VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada /
X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010
Os gentlemen visitam o sertão: imaginário colonial em Garrett, Eça e
Agualusa
Maria Helena Santana
(Universidade de Coimbra / CLP)
A crítica e a história literárias, marcadas que são por um olhar retrospectivo,
incorrem frequentemente em enviesamentos ideológicos. No passado, acreditando na
bondade imanente da literatura, tendia-se a projectar nos autores valores éticos
considerados universais. O processo é conhecido e quase sempre bem-intencionado:
sublinhavam-se os aspectos mais conformes com os códigos vigentes, rasuravam-se
os lados incómodos, desculpavam-se os erros de perspectiva. Nas últimas décadas, a
critica literária tem-se empenhado na revisão do seu discurso apologético:
desconstruindo a aura individual do autor, passou a atentar-se na forma como a
literatura contribuiu para criar, difundir ou “naturalizar” mitos e estereótipos culturais.
Esta linha de interpretação tem-nos permitido, por exemplo, ganhar consciência da
falácia eurocêntrica em que assenta o suposto humanismo ocidental. Não obstante, um
excesso autopunitivo surge por vezes como contraponto à anterior atitude reverente:
esquecemo-nos de que os valores evoluem; de que os escritores se inserem num
tempo histórico que condiciona o conteúdo e a forma do seu olhar.
Na leitura que seguidamente vos proponho, tentarei acautelar as tentações
afectivas. Limitar-me-ei a confrontar, com a possível distanciação, o imaginário de
autores de gerações diferentes acerca do mundo colonial oitocentista – um mundo
utópico e longínquo, que nenhum deles de facto conheceu. Almeida Garrett, que
nunca saiu da Europa, situou no nordeste brasileiro a acção do seu último romance,
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Helena, infelizmente inacabado; Eça de Queirós viveu em Cuba mas nunca visitou
África nem o Brasil; verdade se diga que não se atreveu a romancear estas paragens,
mas podia tê-lo feito, bastando-lhe seguir o rasto do cosmopolita Fradique Mendes.
Quem nos conduz nessa fantasiosa viagem é José Eduardo Agualusa, autor de Nação
Crioula. O escritor angolano inspirou-se na personagem queirosiana para recriar um
tempo colonial em que obviamente não viveu. A expressão ‘mundos imaginados’
pode por conseguinte aplicar-se-lhes em sentido literal. Mas todos sabemos que não é
determinante ter experiência física de uma realidade para a representar
ficcionalmente. É privilégio da literatura a liberdade de inventar.
Deve dizer-se que não faltavam fontes de informação aos escritores
oitocentistas. A partir do Iluminismo, o interesse pelas culturas e pelos povos
“primitivos” dos trópicos começara a vulgarizar-se entre os europeus. No século XIX,
um certo turismo romântico levou muitos intelectuais a visitar regiões menos
acessíveis ao viajante comum; ao interesse científico aliava-se uma genuína
curiosidade pelos tipos humanos, costumes e crenças de povos já conhecidos mas
ainda exóticos aos olhos do europeu “civilizado”. Os livros de viagens e os
abundantes artigos das revistas divulgavam à gente letrada esse pitoresco e fantasiado
mundo indígena, demasiado remoto para se tornar ameaçador. Só mais tarde se
desconstruiria o mito do bom selvagem, por influência dos relatos épicos provindos
de exploradores e sobretudo das campanhas militares africanas. O continente negro
passou então a associar-se a imagens impressionantes de guerreiros ferozes, que as
gravuras, as primeiras fotografias e os troféus humanos demonstravam de facto
existirem. Mas não esqueçamos que este é também o século da expansão do Novo
Mundo, marcado por intensa emigração colonial; o século dos movimentos
independentistas, dos navios negreiros e do abolicionismo. Esta outra e controversa
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realidade, bem diferente da que fizera o encanto exótico da viagem romântica, deu
origem a uma vaga literária de índole humanitária, empenhada em revelar as
injustiças sociais da colonização.
