2 de 24 a 30 de janeiro de 2013 editorial Dez anos de teimosia! O NOSSO JORNAL está completando – dia 25 de janeiro – dez anos de atividades ininterruptas. Todas as semanas, disciplinadamente, sem nenhuma falha, o jornal foi para as bancas, para os nossos assinantes, para os cursos de formação e disponibilizado em nossa pagina na internet (www.brasildefato.com.br). Sobreviver dez anos, como imprensa popular, comprometida com a classe trabalhadora e a visão de esquerda da luta de classes, é, sem dúvida, uma vitória. Um feito fantástico, em qualquer país do mundo, ainda mais em tempos de neoliberalismo, hegemonia do capital financeiro e internacional, refluxo do movimento de massas e derrota ideológica das diversas correntes de esquerda na década de 1990. Sobreviver, aqui no Brasil, é um feito ainda maior. A sociedade brasileira está fundada em graves injustiças histórico-estruturais, que determinam sua condição de desigualdade social e econômica, injustiças sociais, pobreza material e cultural, violência social, ausência de direitos públicos e uma democracia burguesa capenga e hipócrita, que nega os principais direitos humanos e oportunidades à imensa maioria dos seus cidadãos. Esses problemas estruturais se caracterizam pela concentração da propriedade da terra e dos bens da natureza (minérios, florestas, água, energia). Concentração da riqueza acumulada por uma minoria ao longo de 500 anos. Concentração da renda, pelas graves distorções que ainda temos ao distribuir a produção entre trabalho e capital. Concentração do patrimônio das cidades, em que uma minoria controla os melhores edifícios, condomínios, o transporte público e os espaços da cidade. Ou seja, negam o direito da ampla maioria da população ter moradia digna e conviver democraticamente na cidade. A educação como um direito fundamental ao conhecimento, se universalizou no ensino fundamental, mas mantém 14 milhões de adultos analfabetos. E abre as portas da universidade para apenas 10% de nossa juventude. Nossos empregos têm aumentado, porém cada vez mais precarizados nos direitos trabalhistas. Nos envergonha sermos o país de maior número de empregados domésticos, sendo que 80% deles não têm direitos sociais e previdenciários. A democracia é capenga e se resume ao direito do povo votar. E o Estado todo poderoso continua sendo “pai e mãe” dos ricos, que o utilizam para manter privilégios e acessar recursos públicos na sua acumulação de riqueza, que destina todo ano quase 30% de toda arrecadação pública para pagamento de juros aos banqueiros. E, entre essas mazelas, a concentração da propriedade e do direito a comunicação de massa por apenas sete grupos econômicos, transformou a mídia brasileira num verdadeiro partido de dominação ideológica burguesa na sociedade. Alem de fonte de acumulação de capital. Foi nessas circunstâncias que o Brasil de Fato sobreviveu dez anos. Um feito heroico, que somente foi possível porque ao longo desses anos conseguimos manter uma linha editorial fiel à classe trabalhadora, sem Até agora resistimos teimosamente. Porém estamos longe de nosso sonho, de atuar de maneira mais incisiva na formação da classe trabalhadora e na luta ideológica da sociedade brasileira cair no adesismo governamental ou no sectarismo esquerdista, do estilo “todos estão errados, menos nós”! Sobrevivemos graças à fidelidade aos movimentos sociais, populares e sindicais, que lhe deram sustentação política, organizacional e que o utilizaram como instrumento de luta ideológica. Sobrevivemos graças aos milhares de militantes sociais esparramados pelo país, que de forma voluntaria, aqui e acolá, o carregam e o utilizam. Sobrevivemos graças a um coletivo de profissionais do jornalismo, em várias áreas, que de forma militante, abnegada, sacrificada, colocou seu trabalho e sua sabedoria a serviço crônica opinião João Capiberibe dos trabalhadores, enfrentando todo tipo de dificuldades. Enfim, tivemos muitos problemas e muitas pequenas vitórias. Mas a maior delas é ter sobrevivido, por dez anos. Nossos desafios Até agora resistimos teimosamente. Porém estamos longe de nosso sonho, de atuar de maneira mais incisiva na formação da classe trabalhadora e na luta ideológica da sociedade brasileira. Sonhávamos com tiragens massivas semanais, disputar nas bancas e até transformar-se em diário. Não conseguimos. Fomos boicotados de todas as formas. Enfrentamos a luta de classes na prática, com boicote de distribuição, de publicidade e de difusão. Mas sofremos sobretudo, pelo longo período histórico de apatia das massas e do refluxo das mobilizações populares, que poderiam ter retomado com as vitórias eleitorais anti-neoliberais. Nos enganamos! Ainda estamos longe do reascenso. Procuramos fazer edições especiais, massivas, temáticas ou em disputas políticas contundentes. E nisso chegamos a ter edições de mais de um milhão de exemplares, que é um feito para qualquer veiculo de comunicação impresso. Mas não podemos “chorar o leite derramado”, como se diz no interior. Precisamos redobrar os esforços, aglutinar mais energias e pensar o jornal para os próximos dez anos. Em dezembro passado realizamos uma reunião de balanço, com todas as forças populares que sustentam o jornal. Decidimos fazer vários ajus- tes. Entre eles, articular mais as nossas energias entre o jornal impresso semanal, a página na internet e a RadioagênciaNP, que passa a se chamar Radioagência Brasil de Fato. Devemos impulsionar de forma mais sistemática o boletim semanal de notícias, enviado pela internet para mais de cem mil pessoas, a maioria militantes e formadores de opinião. Também precisamos ter mais correspondentes nos estados e mais colados às necessidades comunicacionais dos movimentos sociais. Planejamos também dar um salto de qualidade, com um novo projeto gráfico a partir de março, com o formato de tabloide germânico. Também vamos construir coletivamente, com todas as forças populares que se interessarem, edição regional do Brasil de Fato, massiva, semanal, em formato tabloide, para ser distribuído gratuitamente nos centros de aglomeração de trabalhadores, como metrô, central de ônibus, trens e nas aglomerações da juventude trabalhadora das grandes cidades. Esperamos que esse projeto se concretize ainda neste primeiro semestre em algumas capitais brasileiras. Temos certeza que, apesar de todas as dificuldades, poderemos superá-las, avançar para que os meios de comunicação articulados ao redor do Brasil de Fato tenham vida longa, e possamos comemorar no futuro, vinte, trinta anos de atividades. Um grande abraço a cada um e a todos e todas que nesses dez anos, se envolveram de alguma forma, com o projeto. Ele somente foi possível, graças à teimosia de vocês. Longa vida ao Brasil de Fato! Luiz Ricardo Leitão Martin Rosenberg/CC E daqui a dez anos? À opinião pública O ANO POLÍTICO parlamentar começa em 1º de fevereiro de 2013 com a eleição dos Presidentes do Senado e da Câmara de Deputados. O que devemos decidir é se aceitamos mais do mesmo, ou ao contrário, se pretendemos interferir na sucessão visando oxigenar o debate político, apoiando-se no significativo respaldo recebido dos cidadãos nas urnas. É que a questão envolve a mudança de práticas não republicanas, um jogo de cartas marcadas que impede a oxigenação do Poder Legislativo, haja vista, que as duas presidências são ocupadas em rodízio desde o primeiro mandato de Lula apenas por dois partidos da base de tantas legendas partidárias. Foram gestões atrasadas, equivocadas e práticas nada republicanas que fizeram do Legislativo um poder desacreditado pela sociedade. Na Câmara, existem candidatos em confronto com essa mesmice. Mas no Senado estamos inertes, observando as manobras. A inação pode conduzir a Casa às antigas práticas e desencontros. Ora, oxigenar o Congresso Nacional é mais do que necessário. Uma simples análise do desempenho nos últimos anos, particularmente na última legislatura (2011-2012), demonstra à sociedade que estamos muito aquém daquilo que a população pode esperar. Esse necessário pilar da democracia está desmoralizado aos olhos da população Que o novo parlamento seja resultante de um consenso entre os parlamentares que não mais aceita desmandos e patranhas: morosidade, 14º e 15º salários, CPIs inconclusas, 3060 vetos protelados, não votação de Orçamento e FPE, privilégios, entre tantos outros problemas. O Congresso Nacional também está desmoralizado diante das duas outras instituições: o Judiciário e o Executivo. Refém do Executivo e vendo a Suprema Corte provocada a consertar seus erros, o Parlamento está apequenado e necessita de uma nova pauta que privilegie mudanças radicais no modo de legislar. Desde a redemocratização, o Executivo transformou o Legislativo em caixa de ressonância de suas ações, em correia de transmissão dos interesses dos Palácios, diria Lênin. O falso “franciscanismo”, erigido em pedra angular de apoio ao executivo, em parte graças a essas malditas emendas parlamentares, é um exemplo acabado da subordinação. Agora, foi a vez de o Judiciário, ao ser provocado, desmoralizar o Legislativo. Bastou um membro do STF, em decisão monocrática, lembrar os parlamentares que eles não cumpriram com o regimento, ao protelar desde 2000, nada menos que 3060 vetos, para que a desmoralização alcançasse o ápice e se criasse uma crise institucional. A “judicialização” do Legislativo caminha rapidamente. Ora, nós temos condições de propor outra dinâmica que vise resgatar o Parlamento, restaurar a dignidade e a independência do Congresso Nacional. É necessário abrir a discussão com todas as sensibilidades políticas que fazem parte da base do governo para se diagnosticar que tipo de Parlamento nós queremos. Para tal, é necessário intensificar a discussão com os parlamentares que se opõem a práticas retrógradas de maneira a fortalecer o Parlamento com vistas à formulação de uma proposta inovadora, democrática e coadunada com os interesses do povo. Que o novo parlamento seja resultante de um consenso entre os parlamentares que pretendem modificar o atual quadro Legislativo. Inclusive para afirmar que temos condições de assumir maiores responsabilidades legislativas. Caso contrário, dia 1º de fevereiro poderemos ter como presidentes personagens pouco habilitados a representar os parlamentares, para não dizer “qualificados”, pois é disso que se trata. João Capiberibe é senador (PSB-AP) MUITOS NEM SEQUER SE DERAM CONTA, mas já faz uma década que veio a ser lavrada, em pleno Fórum Social Mundial, a certidão de nascimento deste brioso semanário, o nosso dileto Brasil de Fato. Filho de valorosos combatentes do movimento social e de pensadores engajados de Bruzundanga, o rebento bem que poderia ter como padrinho o saudoso João Cabral de Melo Neto: afinal, ele é tinhoso como aquele Severino que se equilibrava a custo sobre as pernas finas, com sangue de muito pouca tinta – e, se não morreu na infância, tampouco parece fadado a perecer nos próximos dez anos, em que as lutas populares só tendem a recrudescer no país... Este cronista não nasceu em Delfos, na Grécia mitológica, nem muito menos possui o dom da profecia, por isso me furto a fazer previsões sobre o futuro. Pensando bem, é até melhor invocar o anjo da história (o Angelus Novus, de Paul Klee, sobre o qual nos fala Walter Benjamin), de olhos arregalados e asas bem abertas, enquanto voltamos nosso rosto para o passado e o encaramos fixamente antes de arremeter para a nossa missão no futuro. Relembrando 2003, em pleno 2013, vale a pena indagar, como no belo samba da União da Ilha: o que será o amanhã, caríssimos leitores do semanário? Dez anos atrás, no limiar do século 21, a barca neoliberal já fazia água por todos os países da Pátria Grande, mas Tio Sam ainda vendia rifas da Alca ao sul do Rio Bravo. Hoje, a proposta de ‘Livre Comércio’ ianque é coisa do passado e o projeto bolivariano de unidade latino-americana não soa mais como mera utopia aos nossos ouvidos. E daqui a dez anos, por onde andará o carro alegre da História? Recomendo que não busquem respostas nos pasquins do capital – eles erram bisonhamente... Aliás, quantas vezes a mídia previu ou decretou a morte de Fidel Castro desde 2003? Houve até desfile em Miami, após a operação do Comandante. Só de pirraça, ele decidiu sobreviver e vai candidatar-se a deputado em 2013... Não importa a bandeira: saiba que o Brasil de Fato e este cronista estarão ao seu lado nos próximos dez anos Que dizer então de Chávez, morto e sepultado no Twitter, em meio a sua luta contra o câncer? Desde 2003, quantas vezes a grande imprensa o chamou de “ditador” ou “tirano”, não obstante as inúmeras eleições e referendos realizados livremente na Venezuela? Agora, as hienas globais festejam sua via crucis em um hospital cubano, supondo que seja o fim de uma revolução... Mas daqui a dez anos, que lições o povo herdeiro de Bolívar reservará a seus inimigos – e, sobretudo, a seus amigos? Quem augura a morte alheia deveria olhar para os seus pés de barro. Em 2003, W. Bush seguia em “guerra contra o terror”, invadindo e devastando nações do Oriente, sem ocultar, porém, sua idiotice e o pasmo com os tiros em Columbine. De 1996 a 2007, houve 41 chacinas em escolas ianques – e o bom-mulato Obama, ora reeleito, já sabe que sua promessa de controle de armas não terá apoio sequer dos democratas no Congresso, lacaio da poderosa indústria bélica dos EUA. E em 2023, mochilas e coletes à prova de bala (a atual ‘solução’ do mercado) ainda serão a saída para as crianças de Tio Sam? Cá em Bruzundanga, uma década também pode abrigar surpresas para todos. Em 2003, por exemplo, após oito anos de FHC, Lulinha Paz & Amor assumia o governo, tratando de conciliar, a seu jeito, o apetite insaciável da burguesia e as bandeiras dos trabalhadores. A economia cresceu, a pobreza se atenuou, mas a concentração de renda ampliou-se, para deleite dos monopólios e do agronegócio. A cigana saberia dizer se Kátia Abreu ou João Pedro Stedile será o Ministro da Agricultura em 2023? E o que dizer do meu Rio de Janeiro? Em 2003, Little Rose (Rosinha, para os íntimos) sucedia Little Boy (Garotinho) no governo mafioso do PMDB. Agora, liderada pelo playboy Cabral, é a “tchurma da bandana” que dá as cartas no palácio, para alegria das empreiteiras e escroques da corte. Ninguém se arrisca a prever quantas obras voltarão a assolar o Maracanã, mas suspeito que, farto de tanta bandalha, o povo não mais permitirá que escolas e centros esportivos sejam demolidos para virar estacionamento... E você, meu caro leitor, que retrospectiva e que projeções gostaria de fazer? Talvez falte papel para tantos temas relevantes, sejam as questões ambientais do planeta, seja a luta pela reforma agrária, assim como a resistência contra a homofobia ou as agressões à mulher. Não importa a bandeira: saiba que o Brasil de Fato e este cronista estarão ao seu lado nos próximos dez anos. Axé, Bruzundanga! Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível. Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti • Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfica: S.A. O Estado de S. Paulo • Conselho Editorial: Angélica Fernandes, Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Pinheiro, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800 de 24 a 30 de janeiro de 2013 3 Clarisse Goulart Paradis instantâneo A “regulamentação” da prostituição Reprodução Alipio Freire Reflexão sobre China e Cuba MUITOS JOVENS TÊM me perguntado frequentemente sobre os problemas enfrentados e os rumos escolhidos por Cuba e China para enfrentá-los. Abandonaram o socialismo? Costumo responder a essas inquietações com um aparente paradoxo: os problemas enfrentados por esses países não significam que seus respectivos países e líderes tenham necessariamente abandonado uma perspectiva de construção do socialismo. Trata-se apenas de uma comprovação das teses de Karl Marx e Friedrich Engels: países de economia fundamentalmente camponesa não fazem revoluções socialistas. O socialismo só é possível em sociedades altamente industrializadas. Tanto tinham claro os comunistas chineses de 1949 – quando tomaram o poder em Pequim – que, ao novo país, nomearam República Popular da China, e não República Socialista. Essa clareza demonstrou também Ernesto Che Guevara que, em meados dos anos de 1960, durante o Congresso do PC Cubano, defendeu tese (derrotada pelo Congresso) de um desenvolvimento econômico da Ilha a partir de uma política de industrialização. Derrotada a tese, na concepção de Guevara restava apenas tentar a revolução em outros países do Continente – alternativa para romper o isolamento econômico de Havana e impedir sua dependência de uma nova Metrópole, a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Para além da discussão sobre a viabilidade ou não do socialismo em um único país, as impossibilidades estruturais para a construção do socialismo na China e Cuba ficam claras. Durante o período de Mao Zedong, a China buscou evitar a saída de um capitalismo de Estado, conforme criticava (não sem razão) a política do premiê Nikita Kruschev. Daí os dirigentes da Revolução Cultural Proletária dos anos 1960 se referirem a Deng Xaoping como o Kruschev Chinês Nº 2. E foi exatamente o grupo liderado por Deng que assumiu a direção de Pequim, com um golpe de Estado desfechado após a morte de Mao (1976). Problemas dessa mesma ordem afetaram os rumos do Vietnã, Albânia, Argélia e de tantos outros países que fizeram revoluções no século 20. Ou seja, embora o socialismo possa ser nosso objeto de desejo imediato (como todo desejo), sua construção não depende apenas da nossa vontade. Roberto Malvezzi (Gogó) O Brasil dos fatos FOI DOM TOMÁS BALDUÍNO que, numa reunião da CPT nacional, nos falou pela primeira vez da criação do Brasil de Fato. Agora, dez anos depois, me recordo daquela conversa, como que dita de uma maneira totalmente informal. Olhando para trás, recordo-me do jornalista Raimundo Pereira, lá pela década de 1970, nos falando na necessidade de ter um “veículo de comunicação diferente da grande mídia”. Ele iria criar o jornal Movimento que, junto com o jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, seriam praticamente nossos únicos instrumentos de acesso a uma opinião diferente da pronunciada pelo regime. Mesmo o Estadão e a Folha, quando nos traziam páginas brancas ou poemas de Camões no lugar das matérias, não tinham uma visão diferenciada na essência da decidida pelo regime. Hoje o mundo mudou, sobretudo pela chegada da internet. Esses grandes meios de comunicação brasileiros e internacionais acostumados a decidir até quem seria o prefeito de Sucupira, ainda têm a hegemonia, mas não a úl- tima – muito menos a exclusiva - palavra sobre o mundo que vivemos. Essa é a razão de certo desespero midiático revelado pelos nossos grandes meios de comunicação. Por isso, minha modesta opinião é que eles também têm seu lugar, mesmo que discordemos de suas linhas editoriais. Porém, mesmo ali há sempre boas matérias e bons jornalistas. O melhor é termos outros meios, que possam discutir o país, o mundo, inclusive a hegemonia desses meios tradicionais conservadores. O Brasil de Fato tem subsistido heroicamente. Um bom jornal, particularmente de esquerda, não pode ser panfletário, dogmático e muito menos chapa branca. Tem que ter a coragem de discutir o capital, mas também as contradições das esquerdas e os grandes desafios do mundo atual. Os teólogos da libertação costumam dizer que “cada ponto de vista é a vista de um ponto”. Que esse Brasil dos fatos continue nos revelando o mundo sob o ângulo dos injustiçados, como uma bela e emblemática foto de João Zinclar. NOS ÚLTIMOS DIAS, com a aproximação da Copa do Mundo e com a execução de todos os seus preparativos, o projeto de lei do Dep. Jean Wyllys esteve em pauta, provocado pelo discurso da “regulamentação” da prostituição, envolto na necessidade de estruturar a indústria do sexo para o aumento do turismo no próximo período. A partir disso, li os poucos artigos que constam no seu conteúdo. Parece banal, mas um PL que trata de um assunto tão complexo, que pretende “resolver” o problema das pessoas em situação de prostituição, contém apenas seis artigos. Existem alguns pontos perversos nesse projeto. Um deles diz respeito à categorização da exploração sexual. Segundo o mesmo há esse tipo de exploração quando não houver pagamento do “serviço sexual”, quando a prostituição for forçada, mediante grave ameaça ou violência, ou quando uma terceira pessoa apreender entre 50% e 100% do valor do programa. Essa categorização tem duas conseqüências graves – ela legaliza o “cafetão” como essa terceira pessoa que apreende até 50% do valor do programa, algo que ainda não era formalizado no contexto brasileiro e deturpa a ideia de exploração sexual. Ao separar a prostituição da exploração sexual, o serviço sexual livre, do serviço sexual forçado, há uma intenção de reconhecer de maneira oficial a prostituição como uma solução possível para os problemas das mulheres, de legitimar o discurso da profissão do sexo como um disfarce para despenalização da cafetinagem. Isso alimenta um sistema lucrativo, nacional e internacional de exploração das mulheres, em busca de alimentar uma sexualidade masculina, construída como insaciável, incontrolável, irresponsável e que, portanto, necessita a todo o tempo da disponibilidade de corpos femininos em sua maioria, para a “satisfação” do seu querer sexual. Como nos mostra o verbete sobre o tema no Dicionário Crítico do Feminismo: “O grande mercado liberal assimila e monetariza os prazeres: a lógica consumista invade todos os domínios da vida e a expressão ‘trabalhadoras do sexo’ legitima a ideia de que a mercadoria sexo se tornou um dado indiscutível da economia moderna. Toda noção ética é então varrida, toda relação de dominação é engolfada por uma lógica individualista. A prostituição se encontra assim excluída das formas de violência contra as mulheres” (Legardinier, 2009, p.200). Além de legalizar a ação dos cafetões, o projeto de lei prevê o livre funcionamento das casas de prostituição Além de legalizar a ação dos cafetões, o projeto de lei prevê o livre funcionamento das casas de prostituição. Para não dizer que o projeto não prevê nada sobre a vida e situação das pessoas em prostituição, ele garante a prestação de serviços em cooperativas ou de maneira autônoma e aposentadoria especial, após 25 anos de serviço. Nesse contexto, o projeto pouco contribui para a vida das mulheres prostitutas. O Ministério do Trabalho já reconhece a prostituição como ocupação regular e a previdência social assegura o seu direito de contribuir para o INSS (não em regime especial como prevê a lei). O que vale ser chamado a atenção é que esta lei não visa melhorar a vida das mulheres prostitutas, não prevê nenhum tipo de política pública específica, que contribua para que essas mulheres não tenham que ser constantemente vítimas de insultos, violência e marginalização. Ao contrário de promover os direitos e a autonomia econômica das prostitutas, o projeto visa suprir uma necessidade da indústria sexual, que juntamente com as grandes corporações, buscam utilizar o corpo das mulheres para faturar altos montantes em grandes eventos como a Copa do Mundo. Ao normalizarmos a ideia da prostituição na vivência social, estamos contribuindo para mascarar as formas de violência contra as mulheres, para naturalizar a ideia de dominação masculina e para alimentar um sistema econômico extremamente articulado e lucrativo que explora o corpo de mulheres e meninas. Não é por acaso que o P.L circula nesta conjuntura e envolto do discurso da regulamentação. Não é por acaso que o discurso de direitos das prostitutas só aparece em tempos de Copa do Mundo. Ao contrário desse projeto de lei, é preciso garantir uma vida sem qualquer tipo de violência para todas as mulheres, é preciso que o exercício da nossa sexualidade esteja livre do estigma da mercantilização dos nossos corpos e também do cerceamento e moralismo religioso. Nem santas, nem putas, buscamos que todas as mulheres sejam livres! Clarisse Goulart Paradis é militante da Marcha Mundial das Mulheres em Minas Gerais. 4 de 24 a 30 de janeiro de 2013 brasil Joka Madruga A mídia sindical e seus desafios Militantes do MST e da Via Campesina lêem o Brasil de Fato: jornalismo plural para o trabalhador DEZ ANOS Brasil de Fato encontra espaço dentro da estratégia de comunicação dos sindicatos, marcada pela necessidade de temas que apontem um projeto amplo de esquerda Pedro Carrano de Curitiba (PR) PARECE DIFÍCIL pensar numa comunicação de esquerda, ligada à vida dos trabalhadores e trabalhadoras e, ao mesmo tempo, com grande tiragem e alcance. Há exemplos dentro da história do movimento operário no Brasil. O Partido Comunista Brasileiro, em 1946, possuía oito jornais diários nas grandes capitais brasileiras. Muito antes, o jornal Avanti!, escrito em italiano para os trabalhadores imigrantes de São Paulo, durou de 1902 a 1908, também com tiragem impressa diária. Algo certamente distante da realidade atual, mas não impossível. No período das lutas entre os anos de 1970 e 1980, firmaram-se tabloides como o diário Tribuna Metalúrgica, do Sindicato de Metalúrgicos do ABC, ou o standard Folha Bancária, do Sindicato dos Bancários de São Paulo, ferramentas de comunicação sindical para categorias combativas e com grande contigente de pessoas. Neste caso, porém, estamos falando de veículos de comunicação que atingem uma categoria específica. “Os novos trabalhadores não querem mais saber desse discurso velho, eles querem respostas para os problemas concretos” Os dez anos da experiência do jornal Brasil de Fato levantam o debate da relação entre as mídias já existentes no interior das entidades e a experiência de produção de um semanário, que propõe um projeto amplo de esquerda. De acordo com comunicadores e líderes sindicais, as ferramentas de comunicação sindical são inúmeras e têm se profissionalizado. Porém, hoje são insuficientes para a politização da classe trabalhadora e superação de uma visão de mundo economicista. Na opinião de Alessandra Oliveira, da direção da CUT-Paraná, o Brasil de Fato cumpre uma lacuna dentro da comunicação na vida dos sindicatos, ape- sar da carência de um periódico diário e de maior envolvimento das lideranças sindicais na questão. “O Brasil de Fato é o jornal para fazer o contraponto com a grande mídia (...) Temos revistas, mas ainda não é um nicho onde o movimento sindical tem investido, o único impresso que existe neste sentido é o Brasil de Fato”, reflete a dirigente. Essa reflexão acontece no contexto quando o movimento sindical ressurge na cena política. É um desafio da esquerda dialogar com uma classe trabalhadora jovem e com experiência recente de lutas econômicas e paralisações. “Os novos trabalhadores não querem mais saber desse discurso velho, eles querem respostas para os problemas concretos. E o sindicalismo tem que dar essa resposta. Depois, no cotidiano, precisaria, via comunicação, ir ampliando o universo dessa gente. Os trabalhadores querem saber quando vão ganhar mais. Seria o sindicato a força que deveria mostrar que a vida é mais que salário, mas não faz isso”, critica a jornalista Elaine Tavares. Periodicidade O jornalista e educador Vito Giannotti percorre o Brasil assessorando sindicatos a aperfeiçoar sua comunicação com a base. O primeiro aspecto apontado pelo comunicador é a periodicidade de um veículo para os trabalhadores. Neste sentido, Giannotti defende que a Mídia sindical, maior profissionalização e precarização Pesquisa sobre imprensa sindical em Curitiba revela uso de ferramentas digitais. Setor passou a ser fonte e pautar a mídia comercial de Curitiba (PR) Voltada para os trabalhadores, a imprensa sindical é marcada pelo caráter dialógico com a categoria de trabalhadores, em comparação com a mídia comercial, cujo conteúdo é transmitido de modo mais verticalizado. Nos anos recentes, a comunicação sindical adota um discurso de crediblidade informativa em lugar de um texto mais opinativo, com poucos elementos e dados. Um elemento da pesquisa do jornalista Guilherme Carvalho, doutor em sociologia pela Unesp, é apontar como, nos anos recentes, o sindicato tornou-se uma fonte de informação. “Os sindicatos passam a perceber a importância da credibilidade da informação”, afirma. Esta é uma das conclusões da pesquisa de Carvalho com 21 jornalistas de entidades sindicais em Curitiba. O dirigente enxerga hoje uma profissionalização da comunicação nos sindicatos e maior apropriação das tecnologias digitais. “Fiz um levantamento da imprensa sindical e dos profissionais. O que eu identifiquei é o seguinte: existe um crescimento significativo na quantidade de meios de comunicação usados pelos sindicatos, antes era só o jornal impresso, hoje juntamente o site, o boletim, a web rádio, a TV na internet, que diversificaram a atividade, o que é interessante”, defende Carvalho. “Existe um crescimento significativo na quantidade de meios de comunicação usados pelos sindicatos, antes era só o jornal impresso” Porém, o pesquisador aponta que os jornalistas hoje acumulam uma série de funções, sendo que 83,3% dos trabalhadores entrevistados realizam horas-extras em seus sindicatos, o que indica excesso de trabalho para realizar várias funções, tais como assessoria, fotografia, edição de áudio e vídeo, etc – sem contratações e estrutura para tal. “Deste modo, há um risco maior de erros em conteúdos produzidos, como informações