos concessionários, à luz da decisão e da jurisprudência da Corte;
que fosse reconhecida a capacidade jurídica coletiva a fim de garantir o gozo
de seus direitos, inclusive o acesso à justiça; que fossem eliminadas as
disposições legais que constituíssem óbice à proteção do direito de
propriedade dos membros deste povo e adoção uma legislação interna,
precedida de consultas prévias, efetivas e informadas com o objetivo de
efetivar seus direitos sobre as terras e os recursos naturais, bem como uma
revisão legislativa que garantisse os direitos destes povos serem consultados
de acordo com seus costumes e tradições sobre o direito de outorgar ou não
consentimento para a implantação de projetos ou atividades que possam
afetar seu território e compartilhas dos benefícios derivados por estes
projetos. (...) (MOREIRA, mimio, p. 17)
Este tipo de decisão reforça a efetivação de direitos humanos relacionados ao
meio ambiente, visto ser um mecanismo de defesa de populações locais em relação a
seus respectivos Estados quando os mesmos descumprem o que acima foi chamado de
“função social da propriedade”.
Segundo Bursztyn (2004), o governo brasileiro vem, há algumas décadas,
sofrendo pressões de ONG ambientalistas, nacionais e internacionais, e de instituições
financiadoras do desenvolvimento para a adoção de estratégias e ações de proteção
ambiental pra Região Amazônica. Lembra que a questão ambiental no Brasil passou a
ocupar espaço nos debates nacionais e a constar da agenda governamental após a
75
realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano em
1972. E que no ano seguinte de sua realização, o governo criou a Secretaria Especial de
Meio Ambiente (Sema), vinculada ao Ministério do Interior, com a finalidade de
controlar as atividades produtivas mais poluentes e modificadoras do meio ambiente.
Continua a contextualização dizendo que, de início, a atuação de controle
ambiental da Sema concentrava-se basicamente nos estados das Regiões Sul e Sudeste
do país, que enfrentavam sérios problemas de poluição. Essa atuação foi ampliada, no
fim dos anos 1980, com a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a partir da fusão da SEMA (órgão de controle
ambiental) com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IDBF), a
Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e a Superintendência da
Borracha (Sudhevea) – órgãos setoriais responsáveis pelo uso e pela conservação dos
recursos naturais renováveis, floresta, pesca e borracha (BURSZTYN, 2004, p. 265).
Considerando o acima exposto, podemos visualizar que as concepções de justiça
ambiental levam em consideração a manutenção da vida no sentido ecológico e social.
Vale lembrar o condão que seguiu a legislação brasileira neste sentido. Assim, é
competência comum de todos os entes federativos “proteger o meio ambiente e
combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23 da Constituição Federal de
1988). Temos o disposto no artigo 225, § 1º, inc. III, da CF, que assegura a todos um
meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público definir, em
todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos
atributos que justifiquem sua proteção.
Ainda no artigo 225, temos que para assegurar a efetividade desse direito,
incumbe ao Poder Público preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e
prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (inc. I), e que as condutas e
atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação
de reparar os danos causados. (§3º). O artigo prescreve ainda que a Floresta Amazônica
brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona
Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de
condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos
recursos naturais (§4º).
76
Visto isso, é nossa intenção abordar a legislação a qual está submetido o
município de Raposa – MA, somente no que diz respeito aos elementos de interesse
para nossa pesquisa.
Vale lembrar que para a escolha da legislação pertinente, entrevistamos uma
bióloga analista ambiental da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, Maria Luiza
Costa. Para tanto, indagamos qual a legislação referente às seguintes espécies vegetais:
Pequi – Caryocar brasiliensis; Tatajuba – Bagassa guianensis; Angelim – Dinizia
excelsa; Louro rosa - Octoea rubra; Jaca – Artocarpus heterophyllus; Mangue vermelho
– Rhyzophora mangle; e Mangue branco – Aviccenia sp. Essas espécies foram
selecionadas por serem espécies correntemente referenciadas pelos carpinteiros
entrevistados.
Desta forma, a analista discorreu sobre as espécies, relacionando cada uma à sua
respectiva legislação correspondente e esclarecendo quais delas seriam imunes ao corte
e as consequências para os agentes que as utilizam, inclusive para subsistência. Indaguei
ainda sobre a necessidade de licença para a instalação de estaleiros artesanais, a analista
respondeu que de forma genérica há previsão para construções que deixem vestígios de
óleos, substâncias tóxicas e madeira no ambiente, e que a configuração de poluição
neste sentido seria acentuada se a construção se procedesse em regiões com acesso
direto a águas de rios, mares, mangues, açudes, etc.
Assim, a nível federal, temos a Lei 4.771 de 1965, o Código Florestal, a lei
9.605 de 1998, Lei de Crimes Ambientais, e o Decreto 6514 de 2008, que dispõe sobre
as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente. E o Decreto n º 1.282 de 1994,
que trata da exploração das florestas primitivas e demais formas de vegetação arbórea
da Amazônia.
Comecemos por este último, que, em seu artigo primeiro diz que, considera-se
bacia amazônica a área abrangida pelos Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima,
Rondônia e Mato Grosso, além das regiões situadas ao Norte do paralelo de 13º S, nos
Estados de Tocantins e Goiás, e a Oeste do meridiano de 44º W, no Estado do
Maranhão (§1). Assim, podemos perceber que a Raposa está localizada entre 43º58‟ a
44º11‟ logo, grande parte de seu território é legalmente Amazônia. Visto isso, o artigo
15 do decreto, diz que a exploração das florestas primitivas da bacia amazônica (e aqui
podemos relacionar a maioria das espécies indagadas à analista da SEMA) de que trata
o art. 15 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal), e demais
formas de vegetação arbórea natural, somente será permitida sob a forma de manejo
77
florestal sustentável, segundo os princípios gerais e fundamentos técnicos estabelecidos
no decreto. O artigo conceitua manejo florestal sustentável a administração da floresta
para a obtenção de benefícios econômicos e sociais, respeitando-se os mecanismos de
sustentação do ecossistema objeto do manejo (§2º).
Outro ponto que se relaciona com o município da Raposa, pela presença da
vegetação de mangue, é o previsto na Lei 4.771/1965, que em seu artigo 2° diz:
consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais
formas de vegetação natural situadas nas restingas, como fixadoras de dunas ou
estabilizadoras de mangues (alínea f);
Importante notar a previsão de que o órgão ambiental competente poderá
autorizar a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em
regulamento, da vegetação em área de preservação permanente (art. 2º, § 3o ). E que tal
supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser
autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente
caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir
alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto (§4º), e que a supressão de
vegetação nativa protetora de nascentes, ou de dunas e mangues, somente poderá ser
autorizada em caso de utilidade pública (§5º).
Assim, segundo esta lei, em seu artigo 26, constituem contravenções penais,
puníveis com três meses a um ano de prisão simples ou multa de uma a cem vezes o
salário-mínimo mensal, do lugar e da data da infração ou ambas as penas
cumulativamente, dentre outras coisas, cortar árvores em florestas de preservação
permanente, sem permissão da autoridade competente (alínea b), receber madeira,
lenha, carvão e outros produtos procedentes de florestas, sem exigir a exibição de
licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente e sem munir-se da via que
deverá acompanhar o produto, até final beneficiamento (alínea h), e transportar ou
guardar madeiras, lenha, carvão e outros produtos procedentes de florestas, sem licença
válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade
competente.
Por sua vez, a supracitada lei 9.605 de 1998, a respeito dos crimes contra a flora,
dispõe que cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente (no caso
estudado, o mangue), sem permissão da autoridade competente acarreta pena de
detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente (art. 39) esta multa varia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais),
78
por hectare ou fração, de acordo com artigo 46 do decreto 6.514 de 2008. E que causar
dano direto ou indireto às Unidades de Conservação independentemente de sua
localização acarreta pena de reclusão, de um a cinco anos (art.40). Considera ainda que
destruir ou danificar florestas nativas ou plantadas ou vegetação fixadora de dunas,
protetora de mangues, objeto de especial preservação com pena de detenção, de três
meses a um ano, e multa (art. 50).
Ainda nesta lei temos que desmatar, explorar economicamente ou degradar
floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização
do órgão competente acarreta pena de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.
Não sendo crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal
do agente ou de sua família. (§ 1º) – aqui, a lei não especifica o que é considerado
subsistência imediata, mas vale lembrar que se tratam de terras de domínio público ou
devolutas. E por fim, lembramos o artigo 51, ao dispor que comercializar motosserra ou
utilizá-la em florestas e nas demais formas de vegetação, sem licença ou registro da
autoridade competente acarreta pena de detenção, de três meses a um ano, e multa - de
R$ 1.000,00 (mil reais), por unidade de acordo com o artigo 57 do decreto 6.517 de
2008.
O Decreto nº 6.517 de 2008, apregoa que receber ou adquirir, para fins
comerciais ou industriais, madeira serrada ou em tora, lenha, carvão ou outros produtos
de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela
autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até
final beneficiamento enseja multa de R$ 300,00 (trezentos reais) por unidade e que
incorre nas mesmas multas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou
guarda madeira, lenha, carvão ou outros produtos de origem vegetal, sem licença válida
para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade
competente ou em desacordo com a obtida (art. 47). Ou seja, não se pode adquirir
produtos sem licença do vendedor, nem transportar sem licença de autoridade
competente, e isso vale para qualquer tipo de madeira.
O mesmo decreto, ao tratar das infrações relativas à poluição e outras infrações
ambientais diz que causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou
possam resultar em danos à saúde humana ou que provoquem a mortandade de animais
ou a destruição significativa da biodiversidade enseja multa de R$ 5.000,00 (cinco mil
reais) a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais) e que estas multas e demais
penalidades serão aplicadas após laudo técnico elaborado pelo órgão ambiental
79
competente, identificando a dimensão do dano decorrente da infração e em
conformidade com a gradação do impacto (art. 61).
O artigo 62 dispõe que incorre nas mesmas multas do art. 61 quem lançar
resíduos sólidos, líquidos ou gasosos ou detritos, óleos ou substâncias oleosas em
desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou atos normativos (inciso V) e
deixar, aquele que tem obrigação, de dar destinação ambientalmente adequada a
produtos, subprodutos, embalagens, resíduos ou substâncias quando assim determinar a
lei ou ato normativo (inciso VI) – entre os resíduos podemos elencar os compostos por
substâncias como colas, tintas, raspas de madeira, estopas de nylon.
Por fim, no artigo 66, temos que construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer
funcionar estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores ou utilizadores
de recursos naturais, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em
desacordo com a licença obtida ou contrariando as normas legais e regulamentos
pertinentes enseja multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000.000,00 (dez
milhões de reais). E que incorre nas mesmas multas quem constrói, reforma, amplia,
instala ou faz funcionar estabelecimento, obra ou serviço sujeito a licenciamento
ambiental localizado em unidade de conservação ou em sua zona de amortecimento,
sem anuência do respectivo órgão gestor (inciso I), e aqui podemos relacionar os
estaleiros.
Quanto ao pequi (Caryocar brasiliense), existe a Portaria 113 de 1995 do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA),
que em seu artigo 16 dispõe que é proibido o corte e a comercialização do Pequizeiro
(Caryocar spp) e demais espécies protegidas por normas específicas, nas regiões Sul,
Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.
Finalmente, a Constituição Estadual do Maranhão em seu artigo 240, dispõe que
a atividade econômica e social conciliar-se-á com a proteção ao meio ambiente e que a
utilização dos recursos naturais será feita de forma racional para preservar as espécies
nos seus caracteres biológicos, na sua ecologia, harmonia e funcionalidade dos
ecossistemas, para evitar danos à saúde, à segurança e ao bem estar das populações.
Assim, perguntamos à analista Maria Luiza Costa se haveria alguma medida que
autorizasse o uso de madeira para populações tradicionais do município de Raposa MA. Obtivemos como resposta que autorizações neste sentido devem ser públicas, atos
oficiais das instituições responsáveis, pressupondo a existência de planos de manejo e
estudos prévios.
80
4.3. Paradigmas e representações de natureza
Segundo os autores Lenir Muniz e Horácio Sant‟Ana Júnior (2006, p. 255-256),
se pode constatar uma crise ambiental percebida desde a década de 1960, marcada pela
percepção dos efeitos nefastos causados pela disseminação da revolução industrial e
consequente difusão de práticas relacionadas à indústria.
Esta crise, segundo os autores, “tem provocado crescentes demandas por uma
nova lógica de civilização, baseada em novos valores, novos modelos societários, novos
padrões de acumulação, a partir dessas formas de relacionamento com a natureza e seus
recursos” (MUNIZ e SANT‟ANA JÚNIOR 2009, p. 255-256).
Sendo assim, os problemas ambientais ultrapassam as fronteiras nacionais, tendo
consequências globais e os atores envolvidos transcendem uma única região ou país
(MUNIZ e SANT‟ANA JÚNIOR 2009).
Neste contexto mundial, devemos destacar a Amazônia Brasileira, que:
Se constituiu num gigantesco mosaico, historicamente configurado em
permanente configuração, composto em uma grande diversidade de
ecossistemas e de distintas situações sociais, econômicas, culturais, políticas,
ecológicas. A incorporação da Amazônia ao território brasileiro, desde o
período colonial, ocorreu em consonância com os interesses dos centros mais
dinâmicos da economia mundial moderna, de maneira gradativa e irregular,
baseada na extração de produtos naturais, de origem animal, vegetal ou
mineral, segundo os interesses, necessidades e possibilidades de extração por
parte dos grandes centros econômicos (SANT‟ANA JÚNIOR,2004, p. 56)
A Região Amazônica se refere aos nove estados que compõem a Amazônia
Legal (AC, AP, AM, MA, MT, PA, RO, RR). E falar em Região Amazônica não
comporta as especificidades das “regiões” que a compõem, assim, “os modos de
exploração das florestas, os sistemas de produção agrícola, as cadeias, as formas de uso
da terra variam de um desses novos contextos regionais para outro” (SAYAGO et.al., p.
