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de 24 a 30 de janeiro de 2013
editorial
Dez anos de teimosia!
O NOSSO JORNAL está completando – dia 25 de janeiro – dez anos de
atividades ininterruptas. Todas as semanas, disciplinadamente, sem nenhuma falha, o jornal foi para as
bancas, para os nossos assinantes,
para os cursos de formação e disponibilizado em nossa pagina na internet (www.brasildefato.com.br).
Sobreviver dez anos, como imprensa popular, comprometida com
a classe trabalhadora e a visão de esquerda da luta de classes, é, sem dúvida, uma vitória. Um feito fantástico, em qualquer país do mundo, ainda mais em tempos de neoliberalismo, hegemonia do capital financeiro
e internacional, refluxo do movimento de massas e derrota ideológica das
diversas correntes de esquerda na
década de 1990.
Sobreviver, aqui no Brasil, é um
feito ainda maior. A sociedade brasileira está fundada em graves injustiças histórico-estruturais, que determinam sua condição de desigualdade
social e econômica, injustiças sociais,
pobreza material e cultural, violência
social, ausência de direitos públicos
e uma democracia burguesa capenga e hipócrita, que nega os principais
direitos humanos e oportunidades à
imensa maioria dos seus cidadãos.
Esses problemas estruturais se caracterizam pela concentração da propriedade da terra e dos bens da natureza (minérios, florestas, água, energia). Concentração da riqueza acumulada por uma minoria ao longo
de 500 anos. Concentração da renda, pelas graves distorções que ainda
temos ao distribuir a produção entre
trabalho e capital. Concentração do
patrimônio das cidades, em que uma
minoria controla os melhores edifícios, condomínios, o transporte público e os espaços da cidade. Ou seja,
negam o direito da ampla maioria da
população ter moradia digna e conviver democraticamente na cidade.
A educação como um direito fundamental ao conhecimento, se universalizou no ensino fundamental,
mas mantém 14 milhões de adultos
analfabetos. E abre as portas da universidade para apenas 10% de nossa
juventude.
Nossos empregos têm aumentado,
porém cada vez mais precarizados
nos direitos trabalhistas. Nos envergonha sermos o país de maior número de empregados domésticos, sendo
que 80% deles não têm direitos sociais e previdenciários.
A democracia é capenga e se resume ao direito do povo votar. E o Estado todo poderoso continua sendo “pai e mãe” dos ricos, que o utilizam para manter privilégios e acessar recursos públicos na sua acumulação de riqueza, que destina todo ano quase 30% de toda arrecadação pública para pagamento de juros
aos banqueiros. E, entre essas mazelas, a concentração da propriedade
e do direito a comunicação de massa por apenas sete grupos econômicos, transformou a mídia brasileira num verdadeiro partido de dominação ideológica burguesa na sociedade. Alem de fonte de acumulação
de capital.
Foi nessas circunstâncias que o
Brasil de Fato sobreviveu dez anos.
Um feito heroico, que somente foi
possível porque ao longo desses anos
conseguimos manter uma linha editorial fiel à classe trabalhadora, sem
Até agora resistimos
teimosamente.
Porém estamos
longe de nosso
sonho, de atuar
de maneira
mais incisiva na
formação da classe
trabalhadora e na
luta ideológica da
sociedade brasileira
cair no adesismo governamental ou
no sectarismo esquerdista, do estilo
“todos estão errados, menos nós”!
Sobrevivemos graças à fidelidade aos movimentos sociais, populares e sindicais, que lhe deram sustentação política, organizacional e que o
utilizaram como instrumento de luta ideológica.
Sobrevivemos graças aos milhares
de militantes sociais esparramados
pelo país, que de forma voluntaria,
aqui e acolá, o carregam e o utilizam.
Sobrevivemos graças a um coletivo de profissionais do jornalismo, em
várias áreas, que de forma militante, abnegada, sacrificada, colocou seu
trabalho e sua sabedoria a serviço
crônica
opinião João Capiberibe
dos trabalhadores, enfrentando todo
tipo de dificuldades.
Enfim, tivemos muitos problemas e muitas pequenas vitórias. Mas
a maior delas é ter sobrevivido, por
dez anos.
Nossos desafios
Até agora resistimos teimosamente. Porém estamos longe de nosso
sonho, de atuar de maneira mais incisiva na formação da classe trabalhadora e na luta ideológica da sociedade brasileira. Sonhávamos com
tiragens massivas semanais, disputar nas bancas e até transformar-se
em diário. Não conseguimos. Fomos
boicotados de todas as formas. Enfrentamos a luta de classes na prática, com boicote de distribuição, de
publicidade e de difusão. Mas sofremos sobretudo, pelo longo período
histórico de apatia das massas e do
refluxo das mobilizações populares,
que poderiam ter retomado com as
vitórias eleitorais anti-neoliberais.
Nos enganamos! Ainda estamos longe do reascenso.
Procuramos fazer edições especiais, massivas, temáticas ou em disputas políticas contundentes. E nisso chegamos a ter edições de mais de
um milhão de exemplares, que é um
feito para qualquer veiculo de comunicação impresso.
Mas não podemos “chorar o leite derramado”, como se diz no interior. Precisamos redobrar os esforços, aglutinar mais energias e pensar
o jornal para os próximos dez anos.
Em dezembro passado realizamos
uma reunião de balanço, com todas
as forças populares que sustentam o
jornal. Decidimos fazer vários ajus-
tes. Entre eles, articular mais as nossas energias entre o jornal impresso
semanal, a página na internet e a RadioagênciaNP, que passa a se chamar
Radioagência Brasil de Fato. Devemos impulsionar de forma mais sistemática o boletim semanal de notícias, enviado pela internet para mais
de cem mil pessoas, a maioria militantes e formadores de opinião. Também precisamos ter mais correspondentes nos estados e mais colados às
necessidades comunicacionais dos
movimentos sociais.
Planejamos também dar um salto de qualidade, com um novo projeto gráfico a partir de março, com o
formato de tabloide germânico. Também vamos construir coletivamente, com todas as forças populares que
se interessarem, edição regional do
Brasil de Fato, massiva, semanal,
em formato tabloide, para ser distribuído gratuitamente nos centros de
aglomeração de trabalhadores, como
metrô, central de ônibus, trens e nas
aglomerações da juventude trabalhadora das grandes cidades. Esperamos
que esse projeto se concretize ainda
neste primeiro semestre em algumas
capitais brasileiras.
Temos certeza que, apesar de todas as dificuldades, poderemos superá-las, avançar para que os meios de
comunicação articulados ao redor do
Brasil de Fato tenham vida longa,
e possamos comemorar no futuro,
vinte, trinta anos de atividades.
Um grande abraço a cada um e a
todos e todas que nesses dez anos, se
envolveram de alguma forma, com
o projeto. Ele somente foi possível,
graças à teimosia de vocês.
Longa vida ao Brasil de Fato!
Luiz Ricardo Leitão
Martin Rosenberg/CC
E daqui a dez anos?
À opinião pública
O ANO POLÍTICO parlamentar começa em 1º de
fevereiro de 2013 com a
eleição dos Presidentes do
Senado e da Câmara de
Deputados. O que devemos
decidir é se aceitamos mais
do mesmo, ou ao contrário, se pretendemos interferir na sucessão visando
oxigenar o debate político,
apoiando-se no significativo respaldo recebido dos
cidadãos nas urnas.
É que a questão envolve
a mudança de práticas não
republicanas, um jogo de
cartas marcadas que impede a oxigenação do Poder Legislativo, haja vista,
que as duas presidências
são ocupadas em rodízio
desde o primeiro mandato de Lula apenas por dois
partidos da base de tantas
legendas partidárias.
Foram gestões atrasadas, equivocadas e práticas nada republicanas que
fizeram do Legislativo um
poder desacreditado pela
sociedade.
Na Câmara, existem candidatos em confronto com
essa mesmice.
Mas no Senado estamos
inertes, observando as manobras. A inação pode conduzir a Casa às antigas práticas e desencontros.
Ora, oxigenar o Congresso Nacional é mais do que
necessário. Uma simples
análise do desempenho nos
últimos anos, particularmente na última legislatura (2011-2012), demonstra à sociedade que estamos
muito aquém daquilo que
a população pode esperar.
Esse necessário pilar da democracia está desmoralizado aos olhos da população
Que o novo
parlamento
seja resultante
de um
consenso
entre os
parlamentares
que não mais aceita desmandos e patranhas: morosidade, 14º e 15º salários,
CPIs inconclusas, 3060 vetos protelados, não votação
de Orçamento e FPE, privilégios, entre tantos outros
problemas.
O Congresso Nacional
também está desmoralizado diante das duas outras
instituições: o Judiciário e o
Executivo.
Refém do Executivo e
vendo a Suprema Corte
provocada a consertar seus
erros, o Parlamento está
apequenado e necessita de
uma nova pauta que privilegie mudanças radicais no
modo de legislar.
Desde a redemocratização, o Executivo transformou o Legislativo em caixa de ressonância de suas
ações, em correia de transmissão dos interesses dos
Palácios, diria Lênin. O falso “franciscanismo”, erigido
em pedra angular de apoio
ao executivo, em parte graças a essas malditas emendas parlamentares, é um
exemplo acabado da subordinação.
Agora, foi a vez de o Judiciário, ao ser provocado,
desmoralizar o Legislativo.
Bastou um membro do
STF, em decisão monocrática, lembrar os parlamentares que eles não cumpriram
com o regimento, ao protelar desde 2000, nada menos
que 3060 vetos, para que a
desmoralização alcançasse o
ápice e se criasse uma crise
institucional. A “judicialização” do Legislativo caminha
rapidamente.
Ora, nós temos condições
de propor outra dinâmica que vise resgatar o Parlamento, restaurar a dignidade e a independência do
Congresso Nacional. É necessário abrir a discussão
com todas as sensibilidades políticas que fazem parte da base do governo para
se diagnosticar que tipo de
Parlamento nós queremos.
Para tal, é necessário intensificar a discussão com os
parlamentares que se opõem
a práticas retrógradas de
maneira a fortalecer o Parlamento com vistas à formulação de uma proposta inovadora, democrática e coadunada com os interesses
do povo. Que o novo parlamento seja resultante de um
consenso entre os parlamentares que pretendem modificar o atual quadro Legislativo. Inclusive para afirmar
que temos condições de assumir maiores responsabilidades legislativas.
Caso contrário, dia 1º de
fevereiro poderemos ter como presidentes personagens
pouco habilitados a representar os parlamentares, para não dizer “qualificados”,
pois é disso que se trata.
João Capiberibe
é senador (PSB-AP)
MUITOS NEM SEQUER SE DERAM CONTA, mas já faz uma década que veio a ser lavrada, em pleno Fórum Social Mundial, a certidão de nascimento deste brioso semanário, o nosso dileto Brasil de
Fato. Filho de valorosos combatentes do movimento social e de pensadores engajados de Bruzundanga, o rebento bem que poderia ter como padrinho o saudoso João Cabral de Melo Neto: afinal, ele
é tinhoso como aquele Severino que se equilibrava a custo sobre as pernas finas, com sangue de muito pouca tinta – e, se não morreu na infância, tampouco parece fadado a perecer nos próximos dez
anos, em que as lutas populares só tendem a recrudescer no país...
Este cronista não nasceu em Delfos, na Grécia mitológica, nem muito menos possui o dom da
profecia, por isso me furto a fazer previsões sobre o futuro. Pensando bem, é até melhor invocar o
anjo da história (o Angelus Novus, de Paul Klee, sobre o qual nos fala Walter Benjamin), de olhos
arregalados e asas bem abertas, enquanto voltamos nosso rosto para o passado e o encaramos fixamente antes de arremeter para a nossa missão no futuro. Relembrando 2003, em pleno 2013, vale
a pena indagar, como no belo samba da União da Ilha: o que será o amanhã, caríssimos leitores do
semanário?
Dez anos atrás, no limiar do século 21, a barca neoliberal já fazia água por todos os países da Pátria Grande, mas Tio Sam ainda vendia rifas da Alca ao sul do Rio Bravo. Hoje, a proposta de ‘Livre
Comércio’ ianque é coisa do passado e o projeto bolivariano de unidade latino-americana não soa
mais como mera utopia aos nossos ouvidos. E daqui a dez anos, por onde andará o carro alegre da
História?
Recomendo que não busquem respostas nos pasquins do capital – eles erram bisonhamente...
Aliás, quantas vezes a mídia previu ou decretou a morte de Fidel Castro desde 2003? Houve até
desfile em Miami, após a operação do Comandante. Só de pirraça, ele decidiu sobreviver e vai candidatar-se a deputado em 2013...
Não importa a bandeira: saiba que o Brasil de Fato e
este cronista estarão ao seu lado nos próximos dez anos
Que dizer então de Chávez, morto e sepultado no Twitter, em meio a sua luta contra o câncer? Desde 2003, quantas vezes a grande imprensa o chamou de “ditador” ou “tirano”, não obstante as inúmeras eleições e referendos realizados livremente na Venezuela? Agora, as hienas globais festejam
sua via crucis em um hospital cubano, supondo que seja o fim de uma revolução... Mas daqui a dez
anos, que lições o povo herdeiro de Bolívar reservará a seus inimigos – e, sobretudo, a seus amigos?
Quem augura a morte alheia deveria olhar para os seus pés de barro. Em 2003, W. Bush seguia em
“guerra contra o terror”, invadindo e devastando nações do Oriente, sem ocultar, porém, sua idiotice e o pasmo com os tiros em Columbine. De 1996 a 2007, houve 41 chacinas em escolas ianques – e
o bom-mulato Obama, ora reeleito, já sabe que sua promessa de controle de armas não terá apoio sequer dos democratas no Congresso, lacaio da poderosa indústria bélica dos EUA. E em 2023, mochilas e coletes à prova de bala (a atual ‘solução’ do mercado) ainda serão a saída para as crianças de Tio
Sam?
Cá em Bruzundanga, uma década também pode abrigar surpresas para todos. Em 2003, por exemplo, após oito anos de FHC, Lulinha Paz & Amor assumia o governo, tratando de conciliar, a seu jeito,
o apetite insaciável da burguesia e as bandeiras dos trabalhadores. A economia cresceu, a pobreza se
atenuou, mas a concentração de renda ampliou-se, para deleite dos monopólios e do agronegócio. A
cigana saberia dizer se Kátia Abreu ou João Pedro Stedile será o Ministro da Agricultura em 2023?
E o que dizer do meu Rio de Janeiro? Em 2003, Little Rose (Rosinha, para os íntimos) sucedia Little Boy (Garotinho) no governo mafioso do PMDB. Agora, liderada pelo playboy Cabral, é a “tchurma da bandana” que dá as cartas no palácio, para alegria das empreiteiras e escroques da corte. Ninguém se arrisca a prever quantas obras voltarão a assolar o Maracanã, mas suspeito que, farto de tanta bandalha, o povo não mais permitirá que escolas e centros esportivos sejam demolidos para virar
estacionamento...