distorcidas, falta de apuração de dados, fotografias mal feitas, erros de digitação e diagramação, en- tre outros problemas que aparecem como resultado de uma jornada de trabalho carregada de estresse e polivalente”, descreve. Jornal impresso Certamente, os sindicatos são o espaço com maior potencial para uma política de comunicação voltada para a classe trabalhadora, ainda que a comunicação hoje não se limite apenas ao material impresso. Embora o Censo de 2001 do IBGE já apontasse que 30% das 15961 entidades contavam com sistema de boletim eletrônico e 38% com site próprio, tal fato ainda não determinou a centralidade do sindicato nas produções impressas. “Por outro lado, é possível perceber a manutenção de meios tradicionais do sindicalismo, como o jornal impresso, jornal mural, cartazes e panfletos”, reflete Carvalho em artigo intitulado Muito Além do jornal: nova imprensa sindical. A mídia impressa continua sendo uma forma de comunicação importante, na avaliação de Vito Giannotti, que não concorda que, com as tecnologias digitais, a função do jornal impresso estaria esgotada. “No Brasil, o jornal impresso ainda não chegou para as pessoas, não há como discutir que ele acabou. O maior jornal do país não chega a 300 mil exemplares, o que significa uma pequena parcela da população”, define. O debate sobre a pouca leitura do brasileiro tampouco serve de justificativa, na avaliação de Giannotti, que cita o êxito que os jornais gratuitos estão obtendo, o que mostra que o jornal impresso pode contar com um amplo público leitor. (PC) mídia sindical e de esquerda ressentese de um informativo diário. O Brasil de Fato, na sua avaliação, cumpre um papel de revista, realizando uma síntese do que aconteceu na semana. “Os trabalhadores querem saber quando vão ganhar mais. Seria o sindicato a força que deveria mostrar que a vida é mais que salário, mas não faz isso” O educador, idealizador do Núcleo Piratininga de Comunicação, aponta que um veículo com a característica do Brasil de Fato faz sentido no meio sindical, uma vez que trabalha “todos os temas da sociedade” e não apenas assuntos de ordem econômica. “Isso o Brasil de Fato se propõe a fazer: fala dos agrotóxicos, da Venezuela, da luta das mulheres etc. Qual a sua característica? Ele é plural, para todos os sindicatos, não interessa a qual sindicato, mas sim os temas que vamos tratar: a reforma agrária, a luta contra a homofobia, e nós de esquerda temos que falar desses temas aos trabalhadores”, apregoa. Papel aglutinador Em uma década de existência, por meio de edições especiais com tiragens massivas, o jornal Brasil de Fato foi a ferramenta de comunicação usada em campanhas tais como “A Vale é Nossa” - pela anulação do leilão da empresa Vale, realizada em 2007 – “O Petróleo tem que ser nosso”, e em momentos como o segundo turno das eleições presidenciais de 2010. Em meio à fragmentação das organizações de esquerda, o jornal nesses momentos cumpriu o papel de aglutinação das forças de esquerda, no trabalho de agitação e contraposição ao discurso oficial. “A diversidade ideológica existe e deve ser considerada natural, mas não é um obstáculo intransponível à unidade. Ao refletir esta diversidade abordando as divergências com espírito democrático, aberto e plural, o jornal cumpre um papel inegavelmente positivo neste sentido”, afirma Wagner Gomes, presidente da Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB). (PC) brasil de 24 a 30 de janeiro de 2013 5 Palavra nossa de cada dia Rogério Tomaz Jr./CC COMUNICAÇÃO Veículos da mídia alternativa e blogs na internet criam escudo contra artilharia de pensamento único dos grandes meios de comunicação Pedro Rafael de Brasília (DF) DAQUI A POUCO mais de dois anos, o Brasil terá contabilizado três décadas de retorno à democracia. Avanços são inegáveis. Porém, algumas permanências estruturais ainda travam o desenvolvimento de uma verdadeira cultura de liberdade social no país. Uma delas é o debate público proporcionado pelos meios de comunicação. Enclave de poucos e grandes grupos econômicos, a mídia ainda é um campo com baixa diversidade de ideias. Na semana em que o Brasil de Fato completa 10 anos de fundação com circulação semanal ininterrupta, editores, jornalistas e blogueiros que constroem o cotidiano de alguns dos mais importantes veículos alternativos de comunicação analisam os avanços e desafios do setor. “O Brasil tem uma concentração muito grande dos meios de comunicação (jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV) nas mãos de alguns poucos empresários. Isso atenta contra a construção de uma sociedade democrática, pois a democracia pressupõe que todas as correntes de opinião e todos os segmentos sociais tenham acesso à comunicação de massas”, critica o editor-chefe da revista Caros Amigos, Hamilton Octavio de Souza. “A grande mídia, os veículos de comunicação de massa, têm a importante função de definir a agenda nacional” Jornalismo crítico À frente da publicação mensal desde 2009, Hamilton também define uma ética para a mídia alternativa ou, como prefere dizer, a “imprensa contra hegemônica”. “É aquela que não está no jogo do mercado nem defende as políticas das classes dominantes, mas que faz críticas ao sistema e aposta nas transformações sociais e políticas na construção de um Brasil mais justo e igualitário”. A Caros Amigos foi fundada em 1997, justamente no auge do neoliberalismo do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). “Na época, toda a imprensa estava entusiasmada com o modelo econômico e não havia praticamente nenhum veículo com críticas à globalização neoliberal. A Caros Amigos reuniu jornalistas, publicitários e intelectuais sob a liderança do jornalista Sérgio de Souza, que foi editor até 2008, quando faleceu. A proposta editorial previa uma grande entrevista a cada edição, uma ou outra reportagem de maior fôlego e muitos artigos – com uma grande equipe de colaboradores de diferentes posições políticas, mas com total liberdade crítica. A fórmula deu certo, a revista pegou, teve um bom crescimento de vendas e de aceitação na juventude e no público mais exigente. A marca era de uma revista crítica ao governo FHC e alternativa ao neoliberalismo. O pico de venda em bancas – 33 mil exemplares – aconteceu em 2002, sem contar os assinantes”, explica o jornalista. “Na imprensa corporativa, o que interessa é a opinião do dono. Na mídia alternativa, a possibilidade da divergência é maior” A alcunha de “alternativa” caracteriza o enfrentamento que esses veículos procuram fazer contra uma ideologia que orienta o conteúdo da maior parte dos meios de comunicação. “A grande mídia, os veículos de comunicação de massa, têm a importante função de definir a agenda nacional. É assim nos países democráticos. O problema é que no Brasil a grande mídia é muito concentrada, não apenas em algumas poucas empresas, também em termos de visão de mundo. O pensamento único impera. Daí a importância de se ter alternativas a ela”, examina Marcel Gomes, editor da Agência Carta Maior e um dos coordenadores da ONG Repórter Brasil. Lançada em 2001, durante o I Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS), a Carta Maior é um portal na internet que reúne análises e reportagens sobre temas da conjuntura política, econômica, social e cultural do Brasil e do mundo. A audiência atinge um milhão de aces- Lula participa do 2º Encontro Nacional dos Blogueiros Progressistas, realizado em Brasília sos mensais, em média. Além da diversidade de conteúdo, a mídia alternativa, em geral, se distingue quanto a sua forma de organização, até pela pouca estrutura econômica e o desinteresse pelo aspecto comercial da atividade. “É basicamente um conjunto de veículos que opera de modo diferente da grande mídia: muitos até são empresas, mas não visam o lucro; seus jornalistas não são apenas profissionais, mas militantes engajados nas mais diversas causas; e o conteúdo costuma ser ligado ao campo progressista, popular, de esquerda”, aponta Marcel Gomes. O repórter da TV Record e blogueiro Rodrigo Vianna, do blog Escrevinhador, conhece bem os dois mundos. Com a experiência de quem sempre trabalhou na mídia empresarial e, desde 2008, também desenvolve uma atividade independente na internet, Vianna percebe com nitidez as contradições do jornalismo. “Na imprensa corporativa, por definição, o que interessa é a opinião do dono. Na mídia alternativa, a possibilidade da divergência é maior, as opiniões podem se expressar. Por outro lado, esses veículos menores tem muito mais dificuldade para coberturas mais amplas e terminam, muitas vezes, por fazer apenas o contraponto à pauta dos veículos comerciais”, observa. “Rede Globo tem medo da internet” Blogueiros sofrem implacável perseguição judicial do diretor de jornalismo da maior emissora do país de Brasília (DF) Um dos espaços mais fortes de contraponto à hegemonia dos grandes meios de comunicação são os blogs de jornalistas e ativistas espalhados pela internet. A velocidade da rede e a capacidade de disseminação de informações têm provocado reações que revelam o verdadeiro compromisso dos empresários da mídia com a liberdade de expressão. Na mais recente investida contra blogueiros, na semana passada, o diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, venceu em segunda instância o processo que move contra Rodrigo Vianna, repórter da TV Record e autor do blog Escrevinhador, que tem mais de 10 mil acessos diretos por dia. O blogueiro, que já foi repórter da Globo e saiu justamente por discordar da cobertura parcial da emissora nas eleições presidenciais de 2006, em favor da candidatura do PSDB, pode ser obrigado a pagar uma salgada indenização apenas porque exerceu o “sagrado” direito à liberdade de expressão. Só que contra a Globo. Vianna publicou em seu blog que o jornalismo da emissora comandada por Kamel era algo “pornográfico”, em alusão a uma infeliz coincidência: um ator pornô dos anos 1980 também usava o mesmo nome do manda chuva do jornalismo da Globo. Ao usar como metáfora a informação, para produzir uma crítica, o jornalista atingiu o alvo. “Eles são ótimos para defender a liberdade deles, dos monopólios. Quando a brincadeira é com eles, não gostam e revelam um DNA fascista muito forte” “O que me interessava era usar a homonímia entre o ator pornô com o diretor da Globo. Para mim, o que importava era a metáfora para falar do jornalismo pornográfico que a Globo pratica. Aí não pode, porque metáfora só quem pode fazer é o Arnaldo Jabor, que escreveu um livro, chamado Pornopolítica. Eu recorri ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e perdi. O que eu vou fazer agora é recorrer aos tribunais em Brasília e seguir protestando, mostrando a hipocrisia dos caras que falam em liberdade de expressão, mas só para eles. É como os liberais do século 19, que reivindica- vam o liberalismo para serem donos de escravos porque abolir a escravidão, na visão de alguns desses liberais, atentava contra a propriedade privada”, afirma o escrevinhador. Rodrigo Vianna não é o único. Outros blogueiros bastante conhecidos como Luiz Carlos Azenha – outro ex-repórter da TV Globo; Luiz Nassif, Cloaca News e Paulo Henrique Amorim colecionam ações do diretor da vênus platinada. “Então, não pode fazer política, não pode brincar, criticar através do humor. Nem os militares fizeram isso com o Pasquim. É incrível como um cara como o Ali Kamel, que controla os noticiários da principal emissora de TV do país, que acaba influenciando outros veículos das Organizações Globo, quer processar um blogueiro como eu. É porque eles estão dando muita importância para a blogosfera”, desabafa Vianna. “A mídia não aceita ser questionada. E as brincadeiras que a Globo faz com a Dilma no Zorra Total, por exemplo? Eles são ótimos para defender a liberdade deles, dos monopólios. Quando a brincadeira é com eles, não gostam e revelam um DNA fascista muito forte. Outro caso diz respeito ao jornal Folha de S. Paulo. Quando a turma faz uma crítica, como foi o blog Falha de S. Paulo, o jornal reagiu com ação judicial para tirar o site do ar”, aponta o jornalista Altamiro Borges, presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé e um dos organizadores do Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas. (PR) Por mais pluralidade na mídia Jornalistas em prol da democratização da comunicação criticam postura do governo em relação ao tema de Brasília (DF) Mais do que um contraponto ao pensamento único da grande mídia empresarial, os veículos alternativos representam a necessária pluralidade de vozes no debate público dos meios de comunicação. Presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Altamiro Borges destaca avanços organizativos do setor, mas diz que esse movimento esbarra na necessidade de políticas públicas, que dependem de ação do Estado. “Houve uma revitalização do Fórum Nacional de Democratização da Comuni- cação e o fato que movimentos sociais e sindicatos protagonistas do debate político têm encarado o tema da mídia como estratégico. Estão saindo da tradicional choradeira, porque os grandes monopólios criminalizam a luta social na mídia, para pensar em ações. Nesse ponto, caberia uma ação indutora do Estado, como ocorreu na Venezuela, Bolívia e Argentina, para citar alguns”, explica. Rodrigo Vianna, do blog Escrevinhador, diz que um bom modo para alcançar maior diversidade na mídia é democratizar de forma efetiva o acesso às verbas oficiais de publicidade, atualmente concentradas nos poucos grupos econômicos. “Esse é o desafio econômico-financeiro. Assim como na compra da merenda escolar, que uma lei estipulou que 30% dos produtos devem ser adquiridos da agricultura familiar, um critério semelhante deveria ser adotado para fomentar as comunicações, os pequenos empreendimentos. Basta ser liberal do ponto de vista econômico, permitir que mais vozes falem”, afirma. Fim dos monopólios O problema, segundo Vianna, é o cálculo político do governo. “Lula achava que tinha comunicação direta com as massas e não era necessário se indispor com a grande mídia. Já a Dilma dispõe de platitudes do tipo: ‘o melhor controle é o controle remoto’. A presidenta que me perdoe, mas isso é de uma ignorância tremenda. Toda atividade importante tem que ter regulamentação para que não haja um oligopólio absurdo como o da mídia no Brasil”, destaca o blogueiro. Altamiro Borges reconhece que não é fácil a decisão política de enfrentar o monopólio da mídia, mas acredita que o não debate, a médio prazo, pode ser fatal até para a sobrevivência do projeto de país do Partido dos Trabalhadores. “É um grande poder, uma agenda política que mexe com a subjetividade humana, estimula individualismo exacerbado. Mesmo assim, eu discordo do cálculo do governo para não