22).
Aqui cabe tomar a concepção de Carlos Walter Porto Gonçalves (2002), de que
toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada ideia do que seja a
natureza. Para ele, o conceito de natureza não é natural, sendo criado e instituído pelos
homens. Assim “constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas
relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura”
(GONÇALVES, 2002, p. 23).
81
Analisando esta questão, conclui que não é de estranhar que o ecológico fique
subordinado ao econômico numa sociedade na qual a generalização das relações
mercantis é a tônica. A começar pela separação do trabalhador das condições naturais de
produção (GONÇALVES, 2002, p. 113). Visto isso, questionamos a posição do grupo a
ser pesquisado quanto a estas condições de produção.
Em artigo proposto para responder em que condições podem surgir e
consolidarem-se organizações econômicas populares não capitalistas que sejam viáveis
num mercado globalizado, intitulado “A natureza do lugar e o lugar da natureza”,
Escobar (2005, p. 71 e 72) defende a seguinte proposição:
Na busca de alternativas à produção capitalista, a contribuição de culturas
minoritárias ou híbridas, marginalizadas pela hegemonia do capitalismo, e da
ciência moderna é fundamental. Como sustentaram convincentemente vários
dos defensores de alternativas ao desenvolvimento, cujos trabalhos
comentamos antes, existem formas de encarar/ver o mundo que estabelecem
uma relação radicalmente diferente da capitalista/moderna entre seres
humanos e natureza, entre produção e consumo, entre trabalho e tempo livre,
entre o uso e o lucro e entre o desenvolvimento e o crescimento. O que é
preciso, então, não é apenas respeitar a diversidade cultural que permite a
sobrevivência destas visões de mundo, mas também aprender a partir delas
para construir um paradigma de conhecimento e ação cosmopolita distinto do
que está subjacente à globalização neoliberal.
A Lei que define a Política Nacional do Meio Ambiente, 6.938, de 31 de agosto
de 1981, em seu artigo 2º, I, considera meio ambiente, patrimônio público a ser
assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo, traz em seu art. 3º, inciso I, o
conceito legal de Meio Ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências, e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida, em
todas as suas formas”.
Segundo a autora Marivânia Araújo (2008), as representações sociais são como
teorias confeccionadas pelos grupos para apreender e definir os dados com os quais se
relacionam. E, para ela, nesse sentido, a utilização teórica das representações sociais
pode ser pertinente para a pesquisa antropológica, pois, “a análise das relações sociais
estabelecidas pelos indivíduos de um mesmo grupo procura verificar não somente quais
são e em que contexto elas se deram, mas também qual a percepção que os próprios
atores sociais têm sobre elas” (ARAÚJO, 2008, p. 117).
Para Moscovici (apud ARAÚJO, 2008, p. 117), “as representações individual ou
sociais fazem com que o mundo seja o que pensamos que ele é ou deve ser. Mostramnos que, a todo instante, alguma coisa ausente se lhe adiciona e alguma coisa presente
se modifica”.
82
Resta concordar apenas no que tange às representações sociais, visto que, para
Mauss (1974), é próprio da natureza da sociedade exprimir-se simbolicamente em seus
costumes e em suas instituições, e o autor ainda afirma que as condutas individuais
jamais serão simbólicas por elas mesmas.
Partindo da concepção de representações são formas de interpretar e comunicar,
de produzir e elaborar conhecimentos, de que - “são conjuntos dinâmicos, seu status é o
de uma produção de comportamentos e de relações com o meio ambiente, de uma ação
que modifica aquelas e estas e não de uma reprodução desses comportamentos ou
dessas relações, de uma reação a um dado estímulo exterior” (MOSCOVICI, 1978,
p.50), pudemos extrair alguns elementos das falas dos interlocutores, no que diz respeito
a suas concepções sobre a natureza e sobre os recursos naturais, para tentarmos
relacionar as concepções a nós expostas com a forma com a qual lidam com o ambiente.
A exemplo disso, temos a fala de Waldy Araújo, carpinteiro naval artesanal do
município de Raposa, (entrevista realizada em 07 de agosto de 2010) ao explicar que
para cada “tipo de natureza” existe um tipo de embarcação “cada uma tem seu sentido”.
Isso pelo fato de existirem embarcações próprias para rios, para lagos, ou para o mar, e
de acordo com sua utilidade. Quanto ao calendário das marés, “Até fevereiro o mar é
agitado (de agosto a fevereiro), janeiro a julho vai acalmando”. Assim, ele produz tipos
específicos de embarcações de acordo com a “agitação do mar”.
Já José Ribeiro, carpinteiro naval artesanal do município de São José de Ribamar
(entrevista realizada em 14 de agosto de 2010), se refere à natureza da seguinte maneira:
“caí no tempo e me vali da natureza pra tirar meu sustento”, e ainda, que “da
experiência do tempo, eu vou até uma arte”.
Vale apresentar algumas das passagens das entrevistas junto aos interlocutores
de Raposa quando indagados a respeito do que seria “natureza”, neste sentido:
Davi Martins (entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010):
Pesquisadora: Para o Sr. o que é a natureza?
Davi: Pra mim, a natureza somos nós mesmos, né?
Carlos Magalhães (entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010):
Pesquisadora: E os recursos naturais aqui? A natureza lhe ajuda nessa atividade de
alguma forma? O que é natureza para o Sr.?
83
Carlos: É, eu acho que ajuda. Se não existisse a natureza onde que a gente ia conseguir
esse material? Vem da natureza. A natureza que criou. Não foi eu, não foi o ser humano.
Isso é obra da natureza que criou esse material. As arvores, a gente vê.
Pesquisadora: É somente arvore que o Sr. acha que é da natureza que auxilia o Sr.?
Carlos: Perto do rio também é fundamental.
Pesquisadora: Aqui atrás é o rio?
Carlos: É, aí atrás.
Pesquisadora: É fundamental? Por quê?
Carlos: é fundamental porque facilita tanto a chegada como as saídas das embarcações.
Pesquisadora: E se não tivesse um rio desse, o Sr faria a embarcação?
Carlos: De fazer, fazia. De acordo com o meu conhecimento. Mas aí seria mais difícil a
deslocação dela daqui pra água. Até o pessoal vir a minha procura, se tornaria mais
difícil. Por que já dizia logo “não, o local dele é muito longe” eles observam isso.
Geralmente você vê, por onde você andar, pode prestar atenção que as oficinas, os
estaleiros que constrói a embarcação sempre tem água por perto. Por causa da
dificuldade de levar pra água
Pesquisadora: O que mais na natureza o Sr. acha fundamental?
Carlos: Eu acho que tudo.
Anselmo Góes (entrevista realizada em 30 de novembro de 2010):
Pesquisadora: E o Sr. estava falando dos recursos naturais. Para o Sr., o que é natureza?
O que são esses recursos naturais?
Anselmo: Eu considero como, aqui pra nós, na área que nós estamos são os nossos
recursos naturais. Os manguezais. Os manguezais são nossos recursos naturais. E a
natureza vem abranger as nossas margens de rios, o mangue é recurso natural e natureza
também. O manguezal aqui pra gente. Ele representa até uma parte muito importante
pra nós aqui na Raposa. O manguezal, que através desses manguezais a gente tem
levado ao conhecimento das agencias de turismo, e aí eles têm vindo ver. E a gente tem
preservado a beleza e alguém tem ganhado até dinheiro mesmo. Eu mesmo tenho
ganhado dinheiro porque eu tenho uma canoa que transporta gente. Até pra levar, eu
tenho levado às vezes pessoas assim pra dentro do mangue, assim pra ir filmarem,
gravar. É lindo demais essa parte. É muito bonito demais.
84
Dentre as falas, podemos perceber que Davi relaciona a ideia de natureza a partir
da concepção de sociedade, pois ele diz “somos nós mesmos” utilizando o plural, o que
no contexto da fala afastou uma interpretação de que os homens fossem o parâmetro
primeiro, antropocêntrica, mas como se fizesse parte, estivesse imbricado à natureza.
Já Carlos a concebe como algo que ele pode ver, algo tangível “As árvores,
agente vê.”, a partir de um olhar que podemos considerar prático, provedor material,
uma entidade autônoma “a natureza criou”, desvinculada do ser humano, como força
produtiva imediata (MARX, 1975).
Quanto a Anselmo, devemos frisar que usou espontaneamente durante a
entrevista o termo “recursos naturais”, e considerou natureza a partir de território “na
área que nós estamos” e também seus recursos (da natureza). Considerou os recursos a
partir da vegetação a que está vinculado seu território, seus manguezais.
Corroborando com o exposto em Escobar sobre práticas de pensar, relacionar-se,
construir e experimentar o biológico e o natural, em relação à “natureza do lugar”
(ESCOBAR, 2005). Além de expor o que entendia pelos termos, explicou a importância
a partir do “conhecimento” externo das belezas naturais e no que isso contribui para a
vida econômica da região.
A nosso ver, tal concepção ainda foge do que Porto Gonçalves (2002) apontou
como a tendência de o que o ecológico fique subordinado ao econômico, visto o
interlocutor em sua fala nos proporcionou a interpretação do contrário, que o econômico
estaria subordinado ao ecológico “a gente tem preservado a beleza e alguém tem
ganhado até dinheiro mesmo”.
Além do observado em Raposa, podemos nos remontar a representações no
âmbito da carpintaria naval maranhense quanto à intimidade dos atores sociais com o
produto de seu trabalho, quando dão nomes e desenhos às embarcações, ou quando da
ocorrência de festas e celebrações dentro delas (ANDRÉS, 1998).
4.4. Usos sociais das embarcações artesanais nas atividades locais
O Maranhão é responsável pela produção de 26% do pescado da Região
Nordeste (CEPENE, 2006), destes, 10,9% é proveniente do Município da Raposa
(CEPENE, 2005), de acordo com os dados oficiais mais atuais oriundos do Centro de
Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Nordeste – CEPENE, órgão
85
vinculado ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, que por sua vez, é parte
integrante do Ministério do Meio Ambiente – MMA.
Assim, por falta de dados atualizados, restou dificultada a informação a respeito
do número exato de embarcações no Município, porém, tem-se que a frota artesanal em
Raposa era composta de 354 embarcações no ano de 2006 (SOARES et. all, 2006) e
correspondia a 3,6 % das embarcações ativas do Maranhão no ano de 2005 (CEPENE,
2005).
Além da pesca, as embarcações artesanais são de grande importância para a
promoção do turismo em Raposa, havendo dezenas de embarcações, em torno de 40
(número aproximado extraído de observação em campo), destinadas a este fim.
A atividade pesqueira é a que mais utiliza embarcações típicas da região, dela
sobrevivendo na capital, já que engloba a pesca, o transporte do pescado e sua
comercialização.
No centro da cidade os pescadores representam 36,67%, dos chefe de família,
seguido por outros serviços 26,67% – esse item congrega pedreiros, carpinteiros,
encanadores, zeladores, vigia, diaristas, rendeiras, artesãos, dentre outros; em menor
número estão os empregados domésticos com 3,33%.
Outro bairro expressivo da cidade, a Vila Bom Viver, embora esteja mais
distante do mar, o número de pescadores também é considerável 30% estando em menor
número os comerciários 3,33% (SILVA, 2009).
Em Raposa, as embarcações são fundamentais para a prática do chamado
“ecoturismo”, bem como auxiliam na construção do cenário turístico da cidade. De
acordo com Waldy, entrevistado em Raposa, “tem dia que fica bem umas duas mil
embarcações atracadas na praia no pôr-do-sol”.
O portal de turismo do governo do Estado do Maranhão apresenta como
atrativos turísticos locais o artesanato, a culinária, os passeios ecológicos nos igarapés,
praias desertas, dunas e pequenas ilhotas, a pesca esportiva e artesanal, indicando visitas
às Praias de Carimã, Farol e “passeios náuticos em canoa biana motorizada”.
(http://www.turismo.ma.gov.br/pt/polos/sao_luis/raposa.htm)
Tais passeios, de são realizados diariamente de acordo com a variação da maré e
pode conduzir à ponta da Ilha de Curupu, passando por vários igarapés, ilhas, fazenda
de criação de ostras e praias desertas. Pode-se visitar a Ilha de Itaputíua de barco ou por
uma trilha.
86
Figura 10: (Embarcações de Turismo no Cais da Raposa – Arquivo Pessoal)
Figura 11: (Passeio em Carimã – Arquivo Pessoal)
Figura 12: (Fazenda de ostras – Fonte: multiplayers.com.br)
87
Figura 13: (Barcos de pesca em Raposa –
MA.Fonte:http://nossomaranhao.wordpress.com/2009/11/27/trilha-urbana2/)
De modo geral nossos interlocutores de reportaram à importância das
embarcações para o município e para as redondezas, especialmente para a pesca, o
turismo e transporte para praias do Município de São José de Ribamar, como a praia de
Panaquatira, por exemplo.
5. NATUREZA E USOS SOCIAIS NA PRODUÇÃO LOCAL
A madeira é a matéria-prima essencial na carpintaria naval artesanal, além de
usada para a estrutura das embarcações pode ser empregada na calafetagem, através do
emprego da estopa (espécie de tecido grosseiro feito com fibras) vegetal.
De acordo com Cláudia Mattos da Silveira a aplicabilidade da madeira na
construção naval artesanal maranhense não sofreu alterações com o passar do tempo,
“por ser aprendizado transmitido de geração para geração, no qual adquire-se
conhecimentos a cerca da anatomia da madeira e seu emprego adequado na peça do
barco” (SILVEIRA, 1998, p. 120). Acreditamos que a afirmação da autora não é a regra
geral, haja vista a mutabilidade da cultura e também das condições de aquisição da
madeira.
