Recordações Leila Aparecida Cardoso de Freitas Sentamo-nos Ricardo e eu na mesma varanda de quinze anos atrás; o banco de pedra feito por vovô também era o mesmo e coincidentemente fazia aquele friozinho de fim de tarde típico do outono. A casa dos meus avós situa-se numa fazenda próxima ao estado do Paraná e apesar de morarmos em Minas Gerais gostamos de passar alguns dias de férias na companhia de vovó que se sente absolutamente só após a morte de vovô. Às vezes penso no relacionamento intenso dos dois, vovô era um italiano de posses quando veio para o Brasil e conheceu vovó, uma brasileira de família humilde, mas de uma beleza e doçura que a todos encantavam. A paixão recíproca levou-os ao casamento que foi celebrado pela família de minha avó, uma vez que os pais de meu avô já tinham morrido deixando um único herdeiro. Os anos foram passando e a delicadeza de vovó aos poucos transformava o temperamento difícil de vovô que cada vez mais se apegava àquela mulher de virtudes incontestáveis. O relacionamento transcorria na mais perfeita harmonia e logo vieram os filhos, sendo eles tio Matheus e mamãe, pois apesar da vontade de vovô em encher a casa de crianças, minha avó teve sérias complicações no parto de minha mãe e então não pode engravidar novamente. O desespero de vovô diante da possibilidade de perder vovó para sempre marcou peculiarmente essa história e ainda hoje este momento é comentado por alguns velhos conhecidos que presenciaram a cena. Porém tudo passou, vovô conformou-se com a quantidade de herdeiros, pois o mais importante era ter ao seu lado sua meiga esposa. Aquela vida conjugal servia de modelo a muitas famílias da redondeza, existia ali uma tranquilidade que por vezes contrastava com tímidas demonstrações de uma forte paixão, mamãe mesmo se recorda, embora vagamente devido a pouca idade que tinha, de surpreendê-los em atitudes de carícias que eram rapidamente disfarçadas. Naquela época os casamentos por conveniência eram bastante comuns, via-se nos lares aparente paz e respeito por parte dos casais, mas amor e paixão eram sentimentos raros. Assim passaram-se anos felizes nas vidas de meus avós. Saíram funcionários que trabalhavam com o leite, fabricavam queijos e mais alguns afazeres, entraram outros em semelhantes funções, mas nada que alterasse o cotidiano da família. Em meio a estas idas e vindas de funcionários chegou à fazenda Edmundo, um homem que iria lidar com o gado - um trabalho pesado que dificilmente encontrava-se profissional. Ao longo dos anos já haviam passado vários homens nesta função, embora vovô fosse um bom patrão, um homem honesto e generoso, a verdade é que não estava tendo muita sorte com seus funcionários. Edmundo parecia, então, a salvação para os problemas; nunca o gado havia sido tão bem tratado e os afazeres saídos tão a contento. A disposição de Edmundo ao trabalho casava-se com o seu porte físico – era um homem alto e forte de uma pele que o sol fizera levemente morena, tinha trinta e cinco anos, mas arrancava suspiros das jovens filhas de outros funcionários que estavam sempre tentando uma aproximação mesmo diante da profunda aspereza do rapaz. Esta antipatia de Edmundo pelas meninas da fazenda trouxe-lhe uma fama de grosseiro, posto que este comportamento estendia-se também aos demais funcionários; o rapaz era calado, não fizera amizade, tampouco demonstrou interesse em agradar aos colegas. Na verdade não era exatamente um homem grosseiro, simplesmente assumia uma atitude de extrema reserva que em muito contrastava com o comportamento adotado diante da doce figura de vovó. Certas vezes, vovó passeava pela fazenda à tardinha e nestes passeios era comum encontrar Edmundo na sua lida diária. Era visível a mudança de humor que a presença de vovó operava no rapaz, seu rosto iluminava, sua expressão séria suavizava e quando tinha oportunidade de dirigir-lhe a palavra era de uma delicadeza jamais vista num espírito tão rude. Vovó contava na época seus trinta e sete anos, mas tinha um porte físico que causava inveja em muitas meninas da redondeza, além daquele encantamento que lhe era peculiar. Passaram-se os meses e vovó permanecia em sua rotina; fazia breves passeios à tarde enquanto mamãe e tio Mateus brincavam pela casa sob os