enfrentar o debate, porque se você se acovarda diante da mídia, eles vão te agendando”. (PR) 6 de 24 a 30 de janeiro de 2013 brasil “Militância é ação” Secretaria de Políticas para as Mulheres PERFIL Viúva de Carlos Marighella, a militante Clara Charf relembra os 87 anos de uma vida que se confunde com a história da política nacional Aline Scarso da Reportagem COM 87 ANOS, Clara Charf tem em sua biografia duas ditaduras vividas e a convivência com personalidades históricas como Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, João Amazonas e Jorge Amado. Estima ter vivido quase vinte anos de forma clandestina, junto com o marido Carlos Marighella, época em que acumulou vários nomes. O mais conhecido, Marta Santos, lhe rendeu seis meses de prisão. “Eu não queria falar meu nome de jeito nenhum. Só falei quando o Partido Comunista exigiu para que pudessem impetrar o habeas corpus para mim já que Marta Santos não existia”, conta, rindo. Clara havia sido presa durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), com uma mala cheia de livros marxistas, que seriam usados para montar um curso de formação política para os ferroviários de Campinas. Quando foi detida, tentou inventar uma história de um tratamento médico no interior que lhe daria muito tempo livre para a leitura. Não colou. Ficou a maior parte do tempo do cárcere em solitária. Clara nasceu em 1925 em uma família de judeus pobres. Mudou-se de Maceió para Recife menina. Perdeu a mãe ainda adolescente. O pai não gostava da ideia de que os três filhos se metessem em política com receio de que fossem presos, mas com Clara não conseguiu efeito algum. “Desde 1945, eu fui despertando para a ação”, conta. Mas quem é Clara Charf como militante política? Nas palavras modestas delas, “uma militante como outra qualquer”. E explica: “Para mim a militância política é a compreensão dos problemas sociais e ação. Não existe militante nãoativo, militar é fazer, é intervir”. “Para mim a militância política é a compreensão dos problemas sociais e ação. Não existe militante nãoativo, militar é fazer, é intervir” Hoje ela não sabe precisar com certeza o ano específico de cada acontecimento da sua vida e fala sobre o período histórico em que cada fato aconteceu (leia a entrevista na íntegra no site do Brasil de Fato). Já nas primeiras perguntas, lembra quando Anita Leocádia Prestes, filha dos comunistas Olga Benário e Luís Carlos Prestes e então com nove anos, passou pelo Recife durante o famoso comício no Parque 13 de Maio, em novembro de 1945. Clara tinha 20 anos e ficou impressionada com a história da menina nascida numa prisão destinada às mulheres na Alemanha nazista e que era homenageada, naquele momento, “por todo movimento democrático, comunista e não comunista”. “Fizeram uma grande concentração pública para apresentar a filha do Prestes e eu participei. E esse comício, com seus discursos, marcou muito minha posição política”. Até então, a garota havia trabalhado como bancária, datilógrafa e taquígrafa e guardava consigo um sentimento de justiça social. “Eu era contra as injustiças, mas eu não tinha muita noção de que caminho seguir para acabar com elas”, conta. O contato com o comunismo Clara recorda a primeira vez que ouviu a palavra “comunista” e passou a se identificar com a ideologia. “Foi quando o Jacob [pai do fotógrafo Bob Wolferson] foi preso”. O pai de Clara chegou em casa com a novidade. “E eu perguntei, ‘mas ele é ladrão?’ Meu pai me mandou calar a boca e disse que a gente não poderia falar sobre isso em casa”. Passou-se um tempo e Jacob foi posto em liberdade. Dessa vez, Clara perguntou diretamente por qual a razão havia sido encarcerado. “’Porque sou comunista’, ele disse. ‘Comunismo é assim, vai ter uma sociedade que não vai ter dinheiro, vai ter troca. Se você quer uma camisa, dá outra coisa em troca para satisfazer a necessidade’. ‘Pronto’, eu disse, ‘sou comunista!’”, emociona-se. Conheceu o Partido Comunista Brasileiro (PCB) quando começou a trabalhar como aeromoça e veio morar no Rio de Janeiro (RJ). Tomou contato com as campanhas realizadas nas ruas e decidiu filiar-se. Tinha 25 anos. Achava que tinha que militar com outras pessoas. “E quando você decide trabalhar com outras pessoas, você tem que ter um instrumento, tem que discutir, planejar o trabalho”, argumenta. Quando voava, levava as correspon- A militante comunista Clara Charf dências do partido aos estados, facilitando a comunicação interna partidária. Mas logo saiu da aviação e foi trabalhar no escritório da Fração Comunista, órgão parlamentar do PCB responsável por colher informações e produzir os discursos dos parlamentares do partido. O local era coordenado por Marighella e ficou aberto até 1947, quando o partido foi colocado novamente na ilegalidade, desta vez pelo governo de Eurico Gaspar Dutra (19461951). Nessa época, o PCB era um partido de massas, e contava com cerca de 200 mil filiados. A militância se seguiu e Clara assumia cada vez mais tarefas, principalmente na organização da luta feminista. “Sempre fui militante ardorosa pela causa das mulheres, mas também sempre fui militante ardorosa pela causa do povo em geral”, destaca. “Sempre fui militante ardorosa pela causa das mulheres, mas também sempre fui militante ardorosa pela causa do povo em geral” A vida com Marighella A militância aberta ou clandestina variava de acordo com as condições políticas do país, lembra. Mas a maioria dos 21 anos compartilhados com o político e um dos principais inimigos da última ditadura militar brasileira (19641984), Carlos Marighella, foram vividos na clandestinidade. Recordar essa época e o marido afetuoso e brincalhão, que começou a namorar durante o seu trabalho na Fração Parlamentar, leva Clara às lágrimas. Ela chora, não se sabe se de saudade ou de tristeza pela forma como acabou a vida do companheiro, morto em 4 de novembro de 1969 em uma emboscada organizada pelos militares em São Paulo. Palavras para definir Marighella não lhe faltam. “Você não pode dizer que era um cara perfeito porque isso não existe, mas ele era um ser humano muito íntegro, deu a vida pela causa do povo, sempre ajudou as pessoas que pode na luta”, afirma. “Era um ser humano pelo qual todo mundo tinha prazer em conviver. Ele não era arrogante. E era também muito brincalhão. As crianças o adoravam. Ele se fazia querer pelas pessoas. E era culto, sempre estudou muito”, enumera. Perguntada sobre sua relação com ele no que diz respeito às questões de gê- nero, Clara – feminista que é – considera importante assinalar que Marighella não era machista. “Nas atividades de casa, ele sempre respeitou muito o meu trabalho e dividiu comigo as tarefas”, conta, para logo em seguida acrescentar: “E isso não é comum, ainda mais naquela época. Os homens não dividiam como não dividem até hoje as tarefas domésticas. E ele fez isso em todos os lugares que ele viveu, quando morou com pessoas que eu conheci depois. Sempre valorizou o trabalho da mulher, não achava justo não dividir tarefas, mesmo se a mulher não fosse militante”, ressalta. Ela conta, com orgulho, um episódio em que Marighella chegou em casa e a viu passando roupa. “Ele olhou e disse: ‘Clara, não passe roupa quando eu não estiver em casa’. E eu perguntei: por quê, se você não sabe passar? E ele respondeu: ‘como eu não sei passar, você passa e eu fico lendo para você em voz alta, para você ouvir’. Quer dizer, enquanto eu ia passando, ia tomando conhecimento do material que eu queria ler. Qual o marido que faz isso? Nisso daí ele foi inédito”, ri. Clara diz que a única vez que viu Marighella chorar foi durante uma reunião da direção nacional do PCB, quando Diógenes Arruda Câmara voltou de viagem da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e confirmou que eram verdadeiras as denúncias contra o regime feitas pelo então primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khruschev. Em seu famoso discurso durante o 20º Congresso dos PCs, em 1956, Khruschev denunciou os crimes cometidos por Joseph Stalin contra a população e seus opositores, abalando toda a militância comunista internacional. Clara nunca fez parte da direção nacional do PCB, mas assistiu a reunião porque, como taquígrifa, foi chamada para fazer a ata. “Era como se tivesse ruído um prédio inteiro, pois ficou provado que eles tinham cometido muitas barbaridades”, conta. Na ocasião, ela assistiu aos discursos de Jorge Amado e Agildo Barata, que posteriormente sairiam do partido. E também de Marighella, que defendeu a reorganização do trabalho partidário. O exílio em Cuba Viúva de Mariguella, perseguida e com os direitos civis cassados pela última ditadura militar, Clara decidiu que não podia mais continuar no país. Foi para Cuba, onde passou nove anos e só voltou com a anistia. Cuba mudou, conforme relata a militante, mas pro- porcionou no seu exílio muitas surpresas positivas como a da faxineira que conheceu durante uma internação em um hospital, com nove filhos, todos estudantes na União Soviética. Ou a da garota que guiava uma delegação por uma creche cubana e apontava, com orgulho, os brinquedos que seriam doados às crianças do Vietnã. Ou ainda sobre a livreta que proporciona uma divisão igual dos alimentos entre todos habitantes da ilha, que vivia com constantes problemas de escassez. “Ele [Marighella] era um ser humano muito íntegro, deu a vida pela causa do povo, sempre ajudou as pessoas que pode na luta” De volta ao Brasil Clara voltou ao Brasil com a Lei da Anistia, de agosto de 1979, depois de ameaçar denunciar o descumprimento da norma pelo governo brasileiro, que proibia a liberação de um passaporte no nome dela pela embaixada do Panamá. Chegou ao país com um salvo-conduto e, para não ser presa, foi auxiliada pelo advogado Idibal Pivetta. Logo reconheceu no PT uma expressão da força política dos movimentos sociais na época e se filiou. Encontrou emprego numa empresa de engenharia como auxiliar de biblioteca, começou a fazer palestras e se vinculou à 1ª Secretaria de Mulheres do PT de São Paulo. A pedido das companheiras petistas, saiu como deputada federal e conseguiu 19 mil votos. Durante o governo da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-1993), foi Secretária de Relações Internacionais. Clara também esteve com chefes de Estado como a chilena Michelle Bachelet quando ainda era Ministra da Defesa, o cubano Fidel Castro, o sul-africano Nelson Mandela, além de ser próxima de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva. Ela conta rindo que certa vez foi ao Palácio do Planalto visitar Lula durante o seu primeiro mandato e o ex-presidente, “muito gozador”, disse: “Clara, você alguma vez pensou em me ver como presidente?”. “Eu naturalmente disse aquilo que sentia: ‘Ah, eu pensei, mas não que fosse pela via eleitoral’. Aí foi uma gargalhada geral”, ri, recordando-se da resposta de Lula: “Vocês estão vendo! A Clara só pensa em revolução”. brasil de 24 a 30 de janeiro de 2013 7 “A vocação da pequena semente” Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr ENTREVISTA Bispo emérito de Goiás, Dom Tomás Balduíno, faz um balanço das lutas sociais e da principalidade dos instrumentos alternativos de comunicação na última década Eduardo Sales de Lima da Redação ELE ESTEVE presente na fundação do Brasil de Fato. Lutou e aguardou por aquilo que há anos os movimentos popular desejavam: ter um instrumento de comunicação capaz de disseminar suas lutas e denunciar as mazelas do velho e presente capitalismo. Somado ao escritor uruguaio Eduardo Galeano, à médica cubana Aleida Guevara, Hebe de Bonafini, das Mães da Praça de Maio, entre outros, Dom Tomás, um dos fundadores da CPT e do Cimi, testemunhou a expectativa da chegada de Lula ao Planalto e todo o otimismo em relação à nova onda progressista na América Latina. Uma década após aquele 25 de janeiro, no Auditório Araújo Viana, em Porto Alegre (RS), parece ser o momento de fazer um balanço do que foi o processo das lutas sociais nesse período, do comportamento da sociedade civil e da implementação de políticas de estado relacionadas à reforma agrária, por exemplo. Também não seria a hora de refletir a caminhada de um jornal que tentou registrar esses processos sob uma ótica popular? Para falar da importância dos meios alternativos de comunicação, e mesmo dar ânimo aos que lutam por justiça social em meio a uma sociedade que segundo o bispo emérito de Goiás “se inclina para a direita”, Dom Tomás cita seu mestre, Jesus: “O pequeno fermento, a pequena chama, tudo isso é pequenez, mas tem uma vocação de abrangência, de solidariedade, de crescimento, de ultrapassar os obstáculos à dignidade da mulher, do homem, da terra, da mata, dos ribeirinhos. Nós devíamos apostar mais nessa perspectiva”. “O país se inclinou mais para a direita, com o risco de ser até como os Estados Unidos, que é um caminho perigoso” Brasil de Fato – O senhor participou do ato de fundação do Brasil de Fato, no Fórum Social Mundial de 2003, realizado em Porto Alegre (RS). Havia uma expectativa dos movimentos sociais naquele momento, sobretudo porque Lula estava recém-eleito presidente do Brasil. Qual o balanço que o senhor faz a respeito da luta social no país nesses últimos dez anos e que o Brasil de Fato tem registrado? Dom Tomás – Houve um retrocesso. O país se inclinou mais para a direita, com o risco de ser até como os Estados Unidos, que é um caminho perigoso. E, nesse sentido se distanciando de outras possibilidades experimentadas no continente, de união, de alianças, de unir as forças construtivas. E os movimentos populares sofreram uma baixa de um modo geral, sobretudo aqui no Brasil. O que contribuiu para essa baixa? No Fórum de 2003 houve um momento de maior expectativa e de união das diversas forças à esquerda. Isso foi arrefecendo. Tudo isso depende um pouco das lideranças, e até da liderança institucional. No caso do Brasil, a liderança institucional, na figura do Lula, abriu caminho para retrocessos por ter feito grandes alianças capitalistas com o agronegócio, a mineração, o setor petrolífero. O governo foi se distanciando dos movimentos populares. Por outro lado, os próprios movimentos tiveram suas crises, suas dificuldades internas e externas, de maneira que se configurou um outro processo. E na sociedade civil podemos dizer a mesma coisa. A igreja entrou num quadro diferente do Concílio Vaticano II [1962 a 1965]. Devido ao posicionamento de João Paulo II voltou-se à situação pré-conciliar. É o que predomina no episcopado hoje. Isso tem muita influência no conjunto da sociedade por causa das bases sociais; nas paróquias, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). O bispo emérito de Goiás, Dom Tomás Balduíno As lideranças progressistas da Igreja foram abafadas na última década? Houve