E você, meu caro leitor, que retrospectiva e que projeções gostaria de fazer? Talvez falte papel para tantos temas relevantes, sejam as questões ambientais do planeta, seja a luta pela reforma agrária, assim como a resistência contra a homofobia ou as agressões à mulher. Não importa a bandeira: saiba que o Brasil de Fato e este cronista estarão ao seu lado nos próximos dez anos. Axé,
Bruzundanga!
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela
Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de
Lima Barreto – o rebelde imprescindível.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti •
Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo
(Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam),
João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni •
Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas:
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Conselho Editorial: Angélica Fernandes, Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser,
José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Pinheiro, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente
dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 24 a 30 de janeiro de 2013
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Clarisse Goulart Paradis
instantâneo
A “regulamentação”
da prostituição
Reprodução
Alipio Freire
Reflexão sobre China e Cuba
MUITOS JOVENS TÊM me perguntado frequentemente sobre os problemas enfrentados e os rumos escolhidos
por Cuba e China para enfrentá-los.
Abandonaram o socialismo?
Costumo responder a essas inquietações com um aparente paradoxo: os problemas enfrentados por esses países não significam que seus respectivos países e líderes tenham necessariamente abandonado uma perspectiva de
construção do socialismo. Trata-se apenas de uma comprovação das teses de Karl Marx e Friedrich Engels: países de economia fundamentalmente camponesa não fazem revoluções socialistas. O socialismo só é possível em
sociedades altamente industrializadas.
Tanto tinham claro os comunistas chineses de 1949 –
quando tomaram o poder em Pequim – que, ao novo país,
nomearam República Popular da China, e não República Socialista.
Essa clareza demonstrou também Ernesto Che Guevara que, em meados dos anos de 1960, durante o Congresso do PC Cubano, defendeu tese (derrotada pelo Congresso) de um desenvolvimento econômico da Ilha a partir
de uma política de industrialização. Derrotada a tese, na
concepção de Guevara restava apenas tentar a revolução
em outros países do Continente – alternativa para romper
o isolamento econômico de Havana e impedir sua dependência de uma nova Metrópole, a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS.
Para além da discussão sobre a viabilidade ou não do
socialismo em um único país, as impossibilidades estruturais para a construção do socialismo na China e Cuba ficam claras.
Durante o período de Mao Zedong, a China buscou
evitar a saída de um capitalismo de Estado, conforme
criticava (não sem razão) a política do premiê Nikita
Kruschev. Daí os dirigentes da Revolução Cultural Proletária dos anos 1960 se referirem a Deng Xaoping como o Kruschev Chinês Nº 2. E foi exatamente o grupo
liderado por Deng que assumiu a direção de Pequim,
com um golpe de Estado desfechado após a morte de
Mao (1976).
Problemas dessa mesma ordem afetaram os rumos do
Vietnã, Albânia, Argélia e de tantos outros países que fizeram revoluções no século 20.
Ou seja, embora o socialismo possa ser nosso objeto de
desejo imediato (como todo desejo), sua construção não
depende apenas da nossa vontade.
Roberto Malvezzi (Gogó)
O Brasil dos fatos
FOI DOM TOMÁS BALDUÍNO que, numa reunião da
CPT nacional, nos falou pela primeira vez da criação do
Brasil de Fato. Agora, dez anos depois, me recordo daquela conversa, como que dita de uma maneira totalmente informal.
Olhando para trás, recordo-me do jornalista Raimundo
Pereira, lá pela década de 1970, nos falando na necessidade de ter um “veículo de comunicação diferente da grande
mídia”. Ele iria criar o jornal Movimento que, junto com
o jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, seriam praticamente nossos únicos instrumentos de acesso a uma opinião diferente da pronunciada pelo regime.
Mesmo o Estadão e a Folha, quando nos traziam páginas brancas ou poemas de Camões no lugar das matérias,
não tinham uma visão diferenciada na essência da decidida pelo regime.
Hoje o mundo mudou, sobretudo pela chegada da internet. Esses grandes meios de comunicação brasileiros e internacionais acostumados a decidir até quem seria o prefeito de Sucupira, ainda têm a hegemonia, mas não a úl-
tima – muito menos a exclusiva - palavra sobre o mundo
que vivemos. Essa é a razão de certo desespero midiático
revelado pelos nossos grandes meios de comunicação.
Por isso, minha modesta opinião é que eles também têm
seu lugar, mesmo que discordemos de suas linhas editoriais. Porém, mesmo ali há sempre boas matérias e bons
jornalistas. O melhor é termos outros meios, que possam
discutir o país, o mundo, inclusive a hegemonia desses
meios tradicionais conservadores.
O Brasil de Fato tem subsistido heroicamente. Um
bom jornal, particularmente de esquerda, não pode ser
panfletário, dogmático e muito menos chapa branca.
Tem que ter a coragem de discutir o capital, mas também as contradições das esquerdas e os grandes desafios
do mundo atual.
Os teólogos da libertação costumam dizer que “cada ponto de vista é a vista de um ponto”. Que esse Brasil dos fatos continue nos revelando o mundo sob o ângulo dos injustiçados, como uma bela e emblemática foto de João Zinclar.
NOS ÚLTIMOS DIAS, com a aproximação da Copa do
Mundo e com a execução de todos os seus preparativos, o
projeto de lei do Dep. Jean Wyllys esteve em pauta, provocado pelo discurso da “regulamentação” da prostituição, envolto na necessidade de estruturar a indústria do
sexo para o aumento do turismo no próximo período. A
partir disso, li os poucos artigos que constam no seu conteúdo. Parece banal, mas um PL que trata de um assunto tão complexo, que pretende “resolver” o problema das
pessoas em situação de prostituição, contém apenas seis
artigos.
Existem alguns pontos perversos nesse projeto. Um deles
diz respeito à categorização da exploração sexual. Segundo
o mesmo há esse tipo de exploração quando não houver pagamento do “serviço sexual”, quando a prostituição for forçada, mediante grave ameaça ou violência, ou quando uma
terceira pessoa apreender entre 50% e 100% do valor do
programa. Essa categorização tem duas conseqüências graves – ela legaliza o “cafetão” como essa terceira pessoa que
apreende até 50% do valor do programa, algo que ainda não
era formalizado no contexto brasileiro e deturpa a ideia de
exploração sexual.
Ao separar a prostituição da exploração sexual, o serviço
sexual livre, do serviço sexual forçado, há uma intenção de
reconhecer de maneira oficial a prostituição como uma solução possível para os problemas das mulheres, de legitimar o discurso da profissão do sexo como um disfarce para
despenalização da cafetinagem. Isso alimenta um sistema
lucrativo, nacional e internacional de exploração das mulheres, em busca de alimentar uma sexualidade masculina,
construída como insaciável, incontrolável, irresponsável e
que, portanto, necessita a todo o tempo da disponibilidade
de corpos femininos em sua maioria, para a “satisfação” do
seu querer sexual. Como nos mostra o verbete sobre o tema
no Dicionário Crítico do Feminismo:
“O grande mercado liberal assimila e monetariza os prazeres: a lógica consumista invade todos os domínios da vida e a expressão ‘trabalhadoras do sexo’ legitima a ideia
de que a mercadoria sexo se tornou um dado indiscutível da economia moderna. Toda noção ética é então varrida, toda relação de dominação é engolfada por uma lógica individualista. A prostituição se encontra assim excluída das formas de violência contra as mulheres” (Legardinier, 2009, p.200).
Além de legalizar a ação dos
cafetões, o projeto de lei prevê o
livre funcionamento das casas de
prostituição
Além de legalizar a ação dos cafetões, o projeto de lei prevê o livre funcionamento das casas de prostituição. Para não
dizer que o projeto não prevê nada sobre a vida e situação
das pessoas em prostituição, ele garante a prestação de serviços em cooperativas ou de maneira autônoma e aposentadoria especial, após 25 anos de serviço.
Nesse contexto, o projeto pouco contribui para a vida das
mulheres prostitutas. O Ministério do Trabalho já reconhece a prostituição como ocupação regular e a previdência social assegura o seu direito de contribuir para o INSS (não
em regime especial como prevê a lei). O que vale ser chamado a atenção é que esta lei não visa melhorar a vida das mulheres prostitutas, não prevê nenhum tipo de política pública específica, que contribua para que essas mulheres não tenham que ser constantemente vítimas de insultos, violência
e marginalização. Ao contrário de promover os direitos e a
autonomia econômica das prostitutas, o projeto visa suprir
uma necessidade da indústria sexual, que juntamente com
as grandes corporações, buscam utilizar o corpo das mulheres para faturar altos montantes em grandes eventos como
a Copa do Mundo.
Ao normalizarmos a ideia da prostituição na vivência
social, estamos contribuindo para mascarar as formas de
violência contra as mulheres, para naturalizar a ideia de
dominação masculina e para alimentar um sistema econômico extremamente articulado e lucrativo que explora
o corpo de mulheres e meninas. Não é por acaso que o P.L
circula nesta conjuntura e envolto do discurso da regulamentação. Não é por acaso que o discurso de direitos das
prostitutas só aparece em tempos de Copa do Mundo. Ao
contrário desse projeto de lei, é preciso garantir uma vida
sem qualquer tipo de violência para todas as mulheres, é
preciso que o exercício da nossa sexualidade esteja livre do
estigma da mercantilização dos nossos corpos e também
do cerceamento e moralismo religioso. Nem santas, nem
putas, buscamos que todas as mulheres sejam livres!
Clarisse Goulart Paradis é militante da Marcha Mundial das
Mulheres em Minas Gerais.
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de 24 a 30 de janeiro de 2013
brasil
Joka Madruga
A mídia sindical e seus desafios
Militantes do MST e da Via Campesina lêem o Brasil de Fato: jornalismo plural para o trabalhador
DEZ ANOS
Brasil de Fato encontra
espaço dentro da
estratégia de comunicação
dos sindicatos, marcada
pela necessidade de temas
que apontem um projeto
amplo de esquerda
Pedro Carrano
de Curitiba (PR)
PARECE DIFÍCIL pensar numa comunicação de esquerda, ligada à vida dos trabalhadores e trabalhadoras e, ao mesmo
tempo, com grande tiragem e alcance.
Há exemplos dentro da história do movimento operário no Brasil. O Partido
Comunista Brasileiro, em 1946, possuía
oito jornais diários nas grandes capitais
brasileiras. Muito antes, o jornal Avanti!, escrito em italiano para os trabalhadores imigrantes de São Paulo, durou de
1902 a 1908, também com tiragem impressa diária. Algo certamente distante
da realidade atual, mas não impossível.
No período das lutas entre os anos de
1970 e 1980, firmaram-se tabloides como o diário Tribuna Metalúrgica, do
Sindicato de Metalúrgicos do ABC, ou o
standard Folha Bancária, do Sindicato
dos Bancários de São Paulo, ferramentas
de comunicação sindical para categorias
combativas e com grande contigente de
pessoas. Neste caso, porém, estamos falando de veículos de comunicação que
atingem uma categoria específica.
“Os novos trabalhadores não
querem mais saber desse discurso
velho, eles querem respostas para
os problemas concretos”
Os dez anos da experiência do jornal Brasil de Fato levantam o debate
da relação entre as mídias já existentes
no interior das entidades e a experiência de produção de um semanário, que
propõe um projeto amplo de esquerda.
De acordo com comunicadores e líderes
sindicais, as ferramentas de comunicação sindical são inúmeras e têm se profissionalizado. Porém, hoje são insuficientes para a politização da classe trabalhadora e superação de uma visão de
mundo economicista.
Na opinião de Alessandra Oliveira, da
direção da CUT-Paraná, o Brasil de
Fato cumpre uma lacuna dentro da comunicação na vida dos sindicatos, ape-
sar da carência de um periódico diário
e de maior envolvimento das lideranças
sindicais na questão. “O Brasil de Fato é o jornal para fazer o contraponto
com a grande mídia (...) Temos revistas,
mas ainda não é um nicho onde o movimento sindical tem investido, o único impresso que existe neste sentido é o
Brasil de Fato”, reflete a dirigente.
Essa reflexão acontece no contexto
quando o movimento sindical ressurge na cena política. É um desafio da esquerda dialogar com uma classe trabalhadora jovem e com experiência recente de lutas econômicas e paralisações.
“Os novos trabalhadores não querem
mais saber desse discurso velho, eles
querem respostas para os problemas
concretos. E o sindicalismo tem que
dar essa resposta. Depois, no cotidiano, precisaria, via comunicação, ir ampliando o universo dessa gente. Os trabalhadores querem saber quando vão
ganhar mais. Seria o sindicato a força
que deveria mostrar que a vida é mais
que salário, mas não faz isso”, critica a
jornalista Elaine Tavares.
Periodicidade
O jornalista e educador Vito Giannotti percorre o Brasil assessorando sindicatos a aperfeiçoar sua comunicação
com a base. O primeiro aspecto apontado pelo comunicador é a periodicidade de um veículo para os trabalhadores.
Neste sentido, Giannotti defende que a
Mídia sindical, maior
profissionalização e precarização
Pesquisa sobre
imprensa sindical em
Curitiba revela uso de
ferramentas digitais.
Setor passou a ser fonte e
pautar a mídia comercial
de Curitiba (PR)
Voltada para os trabalhadores, a imprensa sindical é marcada pelo caráter
dialógico com a categoria de trabalhadores, em comparação com a mídia comercial, cujo conteúdo é transmitido de
modo mais verticalizado. Nos anos recentes, a comunicação sindical adota
um discurso de crediblidade informativa em lugar de um texto mais opinativo, com poucos elementos e dados.
Um elemento da pesquisa do jornalista
Guilherme Carvalho, doutor em sociologia pela Unesp, é apontar como, nos
anos recentes, o sindicato tornou-se
uma fonte de informação. “Os sindicatos passam a perceber a importância da
credibilidade da informação”, afirma.
Esta é uma das conclusões da pesquisa de Carvalho com 21 jornalistas de
entidades sindicais em Curitiba. O dirigente enxerga hoje uma profissionalização da comunicação nos sindicatos e
maior apropriação das tecnologias digitais. “Fiz um levantamento da imprensa sindical e dos profissionais. O que
eu identifiquei é o seguinte: existe um
crescimento significativo na quantidade de meios de comunicação usados pelos sindicatos, antes era só o jornal impresso, hoje juntamente o site, o boletim, a web rádio, a TV na internet, que
diversificaram a atividade, o que é interessante”, defende Carvalho.
“Existe um
crescimento
significativo na
quantidade de meios
de comunicação
usados pelos
sindicatos, antes era
só o jornal impresso”
Porém, o pesquisador aponta que os
jornalistas hoje acumulam uma série
de funções, sendo que 83,3% dos trabalhadores entrevistados realizam horas-extras em seus sindicatos, o que
indica excesso de trabalho para realizar várias funções, tais como assessoria, fotografia, edição de áudio e vídeo,
etc – sem contratações e estrutura para
tal. “Deste modo, há um risco maior de
erros em conteúdos produzidos, como
informações distorcidas, falta de apuração de dados, fotografias mal feitas,
erros de digitação e diagramação, en-
tre outros problemas que aparecem como resultado de uma jornada de trabalho carregada de estresse e polivalente”, descreve.