Para um panorama geral do uso da madeira na carpintaria naval maranhense vale
apresentar as dinâmicas de algumas localidades do Estado. O município de Presidente
Juscelino, às margens do Rio Munim, possui a cobertura vegetal da bacia do Munim
que é constituída por espécies próprias do clima equatorial, e neste caso nota-se bastante
semelhança com a vegetação da floresta amazônica, sendo igualmente entrecortada por
diversos igarapés. Para a construção da canoa-de-um-pau é necessário que a árvore
88
tenha um tronco retilíneo e que a madeira seja de fácil flutuação. Segundo o carpinteiro
Alcídes de Castro Soares, daquele município, “para que a árvore cresça mais e com o
tronco reto é necessário a presença de várias árvores próximas umas das outras, pois isto
evitará que o vento envergue o tronco, fazendo com que a árvore cresça mais.”
(SILVEIRA, 1998, p. 120). Outro carpinteiro naval da região, Jesualdo Pereira também
na confecção da canoa-de-um-pau utiliza o guanandi amarelo (Alophyllum brasiliense),
retirada de uma mata das redondezas. A escolha dessa espécie deve-se ao fato dela ser
freqüente na região por apresentar o tronco retilíneo que se esgalha após uma altura
ideal, permitindo que o tronco se desenvolva bastante. (idem, 1998)
Já em Tutóia, município pertencente à microrregião do Baixo Parnaíba
maranhense, localizada no litoral oriental do Estado, na Baía de Tutóia, a formação do
mangue preenche a paisagem nas áreas situadas próximas da costa. A vegetação é
constituída basicamente pelo mangue vermelho (Rhizophora magle), árvore bastante
freqüente nesse litoral, cuja madeira varia do róseo pardacento ao bege rosado, com
raízes aéreas expostas. O mangue branco (A. tomentosa) também ocorre com grande
freqüência, mas se desenvolve mais verticalmente, chegando a alcançar dez metros de
altura (SILVEIRA, 1998). Do mangue vermelho, retira-se o tanino (substância extraída
da casca do mangue é utilizado pelos pescadores para atingir as velas dos barcos e suas
próprias roupas de uma cor avermelhada). Além da cor, o tanino possui a propriedade
de fortalecer o tecido, que facilmente se desgastaria através do constante contato com a
água salgada. O mangue vermelho é destinado às peças como o mastro (peça de madeira
de ferro cilíndrica que se ergue acima do convés para suster as velas), falca (espécie de
porta), cadaste (peça de madeira situada na popa da embarcação e por onde o leme é
fixado) e dormente (peças de madeira presas à cavernas, na parte interna do casco),
enquanto o mangue branco é mais usado para a espicha (parte da vela) e a curva, e tem
por característica ser um pau fino que não esgalha.
Em Tutóia a madeira do mangue é cortada com machado. Segundo o senhor
Vicente de Paula, proprietário do estaleiro Empresa Costa, em Bom Gosto – povoado
dentro deste município, “existe uma preocupação com a extração indiscriminada do
pau-de-mangue. Isto embora o mangue ainda seja abundante na região retiramos a
madeira de maneira que evite o seu extermínio. Ao cortar o pau, procuramos escolher
aquele que tenha a envergadura natural, o que dá mais resistência à peça do barco.
(SILVEIRA, 1998, p. 121-122). Ainda:
89
Além do pau-de-mangue, utiliza-se a madeira do pequi (Caryocar
brasiliensis), característica: leve, resistente, não racha, fibras trançadas, de
boa flutuação, possui envergadura natural, flexível e não afunda. Sua
aplicação é na confecção de peças como o contra-coral; corrimão – peça de
madeira longitudinal colocada sobre os cabeços-; escoa – cada uma das
tábuas delgadas pregadas sobre a parte interna na quilha [principal peça da
estrutura do casco de uma embarcação, situada na parte inferior]; escotilha
– abertura feita no convés [nome genérico com que se denomina os
pavimentos a bordo] para a passagem de pessoas, cargas, luz ou ar -; leme
– peça ou dispositivo situado na popa e destinado a governar a embarcação
-; mediania; palmilha; partilhão; pau de giba – peça de madeira situada na
proa, fixada à bita [peça de madeira de secção circular por onde a
extremidade posterior do pau da giba é encaixado]; e ao talhamar – peça de
madeira situada na proa da embarcação; vau – viga transversal que liga as
cavernas que se defrontam num e noutro bordo; verdugo – peça de madeira
fixada a bordo da embarcação e destinada a proteger o contato contra os
choques de outras embarcações). Utiliza-se ainda a Fava d‟anta
(Dimorphandra mollis Benth), possui envergadura natural, é resistente, de
fibras trançadas, e tem aplicação no cavername e toleteira. e do pau d‟arco
(Tabebuia impetignosa, características: dura, resistente, forte e leve,
aplicação no beque, bolo, cabeço, cadaste, caixola do leme, cana do leme,
carninga, cavalo, cintado, coral, corrimão, cruzeta, cunho, esparradela,
espelho de proa, popa, palmilha, pique, quilha, lemo, retranca, sobrequilha,
tesoura e verdugo) são considerados ideais para tal fim.De acordo com os
carpinteiros navais destes municípios pode-se conjugar as três espécies
para a confecção de um bote ou usar apenas uma delas, pois são
consideradas suficientemente resistentes, leves e flexíveis.
(SILVEIRA, 1998, p.122)
Carutapera, município localizado no litoral oeste da denominada microrregião
do Gurupi, faz limite com a cidade de Viseu no Estado do Pará. A madeira utilizada na
construção naval é proveniente das cidade de Belém (PA) – a 350 km, Capanema (PA)
– a 175 km, Bragança (PA) – a 130 km do Incruzo (MA) – a 90 km de Carutapera. A
madeira faz o percurso por terra em caminhões até Viseu, atravessando em seguida o
Rio Gurupi com destino ao único estaleiro registrado no município, pertencente ao
senhor José Maria Pereira Costa. Devido ao intenso movimento de transporte marítimo
e fluvial entre Viseu e Carutapera, o estaleiro e frequentemente procurado para serviço
de manutenção, tais como reforma de embarcação e calafetagem. (SILVEIRA, 1998)
A autora atenta para a falta de autonomia na produção de madeira do município,
que segundo ela deve-se principalmente às atividades agropecuárias ali desenvolvidas,
que acarretaram um sério desmatamento na região. Assim:
A derrubada das matas acabou por modificar a paisagem
característica das terras ao longo do rio Gurupi. Onde antes predominava a
vegetação florestal tipicamente amazônica, com árvores cujas folhas não
caem sem as novas estarem desenvolvidas e muita umidade, hoje prevalece a
capoeira em grandes extensões. As áreas menos devastadas apresentam,
ainda em abundância, manguezal, vegetação própria desse litoral, ocorrendo
nas margens dos rios e igarapés, é desinteressante para a exploração
agropecuária. As demarcações da Reservas Florestais do Gurupi, que abrange
muitas terras do município, e os postos oficiais da FUNAI (Aldeia de Turiaçu
90
e Caru) não foram suficientes para deter a devastação. Durante recente
reunião dos carpinteiros navais do município para definir atuação do
sindicato e escolher representante da classe, registrou-se a denúncia de que
grandes empresas como a Bom Pastor (originária do Paraná), que ocupam
extensas áreas de terras do município de Cândido Mendes e Carutapera, vem
praticando queimadas e desmatamentos indiscriminados. O surgimento da
capoeira é provocado pelo mau uso da terra. Depois do desmatamento a área
é queimada, ou seja, toda a madeira que poderia ser aproveitada é perdida, a
fim de viabilizar o plantio, em geral, de mandioca. Sua produção torna-se
insuficiente por causa do desgaste da camada de húmus do terreno e
rapidamente a área se torna estéril para a agricultura, sendo abandonada às
intempéries, o que favorece a formação da capoeira. (SILVEIRA, 1998, p.
123)
A título de comparação, vale destacar o que aponta a autora a respeito do
município de Bragança - PA, localizado na parte Oriental do Estado. Situa-se às
margens do rio Caeté, na parte oriental do Pará. A madeira utilizada pelos estaleiros
neste município é adquirida nas serrarias da cidade por um preço bastante elevado por
tábua de madeira para uma região onde a vegetação local é suficiente para abastecer o
próprio consumo interno. Procede de lugares de Bragança, denominados: Curupativa no km 47 da estrada de Bragança/Viseu e São Miguel Guimar e Santa Maria – na BR
Belém/Brasília. (SILVEIRA, 1998). A madeira comprada provém de floresta densa,
tipicamente amazônica, com grande variedade de espécies que atingem porte bastante
elevado, chegando normalmente a 50 metros de comprimento. Os troncos das árvores
são cortados com o uso de motosserras e de tratores quando necessário. Segundo a
autora, a retirada da madeira é realizada sem qualquer preocupação com o
desenvolvimento do ecossistema, o que resulta na extinção dos elementos componentes
da flora e da fauna, específicos desta região e na formação da capoeira, principalmente
devido às queimadas (idem).
Norteados pelas dinâmicas averiguadas acima pela autora, vamos apresentar as
peculiaridades encontradas na pesquisa junto aos interlocutores de Raposa-MA sobre os
usos sociais da natureza na produção local.
5.1. Usos sociais e técnicas de obtenção da matéria-prima
Durante as entrevistas em Raposa, indagamos sobre as espécies vegetais que os
carpinteiros costumam empregar, qual a forma de aquisição da madeira, no caso de
haver prática de retirada das espécies pelos próprios carpinteiros quais as técnicas
utilizadas e qual a época da retirada e o conhecimento sobre o material. Algumas
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respostas abarcaram várias perguntas, resultando em alguma redundância na
organização das falas.
Assim, sobre as espécies que costumam empregar:
Waldy Araújo (Entrevista realizada em 07 de agosto de 2010)
Pesquisadora: Quais as madeiras que o Sr. costuma utilizar na construção das
embarcações?
Waldy: Tem o espinhaço (cujo nome científico não foi identificado), mangue branco,
mangue-vermelho, madeira segura (também sem nome científico identificável), jaqueira
(Artocarpus heterophyllus), pequi (Caryocar brasiliensis), angelim (Dinizia excelsa) e
louro rosa (Octoea rubra)
Pesquisadora: Por que o Sr. escolhe essas?
Waldy: Porque são, resistentes, leves, não racha fácil.
Pesquisadora: E o calafeto? De que é feito?
Waldy: A gente usa estopa nylon, porque dura uns 5 anos e a estopa de madeira dura
uns seis meses.
Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: Qual o tipo de madeira que o Sr. faz suas embarcações? São diferentes?
Davi: É só um tipo de madeira. Louro, (laurus nobilis). O que eu mais trabalho é com o
louro.
Pesquisadora: Se é pra reformar, é bom?
Davi: Pra reformar uma embarcação. Aí tem uma embarcação lá de Santa Maria, com o
fundo dele todinho pra reformar de novo. Metendo tala. É a tatajuba, (bagassa
guianensis), e o louro, (laurus nobilis).
Pesquisadora: A tatajuba e o louro são pra todas as partes do barco?
Davi: Pra todas as partes.
Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: E o mangue não presta? Alguns carpinteiros usam o mangue pra algumas
coisas?
Carlos: É. Eu acho que sim. Pra fazer o mastro, né? Pra fazer o cabo da vela, mas acho
que não tem pra uso de embarcação o mangue quase não tem muita utilidade não.
Pesquisadora: E o tipo de madeira que o Sr. usa pra fazer a embarcação?
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Carlos: Depende... Mas o que eu mais uso, e não só eu, a maioria dos carpinteiros daqui
da Raposa, nos usamos em primeiro lugar o material pequi, pequirana. E outra madeira
que a gente usa bastante é a jaqueira, daqui de dentro da ilha mesmo. Às vezes o dono
tem um pé no quintal e já tá morrendo e então ele quer fazer alguma coisa que, e às
vezes ela serve pra gente. Aí ele vende. As pessoas vão procurar. Só que eu nunca fiz
essa arrumação não, porque gasta muito mão de obra. Tem que pagar gente pra ir lá
cortar, tem que pagar um caminhão pra ir buscar, tem que pagar outro pra ir serrar. E
hoje em dia não tem mais nem onde serrar. Quem faz isso é quem tem moto-serra hoje,
não chega a atender a demanda não. Não faz muita procura por esse tipo de madeira
porque não tem onde a gente vá beneficiar ela. Mas aí a gente usa mais é o pequi, a
pequirana. A gente compra nos depósitos também e tabuada a gente usa a tatajuba,
(bagassa guianensis). Eu uso muito a tatajuba, uso muito a tabua de Angelim (Dinizia
excelsa) também. São as madeiras que eu mais uso.
Pesquisadora: Se o Sr. trabalhasse só com jaqueira. Dá pra fazer no lugar de pequi?
Carlos: Dá.
Pesquisadora: Pra fazer o calafeto o Sr. usa que tipo de material?
Carlos: a gente usa aquela estopa de carne que é tirada da madeira mesmo de uma
árvore que tem na mata.
Pesquisadora: É melhor ou pior?
Carlos: Pra embarcação nova que a gente tá construindo, que as costuras são bem
pequenas, o nylon é melhor. Até porque o fio não apodrece, vai pra dentro da água, a
tábua estraga e ela não estraga. Agora já pra embarcação velha, que já tá com as
costuras bem abertas, a gente usa essa outra de carne que é melhor. Cada qual tem sua
utilidade.
Pesquisadora: Então o nylon é melhor quando a embarcação é nova?
Carlos: É. nova. Exatamente.
Pesquisadora: E madeira quando ela tá mais aberta, o tabuado.
Carlos: É a estopa de carne que chamam quando ela já tá com a costura mais aberta. A
gente usa ela.
Pesquisadora: Costura o Sr. chama o que?
Carlos: É a emenda de uma tabua para outra. Como essa daí. Essa daí você vê que ela tá
bem aberta. Essa daí se for tentar com nylon não presta. Tem que ser com a estopa.
Pesquisadora: Não dá pra fazer a estopa com outra madeira que não seja essa? E tem
carpinteiro que trabalha com outra estopa?
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Carlos: Eles usam algodão e fio, linha.
Pesquisadora: Alguns, né?
Carlos: É alguns. Só que eu não gosto.
Pesquisadora: E o Sr. não gosta por quê?
Carlos: Porque eu não gostei mesmo.