uma linha de retroceder nos avanços do Concílio. No sentido do ecumenismo, da liberdade religiosa. Respondendo a sua pergunta, eu falo da liderança institucional que influenciou fortemente no corpo eclesial. E no Brasil é importante esse corpo eclesial porque há várias comunidades de base. Agora, elas estão influenciadas por vários movimentos carismáticos, que dão muito mais a ênfase na religião como um conforto, emoção e compensação. Não como uma força, como é no Concílio ou como é visto em João 23 [papa que convocou o Concílio Vaticano II], de que a religião deva ser “sal, luz e fermento” no meio do mundo; com humildade, sem querer ser dono da verdade. Mas colaborando na presença evangélica com os que sofrem, os que são injustiçados, os perseguidos, que são os povos indígenas, os negros, os quilombolas, as mulheres. Houve um retrocesso em relação a isso. E, falando de América Latina, é interessante que na Venezuela a igreja siga a oposição conservadora e burguesa. “O governo foi se distanciando dos movimentos populares” E o que pode ser dito em relação à reforma agrária no país? Houve, inicialmente, uma reforma agrária no sentido de mudança de paradigma. Quer dizer, de uma estrutura latifundiária para uma estrutura de participação popular em relação à terra para quem dela precisa para viver e trabalhar. A primeira fase da luta de reforma agrária, no sentido da ocupação da terra, de pressão, para o reconhecimento dos direitos, com relação aos índices de produtividade, isso não caminhou nada. O governo Lula amarrou isso com a maior força que pôde. Então, a reforma agrária começou a arrefecer, uma vez que lá em cima não havia muito estímulo para isso, pelo contrário; houve muita regulamentação que veio da época de Fernando Henrique, no sentido de punir as ocupações. Nos últimos tempos, a reforma agrária, então, seguiu a linha da eficácia, da produção, das cooperativas. Houve melhorias, mas com certa ambiguidade, porque em muitos casos jogou água no moinho do agronegócio. A pequena propriedade entrou nessa lógica e se inseriu na grande produção, até colaborando com a produção do etanol. Houve um aprimoramento tecnológico. Isso se deve reconhecer. Em relação aos movimentos sociais do campo foi disseminada a questão da principalidade da soberania alimentar. Isso em todo o mundo. O que influiu na cultura em torno da produção do alimento. Isso foi um grande avanço... Enfrentar, por exemplo, a questão genética, que também é uma forma de distanciar o trabalhador, o indígena, o quilombola, da terra. Isso porque a semente se torna algo inacessível dentro dessa nova mentalidade transgênica. O maior perigo não é somente o efeito duvidoso em relação à saúde ao final da produção, mas o não acesso às sementes e, consequentemente, o acesso à terra. Nesse ponto, o próprio governo Lula teve muita responsabilidade, ou irresponsabilidade, no sentido de permitir o avanço disfarçado disso. “Nos últimos tempos, a reforma agrária, então, seguiu a linha da eficácia, da produção, das cooperativas” O senhor considera a questão de Raposa Serra do Sol como a vitória mais emblemática para os povos indígenas nessa última década? Houve um avanço no sentido de garantir os direitos dos povos indígenas segundo a Constituição. Por outro lado, houve uma articulação da direita e da bancada ruralista no sentido de tirálos da terra. Essa é a proposta da [senadora] Kátia Abreu (PSD-TO). Há uma mentalidade classista raivosa em relação a esses povos. São os que atrapalham o desenvolvimento da pátria, para os ruralistas. Quando para nós, os movimentos sociais, são os que mantém o verdadeiro relacionamento com a terra, no sentido de garantir a sua saúde e o seu futuro. “Há uma mentalidade classista raivosa em relação a esses povos. São os que atrapalham o desenvolvimento da pátria, para os ruralistas” O Brasil de Fato nasceu há dez anos com a proposta de ser um instrumento dos movimento sociais e tenta registrar, sob uma ótica popular, os assuntos que o senhor mencionou e muitos outros. Que desafios a mídia alternativa, na qual nosso jornal se insere, tem pela frente? O fato de ter sido criado com audácia, talvez não considerando muito as limitações, mas o ideal, a utopia, isso foi bom. Aquele nascimento foi a concretização de um sonho que todos trazemos de longa data de poder ter uma imprensa que tenha a cara do povo. E não a imprensa que toda a vida tem mostrado a tristeza da elite, as intrigas palacianas. A vantagem do Brasil de Fato é de ter nascido colado ao movimento popular da terra. Isso, ao meu ver, foi a salvação. Poderia ser dito, “não demos conta, sonhamos alto demais”. Mas não, se manteve. Houve uma afirmação. É um jornal que se afirma, que é coerente, abrangente. Há nele o cenário brasileiro, latino-americano e até mundial. Quem quer ter o mínimo de noção científica do andamento da conjuntura internacional precisa ler o Brasil de Fato. Sei de várias pessoas que pensam assim. A expectativa, agora, é de uma manutenção; uma caminhada coerente e que mais tarde comece a enfrentar essas forças permanentes [oligarquias da comunicação], que nasceram na república e mamam nas tetas do governo e se mantém numa política de favorecimento eleitoreiro em troca de ajuda financeira. “A vantagem do Brasil de Fato é de ter nascido colado ao movimento popular da terra. Isso, ao meu ver, foi a salvação” O senhor acredita que o Brasil de Fato vai registrar mais lutas sociais? Testemunharemos mais avanços de nossa sociedade para a próxima década? De um modo geral, a expectativa é a da semente que vem debaixo pra cima, nas bases populares. Eu sou um homem de igreja e minha expectativa é no aprimoramento no laicado, do povo de Deus, na ideia de uma utopia geral, não do fortalecimento institucional das forças partidárias, daqueles que detém o poder econômico e político, mas nas bases populares. Acho que é isso que vai mudar e é isso que vai apontar o futuro de nosso país, de nosso continente e, quem sabe, o futuro da humanidade. Volta e meia cito a proposta de Jesus, que é genial. Trata-se da pequena semente. O pequeno fermento, a pequena chama, tudo isso é pequenez, mas tem uma vocação de abrangência, de solidariedade, de crescimento, de ultrapassar os obstáculos à dignidade da mulher, do homem, da terra, da mata, dos ribeirinhos. Nós devíamos apostar mais nessa perspectiva. Tem muita gente que ainda olha para o “céu” do Palácio do Planalto. É olhar mais para o chão, para a terra, para as sementes que se tornarão árvores onde os passarinhos do céu irão fazer os seus ninhos. 8 de 24 a 30 de janeiro de 2013 brasil “Estamos devendo muito ao povo brasileiro” Carlos Kilian/ALESC ENTREVISTA Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais, afirma Olívio Dutra Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) DESDE QUANDO criticou as “más companhias” que teriam levado o PT a enveredar pelos caminhos ortodoxos da política, Olívio Dutra vem sendo uma das vozes internas críticas ao processo de inflexão conservadora do próprio partido. Fundador do partido, primeiro prefeito petista em Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul entre 1999 e 2002 e ministro das Cidades no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Olívio Dutra faz um balanço realista dos dez anos de PT no governo federal. “Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais”, afirma. Em entrevista ao Brasil de Fato, Olívio, que esteve presente no lançamento do jornal durante o Fórum Social Mundial em janeiro de 2003, em Porto Alegre, reconhece os limites da gestão petista, que começou naquele mesmo mês. “Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros“, reconhece, defendendo que o partido e a esquerda retomem o debate sobre as transformações necessárias na sociedade brasileira Além de um balanço dos últimos dez anos, o ex-governador gaúcho apontou os limites da experiência petista, os desafios da esquerda e não deixou de reforçar sua posição sobre a postura do partido em relação ao “mensalão”: “O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação”. “Não faltou coragem nos dois mandatos do Lula e neste que está se desenrolando com a Dilma. Mas é bem verdade que não rompemos com conjunturas adversas” Brasil de Fato – O Brasil de Fato foi lançado em janeiro de 2003, logo após a posse de Lula, durante o Fórum Social Mundial. O primeiro número do jornal trazia uma entrevista com o economista Celso Furtado e a manchete: “É preciso coragem para mudar o Brasil”. Passados dez anos do projeto do PT no poder, houve necessária coragem para as mudanças profundas no Brasil? Olívio Dutra – Lembro de um cidadão da Bossoroca (cidade gaúcha das Missões, terra natal de Olívio) que tinha 90 e tantos anos e dizia: “Coragem não me falta, me falta ar”. Não faltou coragem nos dois mandatos do Lula e neste que está se desenrolando com a Dilma. Mas é bem verdade que não rompemos com conjunturas adversas. Acabamos contemporizando sob a alegação da governabilidade, tendo que construir uma maioria não programática no Congresso, tanto no primeiro quanto no segundo governo do Lula, e até mesmo agora. Mesmo havendo coragem para enfrentar os desafios de um país tão grande e com desigualdades imensas, esta maioria não programática sempre puxou para baixo a execução de um programa que enfrentasse com radicalidade situações de desigualdade que penalizam milhões de brasileiros. Então, penso que coragem não faltou. E política evidentemente se faz com coragem, mas também com clareza dos objetivos. Por isso, penso que ainda há muito o que fazer. Estamos devendo muito ao povo brasileiro, mesmo que tenhamos conquistados direitos sociais, melhor distribuição da renda, oportunidade de emprego e trabalho regular. Mas não fizemos, por exemplo, a reforma agrária com a radicalidade necessária. Com a maioria que constituímos, não fizemos nenhuma das reformas fundamentais do Estado. Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros. O ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra Como o senhor mesmo diz, apesar dos avanços nas áreas econômica e social, os governos Lula e Dilma não enfrentaram questões estruturais. Foi por causa da governabilidade ou o projeto do PT no poder acabou sendo não enfrentar estes temas? Sou um dos fundadores do PT e até hoje não vi nenhuma instância do partido se decidir por um projeto que fique estacionário ou que se condicione às conjunturas. Se isso está andando, é por conta de alguns setores que estão se contemplando com o que já se conquistou. Se pensamos que dialogar com amplos setores da sociedade brasileira é suficiente, que isso abre espaços e reduz pressões, o projeto vai ficando, na sua realização, cada vez mais longe. O horizonte vai ficando mais distante. E isso sem ter tido uma discussão. Qual é o papel de um partido de esquerda e do socialismo democrático em sendo governo e tendo representação política para enfrentar um Estado que não é o que acolhe um projeto de transformação social? Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais. As elites se sentem muito contrariadas em terem tido a fraqueza de deixar o povo brasileiro eleger um metalúrgico para a Presidência da República, e agora uma mulher que vem de uma luta que não é a luta que eles sempre patrocinaram. Mas isso não os impede de continuar tendo poder. Porque poder não é apenas estar no governo. O protagonismo do povo brasileiro ainda precisa ser estimulado, provocado. Nós chegamos no governo e de certa forma contemporizamos com as coisas. Os movimentos sociais têm presença nos conselhos aqui e acolá, mas isso garante força para os movimentos sociais e mobilização ampla que um governo de transformação precisa ter na base da sociedade para poder avançar? Isso não temos respondido como partido. Aliás, qual o projeto que a esquerda brasileira tem para o país, não apenas para ganhar eleições? Como a esquerda vê o Brasil e a possibilidade de transformá-lo? E estabelecer entre si compromissos e poder alternarse por dentro da esquerda, e não a esquerda disputar esta ou aquela eleição e depois ter que fazer negociações em que o seu projeto se estilhaça e o horizonte da transformação fica cada vez mais distante. O PT é o maior partido de esquerda do país e não nasceu de gabinetes, mas está cada vez mais dependente destes nichos de poder dentro de um Estado que está longe de ter esse controle público e popular efetivo. E estamos gerindo esse Estado. É uma discussão séria que precisamos nos debruçar sobre ela. O PT tem que fazer a obrigação de fazer isso. Não esgotou este projeto na medida em que não se tornar um partido da acomodação e se mantiver como partido da transformação. O senhor defende a necessidade de a esquerda, não só o PT, discutir o que quer para o Brasil. O PT aceitou o jogo democrático, mas a democracia não é estática, é um processo. Temos que estabelecer formas de ir desmontando a lógica do Estado que funciona bem para poucos e mal para a maioria. Temos que discutir como agir por dentro do Estado, em um processo democrático, mas não perdendo o objetivo estratégico de ganhar força na base da sociedade, semear transformações. Não temos que sair com um tijolo em cada mão, ou dando murro em ponta de faca, mas temos que ter consciência que o partido tem de ser uma escola política. Pode haver uma alternância entre as figuras dos diferentes partidos de esquerda, desde que haja um compromisso de sequência do projeto de transformação, e não de acomodação. Nosso partido tem que tirar lições dos governos que já exercemos, mas não ficar se autoelogiando e nem se remoendo. Há uma realidade a ser enfrentada. E é preciso ter povo mobilizado constantemente, não como massa de manobra, mas para formar uma base de sustentação. “Se pensamos que dialogar com amplos setores da sociedade brasileira é suficiente, que isso abre espaços e reduz pressões, o projeto vai ficando, na sua realização, cada vez mais longe” O senhor acredita que ainda haja espaço para isso no PT? O senhor e outros dirigentes vêm defendo uma retomada de velhas tradições do PT, mas não é ilusório imaginar que o partido voltar a ser algo que já não é mais? Eu não prego este retorno, mas também afirmo que, sem raízes, uma árvore não tem tronco com seiva suficiente para sustentar a galharia lá em cima. E essas raízes são as lutas sociais e populares, de um período histórico importante do país, no qual se originou esse ambiente de fundação do PT. A conjuntura mundial é desafiadora. Vamos buscar apenas nos adaptar? Não é uma oportunidade de darmos um salto? O PT tem que debater isso. As instâncias partidárias afrouxaram-se de tal maneira que inclusive tivemos pessoas importantes do PT que cometeram políticas que não se diferenciam das políticas tradicionais que sempre condenamos, sob