VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010
A escrita visual na narrativa de Llansol
Profª Drª Sônia Helena de Oliveira Raymundo Piteri
UNESP – São José do Rio Preto, SP, Brasil
Apoio: FUNDUNESP
Diante dos textos Um beijo dado mais tarde (1991), Parasceve (2001) e O
jogo da liberdade da alma (2003), selecionados como corpus deste trabalho, mas
também frente a outros textos de Maria Gabriela Llansol, uma insistente pergunta se
impõe: como ler uma obra em que a novidade se instaura no próprio código, na escrita
em si? Escrita performática, inquietante, vestida com sua própria matéria, aderência
corporal que não se desfaz, afirmando-se continuamente.
Esse tipo de texto clama por um novo leitor, que precisa se desprender dos
moldes tradicionais de leitura e tornar-se participante do ato de criação. Não se trata de
buscar significados, mas sim de integrar-se ao próprio processo de construção do texto.
Nessa nova perspectiva de leitura, o texto não pode apenas ser visto,
necessita de ser contemplado, ouvido, tateado, percebido sinestesicamente, o que nos
reporta à insistência com que o ler aparece nos livros de Llansol. A reiteração na
aprendizagem da leitura em Um beijo dado mais tarde, no qual encontramos
repetidamente a frase “Ana está ensinando a ler a Myriam” (Idem, 52, 56, 57, 59, 88,
117), revigora-se em Parasceve na importância de se “ler o novo” (Idem, 148) e, em O
jogo da liberdade da alma (Idem, 72), no poder ilimitado da leitura: “(...) ninguém sabe
o que a leitura pode fazer, e se esse poder tem algum limite_____________”.
Ainda nesse âmbito da leitura, Llansol investe nas nervuras do espaço em
branco, onde a ausência de letras interrompe a linearidade da frase, alterando a
movimentação do olhar do leitor, que, ao se desviar da linha, volta-se para o interior do
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texto. Em outros momentos, as palavras se associam a traços, refletindo a página uma
simultaneidade verbo-visual, a lembrar o experimentalismo poético, que realça a
materialidade da palavra, objeto que se faz em e por si próprio, numa evidente
priorização do significante.
Embaçadas em sua transparência habitual, as palavras, construtos vivos e
autônomos, voltam-se para seus componentes mínimos: as sílabas, as letras, os fonemas,
que se movimentam numa brincadeira sem fim, haja vista o seguinte trecho de
Parasceve:
A palavra justa, mulher, é mar determinado. Pegará em ti e far-te-á regressar
às vogais do sono de dormir. E ela, estou a ouvi-la, (...), repete, (...),
«dirmor, dar amor, morder». Só no momento de partir,
a palavra se apercebe que, sem vogais, pura e simplesmente não existe,
como um mar inconcebível sem vagas. (...), sem vogais, a palavra partiria
em todas as direções. (...). Apenas ao sair da vaga,
no momento em que as consoantes mordem as vogais, o mar, de repente, cai
no rio. Esse, o nome do irreversível raro, lembras-te?, brincar a fazer
dirmor. (Idem, 90)
Encenando a linguagem, as vogais de “sono” atuam no palco das frases na
medida em que repercutem em “dirmor”, amor”, “morder”, vocábulos foneticamente
significativos nesse trecho.
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Também como em um puzzle (parte do subtítulo de Parasceve), as peças das
palavras vão se deslocando, não com o intuito de se compor a imagem final, mas de se
perpetuarem as alterações. A inversão das vogais em “dormir” dá origem ao vocábulo
“dirmor”, cuja última sílaba se expande em “amor” e “morder”. A consciência da
palavra diante de sua inexistência sem as vogais ativa a importância destas, pois o ato de
serem mordidas pelas consoantes se aproximaria do escoamento do mar no rio. No final
da citação, mais uma mudança se observa, pois a seqüência “fazer dirmor” remete à
expressão “fazer amor”. Atente-se ainda para a interrupção das frases e para o espaço
maior existente entre elas: a visualidade se impõe chamando atenção mais uma vez para
o movimento.