Cristina Siqueira (Entrevista realizada em 02 de janeiro de 2011)
Pesquisadora: Com quais tipos de madeira a você costuma trabalhar?
Cristina: Tábua “fede a bosta” (nome científico não identificado), pau d´arco, jaqueira.
Diego Vieira (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011)
Pesquisadora: Com quais tipos de madeira a você costuma trabalhar?
Diego: Mangue vermelho, pequi e tatajuba (bagassa guianensis).
Anselmo Góes (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010)
Pesquisadora: Com quais tipos de madeira o Sr. costuma trabalhar?
Anselmo: A madeira que a gente mais usa aqui é o pequi, cavername de pequi, as tabuas
de louro (laurus nobilis), tatajuba (bagassa guianensis) e tábua de pequi também.
Pesquisadora: Caverna de pequi. Tatajuba são as tabuas?
Anselmo: Tábuas de louro e de pequi também.
Podemos perceber que geralmente os tipos de madeira que costumam empregar
são os mesmos. Chamando atenção especial o fato de Waldy e Diego usarem mangue e
todos os citados falarem que utilizam pequi, com exceção de Davi.
Sobre as maneiras de obtenção da madeira, temos:
Waldy Araújo (Entrevista realizada em 07 de agosto de 2010)
Pesquisadora: E a madeira que o Sr. usa, o senhor corta ou compra?
Waldy: Ninguém corta, tira um ou dois da ilha do Sarney. Mas quando tira é mangue
morto, que tá seco, é que tá bom. Só que proibiram tirar o mangue, aí eu compro
madeira emendada. Mas o ideal mesmo é usar Jaqueira de sítio sem vida, jaqueira de
30-40 anos que cai, não tira madeira nova que ainda dá fruto.
Pesquisadora: Como o Sr. sabe que não pode mais usar mangue?
Waldy: Andaram dizendo por aqui, né? Dizem que o Ibama que mandou parar.
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Pesquisadora: E onde o Sr. compra a madeira?
Waldy: Lá pelo São Luís, no São Cristóvão, na Cidade Operária...
Pesquisadora: E quanto que custa?
Waldy: Olha, é R$ 360,00 reais a folha, eu uso umas 50, 60 folhas num barco desses
(biana), é um problema por que encarece a embarcação e a pessoa que encomenda tem
que adiantar bastante dinheiro, e não é todo mundo que consegue adiantar, então às
vezes eu passo meses trabalhando de graça e ainda tem que pagar o ajudante, já viu!
Pesquisadora: Mas se pudesse usar do mangue o Sr. preferia?
Waldy: Pra umas peças era melhor porque ele já vinha prontinho a forma que a gente
queria, né?
Pesquisadora: E tem outras árvores que pode pegar?
Waldy: A gente pega, mas é lá da Maioba, que tem muita.
Pesquisadora: Na Maioba assim, onde?
Waldy: Nas matas mesmo.
Pesquisadora: Quais tipos?
Waldy: Espinhaço mesmo, madeira segura, jaca...
Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: O Sr. já precisou tirar madeira da mata pra fazer reforma?
Davi: Já. Tive que cortar com o machado. Aí no caso arrancava mesmo.
Pesquisadora: Fazendo caverna?
Davi: E lavando o pau do comprimento de quatro metros, cinco metros.
Pesquisadora: E o Sr. faz isso constantemente, ainda faz?
Davi: Não, faz mais não.
Pesquisadora: Fazia quando?
Davi: Isso eu fazia no ano de 2000.
Pesquisadora: Agora não faz mais?
Davi: Não faz mais. É tudo elétrica agora.
Pesquisadora: Tudo elétrico? Pra cortar que o Sr. diz?
Davi: É pra cortar no motor. Corta na moto-serra.
Pesquisadora: Mas o Sr. já compra a madeira pronta?
Davi: Já compro a madeira pronta. Aí a gente recorta pra botar na embarcação e tudo.
Pesquisadora: Seria mais barato se o Sr. pegasse na mata?
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Davi: Sai mais caro, mais dispendioso porque ainda tem que beneficiar e tudo. Sai
muito mais caro.
Pesquisadora: E qual o tipo de madeira que o Sr. costumava pegar?
Davi: Tatajuba (bagassa guianensis), o louro(laurus nobilis), o pequi, a taúba.
Pesquisadora: E onde é que é? Aqui mesmo na raposa?
Davi: Aqui mesmo na Raposa a gente compra.
Pesquisadora: Mas encontrar aí na mata a gente não encontra?
Davi: Ah. Isso é só os madeireiros que ainda encontra.
Pesquisadora: Quando o Sr. costumava tirar o Sr. encontrava?
Davi: Encontrava.
Roberto (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2010)
Pesquisadora: E a madeira que o senhor utiliza, é comprada, ou o senhor já retirou
madeira?
Roberto: Já retirei sim. Agora a gente já compra porque não tem mais mato.
Pesquisadora: E para manusear a madeira ao tirá-la da mata, como o senhor fazia?
Roberto: Metia catraca. É aquela coisa que bota em cima de caminhão. Sempre a gente
vê caminhão madeireiro com cabo de aço. É aquilo. Quando o caminhão não podia
entrar, bloqueava né? Aí amarrava um cabo de aço na árvore e puxava com o caminhão.
Pesquisadora: E fazendo isso nasciam novas árvores?
Roberto: A gente só cortava as que já estavam “predominadas” para queda. No caso, as
-furadas, as velhas, que estavam arrancando raiz. Essa a gente mexia.
Pesquisadora: E aí nascia por debaixo outras árvores?
Roberto: Não. Aí não nascia outra, só se plantar.
Pesquisadora: Mas você nunca chegou a plantar?
Roberto: Não.
Pesquisadora: Você não tinha esse tipo de preocupação?
Roberto: Naquele tempo a gente achava que não acabava nunca.
Pesquisadora: Você se utilizava de madeira em tora ou em folha? Tem diferença?
Roberto: Ela em folha é mais prático pra gente trabalhar. Mas, quando a gente tinha
serraria grande usava em tora, que saia mais barato. Aí a gente tirava tudo. Agora até
moto-serra é mais difícil ter.
Pesquisadora: O senhor acha que era mais cômodo, na época que tinha serraria?
Roberto: Saía uma pela outra.
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Anselmo (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010)
Pesquisadora: Pra retirar a madeira da mata? O Sr. já chegou a retirar?
Anselmo: Já cheguei a retirar de sitio, não é totalmente da mata. Mas eu também já
trabalhei na mata. Já lhe mostrei um serrote que eu tinha aqui. Eu já retirei da mata
totalmente a árvore. Já fui lá retirei a tabua da mata. Tudo isso eu já fiz. Hoje não tem
mais. A gente não vai mais porque não tem como. E assim se tem alguma coisa por aqui
não dá pra tirar porque o IBAMA não deixa.
Pesquisadora: E como o Sr. aprendeu a técnica de tirar da mata?
Anselmo: Com papai também.
Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: O Sr. mesmo procura o material. O Sr. vai comprar essa madeira aonde?
O Sr. pega a madeira?
Carlos: A madeira a gente compra aí nesses depósitos. Compra aqui na Raposa e
compra aí for também. Nos depósitos de São Luís também.
Pesquisadora: Mas o Sr. usa madeira em tora, em folha, já vem cortada aqui?
Carlos: Não, já vem cortada aqui.
Pesquisadora: O nome é beneficiada?
Carlos: É beneficiada, acho que sim. A tábua já vem feita a tabua e a madeira do
cavername que é o pequi.
Quanto à época da retirada:
Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: Ah, então tinha uma época certa pra cortar?
Davi: Tem, qualquer tipo de madeira tem a época pra cortar. Tem umas que a gente
corta pela lua tem umas que corta pelo quarto.
Pesquisadora: Pela lua? Quais vocês cortam pela lua?
Davi: Pela lua a gente corta o pequi e a taúba.
Pesquisadora: E como é pela lua?
Davi: É quando a lua tá bonita, tá cheia.
Pesquisadora: E quando é pelo quarto, é quarto crescente?
Davi: É louro.
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Pesquisadora: É quando ela tá pela metade, né? Tem mais alguma coisa? Algum outro
detalhe pra pegar da natureza, assim que você saiba, pra pegar madeira?
Davi: Não, não tem não.
Roberto Leite (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011)
Pesquisadora: E vocês tiravam qualquer época?
Roberto: A gente tirava qualquer hora. Metia a moto-serra, derrubava.
Pesquisadora: Mas você observava o feitio da madeira para ver se ela já estava pronta
para ser derrubada?
Roberto: Os próprios donos do terreno que falavam com a gente, perguntavam se a
gente queria derrubar. Eles nem vendiam de primeira, eles ofereciam. Aí a gente
cortava. Tem muito sítio aí na Maioba, que o pessoal queria ampliar o terreno, limpar,
eles falavam com a gente e a gente cortava.
Anselmo (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010)
Pesquisadora: E qual o melhor período pra retirada da madeira? O Sr. tem ciência disso?
Pra retirar uma madeira, a melhor época?
Anselmo: É o escuro. Eles usam a parte escura da lua. Só a referência que as pessoas
usam é a parte escura da lua. Toda madeira pra tirar tem que ser na parte escura da lua.
Digamos assim, se a lua tiver de fora. De dia mesmo, às vezes ela tá de fora, de dia. Aí
naquele período ela não é boa pra tirar. Ela boa quando ela tá escura tanto de dia. A
parte de dia que tá escura. Eu não sei por que, mas eles todas as pessoas que trabalham
no mato eles falam “ah, não tá bom de tirar a madeira porque a lua ainda tá de fora.
Vamos tirar quando ela tiver escura”. Não sei qual é o motivo. Deve ser alguma coisa
porque eles todos quase fala.
Pesquisadora: Eu já ouvi falar que é porque quando a lua tá nessa parte escura, a água
ela não sobe ate a copa da arvore, ela fica na raiz. Ela desce todinha, entendeu? A água.
Ela chupa menos água. Então eles cortam porque por dentro ela tá seca, não tá molhada.
Anselmo: Esse é o porquê? Eu não sabia. Por isso que eu te falei que eu não sei por que
que eles usa essa coisa assim. Isso a ciência descobriu agora, mas essa linguagem vinha
de longe. Assim sem saber de nada. Acho que por algumas experiências assim. Por
exemplo, bichar. A madeira bicha rápido quando tá na parte clara. Ela custa bichar
quando tá na parte escura. Agora nessa parte de água. É, mas tem a ver mesmo.
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Quanto ao local de onde é retirada a madeira:
Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: O senhor encontrava na Raposa mesmo?
Davi: Na Raposa não. Lá pras matas de fora. Pra barreirinhas, campos a gente
encontrava. Agora, ultimamente, a gente não encontra mais não. Já vem, o material já
vem daí de fora.
Pesquisadora: O material vindo de fora o Sr. acha que facilita?
Davi: Facilita porque vem pros depósitos e nos depósitos, o dono das embarcações
compra com a gente aí.
Pesquisadora: O dono que...
Davi: É, o dono da embarcação que compra.
Roberto Leite (Entrevista realizada em 03 de janeiro de 2011)
Pesquisadora: Mas, daqui da Raposa é que não tem mais?
Roberto: Sim, já foi tirado já.
Pesquisadora: Qual era o tipo?
Roberto: Jatobá, jaqueira.
Pesquisadora: Onde tinham essas?
Roberto: Nessa mata da Maioba.
Pesquisadora: E aí agora não tira mais?
Roberto: Não tem mais. Aí a gente já compra fora.
Pesquisadora: Mas tem ainda algum lugar por perto que exista?
Roberto: Acho que não. Acho que a única que tem por ai, que se usa pra fazer mesas é a
mangueira. A jaqueira já está em extinção. Não existe mais madeira velha não, só
novinha.
Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: E essas madeiras são encontradas onde?
Carlos: Aí vem daí, da baixada maranhense, lá do Pará. Daí assim. Aí eu não tenho
certeza da onde vem.
Pesquisadora: Não é do município?
Carlos: Não.
Pesquisadora: Aqui no município não tem madeira?
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Carlos: Além do mangue não tem nada.
Anselmo Góes (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010)
Pesquisadora: E quando o Sr. tirava as arvores da mata, como é que o Sr. trazia? A
distância daqui pro lugar é muito longe?
Anselmo: Eu trabalhei mais assim na mata foi lá no Icatu. Era distante. Puxava em costa
de animal. Quando eu trabalhava lá, puxava em costa de animal.
Pesquisadora: E a jaqueira? Onde tem?
Anselmo: Olha tem muita. Aqui na Maioba, na Marajau, Na São Jose de Ribamar tem
muita jaqueira já velha que não bota mais. Paço do Lumiar então, tem tanta. Aquelas
jaqueiras que já tão morrendo, que não bota mais jaca. Se bota, a jaca é um bago que
não enche mais. Têm tantas que eles até cortam e chamam o corpo de bombeiros e usam
aqueles caminhão pra botar no lixo. Ou quer fazer uma casa naquele local e aquela
jaqueira tá atrapalhando, não acha pra quem dar, não acha pra quem vender. Então pega
o carro e bota fora. Não tem pra quem dar.
Pesquisadora: Qual o melhor local pra retirar a madeira?
Anselmo: É em sítio. Por que tem acesso a carro pra entrar. Na mata, o carro pra entrar
é difícil. Tem carro aí que traz, que puxa, é carro especial. É trator, essa coisas assim.
Fica até mais fácil assim pro carro ir até lá da casa. Vai lá, corta a madeira. Em sítio é
melhor do que na mata. Na mata o cesso é difícil demais. Lá tem as cobras, tem as
mutucas.
Conhecimento sobre o material:
Davi Martins (Entrevista realizada em 29 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: Olhando a madeira o Sr. sabe quando ela tá boa pra tirar?
Davi: Assim, porque a madeira estando verde ela não serve pra embarcação.
Pesquisadora: Mas o Sr. conhece as madeiras? Sabe como tratar com elas?
Davi: A gente tem que saber.
Pesquisadora: O Sr. aprendeu como?
Davi: Vendo, as pessoas dizendo pra gente como é e como não é. O tipo de madeira.