Jornal impresso
Certamente, os sindicatos são o espaço com maior potencial para uma política de comunicação voltada para a classe
trabalhadora, ainda que a comunicação
hoje não se limite apenas ao material
impresso. Embora o Censo de 2001 do
IBGE já apontasse que 30% das 15961
entidades contavam com sistema de boletim eletrônico e 38% com site próprio,
tal fato ainda não determinou a centralidade do sindicato nas produções impressas. “Por outro lado, é possível perceber a manutenção de meios tradicionais do sindicalismo, como o jornal impresso, jornal mural, cartazes e panfletos”, reflete Carvalho em artigo intitulado Muito Além do jornal: nova imprensa sindical.
A mídia impressa continua sendo uma
forma de comunicação importante, na
avaliação de Vito Giannotti, que não
concorda que, com as tecnologias digitais, a função do jornal impresso estaria esgotada. “No Brasil, o jornal impresso ainda não chegou para as pessoas,
não há como discutir que ele acabou. O
maior jornal do país não chega a 300 mil
exemplares, o que significa uma pequena parcela da população”, define. O debate sobre a pouca leitura do brasileiro
tampouco serve de justificativa, na avaliação de Giannotti, que cita o êxito que
os jornais gratuitos estão obtendo, o que
mostra que o jornal impresso pode contar com um amplo público leitor. (PC)
mídia sindical e de esquerda ressentese de um informativo diário. O Brasil
de Fato, na sua avaliação, cumpre um
papel de revista, realizando uma síntese
do que aconteceu na semana.
“Os trabalhadores querem
saber quando vão ganhar
mais. Seria o sindicato a
força que deveria mostrar
que a vida é mais que salário,
mas não faz isso”
O educador, idealizador do Núcleo Piratininga de Comunicação, aponta que
um veículo com a característica do Brasil de Fato faz sentido no meio sindical, uma vez que trabalha “todos os temas da sociedade” e não apenas assuntos de ordem econômica. “Isso o Brasil de Fato se propõe a fazer: fala dos
agrotóxicos, da Venezuela, da luta das
mulheres etc. Qual a sua característica? Ele é plural, para todos os sindicatos, não interessa a qual sindicato, mas
sim os temas que vamos tratar: a reforma agrária, a luta contra a homofobia, e
nós de esquerda temos que falar desses
temas aos trabalhadores”, apregoa.
Papel aglutinador
Em uma década de existência, por meio de
edições especiais com tiragens massivas, o
jornal Brasil de Fato foi a ferramenta de
comunicação usada em campanhas tais como
“A Vale é Nossa” - pela anulação do leilão da
empresa Vale, realizada em 2007 – “O Petróleo tem que ser nosso”, e em momentos como
o segundo turno das eleições presidenciais de
2010. Em meio à fragmentação das organizações de esquerda, o jornal nesses momentos
cumpriu o papel de aglutinação das forças de
esquerda, no trabalho de agitação e contraposição ao discurso oficial. “A diversidade ideológica existe e deve ser considerada natural,
mas não é um obstáculo intransponível à unidade. Ao refletir esta diversidade abordando as divergências com espírito democrático, aberto e plural, o jornal cumpre um papel
inegavelmente positivo neste sentido”, afirma
Wagner Gomes, presidente da Central dos
Trabalhadores do Brasil (CTB). (PC)
brasil
de 24 a 30 de janeiro de 2013
5
Palavra nossa de cada dia
Rogério Tomaz Jr./CC
COMUNICAÇÃO Veículos da mídia
alternativa e blogs na internet
criam escudo contra artilharia de
pensamento único dos grandes
meios de comunicação
Pedro Rafael
de Brasília (DF)
DAQUI A POUCO mais de dois anos, o
Brasil terá contabilizado três décadas
de retorno à democracia. Avanços são
inegáveis. Porém, algumas permanências estruturais ainda travam o desenvolvimento de uma verdadeira cultura
de liberdade social no país. Uma delas
é o debate público proporcionado pelos
meios de comunicação. Enclave de poucos e grandes grupos econômicos, a mídia ainda é um campo com baixa diversidade de ideias.
Na semana em que o Brasil de Fato completa 10 anos de fundação com
circulação semanal ininterrupta, editores, jornalistas e blogueiros que constroem o cotidiano de alguns dos mais importantes veículos alternativos de comunicação analisam os avanços e desafios
do setor. “O Brasil tem uma concentração muito grande dos meios de comunicação (jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV) nas mãos de alguns poucos
empresários. Isso atenta contra a construção de uma sociedade democrática,
pois a democracia pressupõe que todas
as correntes de opinião e todos os segmentos sociais tenham acesso à comunicação de massas”, critica o editor-chefe
da revista Caros Amigos, Hamilton Octavio de Souza.
“A grande mídia, os veículos
de comunicação de massa,
têm a importante função de
definir a agenda nacional”
Jornalismo crítico
À frente da publicação mensal desde 2009, Hamilton também define uma
ética para a mídia alternativa ou, como
prefere dizer, a “imprensa contra hegemônica”. “É aquela que não está no jogo
do mercado nem defende as políticas das
classes dominantes, mas que faz críticas
ao sistema e aposta nas transformações
sociais e políticas na construção de um
Brasil mais justo e igualitário”. A Caros
Amigos foi fundada em 1997, justamente no auge do neoliberalismo do governo
Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
“Na época, toda a imprensa estava entusiasmada com o modelo econômico e
não havia praticamente nenhum veículo com críticas à globalização neoliberal.
A Caros Amigos reuniu jornalistas, publicitários e intelectuais sob a liderança do jornalista Sérgio de Souza, que foi
editor até 2008, quando faleceu. A proposta editorial previa uma grande entrevista a cada edição, uma ou outra reportagem de maior fôlego e muitos artigos
– com uma grande equipe de colaboradores de diferentes posições políticas,
mas com total liberdade crítica. A fórmula deu certo, a revista pegou, teve um
bom crescimento de vendas e de aceitação na juventude e no público mais exigente. A marca era de uma revista crítica ao governo FHC e alternativa ao neoliberalismo. O pico de venda em bancas – 33 mil exemplares – aconteceu em
2002, sem contar os assinantes”, explica o jornalista.
“Na imprensa corporativa, o que
interessa é a opinião do dono. Na
mídia alternativa, a possibilidade da
divergência é maior”
A alcunha de “alternativa” caracteriza o enfrentamento que esses veículos procuram fazer contra uma ideologia que orienta o conteúdo da maior parte dos meios de comunicação. “A grande mídia, os veículos de comunicação de
massa, têm a importante função de definir a agenda nacional. É assim nos países democráticos. O problema é que no
Brasil a grande mídia é muito concentrada, não apenas em algumas poucas
empresas, também em termos de visão
de mundo. O pensamento único impera.
Daí a importância de se ter alternativas
a ela”, examina Marcel Gomes, editor da
Agência Carta Maior e um dos coordenadores da ONG Repórter Brasil.
Lançada em 2001, durante o I Fórum
Social Mundial, em Porto Alegre (RS), a
Carta Maior é um portal na internet que
reúne análises e reportagens sobre temas da conjuntura política, econômica,
social e cultural do Brasil e do mundo.
A audiência atinge um milhão de aces-
Lula participa do 2º Encontro Nacional dos Blogueiros Progressistas, realizado em Brasília
sos mensais, em média. Além da diversidade de conteúdo, a mídia alternativa,
em geral, se distingue quanto a sua forma de organização, até pela pouca estrutura econômica e o desinteresse pelo aspecto comercial da atividade. “É basicamente um conjunto de veículos que opera de modo diferente da grande mídia:
muitos até são empresas, mas não visam
o lucro; seus jornalistas não são apenas
profissionais, mas militantes engajados
nas mais diversas causas; e o conteúdo
costuma ser ligado ao campo progressista, popular, de esquerda”, aponta Marcel Gomes.
O repórter da TV Record e blogueiro
Rodrigo Vianna, do blog Escrevinhador,
conhece bem os dois mundos. Com a experiência de quem sempre trabalhou na
mídia empresarial e, desde 2008, também desenvolve uma atividade independente na internet, Vianna percebe com
nitidez as contradições do jornalismo.
“Na imprensa corporativa, por definição, o que interessa é a opinião do dono.
Na mídia alternativa, a possibilidade da
divergência é maior, as opiniões podem
se expressar. Por outro lado, esses veículos menores tem muito mais dificuldade para coberturas mais amplas e terminam, muitas vezes, por fazer apenas o
contraponto à pauta dos veículos comerciais”, observa.
“Rede Globo tem medo da internet”
Blogueiros sofrem
implacável perseguição
judicial do diretor de
jornalismo da maior
emissora do país
de Brasília (DF)
Um dos espaços mais fortes de contraponto à hegemonia dos grandes
meios de comunicação são os blogs de
jornalistas e ativistas espalhados pela
internet. A velocidade da rede e a capacidade de disseminação de informações têm provocado reações que revelam o verdadeiro compromisso dos empresários da mídia com a liberdade de
expressão.
Na mais recente investida contra blogueiros, na semana passada, o diretor de
jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, venceu em segunda instância o processo que
move contra Rodrigo Vianna, repórter
da TV Record e autor do blog Escrevinhador, que tem mais de 10 mil acessos
diretos por dia. O blogueiro, que já foi
repórter da Globo e saiu justamente por
discordar da cobertura parcial da emissora nas eleições presidenciais de 2006,
em favor da candidatura do PSDB, pode
ser obrigado a pagar uma salgada indenização apenas porque exerceu o “sagrado” direito à liberdade de expressão. Só
que contra a Globo.
Vianna publicou em seu blog que o
jornalismo da emissora comandada por
Kamel era algo “pornográfico”, em alusão a uma infeliz coincidência: um ator
pornô dos anos 1980 também usava o
mesmo nome do manda chuva do jornalismo da Globo. Ao usar como metáfora
a informação, para produzir uma crítica,
o jornalista atingiu o alvo.
“Eles são ótimos para
defender a liberdade deles,
dos monopólios. Quando a
brincadeira é com eles, não
gostam e revelam um DNA
fascista muito forte”
“O que me interessava era usar a homonímia entre o ator pornô com o diretor da Globo. Para mim, o que importava era a metáfora para falar do jornalismo pornográfico que a Globo pratica. Aí
não pode, porque metáfora só quem pode fazer é o Arnaldo Jabor, que escreveu
um livro, chamado Pornopolítica. Eu
recorri ao Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro e perdi. O que eu vou fazer agora é recorrer aos tribunais em Brasília e
seguir protestando, mostrando a hipocrisia dos caras que falam em liberdade
de expressão, mas só para eles. É como
os liberais do século 19, que reivindica-
vam o liberalismo para serem donos de
escravos porque abolir a escravidão, na
visão de alguns desses liberais, atentava
contra a propriedade privada”, afirma o
escrevinhador.
Rodrigo Vianna não é o único. Outros blogueiros bastante conhecidos como Luiz Carlos Azenha – outro ex-repórter da TV Globo; Luiz Nassif, Cloaca News e Paulo Henrique Amorim colecionam ações do diretor da vênus platinada. “Então, não pode fazer política,
não pode brincar, criticar através do humor. Nem os militares fizeram isso com
o Pasquim. É incrível como um cara como o Ali Kamel, que controla os noticiários da principal emissora de TV do país,
que acaba influenciando outros veículos
das Organizações Globo, quer processar
um blogueiro como eu. É porque eles estão dando muita importância para a blogosfera”, desabafa Vianna.
“A mídia não aceita ser questionada.
E as brincadeiras que a Globo faz com
a Dilma no Zorra Total, por exemplo?
Eles são ótimos para defender a liberdade deles, dos monopólios. Quando a
brincadeira é com eles, não gostam e
revelam um DNA fascista muito forte.
Outro caso diz respeito ao jornal Folha
de S. Paulo. Quando a turma faz uma
crítica, como foi o blog Falha de S. Paulo, o jornal reagiu com ação judicial para tirar o site do ar”, aponta o jornalista
Altamiro Borges, presidente do Centro
de Estudos de Mídia Alternativa Barão
de Itararé e um dos organizadores do
Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas. (PR)
Por mais pluralidade na mídia
Jornalistas em prol da
democratização da
comunicação criticam
postura do governo em
relação ao tema
de Brasília (DF)
Mais do que um contraponto ao pensamento único da grande mídia empresarial, os veículos alternativos representam
a necessária pluralidade de vozes no debate público dos meios de comunicação.
Presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Altamiro Borges destaca avanços organizativos
do setor, mas diz que esse movimento esbarra na necessidade de políticas públicas, que dependem de ação do Estado.
“Houve uma revitalização do Fórum
Nacional de Democratização da Comuni-
cação e o fato que movimentos sociais e
sindicatos protagonistas do debate político têm encarado o tema da mídia como
estratégico. Estão saindo da tradicional
choradeira, porque os grandes monopólios criminalizam a luta social na mídia,
para pensar em ações. Nesse ponto, caberia uma ação indutora do Estado, como ocorreu na Venezuela, Bolívia e Argentina, para citar alguns”, explica.
Rodrigo Vianna, do blog Escrevinhador, diz que um bom modo para alcançar maior diversidade na mídia é democratizar de forma efetiva o acesso às verbas oficiais de publicidade, atualmente concentradas nos poucos grupos econômicos. “Esse é o desafio econômico-financeiro. Assim como na compra da merenda escolar, que uma lei estipulou que
30% dos produtos devem ser adquiridos
da agricultura familiar, um critério semelhante deveria ser adotado para fomentar as comunicações, os pequenos
empreendimentos. Basta ser liberal do
ponto de vista econômico, permitir que
mais vozes falem”, afirma.
Fim dos monopólios
O problema, segundo Vianna, é o cálculo político do governo. “Lula achava
que tinha comunicação direta com as
massas e não era necessário se indispor
com a grande mídia. Já a Dilma dispõe
de platitudes do tipo: ‘o melhor controle é o controle remoto’. A presidenta que
me perdoe, mas isso é de uma ignorância tremenda. Toda atividade importante tem que ter regulamentação para que
não haja um oligopólio absurdo como o
da mídia no Brasil”, destaca o blogueiro.
Altamiro Borges reconhece que não
é fácil a decisão política de enfrentar o
monopólio da mídia, mas acredita que
o não debate, a médio prazo, pode ser
fatal até para a sobrevivência do projeto de país do Partido dos Trabalhadores.
“É um grande poder, uma agenda política que mexe com a subjetividade humana, estimula individualismo exacerbado. Mesmo assim, eu discordo do cálculo do governo para não enfrentar o debate, porque se você se acovarda diante da
mídia, eles vão te agendando”. (PR)
6
de 24 a 30 de janeiro de 2013
brasil
“Militância é ação”
Secretaria de Políticas para as Mulheres
PERFIL Viúva de Carlos Marighella, a
militante Clara Charf relembra os 87
anos de uma vida que se confunde
com a história da política nacional
Aline Scarso
da Reportagem
COM 87 ANOS, Clara Charf tem em sua
biografia duas ditaduras vividas e a convivência com personalidades históricas
como Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, João Amazonas e Jorge Amado.