Toda essa dinâmica espacial em que parece ressoar a herança de Mallarmé,
autor considerado referência pelos poetas concretistas brasileiros, especialmente pelo
caráter totalmente inovador do seu poema “Un coup de dés”, visualiza-se também em
Um beijo dado mais tarde. Trechos deste livro, com as devidas diferenças, acenam para
algumas especificidades do poema mallarmeano, que, segundo Pedro Reis (1988: 56),
“residem na utilização de caracteres tipográficos diversos, na disposição particular das
linhas na página, na importância que assumem ‘os brancos’ no espaço gráfico, em suma,
naquilo a que Augusto de Campos chama ‘tipografia funcional’”:
Se fosse o último vestido desse lugar,
que se voltava do avesso na rua,
eu dá-lo-ia a Myriam recordando
“quem recebe
olhos, recebe lágrimas”. (Llansol, 2001: 52)
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Embora não se trate exatamente de um poema, como também não de uma
narrativa tradicional, um ritmo se infiltra entre as frases, que soam como versos e
exploram a significância dos espaços em branco. O intervalo um pouco maior entre as
palavras da 3ª e da 4ª linhas, se comparado com o das duas anteriores, somado ao vazio
que antecede as aspas na 3ª linha, além de iconizar o verbo “recordar”, que ainda se
expande na forma do gerúndio, quebra uma estrutura visual que se fazia presente desde
a 1ª linha, alongando o verso/frase em seu ato de rememoração.
A aliteração do fonema “v”, por sua vez, movimenta o “vestido” na
associação construtiva e inusitada que estabelece com os outros vocábulos, a que se
segue a reiteração do “r” enfatizando a ligação olhos/lágrimas, numa estrutura
composicional que se assemelha ao aproveitamento tridimensional da palavra, a sua
“verbivocovisualidade”, no dizer dos concretistas brasileiros (Reis, 1988: 73).
A linguagem, refletindo seu arcabouço estrutural, revitaliza-se, numa
postura antimimética que a leva, por extensão, a autocentrar-se, distanciando-se até
mesmo da figura do autor. O texto fala por si, autonomiza-se. Nas palavras de Barthes
(1988: 65), quando “(...) o autor entra na sua própria morte, a escritura começa”; nas de
Llansol, “(...) o texto vai adiante” (2001: 101), “(...) o texto é livre (...) a substância
narrando-se (...)” (2003: 12).
O texto, em contraposição à obra, na perspectiva de Barthes (Ibidem, 7273), “(...) mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (...) o seu
movimento constitutivo é a travessia (ele pode especialmente atravessar a obra, várias
obras)”. É o que se observa na seguinte passagem de O jogo da liberdade da alma: “O
texto faz um silêncio total, adquire-o, ou seja, a escrita que a música celebra não tem
mancha de ruído – não é livro, apenas o fluir de um escrito que se funde com as
imagens arrebatadas de outrora. (Llansol, 2003: 8).
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O texto é escorregadio, não se deixa interromper, não se fixa em nada,
extrapola as convenções e, diferentemente do que se verifica na obra, “não tem mancha
de ruído”, ou seja, não “se fecha sobre o significado” (Barthes, 1988: 73). Daí a relação
que se firma entre texto e silêncio, um silêncio que se faz com palavras, tendo em vista
que não direcionam o sentido, silêncio que se faz também com os espaços brancos da
página.
Esse desvencilhamento em relação ao conteúdo, à referencialidade e até ao
próprio nome que se atribui às coisas, tão característico do texto enquanto entidade
soberana, é construído com engenhosidade em Parasceve:
Marido, filho ou amante – é o ponto de vista da mulher.
Esses amados são, para o texto, de preferência, neutros. Sem gênero. O
ser humano coloca fronteiras, faz distinções, diferentes das que o texto cria.
É assim. Uma figura é uma dinâmica que se transfere de lugar em lugar,
aceitando as fronteiras que o texto propõe. Mas faz mais. Há partes do
caminho que apenas o texto poderá fazer. (Llansol, 2001: 102)
Assinalando a diferença entre as situações, o texto segue independente,
embrenha-se por veios que lhe são exclusivos, resiste a nomeações, criando seus
domínios no ilimitado.
O texto avança desfazendo também as fronteiras dos gêneros literários.
Diluindo suas próprias configurações, prosa, poesia e drama se mesclam em Llansol. O
texto se encena, com tonalidade poética e pervertendo a discursividade narrativa. Atua
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como um autor ciente de sua performance, calculando a emissão de cada palavra, de
cada som, de cada suspiro, de cada pausa:
Repara, repara no anel. Olha, minha amada, para o vazio
que ele encerra.