Carlos Magalhães (Entrevista realizada em 28 de dezembro de 2010)
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Pesquisadora: E se morasse num lugar que tivesse madeira própria, o Sr tiraria? Saberia
tirar? Aprendeu a tirar?
Carlos: Não, mas aí tinha que ter uma outra estrutura, uma ferramenta pra poder
beneficiar ela. Porque não adianta se a gente não ferramenta nenhuma, e derrubar uma
arvore grande pra fazer o que com ela? Nada. Então, pra isso tem que ter uma estrutura
de serra de fita ou um engenho pra rachear a madeira todinha. Aí o investimento já é
muito alto. E, além disso, também eu não tenho muito conhecimento nessa área.
Pesquisadora: Entendi. Então o Sr não tem muito conhecimento nessa área?
Carlos: Não, derruba de madeira eu não tenho conhecimento, não.
Pesquisadora: Mas o senhor sabe quando a madeira tá pronta pra usar na embarcação?
Carlos: A Jaqueira é quando tá velha, morrendo. Porque o branco dela não tem utilidade
nenhuma. Curva depressinha. Quando ela já tá morrendo é porque ela já tá madura. O
âmago dela já tá ultrapassando, já tá chegando o limite dela. E quando ela vai
engrossando, o âmago dela se chama o miolo, ela vai aumentando, aumentando, até
quando ela chega pertinho já da casca aí ela já começa a morrer.
Pesquisadora: E como é que o Sr. sabe essas coisas?
Carlos: É porque é já de conhecimento mesmo. Se alimenta muito do leite dela porque
quanto mais ela tem branco, mais o leite dela é forte. A proporção que o branco dela vai
diminuindo, o âmago vai aumentando. O leite dela também vai diminuindo. Aí ela já
começa a perder a força
Pesquisadora: Então quanto mais ela tem branco mais o âmago dela vai diminuindo.
Carlos: diminuindo. Aí quanto mais o âmago dela aumenta o branco é que diminui.
Pesquisadora: E quando não tem mais branco é porque ela já tá boa?
Carlos: Ela já tá boa. Tá pra morrer.
Pesquisadora: Aí pra saber se tem branco vocês fazem um cortezinho, é isso?
Carlos: Não.
Pesquisadora: Como é que faz?
Carlos: É pela idade dela mesmo.
Pesquisadora: Pela idade? Vendo ela já dá pra saber?
Carlos: Vendo ela já dá de saber logo
Pesquisadora: Por que ela fica soltando?
Carlos: Não. Porque ela é bem viçosa. Quando você vê o pé de jaqueira quando ela ta
bem viçosa é sinal de que o âmago dela tá muito pequeno, então ela não tem utilidade
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de nada. Aí quando vê ela já dá sinal de já querer morrer, já tem galho seco prum lado,
galho seco pra outro. Então já sabe que ela tá no ponto.
Pesquisadora: Isso acontece comas outras madeiras também ou é só com essa?
Carlos: Eu não sei. Eu digo jaqueira porque eu tenho costume nessa. Agora nos outros
tipos de madeira eu não sei.
Pesquisadora: Pequirana é diferente de pequi?
Carlos: É, porque a pequirana não dá fruta.
Anselmo Góes (Entrevista realizada em 30 de novembro de 2010)
Pesquisadora: Qual é a diferença da madeira em tora pra madeira em folha que o Sr
trabalha?
Anselmo: Uma grande diferença. Em tora é muito trabalhosa. Pra gente é mais custoso
devido a ter que ter moto-serra. Aí não dá. Em tora é muito difícil.
Pesquisadora: E aqui não tem jaqueira por quê? Em Raposa.
Anselmo: não tem. Aquela área da vila é uma área toda nova. Tem, mas elas tão bem
novinhas. Elas levam muito tempo pra crescer, pra ficar de uma grossura, pra atingir o
corpo com 2 metros de roda. É muito tempo.
Pesquisadora: Leva quanto tempo mais ou menos?
Anselmo: Ela leva quase uns oitenta anos. Por que a árvore, quando ela atinge uma certa
idade, ela vai devagar.
Pesquisadora: E aí quando tira essas árvores elas não nascem outras assim?
Anselmo: Não. Normalmente não.
Pesquisadora: Eu digo assim, de como tirar a raiz, ela não brota outra?
Anselmo: Não, a jaqueira não.
Pesquisadora: E o pequi e os outros? Tem alguma que o Sr conhece que brota outra?
Que usa pra embarcação?
Anselmo: Não, não. O pequi não brota não. Ele morre completo. Tem umas árvores que
brota. A maçaranduba brota.
Pesquisadora: E ela dá pra usar?
Anselmo: Dá. Isso aí é maçaranduba. Essa bem aí (apontando). Essa compridona aqui é
maçaranduba. Ela brota da raiz. O bacuri também brota da raiz. São varias arvores que
brotam da raiz, outras não brotam. O mangue não brota da raiz.
Pesquisadora: O bacuri dá pra usar também?
Anselmo: Dá. É madeira boa pra embarcação. É difícil.
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Pesquisadora: E tem aqui, maçaranduba e bacuri?
Anselmo: Não, não. Nenhuma dessas tem aqui. Assim, árvore viva aqui não. Tem aí por
ai. Até em São Luís tem muito bacurizeiro. Ali no Lítero. Aquelas árvores tudo são
bacuri. Árvore grande.
Pesquisadora: Tem alguma que dá pra tirar só uma parte e ficar o resto ali, o toco?
Anselmo: Tem. Só fica lá o toco quando o dono às vezes quer. Às vezes o dono do sitio
quer deixar a haste lá no tronco, em pé. Depois brota. Mas normalmente quando eles
tiram, eles banem totalmente daquela área. Pra dar lugar a outras construções. Assim
fica aqui na cidade. Agora no mato, fica lá. Porque não tem ninguém, não tem o desejo
de abolir de lá. Cortou, levou o que quer, o tronco cresce. Alguns crescem.
Pesquisadora: Por exemplo?
Anselmo: Acho que quase todas elas. Tem umas que morrem. Rapaz, eu acho que todas
elas brotam.
Pesquisadora: Por exemplo?
Anselmo: O pequi brota. Eu já vi o pequi brotando. A mangueira brota. A mangueira a
gente não usa pra embarcação não. Quase todas as árvores do bosque brasileiro brotam.
Isso aí não brota não. O mangue não brota não. Nenhum do mangue brota. Morre
totalmente.
Pesquisadora: Quantas jaqueiras o Sr. acha que precisava pra fazer um biana?
Anselmo: Depende da grossura do corpo dela. Mas uma faz mais de uma canoa. Tem
jaqueira na Maioba que só uma faz, de uma jaqueira eu já fiz oito canoas pequenas.
Desse tamanho. Mas assim, só as cavernas, não foi tábua. Eu já fiz oito canoas de uma
jaqueira na Maioba. Só que foi assim, aquela coisa mais bruta. Eu levei motoserra, botei
no caminhão, trouxe. Quando terminou eu fiz as contas mais meu irmão, a gente fez oito
canoas. Era uma coisa absurda demais, três cargas de madeira. Mas nós trouxemos
todos os galhos, os finos. Os grossos.
Quanto à nossa interlocutora mulher, Cristina Siqueira, a mesma diz que só
conhece alguns nomes e precisar a quantidade de toras necessárias para as embarcações
de Anselmo, mas que nunca ajudou o companheiro a retirar madeira. Já Diego Vieira
construiu sua biana com mangue da região e o considera uma madeira de boa flutuação
pareceu não se preocupar com o fato de este tipo de madeira ter o corte proibido.
Por outro lado, Waldy tem um conhecimento superficial da proibição do uso do
mangue, ele usou a expressão “andaram dizendo” para dizer que já ouviu falar a
103
respeito disso, e costuma retirar a madeira da Maioba bem como comprar folhas de
compensado. O mesmo artesão aponta o encarecimento da embarcação pelo alto preço
das folhas de compensado.
O interlocutor Davi diz preferir comprar madeira beneficiada, porém, utilizava o
machado para retirar madeira e que quando retirava costumava encontrar com facilidade
a madeira que precisava em Raposa.
Já Roberto aponta o uso da catraca para puxar as árvores. Acredita que retirando
a madeira seus custos eram reduzidos e aponta certa dificuldade de portar motosserra,
porém, nem chega a comentar o fato de que o uso desta ferramenta é proibido.
Anselmo, além de mostrar com orgulho no momento da entrevista uma imensa
ferramenta parecida com um serrote, explicou como cortava a árvore, e deixou claro que
só não tira em maior quantidade pois não tem como, segundo ele, em Raposa a madeira
está escassa e quando há madeira o IBAMA não permite a retirada.
Já Carlos afirma apenas comprar madeira já em tábua. E nada comenta a respeito
de conhecimentos sobre a retirada de madeira disponível na região da Raposa.
Todos os interlocutores disseram comprar madeira, a maioria compra pequi,
geralmente em Raposa ou em São Luís. E quanto ao procedimento de retirada da
madeira a maioria diz que Raposa não tem mais recursos e que costumam ou
costumavam retirar madeira de matas e sítios no local ou nas adjacências, como é o caso
da Maioba.
A proibição da retirada de madeira é assunto pouco explorado nas respostas,
mas, de modo geral, é atribuída ao IBAMA, possivelmente pelo fato de este órgão, em
sua atuação naquela região, desenvolver apenas a função fiscalizadora, aumentando a
distância entre população e os princípios para os quais foi criado.
O fato de os carpinteiros se referirem repetidamente à localidade Maioba como
local de retirada de madeira merece interpretação. A Maioba é uma região que está
dividida entre dois Municípios, sendo “Maioba do Jenipapeiro” em São José de
Ribamar e “Maioba” um bairro do Município Paço do Lumiar (cidade da qual o
município de Raposa foi desmembrado em 1994), distante apenas quatorze quilômetros
de Raposa, e está localizado a longitude oeste 44º,10‟W, portanto, ainda na Amazônia
Legal.
Acreditamos que o desmembramento deste município por si só não desvincula a
relação dos agentes com os recursos lá disponíveis. Especialmente pelo fato de a
104
maioria dos carpinteiros navais nela trabalharem desde antes da ocorrência do referido
desmembramento.
Podemos conectar as falas de Davi ao conceito de etnoconhecimento
anteriormente explora, pois reproduz o conhecimento de que madeira verde não serve
para embarcação, o que aprendeu vendo e ouvindo dizer do. E já na fala de Roberto
notamos que não há uma preocupação detalhada com a época da retirada de madeira, se
dando esta de forma bem pragmática.
Fato relevante notamos na fala de Anselmo, que, apesar de não saber exatamente
o porquê de “a fase do escuro da lua” ser a ideal, sabe que o conhecimento vêm da
experiência e aprendeu ouvindo “pessoas que trabalham no mato” falarem.
Carlos não tem conhecimento sobre a derrubada mas sabe que a jaqueira “está
no ponto” através do conhecimento de seu âmago, observando a vitalidade da árvore,
que quanto mais velha estiver, melhor. Também sabe a diferença entre espécies, como
no caso do pequi e pequirana. Tal diferença é importante pelo fato de que, se a
pequirana não gera frutos, sua retirada é menos ofensiva que a retirada da árvore que
gera frutos.
Já Anselmo nos apresenta seu conhecimento sobre o brotamento das espécies,
quais brotam ou não da raiz ou do toco, sabe ainda a quantidade de madeira que pode
obter observando a grossura do tronco, detalhes que aprendeu com vários anos de
manejo das espécies.
5.2. Inserção e efeitos de novos elementos e atores na dinâmica da cadeia produtiva
Andrès aponta que no Maranhão muitos estaleiros de razoável porte vêm
desaparecendo ao longo das últimas décadas, fato que ocasionou acentuada queda na
atividade em vários pontos do estado. Entre os principais fatores apontados estão
sempre a redução da oferta de matérias-primas essenciais, como a madeira, também
pelo grande distanciamento de qualquer tipo de operação de crédito que eventualmente
pudesse garantir novos investimentos para a manutenção de suas atividades (ANDRÈS,
1998).
Observando a legislação apontada acima nos deparamos com o que aparenta
prática predatória, por outro lado, observando a importância do uso dos recursos,
identifica-se o conflito. “Admite–se que o conflito produza ou modifique grupos de
interesse, uniões, organizações. [...] (o conflito) é uma forma de sociação” (SIMMEL
105
apud ALCÂNTARA JÚNIOR, 2005, p.08). Assim, “(...) o conflito pode possibilitar
momentos de construções e destruições, quer sob as instituições, estruturas, arranjos,
processos, relações e interações sociais” (ALCÂNTARA JÚNIOR, 2005, p. 08). Bem
como o conflito. No âmbito das delações com recursos naturais, “pode derivar da
disputa por apropriação de uma mesma base de recursos ou de bases distintas, mas
interconectadas por interações ecossistêmicas mediadas pela atmosfera, pelo solo, pela
água, etc.” (ACSELRAD apud SANT‟ANA JÚNIOR et all, 2009, p. 19). É válida,
portanto, análise da ação local e de processos de mudança e conflitos envolvidos, e
avaliação do atendimento aos ditames da “justiça social”.
Compreendamos como a nova configuração territorial oficial pode influenciar o
contexto que presenciamos. Em cinco de junho de 1992, foi criada no Estado do
Maranhão a Área de Proteção Ambiental Upaon-Açu/Miritiba/Alto Preguiças (também
conhecida como APA Miritiba), através do decreto 12.428, com publicação em 12 de
junho do mesmo ano, com área de 1.535,310 ha (um milhão, quinhentos e trinta e cinco
mil, trezentos e dez hectares). De categoria “uso sustentável”, abrange os municípios de
Axixá, Barreirinhas, Humberto de Campos, Icatu, Morros, Paço do Lumiar, Presidente
Juscelino, Primeira Cruz, Raposa, Rosário, Santa Quitéria, Santa Rita, São Benedito do
Rio Preto, São Bernardo, São José de Ribamar, São Luís, Tutóia e Urbano Santos (Vale
lembrar que Icatu e Barreirinhas e São José de Ribamar foram cidades apontadas pelos
carpinteiros navais como locais de onde costumavam retirar madeira).