Estima ter vivido quase vinte anos de
forma clandestina, junto com o marido
Carlos Marighella, época em que acumulou vários nomes. O mais conhecido, Marta Santos, lhe rendeu seis meses
de prisão. “Eu não queria falar meu nome de jeito nenhum. Só falei quando o
Partido Comunista exigiu para que pudessem impetrar o habeas corpus para mim já que Marta Santos não existia”, conta, rindo. Clara havia sido presa durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), com uma mala
cheia de livros marxistas, que seriam
usados para montar um curso de formação política para os ferroviários de
Campinas. Quando foi detida, tentou
inventar uma história de um tratamento médico no interior que lhe daria muito tempo livre para a leitura. Não colou.
Ficou a maior parte do tempo do cárcere em solitária.
Clara nasceu em 1925 em uma família de judeus pobres. Mudou-se de Maceió para Recife menina. Perdeu a mãe
ainda adolescente. O pai não gostava
da ideia de que os três filhos se metessem em política com receio de que fossem presos, mas com Clara não conseguiu efeito algum. “Desde 1945, eu fui
despertando para a ação”, conta. Mas
quem é Clara Charf como militante política? Nas palavras modestas delas,
“uma militante como outra qualquer”.
E explica: “Para mim a militância política é a compreensão dos problemas sociais e ação. Não existe militante nãoativo, militar é fazer, é intervir”.
“Para mim a militância política é a
compreensão dos problemas sociais
e ação. Não existe militante nãoativo, militar é fazer, é intervir”
Hoje ela não sabe precisar com certeza o ano específico de cada acontecimento da sua vida e fala sobre o período histórico em que cada fato aconteceu (leia a entrevista na íntegra no
site do Brasil de Fato). Já nas primeiras perguntas, lembra quando Anita Leocádia Prestes, filha dos comunistas Olga Benário e Luís Carlos Prestes e
então com nove anos, passou pelo Recife durante o famoso comício no Parque
13 de Maio, em novembro de 1945. Clara tinha 20 anos e ficou impressionada
com a história da menina nascida numa
prisão destinada às mulheres na Alemanha nazista e que era homenageada, naquele momento, “por todo movimento
democrático, comunista e não comunista”. “Fizeram uma grande concentração
pública para apresentar a filha do Prestes e eu participei. E esse comício, com
seus discursos, marcou muito minha
posição política”. Até então, a garota
havia trabalhado como bancária, datilógrafa e taquígrafa e guardava consigo um sentimento de justiça social. “Eu
era contra as injustiças, mas eu não tinha muita noção de que caminho seguir
para acabar com elas”, conta.
O contato com o comunismo
Clara recorda a primeira vez que ouviu a palavra “comunista” e passou a se
identificar com a ideologia. “Foi quando
o Jacob [pai do fotógrafo Bob Wolferson] foi preso”. O pai de Clara chegou
em casa com a novidade. “E eu perguntei, ‘mas ele é ladrão?’ Meu pai me mandou calar a boca e disse que a gente não
poderia falar sobre isso em casa”. Passou-se um tempo e Jacob foi posto em
liberdade. Dessa vez, Clara perguntou
diretamente por qual a razão havia sido
encarcerado. “’Porque sou comunista’,
ele disse. ‘Comunismo é assim, vai ter
uma sociedade que não vai ter dinheiro,
vai ter troca. Se você quer uma camisa,
dá outra coisa em troca para satisfazer a
necessidade’. ‘Pronto’, eu disse, ‘sou comunista!’”, emociona-se.
Conheceu o Partido Comunista Brasileiro (PCB) quando começou a trabalhar como aeromoça e veio morar
no Rio de Janeiro (RJ). Tomou contato
com as campanhas realizadas nas ruas e
decidiu filiar-se. Tinha 25 anos. Achava
que tinha que militar com outras pessoas. “E quando você decide trabalhar
com outras pessoas, você tem que ter
um instrumento, tem que discutir, planejar o trabalho”, argumenta.
Quando voava, levava as correspon-
A militante comunista Clara Charf
dências do partido aos estados, facilitando a comunicação interna partidária. Mas logo saiu da aviação e foi trabalhar no escritório da Fração Comunista, órgão parlamentar do PCB responsável por colher informações e produzir os discursos dos parlamentares do partido. O local era coordenado
por Marighella e ficou aberto até 1947,
quando o partido foi colocado novamente na ilegalidade, desta vez pelo
governo de Eurico Gaspar Dutra (19461951). Nessa época, o PCB era um partido de massas, e contava com cerca de
200 mil filiados.
A militância se seguiu e Clara assumia cada vez mais tarefas, principalmente na organização da luta feminista. “Sempre fui militante ardorosa pela
causa das mulheres, mas também sempre fui militante ardorosa pela causa do
povo em geral”, destaca.
“Sempre fui militante ardorosa pela
causa das mulheres, mas também
sempre fui militante ardorosa pela
causa do povo em geral”
A vida com Marighella
A militância aberta ou clandestina variava de acordo com as condições políticas do país, lembra. Mas a maioria dos
21 anos compartilhados com o político e um dos principais inimigos da última ditadura militar brasileira (19641984), Carlos Marighella, foram vividos
na clandestinidade.
Recordar essa época e o marido afetuoso e brincalhão, que começou a namorar durante o seu trabalho na Fração
Parlamentar, leva Clara às lágrimas. Ela
chora, não se sabe se de saudade ou de
tristeza pela forma como acabou a vida do companheiro, morto em 4 de novembro de 1969 em uma emboscada organizada pelos militares em São Paulo.
Palavras para definir Marighella não
lhe faltam. “Você não pode dizer que
era um cara perfeito porque isso não
existe, mas ele era um ser humano muito íntegro, deu a vida pela causa do povo, sempre ajudou as pessoas que pode na luta”, afirma. “Era um ser humano pelo qual todo mundo tinha prazer
em conviver. Ele não era arrogante. E
era também muito brincalhão. As crianças o adoravam. Ele se fazia querer pelas pessoas. E era culto, sempre estudou
muito”, enumera.
Perguntada sobre sua relação com ele
no que diz respeito às questões de gê-
nero, Clara – feminista que é – considera importante assinalar que Marighella não era machista. “Nas atividades de casa, ele sempre respeitou muito o meu trabalho e dividiu comigo as
tarefas”, conta, para logo em seguida
acrescentar: “E isso não é comum, ainda mais naquela época. Os homens não
dividiam como não dividem até hoje as
tarefas domésticas. E ele fez isso em
todos os lugares que ele viveu, quando morou com pessoas que eu conheci
depois. Sempre valorizou o trabalho da
mulher, não achava justo não dividir tarefas, mesmo se a mulher não fosse militante”, ressalta.
Ela conta, com orgulho, um episódio em que Marighella chegou em casa e a viu passando roupa. “Ele olhou
e disse: ‘Clara, não passe roupa quando eu não estiver em casa’. E eu perguntei: por quê, se você não sabe passar? E
ele respondeu: ‘como eu não sei passar,
você passa e eu fico lendo para você em
voz alta, para você ouvir’. Quer dizer,
enquanto eu ia passando, ia tomando
conhecimento do material que eu queria ler. Qual o marido que faz isso? Nisso daí ele foi inédito”, ri.
Clara diz que a única vez que viu Marighella chorar foi durante uma reunião da direção nacional do PCB, quando Diógenes Arruda Câmara voltou de
viagem da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e confirmou que eram verdadeiras as denúncias contra o regime feitas pelo então
primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khruschev. Em seu famoso discurso durante o 20º Congresso dos PCs, em 1956,
Khruschev denunciou os crimes cometidos por Joseph Stalin contra a população e seus opositores, abalando toda
a militância comunista internacional.
Clara nunca fez parte da direção nacional do PCB, mas assistiu a reunião porque, como taquígrifa, foi chamada para
fazer a ata. “Era como se tivesse ruído
um prédio inteiro, pois ficou provado
que eles tinham cometido muitas barbaridades”, conta. Na ocasião, ela assistiu aos discursos de Jorge Amado e
Agildo Barata, que posteriormente sairiam do partido. E também de Marighella, que defendeu a reorganização
do trabalho partidário.
O exílio em Cuba
Viúva de Mariguella, perseguida e
com os direitos civis cassados pela última ditadura militar, Clara decidiu que
não podia mais continuar no país. Foi
para Cuba, onde passou nove anos e
só voltou com a anistia. Cuba mudou,
conforme relata a militante, mas pro-
porcionou no seu exílio muitas surpresas positivas como a da faxineira que
conheceu durante uma internação em
um hospital, com nove filhos, todos estudantes na União Soviética. Ou a da
garota que guiava uma delegação por
uma creche cubana e apontava, com orgulho, os brinquedos que seriam doados às crianças do Vietnã. Ou ainda sobre a livreta que proporciona uma divisão igual dos alimentos entre todos habitantes da ilha, que vivia com constantes problemas de escassez.
“Ele [Marighella] era um ser
humano muito íntegro, deu
a vida pela causa do povo,
sempre ajudou as pessoas
que pode na luta”
De volta ao Brasil
Clara voltou ao Brasil com a Lei da
Anistia, de agosto de 1979, depois de
ameaçar denunciar o descumprimento
da norma pelo governo brasileiro, que
proibia a liberação de um passaporte no
nome dela pela embaixada do Panamá.
Chegou ao país com um salvo-conduto
e, para não ser presa, foi auxiliada pelo
advogado Idibal Pivetta.
Logo reconheceu no PT uma expressão da força política dos movimentos
sociais na época e se filiou. Encontrou
emprego numa empresa de engenharia
como auxiliar de biblioteca, começou a
fazer palestras e se vinculou à 1ª Secretaria de Mulheres do PT de São Paulo. A
pedido das companheiras petistas, saiu
como deputada federal e conseguiu 19
mil votos. Durante o governo da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1993), foi
Secretária de Relações Internacionais.
Clara também esteve com chefes de
Estado como a chilena Michelle Bachelet quando ainda era Ministra da Defesa, o cubano Fidel Castro, o sul-africano Nelson Mandela, além de ser próxima de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva.
Ela conta rindo que certa vez foi ao
Palácio do Planalto visitar Lula durante o seu primeiro mandato e o ex-presidente, “muito gozador”, disse: “Clara, você alguma vez pensou em me ver
como presidente?”. “Eu naturalmente
disse aquilo que sentia: ‘Ah, eu pensei,
mas não que fosse pela via eleitoral’. Aí
foi uma gargalhada geral”, ri, recordando-se da resposta de Lula: “Vocês estão
vendo! A Clara só pensa em revolução”.
brasil
de 24 a 30 de janeiro de 2013
7
“A vocação da pequena semente”
Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr
ENTREVISTA
Bispo emérito de Goiás,
Dom Tomás Balduíno,
faz um balanço das
lutas sociais e da
principalidade dos
instrumentos alternativos
de comunicação na
última década
Eduardo Sales de Lima
da Redação
ELE ESTEVE presente na fundação do
Brasil de Fato. Lutou e aguardou por
aquilo que há anos os movimentos popular desejavam: ter um instrumento
de comunicação capaz de disseminar
suas lutas e denunciar as mazelas do
velho e presente capitalismo.
Somado ao escritor uruguaio Eduardo
Galeano, à médica cubana Aleida Guevara, Hebe de Bonafini, das Mães da
Praça de Maio, entre outros, Dom Tomás, um dos fundadores da CPT e do
Cimi, testemunhou a expectativa da
chegada de Lula ao Planalto e todo o
otimismo em relação à nova onda progressista na América Latina.
Uma década após aquele 25 de janeiro, no Auditório Araújo Viana, em Porto
Alegre (RS), parece ser o momento de
fazer um balanço do que foi o processo
das lutas sociais nesse período, do comportamento da sociedade civil e da implementação de políticas de estado relacionadas à reforma agrária, por exemplo. Também não seria a hora de refletir a caminhada de um jornal que tentou registrar esses processos sob uma
ótica popular?
Para falar da importância dos meios
alternativos de comunicação, e mesmo
dar ânimo aos que lutam por justiça social em meio a uma sociedade que segundo o bispo emérito de Goiás “se inclina para a direita”, Dom Tomás cita
seu mestre, Jesus: “O pequeno fermento, a pequena chama, tudo isso é pequenez, mas tem uma vocação de abrangência, de solidariedade, de crescimento, de ultrapassar os obstáculos à dignidade da mulher, do homem, da terra,
da mata, dos ribeirinhos. Nós devíamos
apostar mais nessa perspectiva”.
“O país se inclinou mais
para a direita, com o
risco de ser até como os
Estados Unidos, que é um
caminho perigoso”
Brasil de Fato – O senhor
participou do ato de fundação do
Brasil de Fato, no Fórum Social
Mundial de 2003, realizado em
Porto Alegre (RS). Havia uma
expectativa dos movimentos
sociais naquele momento,
sobretudo porque Lula estava
recém-eleito presidente do Brasil.
Qual o balanço que o senhor faz
a respeito da luta social no país
nesses últimos dez anos e que o
Brasil de Fato tem registrado?
Dom Tomás – Houve um retrocesso.
O país se inclinou mais para a direita,
com o risco de ser até como os Estados
Unidos, que é um caminho perigoso. E,
nesse sentido se distanciando de outras
possibilidades experimentadas no continente, de união, de alianças, de unir
as forças construtivas. E os movimentos
populares sofreram uma baixa de um
modo geral, sobretudo aqui no Brasil.
O que contribuiu para essa baixa?
No Fórum de 2003 houve um momento de maior expectativa e de união
das diversas forças à esquerda. Isso foi
arrefecendo. Tudo isso depende um
pouco das lideranças, e até da liderança institucional. No caso do Brasil, a liderança institucional, na figura do Lula,
abriu caminho para retrocessos por ter
feito grandes alianças capitalistas com
o agronegócio, a mineração, o setor petrolífero. O governo foi se distanciando
dos movimentos populares.
Por outro lado, os próprios movimentos tiveram suas crises, suas dificuldades internas e externas, de maneira que
se configurou um outro processo.
E na sociedade civil podemos dizer
a mesma coisa. A igreja entrou num
quadro diferente do Concílio Vaticano
II [1962 a 1965]. Devido ao posicionamento de João Paulo II voltou-se à situação pré-conciliar. É o que predomina no episcopado hoje. Isso tem muita influência no conjunto da sociedade por causa das bases sociais; nas paróquias, nas Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs).
O bispo emérito de Goiás, Dom Tomás Balduíno
As lideranças progressistas da
Igreja foram abafadas na última
década?
Houve uma linha de retroceder nos
avanços do Concílio. No sentido do ecumenismo, da liberdade religiosa. Respondendo a sua pergunta, eu falo da liderança institucional que influenciou
fortemente no corpo eclesial. E no Brasil
é importante esse corpo eclesial porque
há várias comunidades de base. Agora,
elas estão influenciadas por vários movimentos carismáticos, que dão muito
mais a ênfase na religião como um conforto, emoção e compensação. Não como
uma força, como é no Concílio ou como
é visto em João 23 [papa que convocou
o Concílio Vaticano II], de que a religião
deva ser “sal, luz e fermento” no meio do
mundo; com humildade, sem querer ser
dono da verdade. Mas colaborando na
presença evangélica com os que sofrem,
os que são injustiçados, os perseguidos,
que são os povos indígenas, os negros,
os quilombolas, as mulheres. Houve um
retrocesso em relação a isso.