Repara no que dizes, quando dizes ele, podendo dizer elo.
Repara como formámos um nó e, depois, fomos um elo
um elo anel, uma cerca um jardim, um pouco de vinho um
pouco de água, um universo um destino,
sentimos a cerca, o elo,
sentimos, agora, a chama
um vazio em chamas que queimam a frio
repara, minha amada,
olha, peço-te, para a parte invisível do anel,
repara na obra do espírito bravio (Idem, 157)
O texto em forma de dísticos, a estrutura paralelística, o modo como a voz
se manifesta chega a lembrar uma cantiga trovadoresca, que, agora transfigurada,
encena a linguagem, encenação que pode ser visualizada na chamada inicial para a
forma vazia do anel que repercute na imagem final do “vazio em chamas que queimam
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a frio”; visualizada na rima “io” entre a 1ª, 9ª e 12ª linhas e na rima “elo” entre a 3ª e a
4ª; visualizada também na proximidade sonora entre “ele” e “elo” e na geométrica entre
“elo”, “anel”, “cerca”, e, ainda, na justaposição de vocábulos semanticamente
compatíveis: elo/anel, cerca/jardim, vinho/água, universo/destino.
O processo metamórfico aqui iniciado se perpetua em outro momento de
Parasceve, onde as ligações vocabulares se ampliam na seqüência “«elar» o anel”,
“ela”, “elo”, “elar” (Idem, 163), e também a “chama” se prolonga na imagem da
“imensa chama que, estranhamente, nunca o [anel] devorava” (Idem, 163). E
encontram-se
ainda
outros
“nada/adan”
(Idem,
95),
conjuntos:
além
do
“perdido/pedido/partido”
já
parcialmente
citado,
(Idem,
153),
“dirmor/dar
amor/morder/dirmar/dirmam/dormir” (Idem, 90-94).
Esse jogo intensivo de manipulação com as palavras aparece visual e
explicitamente configurado em Um beijo dado mais tarde:
Vereis que pouco a pouco, as letras vão rolar do próprio nome:
amor sem m.
amor sem o.
amor sem r.
amor sem a. (Idem, 1991, 93)
As letras vão se desprendendo da palavra “amor”, que é mostrada em sua
decomposição, numa estratégia inventiva que, simultaneamente, vai compondo uma
outra palavra na vertical, estrutura que se assemelha a um ideograma, sugerindo-nos
mais uma vez a poesia experimental.
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Toda essa movimentação de letras pode ser sintetizada em um vocábulo
fundamentalmente significativo nos textos de Llansol: “metamorfose”, que, ao se
transmutar em “veloz morfose” e “MetaVelozMorfose” (Idem, 2001, 152), espelha em
si próprio o mecanismo de mudança, como também a rapidez com que ele ocorre.
Primeiramente, dá-se a substituição do prefixo “meta” pelo adjetivo “veloz”,
constituindo duas palavras em separado e em letras minúsculas (“veloz” e “morfose”),
depois voltam a se reunir num bloco único e em letra maiúscula, preservando cada parte
sua autonomia, ao mesmo tempo que emerge um novo vocábulo.
A metamorfose expande-se para outros componentes do texto, dando
origem a híbridos, produtos da relação simbiótica entre o humano, o animal, o vegetal e
objetos. Um novo corpo surge, um corpo estranho, constituído pela junção de elementos
díspares do ponto de vista lógico, um ser inusitado, que, simultaneamente, aparece
como um todo e mantém a independência das partes:
A mulher olha para si. Tem olhos de lobo, os seus dedos são lápis, a sua
mão esquerda é um candeeiro sempre aceso.
São seus, esses vivos que encorpou. Como ela é deles. (Idem, 2001,
150)
Essa figura, nem um pouco convencional, recorda a técnica de collage
surrealista, “[...] uma exposição de simultaneidades descontínuas, a partir de um
conjunto de imagens ativas captadas à realidade” (Lima, 1995: 513), uma transformação
que se opera pela rearticulação de elementos distintos em um nível que não lhes é
compatível.