O decreto considera que a região abrangida é caracterizada pelas formações
pioneiras representadas pela vegetação de mangue e restinga, cerrado e áreas de contato
floresta decidual/cerrado/caatinga; considera a diversidade de ecossistemas naturais
abrangidos: dunas, restingas, manguezais, galerias (renque de buritis), lagoas e matas
ciliares sendo considerados Reservas Ecológicas de acordo com o que preceitua a
Resolução CONAMA nº 004, de 18 de setembro de 1985; dentre outras coisas, e tem o
objetivo de disciplinar o uso e a ocupação do solo, a exploração dos recursos naturais,
as atividades de caça e pesca, a proteção à fauna e à flora, a manutenção das biocenoses
daqueles ecossistemas e o padrão de qualidade das águas (art. 1º). O decreto determina
que na APA de Miritiba, poderão ser desenvolvidas atividades múltiplas, desde que
sejam obedecidos critérios de conservação, segurança, racionalidade e observada a
Legislação Ambiental (Federal, Estadual e Municipal), excetuando-se aquelas de caráter
predatório que possam provocar alterações drásticas na biota local e regional ou causem
significativos impactos ambientais (art. 6º).
106
As unidades de conservação do Estado do Maranhão têm como base a Lei do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, seguem, portanto, os mesmos
protocolos. E somente em 2010 a Portaria nº 95 da Secretaria de Estado do Meio
Ambiente e Recursos Naturais – SEMA, designou servidores para a chefia de Unidades
de Conservação Estadual, nomeando Ana Paula Rios de Melo para a APA Miritiba.
Lembramos que o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 impõe ao Poder
Público definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, vedada qualquer utilização que
comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção – que se instituiu e
consolidou o SNUC.
E a definição de Unidade de Conservação surge como “espaço territorial e seus
recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais
relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e
limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção” (art. 2º da Lei 9.985/00).
As unidades de proteção integral objetivam a preservação da natureza, admitindo
apenas o uso indireto dos recursos existentes neste espaço, uso que não envolva
consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais, excetuando-se os casos
previstos em lei (art. 7º, §1º). Já as unidades de uso sustentável devem compatibilizar a
conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais
(art. 7º §2º).
O Decreto nº 4.340/02 regulamenta artigos da supracitada Lei do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, e traz alguns instrumentos
para a instituição e gestão de Unidades de Conservação, entre eles, destacam-se os
referentes às Unidades de Uso Sustentável como: consulta pública; mosaico de unidades
de conservação; plano de manejo da unidade de conservação; contrato de concessão de
direito real de uso e termo de compromisso firmados com populações tradicionais das
Reservas Extrativistas e Reservas de Uso Sustentável; conselho consultivo ou
deliberativo com representação dos órgãos públicos e da sociedade civil (sempre que
possível paritária) considerando as peculiaridades regionais; gestão compartilhada de
unidade de conservação por OSCIP (Organização Social Civil de Interesse Público)
regulada por termo de parceria firmado com o órgão executor; autorização a exploração
de produtos, sub-produtos ou serviços inerentes às unidades de conservação, de acordo
com os objetivos de cada categoria de unidade.
107
As unidades de conservação são áreas do território nacional estabelecidas pelos
governos federal, estaduais e municipais que devem ser preservadas ou utilizadas de
forma adequada e sustentável, visando à proteção de ecossistemas significativos, em
termos de recursos naturais e/ou culturais e o Maranhão é o estado que se destaca por
possuir mais de 12% de seu território em áreas protegidas sob jurisdição estadual
(PINTON et all., 2004).
Tais instrumentos, porém, não estão, à primeira vista, concatenados
prioritariamente aos interesses das populações tradicionais que habitam e ou utilizam os
territórios de Uso Sustentável. Se ainda existe uma esperança de que “se pode chegar a
constituir novas bases para a existência e rearticulações significativas de subjetividade e
alteridade em suas dimensões econômicas, culturais e ecológicas” (ESCOBAR, 2005, p.
163) se faz necessário que os instrumentos que o Poder Público já disponibiliza sejam
suficientes e eficazes em prol da efetivação dos direitos das populações tradicionais que
utilizam recursos naturais em seus territórios de forma sustentável.
Assim, para compreendermos de que modo estão postos os instrumentos do
poder público disponíveis, entrevistamos a chefe da APA de Miritiba dia 17 de janeiro
de 2011. Dentre as questões invocamos o conhecimento da servidora em relação à APA,
em relação à carpintaria naval em Raposa-MA, à vegetação do município, à fiscalização
ambiental naquele município, a ferramentas de gestão dos recursos vegetais da região
disponíveis aos carpinteiros navais, e atividades em andamento do órgão em relação ao
uso dos recursos naturais que possam estar relacionadas à carpintaria naval.
A servidora da Sema, analista ambiental, turismóloga, nomeada em outubro de
2010, dispõe que não tem conhecimento em relação à carpintaria naval em Raposa; que
conhece um estudo da Universidade Estadual do Maranhão em relação à vegetação do
município; que quanto à fiscalização ambiental em Raposa o procedimento é averiguar
apenas as denúncias, sendo competência da SEMA e da prefeitura mas não sabe o que
está tem feito neste sentido por parte da prefeitura. Assim:
Ana Paula (Entrevista realizada em 17 de janeiro de 2011).
Pesquisadora: Como são as normas de fiscalização pra essas comunidades tradicionais?
Ana Paula: Dependendo do que fez, eles vão responder normalmente como um cidadão
comum.
Pesquisadora: Dependendo do que aconteceu entram todos nas normas então vigentes?
Ana Paula: É, só isso.
108
Pesquisadora: Então por enquanto não tem nenhuma ferramenta, nenhuma atividade em
andamento pra comunidade?
Ana Paula: Não, mas eles (SEMA) estavam querendo fazer um trabalho com os
pescadores de lá.
Pesquisadora: Ligado a SEMA?
Ana Paula: É.
Pesquisadora: E plano de manejo e conselho gestor da unidade, existem?
Ana Paula: Pois é, plano de manejo, a criação do conselho gestor, a gente tá tentando
ainda fazer. Porque pra fazer o plano de manejo é caro, muito caro. Então a gente tá
vendo agora a possibilidade de ser feito um projeto. Inicialmente é um projeto com
todas as APAs que não possuem plano de manejo ainda. Aí eles tão querendo propor
pra ver se consegue a verba pra fazer o plano de manejo pelo diagnostico da área. É um
convênio que eles estão tentando fazer, mas ainda tá só no papel mesmo.
Pesquisadora: É caro pra fazer um plano de manejo, por quê?
Ana Paula: Olha, o que a gente tem de referência é que não é menos de 1 milhão e
assim, numa área que não é tão grande. Essas APAs que são maiores com certeza vai ser
mais de 1 milhão por que vai precisar do diagnóstico da área inteira, estudo de flora,
fauna. Aí abre edital pra selecionar a instituição que vai fazer. O que é essencial pro
plano de manejo da área.
Pesquisadora: O conselho de gestor é criado só depois do plano de manejo? Se houvesse
um novo conselho de gestor, você ia continuar sendo a chefe da APA?
Ana Paula: Isso eu não sei te dizer. Eu sei assim, que quem toma de conta é a SEMA,
então a SEMA pode estabelecer essa chefia. O único que parece que já tem conselho
novo é uma APA nova e eles ainda não tem plano de manejo. Então pode ser, eles
elegeram agora, elegeram recentemente o conselho gestor deles.
Pesquisadora: Aí no caso o plano de manejo vai ser mediado pela chefia ou pela Sema?
Ana Paula: É pela SEMA, por que no caso, como é o que a gente fez agora
recentemente, porque como a gente mudou de secretario, ele solicitou, fez tipo um plano
e colocou as diretrizes, que a gente teria que elaborar projetos seguindo essas diretrizes.
E pra gente foi proposto exatamente fazer um projeto pra gente ver se conseguia fazer
um plano de manejo pras áreas que ainda não tem. Então todas as Unidades que não tem
se reuniriam pra fazer um projeto pra encaminhar. Só que ainda tá nisso, a gente não
sabe se vai sair.
Pesquisadora: Aí, enquanto não sair o plano tem alguma outra medida?
109
Ana Paula: Pras comunidades, o que a gente tava pensando, primeiramente como a
gente viu que a dificuldade maior da comunidade é que ela não sabe o que ela pode e o
que ela não pode fazer, seriam esses pontos, que são dados em alguns índices e
geralmente são solicitados pelo próprio município. Mas a gente que já tá na instituição,
já observa essa dificuldade, a gente tá tentando colocar essas atividades dentro das áreas
que a gente coordena. Então seria essa. As outras seriam, no caso falando
especificamente, projetos que tenham a ver, priorizar os processos que estão
relacionados com essas comunidades. Se tem algum conflito. Porque acaba parando o
serviço deles, é uma atividade que gera muita renda pra eles, então é muito complicado
deixar o projeto parado. Mas geralmente a gente recebe mais denúncias assim, nossa
equipe é muito pequena. Na chefia é só essa pessoa pra cuidar da área inteira. Não tem
outra pessoa. Se eu for fazer uma fiscalização na Raposa ou em São José de Ribamar, eu
tenho que solicitar outro fiscal pra ir comigo que é de outro departamento. Aí às vezes
ele já tá com outro serviço, aí eu tenho que esperar. Isso tudo é meio complicado. O que
a gente tá pensando em fazer também é justamente tentar identificar os
empreendimentos, porque aí fica mais fácil da gente saber se tá tendo conflito ou não.
Os empreendimentos dentro da área. Aí iria fazer um banco de dados desses
empreendimentos pra ver de onde tá vindo esse material. Só que tudo isso é ideia.
Pesquisadora: A Maioba faz parte da APA?
Ana Paula: É uma parte.
Dentre os interlocutores nenhum sabia que o município de Raposa fazia parte de
uma Área de Preservação Ambiental gerida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente
– SEMA e apenas Anselmo e Cristina revelaram já ter ouvido falar deste órgão.
Diante disso, recorremos a Esterci e Sant‟ana Júnior,
As dificuldades de institucionalização das agências ambientais, de
captação de recursos, o reduzido corpo de funcionários e politização dos
cargos, até o final dos anos 90 resultaram na criação de UC, mas, em poucas
medidas concretas para a sua efetiva implantação. A reduzida capacidade do
Estado de fazer valer plenamente seu poder de dominação, não impediu que
através dos dispositivos legais que nomeiam e redefinem fronteiras, ele
impusesse de forma progressiva às populações que legítima e anteriormente
habitavam os territórios em áreas protegidas, uma série de limitações
administrativas, que passaram a interferir nos modos de vida, nos usos,
costumes e formas tradicionais de apropriação da terra, gerando, segundo
Sathler (2007), uma situação de desterritorialização subjetiva, ou em outras
palavras um estado de desenraizamento; de desvinculação psicológica dos
moradores em relação ao seu lugar, às tradições e seu modo de vida.
(ESTERCI E SANT‟ANA JUNIOR, 2009, p. 30)
110
Acompanha-se em Raposa-MA esse processo de transformação do território em
um espaço de incertezas estando obscuras as regras do possível em relação aos usos
sociais dos recursos para a carpintaria naval artesanal.
Tomando como exemplo estudos na APA da Costa de Urumajó, no Pará, na
Mesorregião do Nordeste Paraense, Município de Augusto Corrêa, “onde incidem
ecossistemas costeiros (de restinga e mangue) considerados bastante preservados”,
pode-se constatar que o interesse em estudar Unidades de Conservação deve ir além da
criação das mesmas e adentrar a seara da continuidade do processo, dos momentos de
antes, durantes e depois e das motivações e conflitos configurados. Assim, a referida
APA “trata-se de um lugar correspondente a hábitos próprios, modos de ver e viver
aquele ambiente que de certo modo conflitam com uma institucionalidade territorial
pautada na centralidade da questão ambiental, elaborada pelo saber e práticas
científicas” (AQUINO E NAZARÉ, 2009, p. 134). Ressalte-se que foi criada em 1998,
e que “(...) não consta ainda um plano de manejo. Resulta disto dificuldades,
principalmente para os pescadores artesanais, em se reconhecerem nesta nova
institucionalidade territorial” (idem, p. 134).
Quanto à coexistência de saberes locais e científicos sobre o ambiente, tratam as
autoras:
Reconhecer a importância do saber tradicional é, implicitamente,
reconhecer que as populações tradicionais são sujeitos históricos, portadores
desse conhecimento e que, portanto, devem ser considerados como agentes
fundamentais do conhecimento e, sobretudo, a gestão ou manejo das áreas
chamadas naturais. Esse reconhecimento poderia retirar uma parte do poder
conferido pela ciência às corporações técno-burocráticas e acadêmicas que se
autoconferem a exclusividade do saber científico e dos princípios e
metodologias que regem os chamados „planos de manejo‟ das áreas naturais
protegidas. Desconhecendo e até rejeitando o saber tradicional, as
corporações aninhadas nos órgãos ambientais decisórios [...] acabam
atribuindo à fiscalização e à repressão policial o papel de „guardiões da
biodiversidade‟ e os únicos defensores do „mundo natural‟ (AQUINO E
NAZARÉ, 2009, p. 136).