O tema da escravatura popularizou-se sobretudo com a publicação, em 1852,
de Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás), de Harriett Beecher Stowe. A
história pungente de Pai Tomás, mártir resignado da tirania escravista, comoveu
gerações de leitores em todo mundo, transformando-se num ícone da luta
abolicionista. Mesmo assim a obra não está isenta de preconceitos raciais, censura que
vem sendo enfatizada pela crítica pós-colonial: terá contribuído, designadamente, para
naturalizar a imagem sentimental do negro cristianizado, virtuoso e feliz na sua
submissão, ou o seu contraponto, o escravo alegre e desmiolado que entretém e
parodia os europeus. 1
Garrett, em 1853, já menciona na sua narrativa A Cabana do Pai Tomás, que
certamente o inspirou na representação de ambientes e personagens; 2 no entanto
distancia-se politicamente de Stowe (considerada demasiado esquerdista e radical),
optando por centrar o conflito na questão cultural/racial, o que confere a Helena um
enfoque ideológico diferente, menos linear. Apesar de inacabado, o texto apresenta
uma estrutura sequencial – 24 capítulos completos e revistos pelo autor
3
– que nos
permite ter uma noção bastante consistente do contexto romanesco que serve de
suporte à intriga. Do que seria o seu possível desenvolvimento só podemos
conjecturar, como fez Ofélia Paiva Monteiro, num estudo iluminador que
1
Cf. G. Frederickson (1987), The Black Image in the White Mind. Apud HALL Stuart (ed.) (2003),
Representation. Cultural Representations and Signifying Practices, p. 249.
2
A 1º versão portuguesa da obra de Stowe é de 1853. De então para cá tem havido sucessivas
reedições e traduções (a base de dados Porbase regista 25 entradas).
3
A edição foi feita a partir do manuscrito autógrafo por Carlos Guimarães, genro do escritor. Trata-se
da única versão disponível (e retocada) da obra, cuja edição crítica se encontra em preparação, sob a
direcção de Ofélia Paiva Monteiro.
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recentemente lhe dedicou. 4 Mesmo assim o fragmento existente, que só veio a ser
publicado em 1871, não deixa dúvidas de que Helena teria sido o nosso grande
romance colonial – razão suficiente para ser resgatado do esquecimento.
A acção é situada no ano de 1839, no Brasil, já depois da independência,
portanto, mas recriando um ambiente colonial idealizado e utópico. Itahé é uma vasta
propriedade do interior da Baía, afastada do mundo, onde coexistem, à maneira
feudal, diferentes categorias sociais: a casa senhorial é habitada pelos viscondes de
Itahé, o português Rodrigo Sousa e a brasileira Maria Teresa, e pela filha do casal,
Isabel, uma jovem casadoira de 15 anos; no espaço doméstico circula um número
indefinido de serviçais dedicados, representados por uma velha criada minhota e um
mordomo africano, Spiridião; pressupõe-se que muitos outros escravos trabalhariam
no palácio e na parte agrícola da propriedade. Na velha aldeia adjacente vivem os
índios, uma pequena comunidade livre, mas com ligações afectivas à casa-mãe. Deste
grupo destacam-se Frei João, capelão do palácio e director do colégio indígena, e sua
mãe, Moema, antiga ama de leite da senhora.
Vive-se bem em Itahé, onde a Natureza e a Religião, esses grandes mitos
românticos, a todos envolvem no seu lastro de bondade intrínseca. A ordem patriarcal
não se põe em causa porque é “natural” e garante o equilíbrio das relações entre as
classes, as raças, as culturas. E algumas tensões emergentes (porque o ser humano não
é perfeito) apaziguam-se no respeito pela civilidade e pela doutrina social dos
Evangelhos. Pormenor não despiciendo, há um equilíbrio também “natural” entre o
elemento masculino, por tradição associado ao poder e à razão, e o feminino,
conotado com a sensibilidade e o afecto. Garrett (ou o narrador por ele) subscreve em
geral estes tópicos românticos, o que lhe permite introduzir no discurso ideológico
4
O. P. Monteiro (1999), “Helena: os dados e as incógnitas de um enigma romanesco”.
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uma certa nuance feminista. D. Maria Teresa é não só a herdeira da terra como
descendente do povo autóctone; é brasileira de criação e de sangue, o que lhe confere
– tal como à filha – “natural” legitimidade entre os índios da região. Estes atribuemlhe uma genealogia ancestral e vêem-na como uma espécie de santa, resgatando-a
assim do ódio votado aos colonizadores, ou seja, o sangue índio que lhe corre nas
veias e o “instinto selvagem” compensam o facto de ter casado com um português
(“um aventureiro do reino velho”) e de ter adoptado uma cultura “invasora”.