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É ainda Lima (Ibidem, 354) que considera a collage como “(...) a linguagem
visual (de imagens) do excesso (...) revelação instantânea que se dá sobre a
sensibilidade (a superfície) de imagens-conhecidas, imprevisivel-mente justas e
justapostas num sensível (plano) de colagens”. Revelação que surge aos olhos do leitor
de Llansol como algo surpreendente, que perturba os olhos acomodados a visões
habituais, exigindo uma percepção diferenciada, capaz de partilhar o inédito
polimorfismo.
Pensando-se ainda na collage como “(...) a erotização dos elementos da
linguagem visual” (Ibidem, 360) e na importância conferida pelo Surrealismo à presença
do erotismo na obra de arte, divisamos aqui um outro ponto de contato com os textos de
Llansol. A linguagem do corpo aflora com toda intensidade em sua escrita, o desejo
pulsa entre as palavras que escorrem pela folha de papel, criando imagens
saborosamente eróticas, ou, nas palavras de Um beijo dado mais tarde, “(...) a
sensualidade propaga-se na linguagem, que se torna lenta e única presença do corpo”
(Llansol, 1991: 63).
Sensualidade que vibra também em O jogo da liberdade da alma: “Olhar o
pianista libertava-me, (...). E o fluxo da visão corria esperma resplandecente
convergente para o meu corpo. Fiz um movimento e o som com que o nu me tocava os
seios uniu-se ao texto corrente que desmembrava” (Idem, 2003, 27). O deslizar do olhar
e do esperma, reafirmado pela rima interna (“ente”), conflui para o corpo, que, pela
presença do toque, sonoro e tátil, interliga-se ao texto. O movimento corporal da
linguagem fascina pela transgressão que incute nas palavras e o gozo é alcançado pela
volúpia com que são deslocadas de suas feições usuais.
A volúpia, o excesso, o êxtase são marcantes na escrita de Maria Gabriela
Llansol, escrita que grita em suas combinações sonoras, nas imagens arrebatadoras, nos
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recursos gráficos, nas construções insólitas, provocando, simultaneamente no leitor,
regozijo e desespero. Ele é tragado pelo fluxo vertiginoso da linguagem, que, ao não lhe
dar chances para escapar, leva-o, cada vez mais, a se perder no emaranhado das
palavras. Se, por um lado, o texto sufoca-o, por outro, ele não consegue abandoná-lo;
segue em frente, não com a intenção de tentar compreendê-lo, o que lhe é vedado desde
o primeiro parágrafo, mas com o intuito de usufruir suas artimanhas, enveredar pelos
caminhos infindáveis do jogo lingüístico, interagir com as peças que lhe são
apresentadas, surpreender-se a cada página virada.
Chegar ao final dos textos de Llansol é sempre recomeçar, é constatar que
nada terminou e que a releitura se faz necessária. É ainda perceber que um texto se
imbrica no outro, seja pela retomada de determinadas figuras, como é o caso de Témia,
“a rapariga que temia a impostura da língua”, de Um beijo dado mais tarde e de O jogo
da liberdade da alma, seja pela recuperação de fragmentos e vocábulos significativos,
seja pela priorização do espaço escritural, seja pela linguagem do desejo, seja, enfim,
pelo processo metamórfico, que, além de se manifestar internamente em cada texto,
pode ser visto como o elemento propulsor da escrita de Llansol, escrita ininterrupta, que
em suas reentrâncias dá origem a novos seres. O primeiro deles intitula-se Os pregos na
erva (1962), o último, Os cantores de leitura (2007), nesse entremeio, estão os que nos
desafiaram, neste trabalho, a percorrer essa escrita sedutora.
Bibliografia
Barthes, Roland (1988), O rumor da língua, trad. Mario Laranjeira, São Paulo,
Brasiliense.
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Lima, Sérgio (1995), A aventura surrealista, Campinas (SP), UNICAMP / São Paulo,
UNESP / Rio de Janeiro, Vozes.
Llansol, Maria Gabriela (1987), Os pregos na erva, 2.ed., Lisboa, Rolim [1962].
__ (1991), Um beijo dado mais tarde, 2.ed., Lisboa, Rolim.
__ (2001), Parasceve, Lisboa, Relógio D’ Água.
__ (2003), O jogo da liberdade da alma, Lisboa, Relógio D’ Água.
__ (2007), Os cantores de leitura, Lisboa, Assírio & Alvim.
Reis, Pedro (1988), Poesia concreta: uma prática intersemiótica, Porto, Universidade
Fernando Pessoa.
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