As autoras constataram que mesmo em Unidades de Conservação na modalidade
APA e RESEX “há uma distância dessas populações e seus saberes sobre tal local,
assim como a inexistência de entidades coletivas que as represente, participando
efetivamente dos processos de criação” (idem, pág. 138), e que, sendo a relação com
estas populações primordiais para a conservação, “seria importante o diálogo entre os
saberes local e o científico com vistas à sustentabilidade, numa relação menos
assimétrica entre os agentes envolvidos pela política ambiental em execução na
111
Amazônia Brasileira” (idem, p. 139). Ainda de acordo com elas a ausência de saberes,
locais e especializados, leva a “dificuldade de identificação com novas territorialidades
e o sistema legal que lhes corresponde, desdobrando-se em defasagem significativa
entre decretação e elaboração/execução de planos de manejo.” Assim,
A ausência dos planos de manejo participativos tem levado a tensões entre as
populações que tradicionalmente se relacionam com os recursos disponíveis
nestes territórios e outros segmentos sociais locais e com as autoridades
públicas responsáveis pelas áreas (municipais, estaduais ou federais), cuja
ação tem sido restrita a fiscalização e proibição de atividades econômicas
consideradas predatórias. (AQUINO E NAZARÉ, 2009, p.141-142)
Continuam as autoras, “Ocorre, porém, que as restrições ao uso desses territórios
atingem muito mais os segmentos populacionais chamados tradicionais, cuja integração
a estes projetos termina por reproduzir desigualdades sociais mais amplas.” (AQUINO e
NAZARÉ, 2009, p. 142).
Dentre os interlocutores nenhum sabia que o município de Raposa fazia parte de
uma Área de Preservação Ambiental gerida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente
– SEMA e apenas Anselmo e Cristina revelaram já ter ouvido falar deste órgão.
5.3. Concepções de possibilidades e limites: predisposição ao uso sustentável da
natureza?
De acordo com Kitamura, a Região Amazônica brasileira vem sofrendo um
processo desordenado de ocupação humana, o que afeta seus ecossistemas e a vida
econômica e cultural de seus habitantes humanos mais antigos. Para ele, quando se
considera o conceito de “desenvolvimento sustentável” para a Amazônia, é fundamental
encará-la como muito mais do que um santuário natural de formas de vida selvagem
animal e vegetal e levar em conta as demandas de sua população, principalmente
aquelas associadas à sua subsistência (KITAMURA, 2004).
Segundo Little (apud BURSZTYN, 2004, p. 330), o preservacionismo nasceu no
século XIX em resposta às crescentes industrialização e urbanização dos países do
Norte, nos quais a noção de wilderness (a natureza em seu estado selvagem) foi
consagrada como uma fonte de inspiração e pureza espiritual a ser apreciada pelo ser
humano. Quanto à vertente conservacionista, aponta que surgiu no fim do século XIX,
no seio do ofício da engenharia florestal, quando houve um interesse em explorar os
recursos naturais de maneira que não os esgotasse. O autor aponta nisso o núcleo
ancestral do que se chama hoje de “desenvolvimento sustentável”, esta vertente
112
conservacionista começou a pesquisar formas tradicionais de exploração dos
ecossistemas amazônicos praticadas pelos diversos grupos sociais da região, com
particular ênfase nas sociedades indígenas.
Já quanto à corrente socioambientalista, lembra que seus constituintes optaram
por outro tipo de relacionamento com os povos tradicionais. Mediante alianças
estratégicas entre setores do movimento ambientalista e grupos sociais, as
reivindicações dos direitos dos povos, segundo ele, foram levadas diretamente ao
cenário político, no qual, em muitos casos, teriam encontrado ampla ressonância.
A outra vertente apontada por Little é o ecologismo, que, segundo ele critica as
próprias bases do desenvolvimento capitalista implementado na Amazônia. Essa
vertente procuraria, de acordo com o autor, mudanças radicais nas formas atuais de
produção, chegando a questionar e atacar as ideologias produtivistas e de mercado que
fundamentam as economias nacionais e mundial, sua maneira de incidir nas questões
locais varia caso a caso, dependendo tanto da temática ambiental em questão quanto dos
grupos locais envolvidos (apud BURSZTYN, 2004).
As vertentes expostas ensejaram algumas de nossas análises ao longo do
trabalho. A corrente, por exemplo, “ecologismo” suscitou nossa intenção de investigar a
forma de produção da carpintaria. Já a corrente socioambientalista serve de aporte para
a reflexão sobre aspirações de novas alternativas ao desenvolvimento, quanto à
verificação de tendências preservacionistas nas práticas exercidas pelos carpinteiros
navais.
De posse destas visões, podemos observar entre os interlocutores o que se segue
(e aqui tomamos a liberdade de repetir algumas das passagens já expostas em outros
momentos do trabalho):
José Ribeiro (Entrevistado em 14 de agosto de 2010)
Pesquisadora: O que o Sr. poderia me falar sobre a fiscalização ambiental?
José: Julgo correto porque alguns pescadores não tem o cuidado de soltar os peixes que
não servem, deixando naquela agonia, não se pensa para o dia de amanhã, que se faz
falta.
Pesquisadora: E quando fiscalizam a retirada da madeira?
José: Nesse caso, acho que se não se tirasse madeira muita gente tinha morrido, ou era
doente, ou o peixe também apodrecia, ninguém pescava, nem nada. Acho que no Brasil
não tem quem ajude, as autoridades, os políticos querem é explorar, nós somos
113
maltratados. Antes eu derrubava o pau pra fazer os feitios no lugar mesmo de onde eu
tirava. Agora a gente tira mais pouca porque foi proibida.
Waldy Araújo (Entrevistado em 07 de agosto de 2010)
Waldy: Ninguém corta, tira um ou dois da ilha do Sarney. Mas quando tira é mangue
morto, que tá seco, é que tá bom. Só que proibiram tirar o mangue, aí eu compro
madeira emendada. Mas o ideal mesmo é usar Jaqueira de sítio, sem vida, jaqueira de
30-40 anos que cai, não tira madeira nova que ainda dá fruto.
Pesquisadora: Como o Sr. sabe que não pode mais usar mangue?
Waldy: Andaram dizendo por aqui, né? Dizem que o IBAMA que mandou parar. Dizem
que tem que pagar uma multa por cada árvore tirada, isso faz o pessoal tirar mais pouco.
Pesquisadora: E o combustível de algumas embarcações, não deixa rastro na água?
Waldy: O diesel fuma o óleo, não dá poluição na água.
Pesquisadora: E esses restos de madeira, a água leva?
Waldy: Fica por aí mesmo, o pó da madeira não dá poluição, não dá catinga de nada.
A ilha do Sarney, a qual se referiu, é uma porção do município de Raposa, onde
existe uma mansão que recebe helicópteros com membros da família Sarney,
historicamente consolidada na gestão do Estado do Maranhão. Tal porção de terra é
permanentemente vigiada, podendo adentrar apenas quem tem permissão expressa. Tais
informações são extraídas de relatos dos próprios interlocutores.
Davi Martins (Entrevistado em 29 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: Quando você tirava com o machado, nascia por debaixo?
Davi: Não.
Pesquisadora: Mas, ai, tinha que escolher alguma (árvore)?
Davi: Tinha que escolher a que prestasse também. Não ia derrubando toda, a natureza
toda não.
Pesquisadora: É só uma?
Davi: É só uma, uma ou duas. A gente via onde ia cair pra não prejudicar muito a
natureza toda.
Pesquisadora: Mas porque o Sr. se preocupava em não derrubar a natureza toda?
Davi: Pra ver se nascia mais. Hoje me dia, a maior dificuldade é material pra
embarcação.
114
Pesquisadora: Não dá pra tirar nem um pau de mangue pra fazer uma parte da
embarcação?
Davi: Dá pra tirar pra fazer, só que é proibido.
Pesquisadora: Como assim?
Davi: Porque é proibido tirar o mangue.
Pesquisadora: De todos os lugares? Nem se fizer um acordo com o IBAMA?
Como o Sr. sabe que é proibido? A fiscalização bate aqui?
Davi: A fiscalização, às vezes quando tá aqui, eles chegam.
Pesquisadora: E eles ficam perguntando?
Davi: Ficam perguntando se tira do mangue.
Pesquisadora: Mas eles não querem nem saber para que?
Davi: Não querem nem saber. Multa na hora.
Pesquisadora: Como é que multa?
Davi: Às vezes a gente corta um pau de mangue, um galho desses é uma multa de
R$50,00, R$100,00 reais. Aí conforme o tanto.
Pesquisadora: Se não fosse proibido tirar o mangue?
Davi: Aqui já tava tudo embaixo da água. Aqui tudo era cheio de casa.
Pesquisadora: Mas eu digo assim, para fazer os barcos?
Davi: Se não fosse proibido, a gente de vez em quando tirava tábua do rio pra fazer.
Pesquisadora: Mas o Sr. não acha que ia destruir tudo?
Davi: Ia destruir.
Pesquisadora: Não dá pra tirar só um aqui e outro ali?
Davi: Não, isso aí não.
Pesquisadora: Aí ia destruindo?
Davi: Ia destruir.
Pesquisadora: Então, o Sr. acha que é melhor não tirar mangue?
Davi: Não tirar de jeito nenhum.
Pesquisadora: E outras árvores?
Davi: Aí tem que tirar.
Pesquisadora: O pequi tá proibido?
Davi: Tá proibido.
Pesquisadora: E pra substituir o pequi por um outro que não esteja proibido? Não tem
jeito?
Davi: Não tem jeito
115
Pesquisadora: Como é que vai fazer quando acabarem todos os pequis?
Davi: Aí, eu não sei. Porque aqui é serviço o tempo todo.
Pesquisadora: E ai? como é que vão ficar as embarcações?
Davi: Fica difícil.
Carlos Magalhães (Entrevistado em 28 de dezembro de 2010)
Pesquisadora: O Sr. acha que, por exemplo, na região da Maioba, retirar de lá uma
jaqueira, daria pra construir uma embarcação ou quantas precisava?
Carlos: Às vezes uma, dá mais de uma embarcação porque elas são ramalhudas. Elas
não são arvores que crescem só aquela espiga não, né? Às vezes, eles dão, o caule dela
dá negocio de três, no máximo, quatro metros. Elas ficam cheias de ramadas, de
galhadas. Ai, das galhadas se tira o cavername porque quando ela é grande, às vezes
uma só dá várias cavernadas.
Pesquisadora: Pelo que eu já ouvi falar, é melhor quando ela já tá morrendo. É isso?
Carlos: É. Porque o branco dela não tem utilidade nenhuma. Curva depressinha. Quando
ela já tá morrendo é porque ela já tá madura. O âmago dela já tá ultrapassando, já tá
chegando o limite dela. E quando ela vai engrossando, o âmago dela se chama o miolo,
ela vai aumentando, aumentando, até quando ela chega pertinho já da gente. Aí ela já
começa a morrer.
Pesquisadora: Então daria pra fazer tudo de jaqueira?
Carlos: É por isso que eu estou lhe falando. Ela a gente não procura porque elas tão
proibidas, né?
Pesquisadora: A jaqueira?
Carlos: É. Ela é proibida cortar. Então, às vezes o cara só corta quando ele vai precisar.
Por exemplo, ele tem uma... Por exemplo, isso aqui é meu terreno, ali era um pé de
jaqueira. Se eu fosse construir uma casa aqui, né? Eu tinha que cortar o pé de jaqueira.
E ainda,
Carlos: Se não existisse a natureza onde que a gente ia conseguir esse material? Vem da
natureza. A natureza que criou. Não foi eu, não foi o ser humano. Isso é obra da
natureza que criou esse material. As arvores, a gente vê.
Pesquisadora: E onde o Sr. compra a estopa?
Carlos: Os comércios. Os comércios que traz pra vender aqui. E o outro tipo de estopa
que a gente usa também. Hoje já tá usando muito, até deixando essa estopa de carne
(feita de madeira) de lado, até porque ela já tá difícil. Os tiradores não tão podendo mais
116
tirar. O IBAMA também está batendo em cima deles. A gente usa muito a estopa de
nylon, nylon de seda.
Anselmo Góes (Entrevistado em 30 de novembro de 2010)
Pesquisadora: Para retirar a madeira da mata? O Sr. já chegou a retirar?
Anselmo: Já cheguei a retirar de sitio, não é totalmente da mata. Mas eu também já
trabalhei na mata. Já lhe mostrei um serrote que eu tinha aqui. Eu já retirei da mata
totalmente a árvore. Já fui lá retirei a tábua da mata, tudo isso eu já fiz. Hoje não tem
mais. A gente não vai mais porque não tem como. E assim se tem alguma coisa por
aqui, não dá pra tirar porque o IBAMA não deixa.
E ainda,
Anselmo: Não. Esse lado do pequi a gente compra em depósito. Mas eu sei que ele tá
privado. Ele tá. Mas eles conseguem tirar, não sei como. Eles conseguem tirar que os
depósitos aqui tudo tem. As pranchas assim largas pra vender. Tudo não falta aí.
Ainda,
Pesquisadora: Aí conforme fosse tirando as jaqueiras, como ia ser a ideia pra elas não
acabarem? Porque o Sr. já ia tirar ela morta, né?
Anselmo: Olha tem muita. Aqui na Maioba, na Marajau, na São Jose de Ribamar tem
muita jaqueira já velha que não bota mais. Paço do Lumiar, então, tem tanta. Aquelas
jaqueiras que já tão morrendo, que não bota mais jaca. Se bota, a jaca é um bago que
não enche mais. Têm tantas que eles até cortam e chamam o corpo de bombeiros e usam
aqueles caminhão pra botar no lixo. Ou quer fazer uma casa naquele local e aquela
jaqueira tá atrapalhando, não acha pra quem dar, não acha pra quem vender. Então pega
o carro e bota fora. Não tem pra quem dar.
Pesquisadora: Então o que o Sr. estava dizendo é que tem muita, então não precisa se
preocupar em estar plantando outras.
Anselmo: Não, não. Tem demais. Eles oferecem pra gente. Às vezes até dão. “leva pra
ti, desocupe o lugar”.
Roberto Leite (Entrevistado em 03 de janeiro de 2011)
Pesquisadora: Mas tem ainda algum outro lugar por perto que ainda exista?
Roberto: Acho que não. Só a única que tem ainda é a mangueira, jaqueira já tá em
extinção. Não existe mais das velhas não, só novinha.
Pesquisadora: E quando fazia isso ainda nascia?
117
Roberto: É porque a gente só fazia isso com aquelas, como é que se diz, predominada
pra queda, no caso frágil pra queda, que tava arrancando raiz, essas era a que a gente
mexia.
Pesquisadora: E aí nascia por baixo?
Roberto: Não, aonde arranca uma não nasce outra, só se plantasse.