Já o catolicismo não fora sentido como usurpador naquela comunidade, que se
habituara há muito a integrá-lo no seu sistema de crenças e práticas; segundo o texto,
o povo índio encarava como “calamidades históricas” quer a descoberta do Brasil
quer a expulsão dos Jesuítas (p. 465). Além do mais, a religião recebe uma marca
caritativa feminina: a Viscondessa criou um colégio e uma obra assistencial para o seu
povo; Frei João tornou-se frade camilo por sua influência, e guarda-lhe um respeito
incondicional. Ela por seu turno protege-o maternalmente e não se esquecerá de o
recomendar à filha, pouco antes de morrer:
Ele custa a sofrer; é como todos os de sua desgraçada raça, mole no
bem e no mal. Mas é honrado, fiel, sacerdote exemplar [...] Tem dó dele,
Isabel, e atura-o com paciência. As suas desconfianças visionárias, as suas
superstições absurdas, nem sempre são para desprezar (p. 439).
A indulgência de Maria Teresa não escamoteia os preconceitos rácicos, como
se vê. Aliás, diz-nos ainda o narrador que «só por via da sua religião se curvou a amar
o Negro» e que nunca conseguiu vencer uma íntima desconfiança pelo marido
português (p. 465). Mas a religião também não obnubila a consciência política da
enferma, no que diz respeito aos negros que estão na posse da família. A viscondessa
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defende a tese, partilhada pelo marido, de que a escravatura é «uma necessidade
absoluta e inevitável», e que deve ser regulada por quem tem capacidade económica,
intelectual e moral de proteger os mais fracos. O discurso abolicionista dos
“filonegros”,
como
lhes
chama,
reduz-se,
na
sua
perspectiva,
a
uma
irresponsabilidade social:
Todos os nossos escravos são bons, porque nós temos sido bons com
eles. Sei que o teu desejo é libertá-los todos [...]. Tal não faças, minha filha.
Não dês alforria senão aos que tiverem juízo e indústria para usar da sua
liberdade. As beatas e os hipócritas ingleses têm causado tantos desgraçados
com as suas declamações contra o tráfico dos negros, tantos, pelo menos,
como os que mercadejam no infame negócio (p. 438).
Sintomaticamente, os negros não têm voz própria no romance, ao contrário
dos índios, aos quais se atribui alguma densidade psico-sociológica. Quem fala em
nome dos negros é Isabel, empenhada que está na sua libertação: o seu progressismo
cristão levá-la-á inclusivamente a proclamar, no final do texto, que “o Evangelho é
socialista”. Mas Isabel não passa de uma jovem idealista, pelo que o seu discurso tem
pouco acolhimento; destina-se, acima de tudo, a exprimir a opinião radical (angloamericana) que o romance irá rebater, em nome de um humanitarismo (católico e
português) moderado. Se, no plano dos princípios, Garrett defendia o abolicionismo,
nesta obra parece inclinar-se para uma posição ponderada, em sintonia com as
personagens avisadas. 5
A morte de Maria Teresa, elo de coesão de toda a comunidade, vem perturbar
a vários níveis a anterior harmonia desta grande família tropical. Pai e filha voltam-se
5
Sobre o pensamento político de Garrett a este respeito cf. O. Paiva Monteiro, art. cit., p. 150 e 152.
Note-se que a abolição da escravatura só se oficializou em 1869, em Portugal, e em 1888, no Brasil.