E, falando de América Latina, é interessante que na Venezuela a igreja siga
a oposição conservadora e burguesa.
“O governo foi se distanciando dos
movimentos populares”
E o que pode ser dito em relação à
reforma agrária no país?
Houve, inicialmente, uma reforma
agrária no sentido de mudança de paradigma. Quer dizer, de uma estrutura latifundiária para uma estrutura de participação popular em relação à terra para quem dela precisa para viver e trabalhar. A primeira fase da luta de reforma
agrária, no sentido da ocupação da terra, de pressão, para o reconhecimento
dos direitos, com relação aos índices de
produtividade, isso não caminhou nada. O governo Lula amarrou isso com a
maior força que pôde. Então, a reforma
agrária começou a arrefecer, uma vez
que lá em cima não havia muito estímulo para isso, pelo contrário; houve muita regulamentação que veio da época de
Fernando Henrique, no sentido de punir as ocupações.
Nos últimos tempos, a reforma agrária, então, seguiu a linha da eficácia,
da produção, das cooperativas. Houve
melhorias, mas com certa ambiguidade, porque em muitos casos jogou água
no moinho do agronegócio. A pequena
propriedade entrou nessa lógica e se inseriu na grande produção, até colaborando com a produção do etanol. Houve um aprimoramento tecnológico. Isso
se deve reconhecer.
Em relação aos movimentos sociais
do campo foi disseminada a questão
da principalidade da soberania alimentar. Isso em todo o mundo. O que influiu na cultura em torno da produção
do alimento.
Isso foi um grande avanço...
Enfrentar, por exemplo, a questão
genética, que também é uma forma de
distanciar o trabalhador, o indígena, o
quilombola, da terra. Isso porque a semente se torna algo inacessível dentro
dessa nova mentalidade transgênica. O
maior perigo não é somente o efeito duvidoso em relação à saúde ao final da
produção, mas o não acesso às sementes e, consequentemente, o acesso à terra. Nesse ponto, o próprio governo Lula
teve muita responsabilidade, ou irresponsabilidade, no sentido de permitir o
avanço disfarçado disso.
“Nos últimos tempos,
a reforma agrária,
então, seguiu a linha da
eficácia, da produção, das
cooperativas”
O senhor considera a questão de
Raposa Serra do Sol como a vitória
mais emblemática para os povos
indígenas nessa última década?
Houve um avanço no sentido de garantir os direitos dos povos indígenas
segundo a Constituição. Por outro lado, houve uma articulação da direita e
da bancada ruralista no sentido de tirálos da terra. Essa é a proposta da [senadora] Kátia Abreu (PSD-TO). Há uma
mentalidade classista raivosa em relação a esses povos. São os que atrapalham o desenvolvimento da pátria, para
os ruralistas. Quando para nós, os movimentos sociais, são os que mantém o
verdadeiro relacionamento com a terra,
no sentido de garantir a sua saúde e o
seu futuro.
“Há uma mentalidade
classista raivosa em
relação a esses povos.
São os que atrapalham
o desenvolvimento da
pátria, para os ruralistas”
O Brasil de Fato nasceu há dez
anos com a proposta de
ser um instrumento dos
movimento sociais e tenta
registrar, sob uma ótica
popular, os assuntos que o
senhor mencionou e muitos
outros. Que desafios a mídia
alternativa, na qual nosso jornal
se insere, tem pela frente?
O fato de ter sido criado com audácia,
talvez não considerando muito as limitações, mas o ideal, a utopia, isso foi
bom. Aquele nascimento foi a concretização de um sonho que todos trazemos
de longa data de poder ter uma imprensa que tenha a cara do povo. E não a imprensa que toda a vida tem mostrado a
tristeza da elite, as intrigas palacianas.
A vantagem do Brasil de Fato é de
ter nascido colado ao movimento popular da terra. Isso, ao meu ver, foi a
salvação. Poderia ser dito, “não demos
conta, sonhamos alto demais”. Mas
não, se manteve. Houve uma afirmação. É um jornal que se afirma, que é
coerente, abrangente. Há nele o cenário brasileiro, latino-americano e até
mundial. Quem quer ter o mínimo de
noção científica do andamento da conjuntura internacional precisa ler o Brasil de Fato. Sei de várias pessoas que
pensam assim. A expectativa, agora, é
de uma manutenção; uma caminhada
coerente e que mais tarde comece a enfrentar essas forças permanentes [oligarquias da comunicação], que nasceram na república e mamam nas tetas do
governo e se mantém numa política de
favorecimento eleitoreiro em troca de
ajuda financeira.
“A vantagem do Brasil
de Fato é de ter nascido
colado ao movimento
popular da terra. Isso, ao
meu ver, foi a salvação”
O senhor acredita que o Brasil
de Fato vai registrar mais lutas
sociais? Testemunharemos mais
avanços de nossa sociedade para
a próxima década?
De um modo geral, a expectativa é
a da semente que vem debaixo pra cima, nas bases populares. Eu sou um homem de igreja e minha expectativa é no
aprimoramento no laicado, do povo de
Deus, na ideia de uma utopia geral, não
do fortalecimento institucional das forças partidárias, daqueles que detém o
poder econômico e político, mas nas
bases populares.
Acho que é isso que vai mudar e é isso
que vai apontar o futuro de nosso país,
de nosso continente e, quem sabe, o futuro da humanidade. Volta e meia cito
a proposta de Jesus, que é genial. Trata-se da pequena semente. O pequeno
fermento, a pequena chama, tudo isso é pequenez, mas tem uma vocação
de abrangência, de solidariedade, de
crescimento, de ultrapassar os obstáculos à dignidade da mulher, do homem,
da terra, da mata, dos ribeirinhos. Nós
devíamos apostar mais nessa perspectiva. Tem muita gente que ainda olha
para o “céu” do Palácio do Planalto. É
olhar mais para o chão, para a terra, para as sementes que se tornarão árvores
onde os passarinhos do céu irão fazer os
seus ninhos.
8
de 24 a 30 de janeiro de 2013
brasil
“Estamos devendo muito ao povo brasileiro”
Carlos Kilian/ALESC
ENTREVISTA
Não mexemos na
estrutura deste Estado,
que continua sendo
uma cidadela dos
grandes interesses
econômicos e culturais,
afirma Olívio Dutra
Daniel Cassol
de Porto Alegre (RS)
DESDE QUANDO criticou as “más companhias” que teriam levado o PT a enveredar pelos caminhos ortodoxos da política, Olívio Dutra vem sendo uma das
vozes internas críticas ao processo de
inflexão conservadora do próprio partido. Fundador do partido, primeiro prefeito petista em Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul entre 1999 e
2002 e ministro das Cidades no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, Olívio Dutra faz um balanço realista dos dez anos de PT no governo federal.
“Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos
e culturais”, afirma. Em entrevista ao
Brasil de Fato, Olívio, que esteve presente no lançamento do jornal durante
o Fórum Social Mundial em janeiro de
2003, em Porto Alegre, reconhece os limites da gestão petista, que começou
naquele mesmo mês. “Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores condições de
vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros“, reconhece, defendendo que o partido e a esquerda retomem o debate sobre as transformações
necessárias na sociedade brasileira
Além de um balanço dos últimos dez
anos, o ex-governador gaúcho apontou
os limites da experiência petista, os desafios da esquerda e não deixou de reforçar sua posição sobre a postura do partido em relação ao “mensalão”: “O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para frente, se assumir como partido
da transformação e não da conciliação”.
“Não faltou coragem
nos dois mandatos do
Lula e neste que está
se desenrolando com a
Dilma. Mas é bem verdade
que não rompemos com
conjunturas adversas”
Brasil de Fato – O Brasil de
Fato foi lançado em janeiro
de 2003, logo após a posse de
Lula, durante o Fórum Social
Mundial. O primeiro número
do jornal trazia uma entrevista
com o economista Celso Furtado
e a manchete: “É preciso
coragem para mudar o Brasil”.
Passados dez anos do projeto do
PT no poder, houve necessária
coragem para as mudanças
profundas no Brasil?
Olívio Dutra – Lembro de um cidadão
da Bossoroca (cidade gaúcha das Missões, terra natal de Olívio) que tinha 90
e tantos anos e dizia: “Coragem não me
falta, me falta ar”. Não faltou coragem
nos dois mandatos do Lula e neste que
está se desenrolando com a Dilma. Mas
é bem verdade que não rompemos com
conjunturas adversas. Acabamos contemporizando sob a alegação da governabilidade, tendo que construir uma
maioria não programática no Congresso, tanto no primeiro quanto no segundo governo do Lula, e até mesmo agora. Mesmo havendo coragem para enfrentar os desafios de um país tão grande e com desigualdades imensas, esta
maioria não programática sempre puxou para baixo a execução de um programa que enfrentasse com radicalidade situações de desigualdade que penalizam milhões de brasileiros. Então,
penso que coragem não faltou. E política evidentemente se faz com coragem,
mas também com clareza dos objetivos. Por isso, penso que ainda há muito o que fazer. Estamos devendo muito
ao povo brasileiro, mesmo que tenhamos conquistados direitos sociais, melhor distribuição da renda, oportunidade de emprego e trabalho regular. Mas
não fizemos, por exemplo, a reforma
agrária com a radicalidade necessária.
Com a maioria que constituímos, não
fizemos nenhuma das reformas fundamentais do Estado. Temos uma grande
dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores condições
de vida e de protagonismo político de
milhões de brasileiros.
O ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra
Como o senhor mesmo diz,
apesar dos avanços nas áreas
econômica e social, os governos
Lula e Dilma não enfrentaram
questões estruturais. Foi por
causa da governabilidade ou o
projeto do PT no poder acabou
sendo não enfrentar estes temas?
Sou um dos fundadores do PT e até
hoje não vi nenhuma instância do partido se decidir por um projeto que fique estacionário ou que se condicione
às conjunturas. Se isso está andando, é
por conta de alguns setores que estão se
contemplando com o que já se conquistou. Se pensamos que dialogar com amplos setores da sociedade brasileira é
suficiente, que isso abre espaços e reduz
pressões, o projeto vai ficando, na sua
realização, cada vez mais longe. O horizonte vai ficando mais distante. E isso
sem ter tido uma discussão. Qual é o papel de um partido de esquerda e do socialismo democrático em sendo governo
e tendo representação política para enfrentar um Estado que não é o que acolhe um projeto de transformação social?
Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos e
culturais. As elites se sentem muito contrariadas em terem tido a fraqueza de
deixar o povo brasileiro eleger um metalúrgico para a Presidência da República, e agora uma mulher que vem de uma
luta que não é a luta que eles sempre patrocinaram. Mas isso não os impede de
continuar tendo poder. Porque poder
não é apenas estar no governo. O protagonismo do povo brasileiro ainda precisa ser estimulado, provocado. Nós chegamos no governo e de certa forma contemporizamos com as coisas. Os movimentos sociais têm presença nos conselhos aqui e acolá, mas isso garante força
para os movimentos sociais e mobilização ampla que um governo de transformação precisa ter na base da sociedade
para poder avançar? Isso não temos respondido como partido. Aliás, qual o projeto que a esquerda brasileira tem para
o país, não apenas para ganhar eleições?
Como a esquerda vê o Brasil e a possibilidade de transformá-lo? E estabelecer
entre si compromissos e poder alternarse por dentro da esquerda, e não a esquerda disputar esta ou aquela eleição e
depois ter que fazer negociações em que
o seu projeto se estilhaça e o horizonte da transformação fica cada vez mais
distante. O PT é o maior partido de esquerda do país e não nasceu de gabinetes, mas está cada vez mais dependente
destes nichos de poder dentro de um Estado que está longe de ter esse controle
público e popular efetivo. E estamos gerindo esse Estado. É uma discussão séria que precisamos nos debruçar sobre
ela. O PT tem que fazer a obrigação de
fazer isso. Não esgotou este projeto na
medida em que não se tornar um partido da acomodação e se mantiver como
partido da transformação.
O senhor defende a necessidade
de a esquerda, não só o PT,
discutir o que quer para o Brasil.
O PT aceitou o jogo democrático, mas
a democracia não é estática, é um processo. Temos que estabelecer formas de
ir desmontando a lógica do Estado que
funciona bem para poucos e mal para a
maioria. Temos que discutir como agir
por dentro do Estado, em um processo
democrático, mas não perdendo o objetivo estratégico de ganhar força na base
da sociedade, semear transformações.
Não temos que sair com um tijolo em
cada mão, ou dando murro em ponta de
faca, mas temos que ter consciência que
o partido tem de ser uma escola política.
Pode haver uma alternância entre as figuras dos diferentes partidos de esquerda, desde que haja um compromisso de
sequência do projeto de transformação, e não de acomodação. Nosso partido tem que tirar lições dos governos que
já exercemos, mas não ficar se autoelogiando e nem se remoendo. Há uma realidade a ser enfrentada. E é preciso ter
povo mobilizado constantemente, não
como massa de manobra, mas para formar uma base de sustentação.
“Se pensamos que dialogar com
amplos setores da sociedade brasileira
é suficiente, que isso abre espaços e
reduz pressões, o projeto vai ficando,
na sua realização, cada vez mais longe”
O senhor acredita que ainda haja
espaço para isso no PT? O senhor
e outros dirigentes vêm defendo
uma retomada de velhas tradições
do PT, mas não é ilusório
imaginar que o partido voltar a
ser algo que já não é mais?
Eu não prego este retorno, mas também afirmo que, sem raízes, uma árvore
não tem tronco com seiva suficiente para sustentar a galharia lá em cima. E essas raízes são as lutas sociais e populares, de um período histórico importante
do país, no qual se originou esse ambiente de fundação do PT. A conjuntura mundial é desafiadora. Vamos buscar apenas
nos adaptar? Não é uma oportunidade de
darmos um salto? O PT tem que debater
isso. As instâncias partidárias afrouxaram-se de tal maneira que inclusive tivemos pessoas importantes do PT que cometeram políticas que não se diferenciam das políticas tradicionais que sempre condenamos, sob alegação da governabilidade e essas coisas todas. Isso não
pode ser culpa apenas desta ou daquela figura, mas as estruturas partidárias
não estavam suficientemente atentas ou
atuantes, e se criaram essas situações em
que as pessoas pensavam que podiam fazer ou desfazer coisas que depois se justificariam pelos objetivos. E isso levou a
essa situação que estamos sofrendo, que
é a Ação Penal 470, o chamado mensalão, que não pode ser o objetivo do nosso
debate ficar remoendo, acusando aqui ou
ali, mas se superando. Achar que podemos comprar e vender opinião, comprar
e vender posições, comprar e vender votos, isso é o pior da política, que tem desgraçado o povo brasileiro e desqualificado as instituições políticas. O PT jamais
poderia ter feito isso mas pode, daqui
para frente, se assumir como partido da
transformação e não da conciliação.
Apesar das críticas ao julgamento
do mensalão, o governador
gaúcho Tarso Genro vem
afirmando em artigos que o
partido deve mudar de agenda.
É o que o senhor está dizendo
também?