alegação da governabilidade e essas coisas todas. Isso não pode ser culpa apenas desta ou daquela figura, mas as estruturas partidárias não estavam suficientemente atentas ou atuantes, e se criaram essas situações em que as pessoas pensavam que podiam fazer ou desfazer coisas que depois se justificariam pelos objetivos. E isso levou a essa situação que estamos sofrendo, que é a Ação Penal 470, o chamado mensalão, que não pode ser o objetivo do nosso debate ficar remoendo, acusando aqui ou ali, mas se superando. Achar que podemos comprar e vender opinião, comprar e vender posições, comprar e vender votos, isso é o pior da política, que tem desgraçado o povo brasileiro e desqualificado as instituições políticas. O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação. Apesar das críticas ao julgamento do mensalão, o governador gaúcho Tarso Genro vem afirmando em artigos que o partido deve mudar de agenda. É o que o senhor está dizendo também? O partido não deve ficar se justificando, mas não deve também colocar a cabeça no chão como avestruz. Tem que assumir que houve erros de conduta política. Não é condenar Fulano ou Beltrano, mas assumir que em uma situação tal, as instâncias do partido não foram capazes de não se deixar aprovar por condutas assim. E ir adiante, evidentemente. Penso que a política para nós tem que ser a construção do bem comum, com protagonismo das pessoas. O Estado, para funcionar bem, tem que estar sob controle público efetivo. Esse é um objetivo, colocar o Estado sob controle da sociedade. E para isso é preciso ter espaço para os movimentos sociais, instigá-los dentro da sua autonomia. Um governo tem limites para executar coisas, mas não pode submeter os movimentos sociais a esses limites que tem na institucionalidade. O Brasil de Fato foi lançado durante o Fórum Social Mundial. O balanço que o senhor faz do FSM e das coisas que aconteceram no Brasil e na América Latina nestes dez anos é otimista ou pessimista? É realista. Há avanços importantes, que não fossem as edições do FSM não teriam acontecido. Agora, há coisas que poderiam ter ido mais longe. O FSM também não pode ficar atrelado e dependente de governos, mesmo que sejam governos sérios e comprometidos com as lutas sociais. O Fórum tem que ter formas de fazer com que suas deliberações ecoem nas instâncias supranacionais, nos organismos internacionais. O fato de o FSM ter perdido um pouco do foco, porque se mundializou, passou a acontecer em diferentes locais e depois ter encontros maiores, continentais, para depois ter um encontro global, tem que ser revisto, para não se perder. ““Há uma realidade a ser enfrentada. E é preciso ter povo mobilizado constantemente, não como massa de manobra, mas para formar uma base de sustentação” E qual o balanço realista que o senhor faz da imprensa alternativa brasileira neste período? Cresceu muito, eu penso. Temos muitos veículos alternativos, mas qual é o conteúdo, o que estão provocando? Penso que esse florescimento de uma imprensa alternativa é um caminho importante para enfrentar os grandes grupos econômicos que lidam com a informação. É preciso ter uma miríade de fontes alternativas de informação e comunicação. Mas precisam ter uma visão, não é cada uma no seu território, na sua categoria, é preciso ter uma visão de como as coisas se relacionam, se interligam. E isso também é papel dos partidos políticos, instigar essas relações e a qualificação da intervenção. Temos um governo com problemas sérios na relação com os grandes grupos econômicos e a grande mídia. A grande mídia se alimenta das contas de publicidade do governo e das empresas públicas. Enquanto isso, para jornais e veículos alternativos sobram migalhas. São questões políticas e precisam ser encaradas. Isto é uma dívida que ainda não saldamos. brasil de 24 a 30 de janeiro de 2013 9 “Chávez é um mortal. Mas a Revolução Bolivariana é eterna” Divulgação ENTREVISTA Para o jornalista e escritor Fernando Morais, uma das maiores conquistas da Revolução Bolivariana comandada por Chávez foi o alto nível de consciência política adquirida pelo povo da Venezuela Nilton Viana da Redação “SE VOCÊ OLHAR o mapa da América Latina de duas, três décadas atrás, verá que o continente estava coalhado de ditaduras e governos alinhados automaticamente com os interesses dos Estados Unidos”. Hoje é o oposto. Assim o jornalista e escritor Fernando Morais vê o atual cenário da América Latina. E, segundo ele, não se trata de uma visão retórica, mas muito concreta. Para isto, cita como exemplos o sepultamento da Alca e a reação do Mercosul ao golpe que depôs o presidente Lugo, no Paraguai. Nesta entrevista, Fernando Morais, que participou do processo de criação do Brasil de Fato, afirma estar tranquilo com o processo venezuelano. Para ele, que é amigo pessoal do presidente Hugo Chávez, a Revolução Bolivariana é eterna. Sobre o Brasil, Morais avalia que os dez anos de governos Lula/Dilma foram positivos. “Se tivesse que votar no Lula ou na Dilma de novo, faria isso de olhos fechados”, afirma. Para ele, salvo as exceções, a mídia brasileira já é um partido político de direita, e o Brasil de Fato funciona como um respiradouro que nos salva da asfixia produzida pela grande imprensa. Brasil de Fato – A América Latina passou por uma mudança nesses últimos 10 anos, com a chegada de forças progressistas aos governos. Qual sua opinião sobre esse processo e sobre a continuidade dele? Fernando Morais – Se você olhar o mapa da América Latina de duas, três décadas atrás, verá que o continente estava coalhado de ditaduras e governos alinhados automaticamente com os interesses dos Estados Unidos. Hoje é o oposto. À exceção do Chile, do Paraguai (este vítima de um golpe de Estado) e de mais um ou outro caso, como o da Colômbia, temos governantes progressistas à frente de todos os países. Alguns deles, como Pepe Mújica, no Uruguai, e Mauricio Funes, de El Salvador, egressos da luta armada. Não se trata de uma visão retórica, mas muito concreta. Os melhores exemplos disto foram o sepultamento da Área de Livre Comércio da Américas (Alca) e a reação do Mercosul ao golpe que depôs o presidente Lugo, no Paraguai. É sobre esse cimento que está sendo construída a unidade que vai garantir a continuidade desse processo. “O radicalismo da Revolução Cubana, em seus primeiros anos, sobretudo, só encontra paralelo, acredito, na Revolução Russa de 1917” Como você vê a questão da Venezuela, em particular, com o agravamento da doença do presidente Hugo Chávez? Não me abate qualquer preocupação com o futuro da Venezuela. Uma das maiores conquistas da Revolução Bolivariana comandada por Chávez foi o alto nível de consciência política adquirida pelo povo da Venezuela – sobretudo os mais pobres, que são a ampla maioria da população. Isto a grande imprensa brasileira não publica. Como não publicou uma sílaba sobre dados divulgados recentemente por organismos internacionais revelando que a Venezuela é o país que detém os mais baixos índices de desigualdade social do continente. Minha tristeza com o que ocorre com o presidente Chávez é também pessoal. Tenho muita honra em ser amigo dele. Aqui, ao lado da minha mesa, tenho um taco de beisebol autografado por ele para mim: “Para Fernando Morais, bateador de jonrones de la unidad latino-americana, Hugo Chávez”. Quis saber o que significava, na linguagem do beisebol, “bateador de jonrones”, e ele me respondeu que era algo como um “centroavante matador” no futebol. Como todos nós, Chávez é um mortal. Mas a Revolução Bolivariana é eterna. Quais são as principais mudanças ocorridas em Cuba nesses últimos dez anos e qual sua opinião sobre o futuro da revolução cubana? cação. Neste caso, a dupla formada pelo ministro Franklin Martins e pelo jornalista Ottoni Fernandes, recentemente falecido, produziu avanços significativos. A mudança nos critérios de distribuição das verbas publicitárias do governo federal – uma cordilheira de dinheiro que antes era concentrada nas mãos dos grandes conglomerados de mídia – foi uma revolução, mas é preciso avançar mais. É preciso não ter medo de fazer a luta política pela implantação do Marco Regulatório da mídia no Brasil. Na área eletromagnética – canais de televisão e estações de rádio – isso chega a ser escandaloso. Um bem social, um bem público, como o sinal de rádio e tv, é entregue a meia dúzia de famílias e a congressistas sem que a sociedade tenha qualquer instrumento para cobrar um serviço de qualidade por parte do concessionário. Vai dar briga? Vai, mas governar é se confrontar com interesses antagônicos e escolher de que lado você vai ficar. “É importante ficarmos de olho, porque as grandes empresas de telecomunicações estão se armando para assumir o controle da web” O jornalista e escritor Fernando Morais O radicalismo da Revolução Cubana, em seus primeiros anos, sobretudo, só encontra paralelo, acredito, na Revolução Russa de 1917. Na área econômica o processo começou com a estatização do sistema bancário e a “expropriação forçada” de quase mil indústrias, entre as quais se encontravam cem usinas de açúcar e algumas gigantes como a fábrica de rum Bacardi e a norte-americana DuPont Chemical. E terminou estatizando até carrinhos de pipoca. Manicures, barbeiros, engraxates e taxistas passaram a ser funcionários do Estado. Nos últimos anos o presidente Raúl Castro vem adotando medidas para corrigir esses erros. Antes tarde do que nunca. E desde o começo do mês de janeiro acabaram-se as restrições para que cubanos viagem ao exterior, outra medida acertada. O próprio Fidel declarou, anos atrás, que a Revolução tinha que ser “obra voluntária de um povo livre”, já apontando para o fim dos obstáculos às saídas do país. A essas mudanças vai se somar um grande surto de crescimento econômico decorrente da ampliação do porto de Mariel, perto de Havana – ampliação financiada pelo BNDES. Por sua privilegiada posição geográfica, Mariel se converterá num gigantesco e bem situado hub, um centro de transportes intermodais. Conheço empresários brasileiros interessados em comprar, arrendar ou alugar terrenos nas imediações de Mariel para instalar grandes armazéns de storage que atenderão o movimento do porto. A dimensão desse boom econômico, no entanto, vai depender do fim do bloqueio imposto pelos EUA a Cuba há meio século. Quem sabe o presidente Obama, que não pode se candidatar à reeleição e, portanto, não precisa mais beijar o anel dos barões da poderosa e influente comunidade cubana na Flórida, ponha fim ao bloqueio. Afinal, ele ganhou o Nobel da Paz e já está na hora de fazer jus ao prêmio. “Quem sabe o presidente Obama, que não pode se candidatar à reeleição e, portanto, não precisa mais beijar o anel dos barões da poderosa e influente comunidade cubana na Flórida, ponha fim ao bloqueio” E a questão dos 5 cubanos. Como a sociedade brasileira e os povos devem agir para que estes heróis cubanos, presos e condenados injustamente pelos EUA, sejam libertados? Renomados juristas europeus e norte-americanos afirmam que a condena- ção dos cubanos é um erro judiciário comparável ao que levou os anarquistas italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti à cadeira elétrica nos Estados Unidos nos anos 1920. Até o ex-presidente Jimmy Carter já sugeriu ao presidente Obama que os indultasse. Mas enquanto a máfia cubana de Miami tiver poder – dinheiro e eleitores – para eleger deputados, senadores e até presidentes, esse perdão me parece muito remoto. Hoje há cerca de quinhentos comitês pró-libertação dos 5 espalhados por todo o planeta. Oito deles são dirigidos por prefeitos de cidades do interior dos EUA. Os nomes mais expressivos da esquerda de Hollywood – Sean Penn, Danny Glover, Saul Landau, Oliver Stone, Benicio del Toro, entre outros – participam de atos a favor da libertação. Mais dia, menos dia eles estarão tomando um mojito nas ruas de Havana, tenho certeza. “É preciso não ter medo de fazer a luta política pela implantação do Marco Regulatório da mídia no Brasil” No Brasil, também estamos completando uma década de governo progressista, de esquerda. Qual a sua avaliação deste período? Quais os principais avanços? A minha avaliação é muito positiva. Se tivesse que votar no Lula ou na Dilma de novo, faria isso de olhos fechados. A inclusão social de dezenas de milhões de brasileiros, em si, já justificaria um governo. Mas a isso se soma a democratização do acesso às universidades, através do Prouni, as políticas de cotas raciais... E, claro, é preciso ressaltar que durante o período o Brasil teve a mais independente e soberana política externa de toda sua história. Como bem disse Chico Buarque, o Brasil parou de falar fino com os Estados Unidos e falar grosso com a Bolívia. Não podemos nos esquecer de que a morte da Alca começou com a recusa do Brasil de Lula a entrar nessa canoa furada. O que você destacaria deste período brasileiro que o governo Lula e agora o governo Dilma ainda não avançou e que merece urgência? Dois temas me preocupam: a questão agrária, que está na raiz da maior parte dos problemas sociais brasileiros, e a democratização dos meio de comuni- A mídia brasileira tem se posicionado cada vez mais como um verdadeiro partido político das elites. Como você analisa a mídia brasileira? Salvo as exceções de praxe, a mídia brasileira já é um partido político de direita. Mas uma direita ainda meio envergonhada, que não tem coragem de se assumir como de direita. Então isso não aparece no expediente do jornal ou da revista. O jornal Brasil de Fato está completando 10 anos. Qual a importância de um veículo como este e qual o papel fundamental da mídia alternativa/popular no atual cenário brasileiro? Eu estou com o Brasil de Fato desde o quilômetro zero. Fui voto vencido na reunião de escolha do nome (eu defendia “Aurora”, nome do cruzador que transportou os bolcheviques na conquista de São Petersburgo, em 1917), fui do conselho do jornal durante muitos anos e sou leitor regular do Brasil de Fato. O jornal funciona como um respiradouro que nos salva da asfixia produzida pela grande imprensa. É uma pena que experiências como esta não se multipliquem pelo país. Em relação ao mercado editorial brasileiro, esses 10 anos representaram mudanças significativas? Qual tem sido a influência da internet na produção editorial brasileira? A mudança mais significativa foi o advento da internet como instrumento de comunicação de massa. O futuro é a internet, o papel impresso está com os dias contados. E esse fenômeno me parece muito saudável e democrático – veja a importância que adquiriram os blogueiros progressistas no enfrentamento com a mídia tradicional. Por isso é importante ficarmos de olho, porque as grandes empresas de telecomunicações estão se armando para assumir o controle da web. QUEM É Fernando Morais nasceu em Mariana-MG em 1946. É jornalista desde 1961. Trabalhou nas redações do Jornal da Tarde, Veja, Folha de S. Paulo e TV Cultura. Recebeu três vezes o Premio Esso e quatro vezes o Prêmio Abril de Jornalismo. Foi deputado (1978-1986), secretário da Cultura (1988-1991) e da Educação (1991-1993) do Estado de Sao Paulo. É autor do roteiro da minissérie documental Cinco dias que abalaram o Brasil, sobre o suicídio do presidente Getúlio Vargas, exibida pelo canal GNT/Globosat. Antes de Os últimos soldados da Guerra Fria, escreveu os livros Transamazônica, A Ilha, Olga, Chatô, o rei do Brasil, Cem quilos de ouro, Corações sujos (Premio Jabuti – Livro do Ano de 2001), Toca dos Leões, Montenegro e O Mago (biografia do escritor Paulo Coelho, traduzido em dezenas de idiomas). Publicado em mais de vinte países, em 2004 Olga foi transformado em filme pelo diretor Jayme Monjardim, película vista por mais de cinco milhões de espectadores e indicada pra representar o Brasil no Oscar de 2005. Fernando Morais faz parte do Conselho Superior da Telesur, TV pública latino-americana sediada em Caracas, Venezuela. 