cuidados de alguns serviçais. Sempre que encontrava Edmundo os dois conversavam por poucos instantes, nos quais se percebia a mudança repentina no comportamento do rapaz. Vovó, entretanto, comportava-se com a mesma doçura de costume, era simpática com Edmundo assim como era com os demais funcionários, talvez dedicasse uma atenção especial àquele homem por mera questão de afinidade. Com o passar do tempo foi se percebendo em vovô uma tristeza que nunca se vira antes; aquele homem expansivo e alegre cedeu lugar a um sujeito sombrio e ausente. Vovó, no entanto, desdobrara-se em cuidados com o esposo, era sem dúvida, a personificação do amor, do carinho, da amizade e do respeito. Ela própria preparava as comidas que vovô mais gostava e, permanecendo várias horas ao seu lado, acariciava seus cabelos, indagava sobre sua saúde, enfim era a esposa perfeita. Vovô jamais agiu de forma hostil em relação à vovó continuava com sua educação e respeito, porém a cada dia que passava sua tristeza aumentava, ao passo que seu gosto pela vida visivelmente diminuía. Embora vovó passasse mais tempo na companhia de vovô, este fato não impediu a continuidade de seus passeios vespertinos, nem sempre interrompia a caminhada para conversar com Edmundo, mas cumprimentava-o cordialmente todas as vezes. Numa dessas tardes caminhando bem próximo de Edmundo, vovó foi surpreendida pela mão áspera do rapaz segurando a sua e impedindo que prosseguisse. Não se sabe exatamente o que ocorreu em seguida, pois a pessoa que mais tarde contou esta história a mamãe, não pode continuar observando, uma vez que Edmundo conduziu vovó a um lugar um pouco mais reservado. Foram poucos minutos até vovó voltar a cena com uma expressão aparentemente aborrecida ou entristecida. Nesta mesma tarde, contudo, vovô também foi visto passeando pelos arredores. Ao regressar para casa vovó ficou surpresa em não encontrá-lo, visto que fazia dias que ela não o via saindo de casa. Quando retornou, algumas horas mais tarde, sua expressão triste de antes havia atingido um ar muito mais severo, era de fato lúgubre a expressão de vovô. Vovó não teve tempo de perguntar-lhe nada; ele trancou-se no quarto rapidamente mantendo-se incomunicável por várias horas. Vovó batia na porta com sua doçura costumeira, mas neste momento esta doçura amargara com uma dose de sofrimento. Não adiantava os esforços de vovó, suas palavras meigas, sua voz que outrora tamanha calmaria trouxe ao esposo, ele não abria, nem dizia uma única palavra. Seguiram-se assim algumas horas de angústia, até que finalmente um forte estrondo interrompeu o silêncio da casa. Era um tiro de revolver. Quando os empregados dirigiram-se ao quarto de meus avós tiveram primeiramente que socorrer vovó, uma vez que ela havia perdido os sentidos e caído em frente ao quarto. Não havia mais nada a fazer vovô decidira-se sair definitivamente de cena, levando consigo muitas dúvidas e mistérios. Vovó também jamais pode esclarecer o que de fato se passara naquela tarde, pois quando recobrou os sentidos todos perceberam que havia perdido a razão; nunca mais vovó foi a mesma de antes. Quanto a Edmundo também nunca pode ser interrogado a respeito dos fatos, visto que desaparecera para sempre naquela mesma tarde. Conforme já havia comentado, alguém muito próximo da família contou esta história à mamãe que mais tarde contou a mim em meio a uma forte emoção devido as lembranças que ainda trazia do tempo de que seus pais foram felizes. Na verdade, não se sabe o que pode ter sido exagerado no momento do relato da testemunha, ou de repente o que pode ter sido omitido, mas o fato é que a tristeza que ainda hoje posso ver nos olhos de vovó é certamente real e sincera. Estas recordações me vieram hoje com tanta intensidade. Faz quinze anos que conheci Ricardo, filho de um fazendeiro da fazenda vizinha, iniciamos um namoro neste mesmo banquinho de pedra e naquele momento, assim como certamente vovô e vovó pensaram um dia, acreditamos que aquela união seria eterna. Não consigo precisar ao certo em que momento algo se perdeu entre nós e hoje sentada neste banco ao lado de Ricardo, neste friozinho de outono que anuncia um inverno rigoroso, parece que consigo entender um pouco melhor o que um dia meus avós sentiram.