O partido não deve ficar se justificando, mas não deve também colocar a cabeça no chão como avestruz. Tem que
assumir que houve erros de conduta política. Não é condenar Fulano ou Beltrano, mas assumir que em uma situação tal, as instâncias do partido não foram capazes de não se deixar aprovar
por condutas assim. E ir adiante, evidentemente. Penso que a política para
nós tem que ser a construção do bem
comum, com protagonismo das pessoas. O Estado, para funcionar bem, tem
que estar sob controle público efetivo.
Esse é um objetivo, colocar o Estado sob
controle da sociedade. E para isso é preciso ter espaço para os movimentos sociais, instigá-los dentro da sua autonomia. Um governo tem limites para executar coisas, mas não pode submeter os
movimentos sociais a esses limites que
tem na institucionalidade.
O Brasil de Fato foi lançado
durante o Fórum Social
Mundial. O balanço que o
senhor faz do FSM e das coisas
que aconteceram no Brasil e na
América Latina nestes dez anos é
otimista ou pessimista?
É realista. Há avanços importantes,
que não fossem as edições do FSM não
teriam acontecido. Agora, há coisas que
poderiam ter ido mais longe. O FSM
também não pode ficar atrelado e dependente de governos, mesmo que sejam governos sérios e comprometidos com as
lutas sociais. O Fórum tem que ter formas de fazer com que suas deliberações
ecoem nas instâncias supranacionais,
nos organismos internacionais. O fato
de o FSM ter perdido um pouco do foco,
porque se mundializou, passou a acontecer em diferentes locais e depois ter encontros maiores, continentais, para depois ter um encontro global, tem que ser
revisto, para não se perder.
““Há uma realidade a ser
enfrentada. E é preciso ter povo
mobilizado constantemente, não
como massa de manobra, mas para
formar uma base de sustentação”
E qual o balanço realista
que o senhor faz da
imprensa alternativa
brasileira neste período?
Cresceu muito, eu penso. Temos muitos veículos alternativos, mas qual é o
conteúdo, o que estão provocando? Penso que esse florescimento de uma imprensa alternativa é um caminho importante para enfrentar os grandes grupos econômicos que lidam com a informação. É preciso ter uma miríade de fontes alternativas de informação e comunicação. Mas precisam ter uma visão, não
é cada uma no seu território, na sua categoria, é preciso ter uma visão de como
as coisas se relacionam, se interligam. E
isso também é papel dos partidos políticos, instigar essas relações e a qualificação da intervenção. Temos um governo com problemas sérios na relação com
os grandes grupos econômicos e a grande mídia. A grande mídia se alimenta das
contas de publicidade do governo e das
empresas públicas. Enquanto isso, para jornais e veículos alternativos sobram
migalhas. São questões políticas e precisam ser encaradas. Isto é uma dívida que
ainda não saldamos.
brasil
de 24 a 30 de janeiro de 2013
9
“Chávez é um mortal.
Mas a Revolução Bolivariana é eterna”
Divulgação
ENTREVISTA Para o jornalista e
escritor Fernando Morais, uma das
maiores conquistas da Revolução
Bolivariana comandada por Chávez
foi o alto nível de consciência política
adquirida pelo povo da Venezuela
Nilton Viana
da Redação
“SE VOCÊ OLHAR o mapa da América
Latina de duas, três décadas atrás, verá
que o continente estava coalhado de ditaduras e governos alinhados automaticamente com os interesses dos Estados
Unidos”. Hoje é o oposto. Assim o jornalista e escritor Fernando Morais vê o
atual cenário da América Latina. E, segundo ele, não se trata de uma visão retórica, mas muito concreta. Para isto, cita como exemplos o sepultamento da
Alca e a reação do Mercosul ao golpe que
depôs o presidente Lugo, no Paraguai.
Nesta entrevista, Fernando Morais,
que participou do processo de criação do
Brasil de Fato, afirma estar tranquilo
com o processo venezuelano. Para ele,
que é amigo pessoal do presidente Hugo
Chávez, a Revolução Bolivariana é eterna. Sobre o Brasil, Morais avalia que os
dez anos de governos Lula/Dilma foram
positivos. “Se tivesse que votar no Lula
ou na Dilma de novo, faria isso de olhos
fechados”, afirma. Para ele, salvo as exceções, a mídia brasileira já é um partido político de direita, e o Brasil de Fato funciona como um respiradouro que
nos salva da asfixia produzida pela grande imprensa.
Brasil de Fato – A América
Latina passou por uma mudança
nesses últimos 10 anos, com a
chegada de forças progressistas
aos governos. Qual sua opinião
sobre esse processo e sobre a
continuidade dele?
Fernando Morais – Se você olhar o
mapa da América Latina de duas, três
décadas atrás, verá que o continente estava coalhado de ditaduras e governos
alinhados automaticamente com os interesses dos Estados Unidos. Hoje é o
oposto. À exceção do Chile, do Paraguai
(este vítima de um golpe de Estado) e de
mais um ou outro caso, como o da Colômbia, temos governantes progressistas
à frente de todos os países. Alguns deles,
como Pepe Mújica, no Uruguai, e Mauricio Funes, de El Salvador, egressos da luta armada. Não se trata de uma visão retórica, mas muito concreta. Os melhores
exemplos disto foram o sepultamento
da Área de Livre Comércio da Américas
(Alca) e a reação do Mercosul ao golpe
que depôs o presidente Lugo, no Paraguai. É sobre esse cimento que está sendo construída a unidade que vai garantir
a continuidade desse processo.
“O radicalismo da Revolução Cubana,
em seus primeiros anos, sobretudo,
só encontra paralelo, acredito, na
Revolução Russa de 1917”
Como você vê a questão da
Venezuela, em particular, com
o agravamento da doença do
presidente Hugo Chávez?
Não me abate qualquer preocupação
com o futuro da Venezuela. Uma das
maiores conquistas da Revolução Bolivariana comandada por Chávez foi o alto nível de consciência política adquirida pelo povo da Venezuela – sobretudo
os mais pobres, que são a ampla maioria da população. Isto a grande imprensa brasileira não publica. Como não publicou uma sílaba sobre dados divulgados recentemente por organismos internacionais revelando que a Venezuela
é o país que detém os mais baixos índices de desigualdade social do continente. Minha tristeza com o que ocorre com
o presidente Chávez é também pessoal.
Tenho muita honra em ser amigo dele.
Aqui, ao lado da minha mesa, tenho um
taco de beisebol autografado por ele para mim: “Para Fernando Morais, bateador de jonrones de la unidad latino-americana, Hugo Chávez”. Quis saber o que
significava, na linguagem do beisebol,
“bateador de jonrones”, e ele me respondeu que era algo como um “centroavante matador” no futebol. Como todos
nós, Chávez é um mortal. Mas a Revolução Bolivariana é eterna.
Quais são as principais mudanças
ocorridas em Cuba nesses últimos
dez anos e qual sua opinião sobre
o futuro da revolução cubana?
cação. Neste caso, a dupla formada pelo ministro Franklin Martins e pelo jornalista Ottoni Fernandes, recentemente falecido, produziu avanços significativos. A mudança nos critérios de distribuição das verbas publicitárias do governo federal – uma cordilheira de dinheiro que antes era concentrada nas
mãos dos grandes conglomerados de
mídia – foi uma revolução, mas é preciso avançar mais. É preciso não ter medo
de fazer a luta política pela implantação
do Marco Regulatório da mídia no Brasil. Na área eletromagnética – canais de
televisão e estações de rádio – isso chega a ser escandaloso. Um bem social,
um bem público, como o sinal de rádio e tv, é entregue a meia dúzia de famílias e a congressistas sem que a sociedade tenha qualquer instrumento para
cobrar um serviço de qualidade por parte do concessionário. Vai dar briga? Vai,
mas governar é se confrontar com interesses antagônicos e escolher de que lado você vai ficar.
“É importante ficarmos
de olho, porque as
grandes empresas de
telecomunicações estão se
armando para assumir o
controle da web”
O jornalista e escritor Fernando Morais
O radicalismo da Revolução Cubana,
em seus primeiros anos, sobretudo, só
encontra paralelo, acredito, na Revolução Russa de 1917. Na área econômica
o processo começou com a estatização
do sistema bancário e a “expropriação
forçada” de quase mil indústrias, entre
as quais se encontravam cem usinas de
açúcar e algumas gigantes como a fábrica
de rum Bacardi e a norte-americana DuPont Chemical. E terminou estatizando
até carrinhos de pipoca. Manicures, barbeiros, engraxates e taxistas passaram a
ser funcionários do Estado. Nos últimos
anos o presidente Raúl Castro vem adotando medidas para corrigir esses erros.
Antes tarde do que nunca. E desde o começo do mês de janeiro acabaram-se as
restrições para que cubanos viagem ao
exterior, outra medida acertada. O próprio Fidel declarou, anos atrás, que a Revolução tinha que ser “obra voluntária de
um povo livre”, já apontando para o fim
dos obstáculos às saídas do país. A essas
mudanças vai se somar um grande surto de crescimento econômico decorrente da ampliação do porto de Mariel, perto de Havana – ampliação financiada pelo BNDES. Por sua privilegiada posição
geográfica, Mariel se converterá num gigantesco e bem situado hub, um centro
de transportes intermodais. Conheço
empresários brasileiros interessados em
comprar, arrendar ou alugar terrenos
nas imediações de Mariel para instalar
grandes armazéns de storage que atenderão o movimento do porto. A dimensão desse boom econômico, no entanto,
vai depender do fim do bloqueio imposto
pelos EUA a Cuba há meio século. Quem
sabe o presidente Obama, que não pode
se candidatar à reeleição e, portanto, não
precisa mais beijar o anel dos barões da
poderosa e influente comunidade cubana na Flórida, ponha fim ao bloqueio.
Afinal, ele ganhou o Nobel da Paz e já está na hora de fazer jus ao prêmio.
“Quem sabe o presidente Obama, que
não pode se candidatar à reeleição
e, portanto, não precisa mais beijar
o anel dos barões da poderosa e
influente comunidade cubana na
Flórida, ponha fim ao bloqueio”
E a questão dos 5 cubanos.
Como a sociedade brasileira e
os povos devem agir para que
estes heróis cubanos, presos e
condenados injustamente pelos
EUA, sejam libertados?
Renomados juristas europeus e norte-americanos afirmam que a condena-
ção dos cubanos é um erro judiciário
comparável ao que levou os anarquistas italianos Nicola Sacco e Bartolomeo
Vanzetti à cadeira elétrica nos Estados
Unidos nos anos 1920. Até o ex-presidente Jimmy Carter já sugeriu ao presidente Obama que os indultasse. Mas
enquanto a máfia cubana de Miami tiver poder – dinheiro e eleitores – para
eleger deputados, senadores e até presidentes, esse perdão me parece muito remoto. Hoje há cerca de quinhentos comitês pró-libertação dos 5 espalhados
por todo o planeta. Oito deles são dirigidos por prefeitos de cidades do interior dos EUA. Os nomes mais expressivos da esquerda de Hollywood – Sean
Penn, Danny Glover, Saul Landau, Oliver Stone, Benicio del Toro, entre outros
– participam de atos a favor da libertação. Mais dia, menos dia eles estarão tomando um mojito nas ruas de Havana,
tenho certeza.
“É preciso não ter medo
de fazer a luta política
pela implantação do
Marco Regulatório da
mídia no Brasil”
No Brasil, também estamos
completando uma década
de governo progressista, de
esquerda. Qual a sua avaliação
deste período? Quais os
principais avanços?
A minha avaliação é muito positiva. Se
tivesse que votar no Lula ou na Dilma de
novo, faria isso de olhos fechados. A inclusão social de dezenas de milhões de
brasileiros, em si, já justificaria um governo. Mas a isso se soma a democratização do acesso às universidades, através do Prouni, as políticas de cotas raciais... E, claro, é preciso ressaltar que
durante o período o Brasil teve a mais
independente e soberana política externa de toda sua história. Como bem disse
Chico Buarque, o Brasil parou de falar fino com os Estados Unidos e falar grosso
com a Bolívia. Não podemos nos esquecer de que a morte da Alca começou com
a recusa do Brasil de Lula a entrar nessa
canoa furada.
O que você destacaria deste
período brasileiro que o
governo Lula e agora o governo
Dilma ainda não avançou e que
merece urgência?
Dois temas me preocupam: a questão
agrária, que está na raiz da maior parte dos problemas sociais brasileiros, e
a democratização dos meio de comuni-
A mídia brasileira tem se
posicionado cada vez mais como
um verdadeiro partido político
das elites. Como você analisa a
mídia brasileira?
Salvo as exceções de praxe, a mídia
brasileira já é um partido político de direita. Mas uma direita ainda meio envergonhada, que não tem coragem de se assumir como de direita. Então isso não
aparece no expediente do jornal ou da
revista.
O jornal Brasil de Fato está
completando 10 anos. Qual a
importância de um veículo como
este e qual o papel fundamental
da mídia alternativa/popular no
atual cenário brasileiro?
Eu estou com o Brasil de Fato desde o quilômetro zero. Fui voto vencido
na reunião de escolha do nome (eu defendia “Aurora”, nome do cruzador que
transportou os bolcheviques na conquista de São Petersburgo, em 1917), fui
do conselho do jornal durante muitos
anos e sou leitor regular do Brasil de
Fato. O jornal funciona como um respiradouro que nos salva da asfixia produzida pela grande imprensa. É uma pena
que experiências como esta não se multipliquem pelo país.
Em relação ao mercado
editorial brasileiro, esses 10
anos representaram mudanças
significativas? Qual tem sido
a influência da internet na
produção editorial brasileira?
A mudança mais significativa foi o advento da internet como instrumento de
comunicação de massa. O futuro é a internet, o papel impresso está com os dias
contados. E esse fenômeno me parece
muito saudável e democrático – veja a
importância que adquiriram os blogueiros progressistas no enfrentamento com
a mídia tradicional. Por isso é importante ficarmos de olho, porque as grandes empresas de telecomunicações estão se armando para assumir o controle da web.
QUEM É
Fernando Morais nasceu em Mariana-MG
em 1946. É jornalista desde 1961. Trabalhou
nas redações do Jornal da Tarde, Veja, Folha
de S. Paulo e TV Cultura. Recebeu três vezes o
Premio Esso e quatro vezes o Prêmio Abril de
Jornalismo. Foi deputado (1978-1986), secretário da Cultura (1988-1991) e da Educação
(1991-1993) do Estado de Sao Paulo. É autor
do roteiro da minissérie documental Cinco
dias que abalaram o Brasil, sobre o suicídio do
presidente Getúlio Vargas, exibida pelo canal
GNT/Globosat. Antes de Os últimos soldados da
Guerra Fria, escreveu os livros Transamazônica,
A Ilha, Olga, Chatô, o rei do Brasil, Cem quilos de
ouro, Corações sujos (Premio Jabuti – Livro do
Ano de 2001), Toca dos Leões, Montenegro e O
Mago (biografia do escritor Paulo Coelho, traduzido em dezenas de idiomas). Publicado em
mais de vinte países, em 2004 Olga foi transformado em filme pelo diretor Jayme Monjardim, película vista por mais de cinco milhões
de espectadores e indicada pra representar
o Brasil no Oscar de 2005. Fernando Morais
faz parte do Conselho Superior da Telesur, TV
pública latino-americana sediada em Caracas,
Venezuela.