12 de 24 a 30 de janeiro de 2013 cultura O legado de Sabotage, a saudade de Maurinho 13 Produções TRIBUTO No dia 24 de janeiro de 2003 o maestro do Canão, referência à favela em que morava, deixava nosso mundo. Ele seria, no dia seguinte, a atração surpresa em uma das atividades do Fórum Social Mundial, onde nascia o jornal Brasil de Fato aos anseios dos povos por transformações estruturais na sociedade, nascia o jornal Brasil de Fato. Exemplo Chamado Maestro do Canão, Sabotage colecionou afetos no lugar onde viveu. “Nossa comunidade passou a ser reconhecida depois das músicas dele. Ele falava nossa realidade”, relata Tatiane Cristina, 32, moradora do Canão e amiga do rapper desde a infância. “Ele nunca mudou o jeito dele. Sempre foi humilde”, conta Lucilene Santos Almeida, que cuida do único comércio do local, um boteco. “Eu vi ele escrevendo a música Respeito é pra quem tem. Nossa, Maurinho era foda, chega até a arrepiar”, diz emocionada Vilma Maria, 33, que diz se sentir privilegiada pelo legado que Sabotage deixou à comunidade. “As crianças hoje em dia levam como exemplo as músicas dele. A gente também mudou bastante. A gente leva o que ele deixou no coração como exemplo, e vamos passando para as nossas crianças”, diz. José Francisco Neto, Jorge Américo (Brasil de Fato) e Igor Carvalho (Revista Fórum) da Reportagem NA ALTURA do número 3.100 da Avenida Água Espraiada, no Brooklin, zona sul de São Paulo, uma porta de madeira é o elo entre a imagem projetada pelo poeta e a realidade. Ali, na apertada, acanhada, acolhedora e mística favela do Canão, um corredor de aproximadamente 20 metros é o que liga todas as casas e serve de passagem aos moradores. No final dele, quatro jovens balançam o corpo ao som de País da fome, um dos sucessos musicais de Mauro Mateus dos Santos, o Maurinho, ou Sabotage. O amor de Sabotage a sua comunidade o colocou no patamar de Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa. Se o rio Tejo não é mais belo que o rio que corre pela aldeia do poeta português, também não há melhor lugar que a Favela do Canão. Com a força de sua música, Sabotage fez o pequeno vilarejo onde vivem 18 famílias ser quase tão conhecido quanto a Favela da Rocinha, com seus 70 mil habitantes. O rapper paulistano Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage Considerado uma lenda no movimento Hip Hop, Sabotage começou a carreira em 1998, fazendo parcerias com o grupo RZO [Rapaziada da Zona Oeste]. A partir daí, com estilo próprio de cantar e criatividade nas composições, o músico disparou até chegar às telas do cinema nacional. Participou do filme O Invasor (2001), de Beto Brant, e também de Estação Carandiru (2003), de Hector Babenco. Sabotage ganhou, no final de 2002, o Prêmio Hutus como revelação do ano e personalidade do movimento Hip Hop. No entanto, a ascensão meteórica foi interrompida por quatro disparos à queima-roupa há dez anos. “Eu lembro até hoje o que o repórter falou na televisão: ‘Mauro Mateus dos Santos, conhecido como Sabotage, foi assassinado hoje por volta das seis da manhã’, lembra Wanderson Rocha, o Sa- “A gente leva o que ele deixou no coração como exemplo, e vamos passando para as nossas crianças” botinha, de 20 anos, filho mais velho do cantor. A filha do meio, Tamires Rocha, embora tivesse oito anos de idade, ainda recorda com detalhes aquela manhã do dia 24 de janeiro de 2003. Ela conta que estava junto de seu irmão se arrumando para ir à escola. “Foi aí que um vizinho nosso, o Diego, bateu na porta da nossa casa e disse que minha mãe tinha ligado e que era pra gente não sair. Foi quando, na televisão, falou ‘Sabotage’. O pai do Diego desligou a TV e falou pra gente subir para o quarto. Só que a televisão do quarto estava ligada, aí ouvimos a notícia. Meu pai tinha sido baleado”, lamenta Tamires. Na data em que sofreu o atentado, Sabotage viajaria para Porto Alegre (RS), onde, no dia seguinte, seria atração surpresa em uma das atividades do Fórum Social Mundial. Coincidência ou não, no dia 25 de janeiro, em meio Maria Dalva, viúva do rapper, faz papel dobrado na educação dos filhos. Preocupada com o futuro de Wanderson, Tamires e Larissa, ela enaltece a importância do exemplo deixado pelo marido. “Sempre tem alguém oferecendo um caminho errado, e nessas coisas de rua e de crime o pai sempre é mais ouvido do que a mãe. Então eu não sabia, muitas vezes, como resolver isso. Mas graças a Deus nunca aconteceu nada. A maior herança que ele deixou para os filhos é a imagem dele”, desabafa. Reprodução Sabota versátil Documentarista destaca as incontáveis possibilidades do artista da Reportagem Sabotage (ao centro) em cena do filme Carandiru Resgatado da “boca” O rapper Rappin Hood narra o momento em que ajudou a tirar Maurinho do mundo do tráfico de drogas da Reportagem “Um negrinho magrelo andando com um revólver na cintura e um pacote cheio de drogas na mão”. A descrição parece cena de um dos inúmeros filmes brasileiros que retratam o tráfico, mas o protagonista é um personagem da vida real: Mauro Mateus dos Santos, que em pouco tempo ficaria nacionalmente conhecido como Sabotage. Parecia impossível, mas os rappers Rappin Hood e Sandrão foram até o ponto de venda de droga (conhecido como “boca”) determinados a apresentar uma alternativa ao jovem. “Chamei ele pra ir com nós. Ele perguntou se a gente estava falando sério. Eu falei que era isso mesmo, e que nós íamos fazer uma corrida pra ele gravar um CD”, narra Hood ao Brasil de Fato, que já o co- nhecia desde os anos de 1990. O assunto se estendeu até chegar ao dono da “boca”. Quando soube que Sabotage ia sair da ilegalidade para ingressar no mundo da música, questionou: “Vocês vão levar o menino. Mas e se um dia ele voltar aqui? Eu não vou dar trabalho pra ele, não”. De imediato, Hood respondeu: “Ele não vai mais voltar.” E, realmente, não voltou. Sabotage começou a cantar nos shows dos grupos RZO, Posse Mente Zulu, Potencial 3 e do próprio Rappin Hood. Quando Mano Brown, do grupo Racionais MCs, o viu cantando, se propôs a ajudar o futuro rapper a gravar seu primeiro CD. “Aí entramos pro estúdio com ele. Junto com o Instituto e toda a rapaziada. Lá ele fez o disco ‘Rap é Compromisso’. Todo mundo participou”, lembra Hood. Em pouco tempo, Sabotage se apresentou na MTV, gravou clipe e ganhou visibilidade. Além da música, Sabotage atuou no cinema nacional, participando do filme O Invasor, de Beto Brant, onde conheceu e formou parceria com o músico Paulo Miklos, integrante do Titãs. Na sequência, foi convidado para Estação Carandiru, do diretor Hector Babenco, interpretando o personagem Fuinha. (JFN, JA e IC) O cabelo espetado – inspirado no rapper americano Coolie –, o flow (estilo melódico) peculiar, a paquera com o cinema e o linguajar típico da malandragem transformaram Sabotage em uma personalidade insubstituível no rap. Mas o que mais chamou atenção em seu trabalho foi a versatilidade e a capacidade de dialogar com outros ritmos musicais. Tais qualidades são destacadas pelo documentarista Ivan Vale Ferreira, que vem trabalhando no documentário Sabotage, o maestro do Canão, que retrata a vida e carreira do rapper. Ferreira compara a morte de Sabotage com a de renomados artistas. Para ele, Maurinho, como era conhecido entre os amigos, tinha muito a doar para a música brasileira. “Pra mim é como se ele fosse Cássia Eller, Chico Science, pessoas que morreram no auge da carreira. Essa talvez seja a maior falta que ele faz, por ter pensado muito em fazer coisas diferentes e não ter tido tempo suficiente para realizar. A música nacional foi quem mais perdeu”, ressalta. O documentário, que sairá pela 13 Produções, tem previsão de ser lançado ainda neste semestre e trará depoimentos de diversos músicos e pessoas ligadas a ele. O objetivo, segundo Ferreira, é demonstrar “a importância desse artista que misturou estilos e se tornou uma lenda após sua morte.” (JFN, JA e IC) Sabotage, segundo os rappers “O Sabotage fez várias transformações de grande relevância dentro do rap. No contexto social, ele ajudou a elevar o rap para além das fronteiras que separam o morro e o asfalto. Vejo ele como um agente transformador. Musicalmente, ele trouxe evoluções pra música rap, diferenciando flows, levadas e temas. Nesses 10 anos não é à toa que ele se manteve vivo.” Flávio Renegado “Sempre quando paro pra escrever uma letra lembro muito de uma frase do Sabotage: “rap é compromisso, não é viagem”. Sempre pensei assim. Acredito que nossa maior afinidade seja essa.” Dexter “A passagem do Sabotage pelo rap foi primordial para quem já rimava e para quem veio depois, tanto com relação aos MCs e DJs como para quem escuta rap. Ele mostrou que dava pra gente abordar diversos assuntos sem deixar de falar pelo nosso povo.” Du Bronk’s “É isso que eu quero guardar dele. Aquela alegria, aquela vivacidade, aquela malandragem e aquela inteligência. O neguinho era da hora, cara. Eu quero lembrar dele assim.” Rappin Hood “Perdemos não só um músico da periferia, mas também um dos manos mais humildes e talentosos do cenário.” Bad, Família Brooklin Sul américa latina de 24 a 30 de janeiro de 2013 13 “Nosso futuro está cheio de sorrisos, música e amor” Cuba Solidarity Campaign ENTREVISTA Aleida Guevara analisa a sociedade cubana e aponta os desafios do governo da ilha para os próximos anos “Gostaria de ver [no Brasil] uma reforma agrária e que esse gigante latino-americano fizesse parte da Alba” Nilton Viana da Redação FILHA DO GUERRILHEIRO e revolucionário Ernesto Che Guevara, pediatra e militante da revolução cubana. Aleida Guevara vive em Havana desde seu nascimento em 1960, um ano após o trunfo da revolução que seu pai ajudou a construir ao lado de Fidel Castro e outros guerrilheiros. Em entrevista ao Brasil de Fato, Aleida, que esteve presente no ato de fundação do jornal, analisa o atual contexto de Cuba no cenário latinoamericano e traça as perspectivas para o futuro. O que você diria aos jovens da periferia urbana brasileira, que gostam do Che? O que eu digo a todos os jovens, estudem Che, leiam-no, pratiquem-no, tragam-no junto a vocês para enfrentar sua realidade cotidiana. E o que você diria aos jovens que se formam em medicina, e que às vezes apenas pensam em ganhar dinheiro, para “subir” na vida? Digo que se pensarem assim, nunca serão médicos. Esta profissão, como a dos professores, é de entrega total e o único amo a quem respondemos é o povo. Estar perto da dor e da alegria das pessoas te converte em um ser humano melhor, se não é assim, melhor não ser médico. “Somos mais fortes como sociedade, temos maior desenvolvimento na nossa segurança interna, então podemos ser muito mais hospitaleiros com a nossa gente” Brasil de Fato – A América Latina passou por mudanças importantes – principalmente com a chegada de governantes progressistas, anti-imperialistas e de esquerda. Como você avalia o atual cenário latinoamericano em relação a Cuba? Aleida Guevara – Para nossa grande pátria é um momento de esperança, mas o melhor é que já se pode ver os sonhos tornando-se realidades, nossos povos começam a sentir que se pode, começam a desfrutar, pela primeira vez em nossa história, de seus próprios recursos naturais, com os quais se pode obter reais benefícios na educação, na saúde, em moradia. Pela primeira vez, vemos exércitos que costumavam nos reprimir participando das novas construções e defendendo seu povo. Isto permite uma relação muito mais estreita entre nossos povos, onde os intercâmbios econômicos e culturais aumentam diariamente e o povo cubano participa ativamente em todo esse processo de união. Trabalhamos muito pela solidariedade e recebemos muita solidariedade. Já não estamos ilhados, somos parte integrante de um amanhecer, a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Agora sim começamos a desfrutar da pátria grande. Nesses 10 anos, ocorreram algumas mudanças em Cuba, como a saída de Fidel Castro e a chegada de Raul ao poder. Como avalia essas mudanças? Não são mudanças, é a continuidade de um processo revolucionário, que amadurece, cresce e se desenvolve. Podemos dizer com certeza que ainda há muito o que melhorar, mas podemos fazê-lo pela acumulação de experiência, porque temos vencido milhares de enfrentamentos e vamos buscando soluções para os problemas que temos. “Por que é diferente para os cubanos? Será pela propaganda que desenvolvem contra nossa sociedade? ” A reforma migratória acaba de entrar em vigor em Cuba. Qual deve ser a importância dessa nova medida? Isto reflete o que eu disse anteriormente, somos mais fortes como sociedade, temos maior desenvolvimento na nossa segurança interna, então podemos ser muito mais hospitaleiros com a nossa gente. É um processo de amadurecimento que leva anos se aperfeiçoando, não são coisas decididas em pouco tempo, levamos muitos anos buscando soluções, escutando o sentimento de nosso povo, mas sem perder nem por um instante a consciência das ma- ocorrer. O importante para mim é que o povo dos Estados Unidos desperte de sua letargia e tome consciência do poder que tem como povo e tome as rédeas, só então poderemos falar de alguma mudança, enquanto isso não ocorrer, teremos o mesmo cachorro com uma coleira diferente. A médica cubana Aleida Guevara nipulações que o governo dos EUA realizam para tentar danificar nossa soberania, é sem dúvidas um inimigo muito poderoso e não podemos nos descuidar. Por outro lado, o governo cubano sempre foi criticado por não permitir que seus cidadãos viajassem livremente, mas poucos conhecem os acordos migratórios que nosso governo tem tentado negociar com os EUA. Há anos lhes temos