Pesquisadora: Mas o senhor nunca chegou a plantar?
Roberto: Não. Ninguém tinha esse tipo de preocupação, né? É porque ninguém achava
que ia acabar.
Pesquisadora: Mas se fosse depender dos carpinteiros, o senhor acha que já tinha
acabado o mangue daqui?
Roberto: Já, se ainda tivesse no uso, já tinha acabado já.
Pesquisadora: Não tem alguma ideia que o senhor acha que possa ter entre os
carpinteiros, para não perder a madeira? Para continuar usando a madeira?
Roberto: A ideia que tem, é como se diz. É comprar de fora. Que fora tem recurso de
matas né? Aqui dentro do Maranhão, São Luís não tem. Por exemplo, no Pará, em
Imperatriz. Para lá tem matas que a gente ainda pode tirar.
E ainda
Pesquisadora: E a sua relação com os recursos naturais? O que o senhor entende por
recursos naturais?
Roberto: O que eu entendo é que não se deve extrapolar no benefício da madeira.
Porque se começa a tirar muito, depois a gente fica sem. Que nem o mangue, quando a
gente tinha serraria mandava derrubar as toras de madeira, para fazer tábua, ripa,
telhado de casa, eu tirava muito. Aí depois foi sumindo. Aí agora não se vê mais
madeira para benefício. Vê árvore pequena assim, não vê mais como tinha. Até porque
naquela época era mais difícil tirar a madeira, agora já tem muita motosserra. Negócio
de padaria, as padarias acabaram tudo. Se o IBAMA não tivesse aparecido aqui, não
existia mais mangue no Maranhão. As padarias que não trabalhavam com eletricidade,
ai, é tudo na base do carvão. Aí proibiram.
Neste cenário, convém destacar o questionamento do compromisso das
“populações tradicionais” para com a conservação ambiental travado por Manuela
Carneiro da Cunha e Mauro de Almeida (2009), de modo que não podemos afirmar,
pelo observado durante a pesquisa, que na carpintaria naval artesanal de Raposa todos
os interlocutores sejam dotados de uma consciência ambiental expressiva, a ponto de
118
expressar um perfil pautado em uma predisposição ao uso sustentável da natureza. A
exemplo das falas de Roberto: “ninguém achava que ia acabar” e de que se dependesse
dos carpinteiros o mangue de Raposa já teria acabado. E a exemplo da interpretação das
soluções propostas que geralmente são no sentido de recorrer a recursos em outras
localidades que os possuem em abundância.
Porém, fatores como a escolha de espécies quando “começam a morrer” ou “ver
onde a árvore ia cair pra não prejudicar muito a natureza toda”, ou “se não fosse
proibido a gente, de vez em quando, tirava tábua do rio pra fazer” podem estar
relacionados a práticas sustentáveis. Talvez pela própria garantia dos meios de produção
- “se não existisse a natureza onde que a gente ia conseguir esse material?”.
Assim, ocorre atualmente entre os carpinteiros de Raposa uma falta de clareza
em relação ao permitido e ao proibido no que tange ao uso dos recursos naturais em
suas produções. Além das incertezas quanto às espécies que estão ou não em extinção,
muitas falas se revelam contraditórias quanto à disponibilidade dos recursos. Apesar de
grande parte das falas ensejar o fato de, atualmente, não haver retirada de madeira da
região, observamos que ainda se recorre aos recursos das redondezas - estas também
abarcadas pela APA de Miritiba e nos limites da Amazônia legal - e que, talvez, tenha
havido omissões durante as falas diante do temor da fiscalização.
Conforme visto na legislação ambiental relacionada, portar motosserra sem
licença é ilícito penal, fazer construções que deixem resíduos sem licença e controle do
órgão competente também é ilícito penal, assim como cortar ou utilizar madeira imune
ao corte também o é (caso do pequi), bem como causar destruição a mangue, deixar
resíduos da produção sujeitos a escoamento (caso dos estaleiros em contato com a água)
e utilizar recursos de Unidade de Conservação sem autorização pública.
A ferramenta de gestão que poderia descriminalizar tais condutas a partir da
avaliação do nível de impacto das atividades, que é o plano de manejo, não tem previsão
para implementação, tampouco existe outra alternativa a qual se possa recorrer, segundo
a chefe da APA em questão.
5. CONCLUSÃO
Nossa pesquisa buscou compreender no trabalho e no cotidiano de profissionais
(e aqui adotamos a categoria nativa) da carpintaria naval de Raposa – MA suas relações
119
com a natureza e recursos naturais, ou seja, em que medida a natureza contribui para a
materialidade do trabalho destes profissionais. A escolha do município se deu diante da
importância da produção naval artesanal para este e por estar situado na Amazônia legal
brasileira, bem como pela observação do fenômeno da indefinição do que é possível ou
não quanto à utilização dos recursos naturais disponíveis na região na produção naval
artesanal.
Assim, buscamos entender o que determina o uso da natureza na produção naval
artesanal, em que medida os profissionais utilizam os recursos disponíveis na região, o
que impede ou facilita e como se processa o uso de recursos naturais, se há uma
predisposição por parte dos mesmos ao uso “sustentável” destes recursos, se há um
enfrentamento diante da falta de clareza das normas do possível e se há reinvenções no
processo de produção decorrentes da atual relação dos atores sociais com a natureza.
Para tanto, apresentamos elementos constitutivos de sua identidade, a partir da
análise do uso dos recursos no processo de trabalho, expondo no que tange ao artesanato
e à tradição, elementos relativos à identificação profissional, às atividades exercidas, ao
local de trabalho, ao histórico de produção, à relação dos profissionais com os produtos
de seu trabalho, à relações sindicais, hierárquicas e suas aspirações em relação a
produção.
Identificamos ainda elementos componentes da cadeia de valor na produção
como questões referentes a processos de design, manufatura, comercialização e entrega
das embarcações, além de questões relacionadas à concorrência e demanda locais.
E discutimos partir da categoria “população tradicional” questões como o
processo e local de aprendizado e meios de transmissão do conhecimento, de modo que
pudemos observar a importância de suas referências matemáticas para o exercício da
profissão sob o prisma do etnoconhecimento.
Pudemos perceber que a apropriação dos recursos naturais como meio de
produção é ou foi, um dos componentes do processo artesanal de trabalho dos
carpinteiros navais estudados. Assim, para compreender em que medida a natureza está
relacionada ao trabalho destes profissionais, procuramos identificar paradigmas e
representações de natureza a partir de suas associações aos termos “natureza” e
“recursos naturais”.
Seguimos apresentando o meio natural local, e expusemos a legislação ambiental
a que este lugar se relaciona - o que se mostrou relevante para a compreensão da clareza
do que é ou não possível a respeito do uso dos recursos na região, e de como os atores
120
dialogam com estas normas -, expondo os usos sociais das embarcações artesanais na
região.
Em seguida, buscamos compreender a relação dos interlocutores com os
recursos utilizados no processo de trabalho, suas maneiras de agir em seu espaço
natural, suas estratégias, técnicas, e conhecimentos sobre as influências dos fatores
ambientais a seu redor. Contemplamos questões como os modos obtenção da matériaprima, incluindo retirada e ou compra de madeira, espécies que vegetais que costumam
empregar, o conhecimento sobre as espécies, técnicas, épocas e locais de retirada.
Por fim, ao abordamos a existência de uma potencial predisposição ao uso
sustentável da natureza por parte dos atores em questão e sobre possibilidades e limites
do uso dos recursos naturais.
Observamos que, de maneira geral, os profissionais utilizam tradicionalmente os
recursos disponíveis na região (Raposa e redondezas), esta utilização que se dá através
da retirada de madeira de matas e sítios, bem como de regiões de mangue. A utilização
de recursos também é notada no local de trabalho, na medida em que utilizam a água de
igarapés, rios, riachos e praias para a chegada, saída e flutuação de embarcações.
Observamos ainda a existência de conhecimentos tradicionalmente adquiridos a
respeito das espécies vegetais, suas aplicações, seus melhores períodos de retirada, suas
condições para retirada, tempo de vida e influências do calendário lunar em relação à
madeira.
Concluímos que os interlocutores demonstraram a existência de um temor em
relação à fiscalização ambiental, que, entretanto, não impede a retirada de determinadas
espécies por parte de alguns carpinteiros. O que transpareceu nas falas foi a atual
habitualidade na compra de madeira diante da alegação de impossibilidade pelo risco da
aplicação de multas ou de que não exista mais tanta oferta na região. Porém, as falas são
bastante controvertidas em relação à oferta de espécies e à supostas ameaças de
extinção.
A nós, restou a interpretação de que a compra de madeira aparentemente
descarta qualquer temor de cometimento de ilicitudes, porém, analisando a legislação
relacionada ao tipo de madeira que costumam aplicar, resta a conclusão de que a mera
aplicação de tais espécies por si só já configuraria ilícito penal.
Não observamos qualquer enfrentamento diante das incertezas quanto ao uso dos
recursos no sentido de procura de informações junto a órgãos ambientais. Pudemos
perceber que para a maioria dos interlocutores a compra de madeira facilita o trabalho,
121
mas que alguns acreditam que encarece o produto final. Vale lembrar que a grande
maioria não tem acesso a créditos que não sejam os adiantamentos dos clientes.
De posse destes dados, pudemos concluir que os carpinteiros navais de RaposaMA passam por um processo de transformação do território em que vivem e executam
suas atividades, estando, para eles, obscuras as regras do que é ou não possível se fazer
em relação aos usos sociais dos recursos tradicionalmente por eles utilizados.
Tal observação, ganha maior relevância diante do fato de que os territórios
tradicionalmente explorados para a obtenção de matéria-prima entre os carpinteiros se
localizam em área legalmente constituída como Unidade de Conservação de Uso
Sustentável, qual seja, a APA de Miritiba, criada em junho de 1992, da qual os
carpinteiros não têm conhecimento e que, até a presente data, não possui plano de
manejo ou qualquer outra ferramenta de gestão disponível na legislação relacionada.
De tudo, não podemos afirmar que na carpintaria naval artesanal de Raposa
exista um perfil pautado em uma predisposição ao uso sustentável da natureza, fator
considerado relevante no que diz respeito ao que aqui expusemos em relação às
populações tradicionais.
Porém, diversos elementos nas falas dos interlocutores podem estar relacionados
a práticas sustentáveis, especialmente aqueles que expressam suas relações de
conhecimento em relação às espécies vegetais.
Diante dessa lógica, observamos nas relações dos interlocutores com a natureza
do lugar a provisão dos meios de trabalho da carpintaria naval, bem como que suas
práticas e racionalidades produtivas estão relacionadas a seus conhecimentos quanto às
espécies vegetais tradicionalmente utilizadas, bem como a suas cosmologias e, portanto,
suas identidades.
Nos parece merecer relevância o fato de que a relação dos agentes com a
natureza, suas cosmologias e seu modo de vida diferenciado sejam fatores que
influenciam na reprodução de suas necessidades materiais, especialmente se levarmos
em consideração o processo artesanal de produção que tem reflexos para toda a
comunidade do município e adjacências, na medida em que produzem valores de uso
social econômica e culturalmente significativos para si e para outrem.
122
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127
ANEXO 1
Questões aplicadas nas entrevistas
Apresentação dos interlocutores
Nome
Gênero
Idade
Naturalidade
profissão declarada
atividades que exerce na carpintaria
informações sobre o estaleiro onde executa suas atividades
número de embarcações construídas ou reformadas
se o entrevistado possui embarcações para uso próprio
relações com sindicatos
relações de hierarquia entre os trabalhadores
se o entrevistado trocaria sua profissão por outra - em caso afirmativo, por qual seria
colocações espontâneas sobre a carpintaria naval
A dinâmica da cadeia de valor
questões referentes à obtenção de créditos ou financiamentos de qualquer natureza
processos de design
processos de manufatura
Comercialização
entrega das embarcações
Concorrência
demanda local
Processo de produção de suas embarcações
Ferramentas
128
consideram a atividade uma atividade artesanal e por quê
suas concepções de artesanato
estilo próprio de cada carpinteiro
reconhecimento dos produtos de seu trabalho
reconhecimento do trabalho de outros carpinteiros
quem dá os nomes às embarcações
aspirações para seu modo de produção
Gostariam de modificar algo no processo produtivo
Tem estaleiro próprio
Tem embarcação própria.
Gostaria de contratar empregados
Gostaria de ter um estaleiro grande
Produz tendo em vista quesitos beleza e utilidade e qual é considerado mais importante
Liberdade para início do trabalho
Habilidade para o trabalho - papéis das mãos e da cabeça nesse sentido
Jornada de trabalho
Modo de obtenção e transmissão dos conhecimentos
influência da matemática em seu trabalho
vínculo dos carpinteiros navais com o município
concepções sobre a natureza
concepções sobre os recursos naturais
forma com a qual lidam com o ambiente
espécies vegetais que costumam empregar
a forma de aquisição da madeira
carpinteiros quais as técnicas utilizadas
época da retirada da madeira
conhecimento sobre o material
compra de madeira
preço da folha de compensado
precisou tirar madeira da mata pra fazer reforma
129
tipo de madeira que costumava pegar (da mata)
onde costumava pega
encontrava na região da Raposa
manusear madeira na mata
de suas práticas nasciam novas árvores
nasciam mudas por debaixo árvores retiradas
chegou a plantar mudas
preocupação no replantio
diferença no uso de madeira em folha ou em toras
relação com o calendário lunar
quanto tempo a madeira leva pra crescer
quais espécies usadas na produção de embarcações brotam após o corte
Número de jaqueiras necessárias para na construção de uma biana
Normas ambientais relacionadas
quais são são as normas de fiscalização pra essas comunidades tradicionais
ferramentas que favorecem o uso sustentável pela comunidade
existência de plano de manejo
existência de conselho gestor da unidade
há acordos para o uso dos recursos
como são executadas as multas
corte do mangue
corte do pequi
substituição das espécies
sugestões para que não se perca a madeira disponível na região
.
130
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RAÍSSA MOREIRA LIMA MENDES MEIOS E AMBIENTES: natureza