12
de 24 a 30 de janeiro de 2013
cultura
O legado de Sabotage,
a saudade de Maurinho
13 Produções
TRIBUTO No dia 24 de
janeiro de 2003 o maestro
do Canão, referência à
favela em que morava,
deixava nosso mundo.
Ele seria, no dia seguinte,
a atração surpresa em
uma das atividades do
Fórum Social Mundial,
onde nascia o jornal
Brasil de Fato
aos anseios dos povos por transformações estruturais na sociedade, nascia o
jornal Brasil de Fato.
Exemplo
Chamado Maestro do Canão, Sabotage colecionou afetos no lugar onde viveu. “Nossa comunidade passou a ser
reconhecida depois das músicas dele.
Ele falava nossa realidade”, relata Tatiane Cristina, 32, moradora do Canão
e amiga do rapper desde a infância. “Ele
nunca mudou o jeito dele. Sempre foi
humilde”, conta Lucilene Santos Almeida, que cuida do único comércio do local, um boteco.
“Eu vi ele escrevendo a música Respeito é pra quem tem. Nossa, Maurinho era foda, chega até a arrepiar”,
diz emocionada Vilma Maria, 33, que
diz se sentir privilegiada pelo legado
que Sabotage deixou à comunidade.
“As crianças hoje em dia levam como
exemplo as músicas dele. A gente também mudou bastante. A gente leva o
que ele deixou no coração como exemplo, e vamos passando para as nossas
crianças”, diz.
José Francisco Neto,
Jorge Américo (Brasil de Fato) e
Igor Carvalho (Revista Fórum)
da Reportagem
NA ALTURA do número 3.100 da Avenida Água Espraiada, no Brooklin, zona sul de São Paulo, uma porta de madeira é o elo entre a imagem projetada
pelo poeta e a realidade. Ali, na apertada, acanhada, acolhedora e mística favela do Canão, um corredor de aproximadamente 20 metros é o que liga todas as casas e serve de passagem aos
moradores. No final dele, quatro jovens
balançam o corpo ao som de País da fome, um dos sucessos musicais de Mauro Mateus dos Santos, o Maurinho, ou
Sabotage.
O amor de Sabotage a sua comunidade o colocou no patamar de Alberto
Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa. Se o rio Tejo não é mais belo que o
rio que corre pela aldeia do poeta português, também não há melhor lugar que
a Favela do Canão. Com a força de sua
música, Sabotage fez o pequeno vilarejo onde vivem 18 famílias ser quase tão
conhecido quanto a Favela da Rocinha,
com seus 70 mil habitantes.
O rapper paulistano Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage
Considerado uma lenda no movimento Hip Hop, Sabotage começou a carreira em 1998, fazendo parcerias com
o grupo RZO [Rapaziada da Zona Oeste]. A partir daí, com estilo próprio de
cantar e criatividade nas composições,
o músico disparou até chegar às telas do
cinema nacional. Participou do filme O
Invasor (2001), de Beto Brant, e também de Estação Carandiru (2003), de
Hector Babenco.
Sabotage ganhou, no final de 2002, o
Prêmio Hutus como revelação do ano
e personalidade do movimento Hip
Hop. No entanto, a ascensão meteórica foi interrompida por quatro disparos
à queima-roupa há dez anos. “Eu lembro até hoje o que o repórter falou na
televisão: ‘Mauro Mateus dos Santos,
conhecido como Sabotage, foi assassinado hoje por volta das seis da manhã’, lembra Wanderson Rocha, o Sa-
“A gente leva o que ele deixou
no coração como exemplo,
e vamos passando para as
nossas crianças”
botinha, de 20 anos, filho mais velho do
cantor. A filha do meio, Tamires Rocha,
embora tivesse oito anos de idade, ainda recorda com detalhes aquela manhã
do dia 24 de janeiro de 2003. Ela conta
que estava junto de seu irmão se arrumando para ir à escola. “Foi aí que um
vizinho nosso, o Diego, bateu na porta
da nossa casa e disse que minha mãe tinha ligado e que era pra gente não sair.
Foi quando, na televisão, falou ‘Sabotage’. O pai do Diego desligou a TV e falou pra gente subir para o quarto. Só
que a televisão do quarto estava ligada,
aí ouvimos a notícia. Meu pai tinha sido baleado”, lamenta Tamires.
Na data em que sofreu o atentado,
Sabotage viajaria para Porto Alegre
(RS), onde, no dia seguinte, seria atração surpresa em uma das atividades do
Fórum Social Mundial. Coincidência
ou não, no dia 25 de janeiro, em meio
Maria Dalva, viúva do rapper, faz papel dobrado na educação dos filhos. Preocupada com o futuro de Wanderson,
Tamires e Larissa, ela enaltece a importância do exemplo deixado pelo marido.
“Sempre tem alguém oferecendo um
caminho errado, e nessas coisas de rua
e de crime o pai sempre é mais ouvido
do que a mãe. Então eu não sabia, muitas vezes, como resolver isso. Mas graças a Deus nunca aconteceu nada. A
maior herança que ele deixou para os filhos é a imagem dele”, desabafa.
Reprodução
Sabota versátil
Documentarista
destaca as incontáveis
possibilidades do
artista
da Reportagem
Sabotage (ao centro) em cena do filme Carandiru
Resgatado da “boca”
O rapper Rappin Hood
narra o momento em
que ajudou a tirar
Maurinho do mundo do
tráfico de drogas
da Reportagem
“Um negrinho magrelo andando com
um revólver na cintura e um pacote
cheio de drogas na mão”. A descrição
parece cena de um dos inúmeros filmes
brasileiros que retratam o tráfico, mas o
protagonista é um personagem da vida
real: Mauro Mateus dos Santos, que em
pouco tempo ficaria nacionalmente conhecido como Sabotage.
Parecia impossível, mas os rappers
Rappin Hood e Sandrão foram até o
ponto de venda de droga (conhecido como “boca”) determinados a apresentar
uma alternativa ao jovem. “Chamei ele
pra ir com nós. Ele perguntou se a gente estava falando sério. Eu falei que era
isso mesmo, e que nós íamos fazer uma
corrida pra ele gravar um CD”, narra
Hood ao Brasil de Fato, que já o co-
nhecia desde os anos de 1990. O assunto se estendeu até chegar ao dono
da “boca”. Quando soube que Sabotage ia sair da ilegalidade para ingressar
no mundo da música, questionou: “Vocês vão levar o menino. Mas e se um dia
ele voltar aqui? Eu não vou dar trabalho
pra ele, não”. De imediato, Hood respondeu: “Ele não vai mais voltar.” E,
realmente, não voltou.
Sabotage começou a cantar nos shows dos grupos RZO, Posse Mente Zulu,
Potencial 3 e do próprio Rappin Hood.
Quando Mano Brown, do grupo Racionais MCs, o viu cantando, se propôs a ajudar o futuro rapper a gravar
seu primeiro CD. “Aí entramos pro estúdio com ele. Junto com o Instituto e
toda a rapaziada. Lá ele fez o disco ‘Rap
é Compromisso’. Todo mundo participou”, lembra Hood.
Em pouco tempo, Sabotage se apresentou na MTV, gravou clipe e ganhou
visibilidade. Além da música, Sabotage
atuou no cinema nacional, participando
do filme O Invasor, de Beto Brant, onde conheceu e formou parceria com o
músico Paulo Miklos, integrante do Titãs. Na sequência, foi convidado para
Estação Carandiru, do diretor Hector
Babenco, interpretando o personagem
Fuinha. (JFN, JA e IC)
O cabelo espetado – inspirado no rapper americano Coolie –, o flow (estilo
melódico) peculiar, a paquera com o cinema e o linguajar típico da malandragem transformaram Sabotage em uma
personalidade insubstituível no rap.
Mas o que mais chamou atenção em
seu trabalho foi a versatilidade e a capacidade de dialogar com outros ritmos
musicais.
Tais qualidades são destacadas pelo
documentarista Ivan Vale Ferreira, que
vem trabalhando no documentário Sabotage, o maestro do Canão, que retrata a vida e carreira do rapper.
Ferreira compara a morte de Sabotage com a de renomados artistas. Para ele, Maurinho, como era conhecido
entre os amigos, tinha muito a doar para a música brasileira. “Pra mim é como
se ele fosse Cássia Eller, Chico Science,
pessoas que morreram no auge da carreira. Essa talvez seja a maior falta que
ele faz, por ter pensado muito em fazer
coisas diferentes e não ter tido tempo
suficiente para realizar. A música nacional foi quem mais perdeu”, ressalta.
O documentário, que sairá pela 13
Produções, tem previsão de ser lançado
ainda neste semestre e trará depoimentos de diversos músicos e pessoas ligadas a ele. O objetivo, segundo Ferreira, é
demonstrar “a importância desse artista que misturou estilos e se tornou uma
lenda após sua morte.” (JFN, JA e IC)
Sabotage, segundo os rappers
“O Sabotage fez várias transformações de grande relevância dentro do
rap. No contexto social, ele ajudou a elevar o rap para além das fronteiras
que separam o morro e o asfalto. Vejo ele como um agente transformador.
Musicalmente, ele trouxe evoluções pra música rap, diferenciando flows,
levadas e temas. Nesses 10 anos não é à toa que ele se manteve vivo.” Flávio Renegado
“Sempre quando paro pra escrever uma letra lembro muito de uma frase do Sabotage: “rap é compromisso, não é viagem”. Sempre pensei assim.
Acredito que nossa maior afinidade seja essa.” Dexter
“A passagem do Sabotage pelo rap foi primordial para quem já rimava e
para quem veio depois, tanto com relação aos MCs e DJs como para quem
escuta rap. Ele mostrou que dava pra gente abordar diversos assuntos sem
deixar de falar pelo nosso povo.” Du Bronk’s
“É isso que eu quero guardar dele. Aquela alegria, aquela vivacidade,
aquela malandragem e aquela inteligência. O neguinho era da hora, cara.
Eu quero lembrar dele assim.” Rappin Hood
“Perdemos não só um músico da periferia, mas também um dos manos
mais humildes e talentosos do cenário.” Bad, Família Brooklin Sul
américa latina
de 24 a 30 de janeiro de 2013
13
“Nosso futuro está cheio
de sorrisos, música e amor”
Cuba Solidarity Campaign
ENTREVISTA
Aleida Guevara analisa
a sociedade cubana e
aponta os desafios do
governo da ilha para os
próximos anos
“Gostaria de ver [no
Brasil] uma reforma
agrária e que esse gigante
latino-americano fizesse
parte da Alba”
Nilton Viana
da Redação
FILHA DO GUERRILHEIRO e revolucionário Ernesto Che Guevara, pediatra
e militante da revolução cubana. Aleida
Guevara vive em Havana desde seu nascimento em 1960, um ano após o trunfo
da revolução que seu pai ajudou a construir ao lado de Fidel Castro e outros
guerrilheiros.
Em entrevista ao Brasil de Fato,
Aleida, que esteve presente no ato de
fundação do jornal, analisa o atual contexto de Cuba no cenário latinoamericano e traça as perspectivas para o futuro.
O que você diria aos jovens da
periferia urbana brasileira, que
gostam do Che?
O que eu digo a todos os jovens, estudem Che, leiam-no, pratiquem-no, tragam-no junto a vocês para enfrentar
sua realidade cotidiana.
E o que você diria aos jovens
que se formam em medicina, e
que às vezes apenas pensam em
ganhar dinheiro, para “subir”
na vida?
Digo que se pensarem assim, nunca
serão médicos. Esta profissão, como a
dos professores, é de entrega total e o
único amo a quem respondemos é o povo. Estar perto da dor e da alegria das
pessoas te converte em um ser humano melhor, se não é assim, melhor não
ser médico.
“Somos mais fortes como
sociedade, temos maior
desenvolvimento na
nossa segurança interna,
então podemos ser muito
mais hospitaleiros com a
nossa gente”
Brasil de Fato – A América
Latina passou por mudanças
importantes – principalmente
com a chegada de governantes
progressistas, anti-imperialistas
e de esquerda. Como você
avalia o atual cenário latinoamericano em relação a Cuba?
Aleida Guevara – Para nossa grande pátria é um momento de esperança, mas o melhor é que já se pode ver
os sonhos tornando-se realidades, nossos povos começam a sentir que se pode, começam a desfrutar, pela primeira
vez em nossa história, de seus próprios
recursos naturais, com os quais se pode obter reais benefícios na educação,
na saúde, em moradia. Pela primeira
vez, vemos exércitos que costumavam
nos reprimir participando das novas
construções e defendendo seu povo. Isto permite uma relação muito mais estreita entre nossos povos, onde os intercâmbios econômicos e culturais aumentam diariamente e o povo cubano
participa ativamente em todo esse processo de união. Trabalhamos muito pela solidariedade e recebemos muita solidariedade. Já não estamos ilhados, somos parte integrante de um amanhecer,
a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Agora sim começamos a
desfrutar da pátria grande.
Nesses 10 anos, ocorreram
algumas mudanças em Cuba,
como a saída de Fidel Castro e a
chegada de Raul ao poder. Como
avalia essas mudanças?
Não são mudanças, é a continuidade de um processo revolucionário, que
amadurece, cresce e se desenvolve. Podemos dizer com certeza que ainda há
muito o que melhorar, mas podemos
fazê-lo pela acumulação de experiência,
porque temos vencido milhares de enfrentamentos e vamos buscando soluções para os problemas que temos.
“Por que é diferente
para os cubanos? Será
pela propaganda que
desenvolvem contra nossa
sociedade? ”
A reforma migratória acaba de
entrar em vigor em Cuba. Qual
deve ser a importância dessa
nova medida?
Isto reflete o que eu disse anteriormente, somos mais fortes como sociedade, temos maior desenvolvimento na
nossa segurança interna, então podemos ser muito mais hospitaleiros com a
nossa gente. É um processo de amadurecimento que leva anos se aperfeiçoando, não são coisas decididas em pouco tempo, levamos muitos anos buscando soluções, escutando o sentimento de nosso povo, mas sem perder nem
por um instante a consciência das ma-
ocorrer. O importante para mim é que
o povo dos Estados Unidos desperte de
sua letargia e tome consciência do poder que tem como povo e tome as rédeas, só então poderemos falar de alguma
mudança, enquanto isso não ocorrer,
teremos o mesmo cachorro com uma
coleira diferente.