pedido que cumpram os 20 mil vistos anuais prometidos e que somente nos últimos anos têm feito. Poucos conhecem sobre a lei implementada por eles para receber ilegalmente cubanos em seu território nacional, nós somos os únicos cidadãos deste planeta que se chegamos ilegalmente à costa dos Estados Unidos somos recebidos como heróis e está estabelecido por lei que temos direito a moradia, trabalho e algum dinheiro e em um ano podemos optar pela cidadania estadunidense, tudo isso se chegarmos ilegalmente a seu território. Pensem quantos mexicanos ou haitianos morreram tentando fazer o mesmo. Por que é diferente para os cubanos? Será pela propaganda que desenvolvem contra nossa sociedade? De toda forma, seguimos em frente, agora veremos quantos vistos receberemos, mas pessoalmente estou contente, acho que essas medidas são boas para nosso povo. Qual é, a seu ver, o principal legado de Che Guevara para a América Latina? Che é o arquétipo mais completo do novo homem, com capacidade para amar, para lutar, para aprender, para viver com dignidade. Sua própria vida se converte em seu melhor legado, mas pessoalmente me comove sua capacidade para amar, só dessa forma se pode estar disposto a entregar sua vida por outros homens e mulheres. Che representa a continuidade dos melhores próceres de nossa América. Che é futuro. O que você acha do socialismo? Devemos continuar insistindo na luta por uma sociedade socialista? Com certeza. Como podemos garantir uma educação gratuita e em igualdade de condições para todo o povo? Como garantir saúde para todos, como direito do ser humano? Como assegurar a alimentação do povo? Somente podemos conseguir isso se somos donos do que produzimos, se nossas terras são utilizadas como propriedade coletiva e não por poucos ou companhias estrangeiras e se garantirmos reforma agrária, se o capital se emprega em benefício social e não para o lucro de poucos. Enfim, só atingiremos a soberania e a prosperidade para nossos povos se construirmos uma sociedade de direito com respeito a cada um de nossos homens, mulheres e crianças. E eu só conheço isso em uma sociedade socialista. “Che é o arquétipo mais completo do novo homem, com capacidade para amar, para lutar, para aprender, para viver com dignidade” Como você vê o futuro de Cuba, diante da difícil situação econômica? Com muito trabalho, com muito que aprender e muito o que resolver, mas sempre melhorando e aperfeiçoando nossa sociedade socialista, certamente seria muito útil se abolissem o bloqueio econômico criminoso que os EUA nos impõem há mais de 50 anos.O futuro vem cheio de tecnologia, já estamos desenvolvendo um polo científico que produz, ainda nessas condições de bloqueio, medicamentos e vacinas que podem ajudar a melhorar a vida de milhões de pessoas neste planeta, nosso futuro está cheio de sorrisos, música e amor, porque assim somos, mas também há determinação, valor e força. Como você avalia a gestão de Obama, em relação a Cuba, sobretudo em comparação com os governos anteriores (Clinton e Bush)? De Obama esperávamos muito mais, mas simplesmente se tem comportado como mais um fantoche dos interesses econômicos das transnacionais e da indústria armamentista de seu país, mas, todavia, não perdemos as esperanças de que possa fazer algo útil para seu próprio povo em relação à saúde, educação, moradia e sobretudo protegê-los da violência em que vivem, mas a verdade é que acho isso muito difícil de No Brasil, estamos completando uma década de um governo progressista. Como você vê o cenário brasileiro? A verdade é que eu gostaria de ver uma reforma agrária, gostaria que esse gigante latino-americano fizesse parte da Alba, gostaria que nenhum homem, mulher ou criança desse belo país passasse fome ou alguma necessidade, pois não posso entender como com tanta riqueza exista uma única pessoa passando necessidades. Creio que podem fazer muito mais e não só o governo, mas vocês mesmos, como massa humana, com força suficiente para defender seus direitos. Creio nos movimentos sociais como o MST, porque eles mostram que “sim, se pode” e tornam o sonho realidade. Há algum tempo visitei uma das maiores minas de ferro do mundo e fiquei muito impressionada, está na Amazônía brasileira e para tirar o ferro têm cortado milhares de árvores ancestrais, por favor, amigos, tenham cuidado! O homem pode viver sem ferro, mas não pode viver sem oxigênio, defendam o futuro da nossa espécie. “O homem pode viver sem ferro, mas não pode viver sem oxigênio, defendam o futuro da nossa espécie” A chamada grande mídia tem se posicionado cada vez mais como um verdadeiro partido político das elites. Como você analisa a imprensa? A imprensa é muito importante, tem a responsabilidade de alertar as pessoas sobre tudo o que acontece em nosso entorno, mas quando essa imprensa se converte em papagaio repetidor de notícias e sequer toma o trabalho de investigá-las, essa imprensa se converte em uma grande máquina de desinformação e isso é muito perigoso e danoso, pois pode impedir que as pessoas reajam a tempo contra algo perigoso ou injusto. Você esteve no lançamento do nosso jornal Brasil de Fato, em janeiro de 2003. Agora, estamos completando 10 anos. Qual a importância de um veículo como este e qual o papel da mídia alternativa/popular para os povos? O povo necessita sentir que tem voz, que é escutado e defendido. É esse o papel tão importante que têm os meios alternativos. Feliz aniversário. E que tenham muitos anos, mas sempre a serviço dos que sabem amar. QUEM É Aleida Guevara March é filha do revolucionário Ernesto “Che” Guevara, médica pediatra. Trabalhou como médica em Angola, Equador e Nicarágua. Mora atualmente em Cuba e é militante do Partido Comunista Cubano. 16 de 24 a 30 de janeiro de 2013 internacional Reprodução Nuremberg, a memória na história OPINIÃO O imperialismo contemporâneo empenha-se em apagar da história a memória do fascismo. Daí a atualidade permanente do belo livro de Arkadi Poltorak sobre o Processo de Nuremberg Miguel Urbano Rodrigues NA EUROPA, as campanhas de branqueamento do fascismo ganharam amplitude nos últimos anos. Em livros, na televisão e em mesas redondas, historiadores, politólogos e sociólogos esforçam-se por negar, em Portugal, na Espanha, na Hungria e na Romênia que Salazar, Franco, Horthy e Antonesco tenham sido ditadores e qualificam os seus regimes de “autoritários”, afirmando que praticaram políticas musculadas. A própria ação das polícias políticas é minimizada. Os fascismos ibéricos, nomeadamente, teriam sido uma invenção dos comunistas. Na Itália, os políticos de direita vão mais longe. Partidos neofascistas têm exercido o poder e Mussolini é apresentado por destacados intelectuais como um estadista progressista, autor de uma obra revolucionária. Assim se tenta apagar a memória em agressão à história. Reli há dias um livro que adquiri na União Soviética e que então me lançou em profunda meditação sobre a “elite nazi” responsável pela tragédia da II Guerra Mundial: O Processo de Nuremberg, de Arkadi Poltorak, o juiz que foi chefe do secretariado soviético do Tribunal Internacional que julgou os grandes criminosos de guerra nazis naquela cidade alemã. Eles são o símbolo vivo do ódio racial, do reino do terror, da arrogância e da crueldade, da vontade de poder Julgamento Foram 22 os militares e civis então julgados. Onze, entre os quais Goering, Keitel, Jodl, Ribbentrop, Rosenberg, Streicher, Kaltenbrunner, Seyss Inquart, Sauckel, Frank e Frick foram condenados à morte e enforcados. Rudolf Hess foi condenado a cumprir prisão perpétua. Os almirantes Raeder e Doenits, Albert Speer, Schirach e Neurath, condenados em penas pesadas, foram mais tarde anistiados e faleceram em liberdade. Hitler, Goebbels e Himmler suicidaram-se nos últimos dias da guerra para escapar do castigo. Ley suicidou-se no cárcere nas vésperas da audiência. Bor- mann, foragido, foi também condenado à morte. Schacht, Von Papen e Fritzsche foram absolvidos apesar da oposição dos magistrados soviéticos. Durante a audiência, que durou 250 dias, o tribunal examinou os originais de mais de 3.000 documentos, interrogou 200 testemunhas e recebeu 300.000 depoimentos sob juramento. Muitas das provas eram documentos confiscados pelos exércitos aliados nos estados-maiores alemães, em repartições públicas e esconderijos em minas de sal, paredes falsas e subterrâneos. Os advogados de defesa defenderam os réus sem restrições, como nos tribunais ocidentais. O Procurador-Geral americano, Robert Jackson, justificou o Tribunal Internacional com estas palavras: “O que confere tanta importância a esta audiência é o fato de estes réus representarem influências nefastas que, muito tempo depois de os seus corpos se terem desfeito em pó, ainda inquietarão o mundo. Eles são o símbolo vivo do ódio racial, do reino do terror, da arrogância e da crueldade, da vontade de poder. São os símbolos de um nacionalismo e de um militarismo selvagens, de intrigas e preparativos para uma guerra, no decurso da qual gerações inteiras foram na Europa transplantadas, em que homens foram exterminados, lares destruídos e toda a economia levada ao depauperamento”. Roman Rudenko, o Procurador-Geral soviético, sublinhou na caracterização do Processo que era a primeira vez na história da humanidade que eram julgados criminosos que se tinham apossado de um Estado para fazerem dele instrumento de monstruosos crimes. No veredito emitido, o Tribunal Internacional recordou que “os campos de concentração se haviam tornado lugares de extermínio organizado e metódico”, lembrando que os assassinos se compraziam em requintes de crueldade. Submetiam com frequência prisioneiros a torturas monstruosas, incluindo “diferentes experiências sobre a reação a grandes altitudes, ao tempo de vida na água gelada, ao efeito de balas envenenadas e a certas doenças contagiosas”. Numa inesquecível visita a Auschwitz, em 1981, tive a oportunidade de ver abajures de pele humana, margarina e sabonetes confeccionados com gordura humana, e máquinas que transformavam ossos humanos em adubos. O livro de Poltorak chama a atenção para uma realidade esquecida: os magnatas da indústria e da finança do III Reich, Krupp, Voegler, Lowenfeld, Schroeder, Tyssen e Schnitzler contribuíram ativamente para a subida de Hitler ao poder, apoiaram as suas guerras de agressão, alguns colaboraram na estratégia da “solução final” cujo desfecho foram as câmaras de gás e os fornos crematórios. Só um deles, Gustav Krupp, compareceu em Nuremberg como réu, mas adoeceu e não foi ali julgado. Os americanos acabaram, aliás, por devolver à família Krupp as suas fabulosas indústrias que durante a guerra tinham ganho milhões utilizando o trabalho escravo nas fábricas de armamento. No prefácio ao livro de Poltorak, o procurador soviético, L. Smirnov, presidente do Supremo Tribunal da URSS, Reprodução Uma das sessões do julgamento de Nuremberg, onde 22 militares e civis alemães foram julgados Wehrmacht envelheceram rodeados de respeito e admiração. Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos as críticas a Nuremberg não se fizeram, aliás, esperar. Lord Hankey, diplomata prestigiado, definiu o processo como “perigoso precedente para o futuro”. O jornalista Belgion Montgomery, comentando a audiência, escreveu: “se um simples mortal tivesse caído da lua em Nuremberg, havia de pensar que estava no reino do absurdo total”. Influentes mídias ocidentais, sobretudo nos EUA, não esconderam ao longo do processo a sua simpatia por alguns dos réus. “Se um simples mortal tivesse caído da lua em Nuremberg, havia de pensar que estava no reino do absurdo total” Capa de edição francesa do livro O processo de Nuremberg cita os planos de Hitler para eliminar milhões de eslavos. A referência é oportuna. O genocídio dos judeus, amplamente conhecido, é justamente condenado pela humanidade. Mas quantos americanos e europeus leram algo sobre o “plano de despovoamento” de que Hitler se orgulhava? Poucos. Em conversa com Raushning, um familiar seu, o Fuherer, após a invasão da URSS, explicou-lhe “a técnica do despovoamento”. O objetivo era exterminar 30 milhões de russos e polacos, “seres de raças inferiores que se multiplicam como larvas” e abrir os territórios ocupados do Leste à colonização alemã. O que confere tanta importância a esta audiência é o fato de estes réus representarem influências nefastas Lágrimas por Nuremberg Transcorridos 66 anos sobre o veredicto de Nuremberg, os dirigentes das grandes potências ocidentais e influentes mídias internacionais evitam o tema. Tornou-se incômodo. A Alemanha é atualmente o motor da Comunidade Europeia. Sucessivos governos do Partido Democrata Cristão (CDU) e do Partido Social Democrata (SPD) anistiaram criminosos de guerra nazis. Dezenas de milhares nunca foram presos e julgados e muitos ocuparam altos cargos na Administração, no Exército, na Polícia, inclusive nos tribunais da República Federal. Alguns marechais da Os Estados Unidos promoveram a saída clandestina para o seu país de centenas de ex-nazis acusados de crimes graves, incluindo cientistas e militares que desempenharam funções importantes em universidades e na própria administração. Em Nuremberg, ao longo da audiência, alguns dos mais destacados nazis, inicialmente arrogantes, mudaram de atitude. Goering, Keitel, Jodl, Doenitz, na esperança de salvarem a pele atribuíram a maioria dos crimes de que eram acusados a outros réus, sobretudo a Himmler, a Kaltenbrunner e Bormann. Os aristocratas, Von Papen e Neurath, e o banqueiro Schacht criticaram Hitler e as SS, elogiaram com frequência os EUA e não dirigiam sequer a palavra ao SS Kaltenbrunner. Não obstante algumas insuficiências do veredito – nomeadamente as três absolvições –, o processo de Nuremberg foi um acontecimento histórico positivo. Conforme salienta Arkadi Poltorak no seu livro, “o perigo que ameaçara a humanidade uniu no seio do Tribunal Internacional, como nos campos de batalha, homens de diferentes países e continentes, representantes de diferentes sistemas sociais”. As nuvens da guerra fria já se formavam, entretanto, no horizonte. Foi durante o julgamento que Churchill pronunciou o famoso discurso de Fulton, impregnado de anticomunismo. Mas era então inimaginável que, transcorridas menos de sete décadas, o capitalismo se implantaria na Rússia, após a desagregação da União Soviética, e que crimes monstruosos contra a humanidade voltariam a ser cometidos, desta vez pelas potências que, aliadas à URSS, tinham combatido e derrotado o Reich hitleriano. O imperialismo contemporâneo empenha-se em apagar da história a memória do fascismo. Daí a atualidade permanente do belo livro de Arkadi Poltorak, O Processo de Nuremberg. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.