A médica cubana Aleida Guevara
nipulações que o governo dos EUA realizam para tentar danificar nossa soberania, é sem dúvidas um inimigo muito poderoso e não podemos nos descuidar. Por outro lado, o governo cubano sempre foi criticado por não permitir que seus cidadãos viajassem livremente, mas poucos conhecem os acordos migratórios que nosso governo tem
tentado negociar com os EUA. Há anos
lhes temos pedido que cumpram os 20
mil vistos anuais prometidos e que somente nos últimos anos têm feito. Poucos conhecem sobre a lei implementada
por eles para receber ilegalmente cubanos em seu território nacional, nós somos os únicos cidadãos deste planeta que se chegamos ilegalmente à costa dos Estados Unidos somos recebidos
como heróis e está estabelecido por lei
que temos direito a moradia, trabalho e
algum dinheiro e em um ano podemos
optar pela cidadania estadunidense, tudo isso se chegarmos ilegalmente a seu
território. Pensem quantos mexicanos
ou haitianos morreram tentando fazer o mesmo. Por que é diferente para os cubanos? Será pela propaganda
que desenvolvem contra nossa sociedade? De toda forma, seguimos em frente,
agora veremos quantos vistos receberemos, mas pessoalmente estou contente,
acho que essas medidas são boas para
nosso povo.
Qual é, a seu ver, o principal
legado de Che Guevara para a
América Latina?
Che é o arquétipo mais completo do
novo homem, com capacidade para
amar, para lutar, para aprender, para
viver com dignidade. Sua própria vida
se converte em seu melhor legado, mas
pessoalmente me comove sua capacidade para amar, só dessa forma se pode
estar disposto a entregar sua vida por
outros homens e mulheres. Che representa a continuidade dos melhores próceres de nossa América. Che é futuro.
O que você acha do socialismo?
Devemos continuar insistindo
na luta por uma sociedade
socialista?
Com certeza. Como podemos garantir
uma educação gratuita e em igualdade
de condições para todo o povo? Como
garantir saúde para todos, como direito
do ser humano? Como assegurar a alimentação do povo? Somente podemos
conseguir isso se somos donos do que
produzimos, se nossas terras são utilizadas como propriedade coletiva e não
por poucos ou companhias estrangeiras
e se garantirmos reforma agrária, se o
capital se emprega em benefício social
e não para o lucro de poucos. Enfim, só
atingiremos a soberania e a prosperidade para nossos povos se construirmos
uma sociedade de direito com respeito
a cada um de nossos homens, mulheres
e crianças. E eu só conheço isso em uma
sociedade socialista.
“Che é o arquétipo mais completo do
novo homem, com capacidade para
amar, para lutar, para aprender,
para viver com dignidade”
Como você vê o futuro de
Cuba, diante da difícil situação
econômica?
Com muito trabalho, com muito que
aprender e muito o que resolver, mas
sempre melhorando e aperfeiçoando
nossa sociedade socialista, certamente seria muito útil se abolissem o bloqueio econômico criminoso que os EUA
nos impõem há mais de 50 anos.O futuro vem cheio de tecnologia, já estamos desenvolvendo um polo científico
que produz, ainda nessas condições de
bloqueio, medicamentos e vacinas que
podem ajudar a melhorar a vida de milhões de pessoas neste planeta, nosso
futuro está cheio de sorrisos, música e
amor, porque assim somos, mas também há determinação, valor e força.
Como você avalia a gestão de
Obama, em relação a Cuba,
sobretudo em comparação
com os governos anteriores
(Clinton e Bush)?
De Obama esperávamos muito mais,
mas simplesmente se tem comportado
como mais um fantoche dos interesses
econômicos das transnacionais e da indústria armamentista de seu país, mas,
todavia, não perdemos as esperanças
de que possa fazer algo útil para seu
próprio povo em relação à saúde, educação, moradia e sobretudo protegê-los
da violência em que vivem, mas a verdade é que acho isso muito difícil de
No Brasil, estamos completando
uma década de um governo
progressista. Como você vê o
cenário brasileiro?
A verdade é que eu gostaria de ver
uma reforma agrária, gostaria que esse
gigante latino-americano fizesse parte
da Alba, gostaria que nenhum homem,
mulher ou criança desse belo país passasse fome ou alguma necessidade, pois
não posso entender como com tanta riqueza exista uma única pessoa passando necessidades. Creio que podem fazer
muito mais e não só o governo, mas vocês mesmos, como massa humana, com
força suficiente para defender seus direitos. Creio nos movimentos sociais
como o MST, porque eles mostram que
“sim, se pode” e tornam o sonho realidade. Há algum tempo visitei uma
das maiores minas de ferro do mundo
e fiquei muito impressionada, está na
Amazônía brasileira e para tirar o ferro
têm cortado milhares de árvores ancestrais, por favor, amigos, tenham cuidado! O homem pode viver sem ferro, mas
não pode viver sem oxigênio, defendam
o futuro da nossa espécie.
“O homem pode viver sem
ferro, mas não pode viver
sem oxigênio, defendam o
futuro da nossa espécie”
A chamada grande mídia tem se
posicionado cada vez mais como
um verdadeiro partido político
das elites. Como você analisa a
imprensa?
A imprensa é muito importante, tem
a responsabilidade de alertar as pessoas sobre tudo o que acontece em nosso
entorno, mas quando essa imprensa se
converte em papagaio repetidor de notícias e sequer toma o trabalho de investigá-las, essa imprensa se converte em uma grande máquina de desinformação e isso é muito perigoso e danoso, pois pode impedir que as pessoas reajam a tempo contra algo perigoso ou injusto.
Você esteve no lançamento do
nosso jornal Brasil de Fato,
em janeiro de 2003. Agora,
estamos completando 10 anos.
Qual a importância de um
veículo como este e qual o papel
da mídia alternativa/popular
para os povos?
O povo necessita sentir que tem voz,
que é escutado e defendido. É esse o papel tão importante que têm os meios alternativos. Feliz aniversário. E que tenham muitos anos, mas sempre a serviço dos que sabem amar.
QUEM É
Aleida Guevara March é filha do revolucionário Ernesto “Che” Guevara, médica pediatra.
Trabalhou como médica em Angola, Equador
e Nicarágua. Mora atualmente em Cuba e é
militante do Partido Comunista Cubano.
16
de 24 a 30 de janeiro de 2013
internacional
Reprodução
Nuremberg, a memória na história
OPINIÃO
O imperialismo
contemporâneo
empenha-se em apagar
da história a memória do
fascismo. Daí a atualidade
permanente do belo livro
de Arkadi Poltorak sobre o
Processo de Nuremberg
Miguel Urbano Rodrigues
NA EUROPA, as campanhas de branqueamento do fascismo ganharam amplitude nos últimos anos. Em livros, na
televisão e em mesas redondas, historiadores, politólogos e sociólogos esforçam-se por negar, em Portugal, na Espanha, na Hungria e na Romênia que
Salazar, Franco, Horthy e Antonesco tenham sido ditadores e qualificam
os seus regimes de “autoritários”, afirmando que praticaram políticas musculadas. A própria ação das polícias políticas é minimizada. Os fascismos ibéricos, nomeadamente, teriam sido uma
invenção dos comunistas.
Na Itália, os políticos de direita vão
mais longe. Partidos neofascistas têm
exercido o poder e Mussolini é apresentado por destacados intelectuais como
um estadista progressista, autor de uma
obra revolucionária. Assim se tenta apagar a memória em agressão à história.
Reli há dias um livro que adquiri na
União Soviética e que então me lançou
em profunda meditação sobre a “elite nazi” responsável pela tragédia da II
Guerra Mundial: O Processo de Nuremberg, de Arkadi Poltorak, o juiz que foi
chefe do secretariado soviético do Tribunal Internacional que julgou os grandes criminosos de guerra nazis naquela
cidade alemã.
Eles são o símbolo vivo
do ódio racial, do reino
do terror, da arrogância
e da crueldade, da
vontade de poder
Julgamento
Foram 22 os militares e civis então
julgados. Onze, entre os quais Goering, Keitel, Jodl, Ribbentrop, Rosenberg, Streicher, Kaltenbrunner, Seyss
Inquart, Sauckel, Frank e Frick foram
condenados à morte e enforcados. Rudolf Hess foi condenado a cumprir prisão perpétua.
Os almirantes Raeder e Doenits, Albert Speer, Schirach e Neurath, condenados em penas pesadas, foram mais
tarde anistiados e faleceram em liberdade.
Hitler, Goebbels e Himmler suicidaram-se nos últimos dias da guerra para
escapar do castigo. Ley suicidou-se no
cárcere nas vésperas da audiência. Bor-
mann, foragido, foi também condenado à morte.
Schacht, Von Papen e Fritzsche foram
absolvidos apesar da oposição dos magistrados soviéticos.
Durante a audiência, que durou 250
dias, o tribunal examinou os originais de mais de 3.000 documentos, interrogou 200 testemunhas e recebeu
300.000 depoimentos sob juramento.
Muitas das provas eram documentos
confiscados pelos exércitos aliados nos
estados-maiores alemães, em repartições públicas e esconderijos em minas de sal, paredes falsas e subterrâneos. Os advogados de defesa defenderam
os réus sem restrições, como nos tribunais ocidentais.
O Procurador-Geral americano, Robert Jackson, justificou o Tribunal Internacional com estas palavras:
“O que confere tanta importância a
esta audiência é o fato de estes réus representarem influências nefastas que,
muito tempo depois de os seus corpos
se terem desfeito em pó, ainda inquietarão o mundo. Eles são o símbolo vivo
do ódio racial, do reino do terror, da arrogância e da crueldade, da vontade de
poder. São os símbolos de um nacionalismo e de um militarismo selvagens, de
intrigas e preparativos para uma guerra, no decurso da qual gerações inteiras
foram na Europa transplantadas, em
que homens foram exterminados, lares
destruídos e toda a economia levada ao
depauperamento”.
Roman Rudenko, o Procurador-Geral
soviético, sublinhou na caracterização
do Processo que era a primeira vez na
história da humanidade que eram julgados criminosos que se tinham apossado de um Estado para fazerem dele
instrumento de monstruosos crimes.
No veredito emitido, o Tribunal Internacional recordou que “os campos
de concentração se haviam tornado lugares de extermínio organizado e metódico”, lembrando que os assassinos se
compraziam em requintes de crueldade.
Submetiam com frequência prisioneiros
a torturas monstruosas, incluindo “diferentes experiências sobre a reação a
grandes altitudes, ao tempo de vida na
água gelada, ao efeito de balas envenenadas e a certas doenças contagiosas”.
Numa inesquecível visita a Auschwitz, em 1981, tive a oportunidade de
ver abajures de pele humana, margarina e sabonetes confeccionados com gordura humana, e máquinas que transformavam ossos humanos em adubos.
O livro de Poltorak chama a atenção para uma realidade esquecida: os
magnatas da indústria e da finança do
III Reich, Krupp, Voegler, Lowenfeld,
Schroeder, Tyssen e Schnitzler contribuíram ativamente para a subida de Hitler ao poder, apoiaram as suas guerras
de agressão, alguns colaboraram na estratégia da “solução final” cujo desfecho foram as câmaras de gás e os fornos
crematórios. Só um deles, Gustav Krupp, compareceu em Nuremberg como
réu, mas adoeceu e não foi ali julgado.
Os americanos acabaram, aliás, por devolver à família Krupp as suas fabulosas
indústrias que durante a guerra tinham
ganho milhões utilizando o trabalho escravo nas fábricas de armamento.
No prefácio ao livro de Poltorak, o
procurador soviético, L. Smirnov, presidente do Supremo Tribunal da URSS,
Reprodução
Uma das sessões do julgamento de Nuremberg, onde 22 militares e civis alemães foram julgados
Wehrmacht envelheceram rodeados de
respeito e admiração.
Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos as críticas a Nuremberg não se fizeram, aliás, esperar.
Lord Hankey, diplomata prestigiado,
definiu o processo como “perigoso precedente para o futuro”. O jornalista Belgion Montgomery, comentando a audiência, escreveu: “se um simples mortal
tivesse caído da lua em Nuremberg, havia de pensar que estava no reino do absurdo total”.
Influentes mídias ocidentais, sobretudo nos EUA, não esconderam ao longo
do processo a sua simpatia por alguns
dos réus.
“Se um simples mortal
tivesse caído da lua em
Nuremberg, havia de
pensar que estava no reino
do absurdo total”
Capa de edição francesa do livro O processo de Nuremberg
cita os planos de Hitler para eliminar
milhões de eslavos. A referência é oportuna. O genocídio dos judeus, amplamente conhecido, é justamente condenado pela humanidade.
Mas quantos americanos e europeus
leram algo sobre o “plano de despovoamento” de que Hitler se orgulhava?
Poucos.
Em conversa com Raushning, um familiar seu, o Fuherer, após a invasão da
URSS, explicou-lhe “a técnica do despovoamento”. O objetivo era exterminar
30 milhões de russos e polacos, “seres
de raças inferiores que se multiplicam
como larvas” e abrir os territórios ocupados do Leste à colonização alemã.
O que confere tanta
importância a esta audiência é o
fato de estes réus representarem
influências nefastas
Lágrimas por Nuremberg
Transcorridos 66 anos sobre o veredicto de Nuremberg, os dirigentes das
grandes potências ocidentais e influentes mídias internacionais evitam o tema. Tornou-se incômodo.
A Alemanha é atualmente o motor da
Comunidade Europeia. Sucessivos governos do Partido Democrata Cristão
(CDU) e do Partido Social Democrata
(SPD) anistiaram criminosos de guerra
nazis. Dezenas de milhares nunca foram
presos e julgados e muitos ocuparam altos cargos na Administração, no Exército, na Polícia, inclusive nos tribunais da
República Federal. Alguns marechais da
Os Estados Unidos promoveram a
saída clandestina para o seu país de
centenas de ex-nazis acusados de crimes graves, incluindo cientistas e militares que desempenharam funções importantes em universidades e na própria administração.
Em Nuremberg, ao longo da audiência, alguns dos mais destacados nazis,
inicialmente arrogantes, mudaram de
atitude. Goering, Keitel, Jodl, Doenitz,
na esperança de salvarem a pele atribuíram a maioria dos crimes de que eram
acusados a outros réus, sobretudo a
Himmler, a Kaltenbrunner e Bormann.
Os aristocratas, Von Papen e Neurath,
e o banqueiro Schacht criticaram Hitler e as SS, elogiaram com frequência
os EUA e não dirigiam sequer a palavra
ao SS Kaltenbrunner.
Não obstante algumas insuficiências
do veredito – nomeadamente as três
absolvições –, o processo de Nuremberg foi um acontecimento histórico
positivo. Conforme salienta Arkadi Poltorak no seu livro, “o perigo que ameaçara a humanidade uniu no seio do Tribunal Internacional, como nos campos
de batalha, homens de diferentes países
e continentes, representantes de diferentes sistemas sociais”.
As nuvens da guerra fria já se formavam, entretanto, no horizonte. Foi durante o julgamento que Churchill pronunciou o famoso discurso de Fulton,
impregnado de anticomunismo.
Mas era então inimaginável que,
transcorridas menos de sete décadas,
o capitalismo se implantaria na Rússia,
após a desagregação da União Soviética, e que crimes monstruosos contra a
humanidade voltariam a ser cometidos,
desta vez pelas potências que, aliadas à
URSS, tinham combatido e derrotado o
Reich hitleriano.
O imperialismo contemporâneo empenha-se em apagar da história a memória do fascismo. Daí a atualidade
permanente do belo livro de Arkadi Poltorak, O Processo de Nuremberg.
Miguel Urbano Rodrigues
é jornalista e escritor português.
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edição 517 do Brasil de Fato