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para dentro de si mesmos, devastados pela dor; os subalternos sofrem os efeitos da
desagregação familiar; e os índios, órfãos da sua protectora, conspiram na aldeia
velha, dando expressão aos conflitos até aí apenas latentes. O ódio racial toma então a
forma de um violento protesto anti-colonialista, que o narrador coloca na voz de
Moema:
O Índio nasceu para ser livre e não para o trabalho, nasceu para a caça
e para a guerra. Branco e o Preto que façam o açúcar, que cavem a terra, e que
levem o oiro das nossas minas, que nós lho damos, e nos deixem a nossa
liberdade e os nossos bosques (p. 467)
O confronto não chega porém a eclodir, pelo menos por enquanto: modera o
fanatismo de Moema o discurso apologético de Frei João, a lembrar que “Diante do
Deus dos Cristãos, não há Índio, nem Português nem Africano, há homens” (468). O
debate ideológico permite inferir que a religião universal triunfará como o verdadeiro
elemento agregador. A obra ficou truncada, mas tudo indica que o ressentimento
deverá ser ultrapassado no decorrer da intriga. Herdeira natural da casa, da bondade e
do sangue da mãe, Isabel desenha-se como a futura senhora de negros e índios,
assegurando a convivência racial. Entretanto viajará para a Europa, onde a esperam
novas e ameaçadoras realidades. Irá conhecer Fernando e Helena, estrangeirados e
divididos como ela; e irá conhecer o Velho Mundo, essa civilização virtual que
modelou a sua formação. Não sabemos que destino previa o autor para esta viagem de
iniciação.
Mas há um outro aspecto que merece destaque no romance, que se prende
justamente com o binómio Natureza/Cultura. Como seria de esperar numa obra
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romântica, os primeiros capítulos são dedicados à descrição da paisagem natural, o
cenário luxuriante e edénico do sertão. Toda esta longa parte introdutória chega ao
leitor em focalização interna, através do olhar extasiado de um viajante estrangeiro –
um aristocrata europeu, apaixonado pela Botânica. Com ele somos conduzidos de
canoa, lentamente, a Itahé, como num filme. O narrador vai-nos revelando aspectos
parcelares desta enigmática personagem, mas só saberemos ulteriormente (no capítulo
VI) que se trata do conde de Bréssac, um general francês, legitimista e liberal, que
combatera romanticamente pela libertação da Grécia e que deixara a França
desiludido com a situação política do país.
A chegada de Bréssac a Itahé, depois da floresta virgem do sertão, causar-lheia a mais extraordinária surpresa:
Um imenso parque inglês, cortado de sinuosas e bem saibradas ruas,
com lagos e pontes, quiosques e estátuas, templos e ruínas, com todos os
vários e disparatados acidentes e ornamentos que são de rigor em tais casos, e
que a arte europeia imitou dos caprichos da chinesa.
O francês pasmava do que via: – e a ideia de se ver transportado, por
um golpe de varinha de condão, de pleno Brasil para Windsor, para Eagleypark ou para Sionhouse, ia-lhe parecendo menos absurda de momento para
momento. Sonho, visão, ilusão dos sentidos!... (p. 415).
A aldeia tropical assim camuflada inspirara-se na paisagem alpina, com chalés
suíços a fingir de choupanas e com pinheiros nórdicos ao lado de araucárias e
coqueiros. Ver-se-á mais tarde, à luz do dia, que, por singular capricho arquitectónico,
as supostas casas da aldeia são afinal uma só, pois comunicam entre si formando as
várias dependências do palácio; e que toda a área de serviço fica oculta do exterior,
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para se desfrutar das “necessidades materiais da vida” sem ter de lhe “presenciar a
prosaica elaboração” (p. 433). O parque ostenta idêntico artifício de trompe l’oeil.
Com a ajuda de um jardineiro escocês conseguira-se o prodígio de mondar,
domesticando-a, a pujança da flora tropical: um rio fora transformado em lago e as
florestas selvagens em tufos. A imaginação da viscondessa - brasileira de coração mas
“anglo-gala” de espírito – fizera o resto: aqui um quiosque turco, ali uma torre gótica,
além um mirante chinês. Tudo é imitação e magia barroca no parque internacional de
Itahé: A Arte e a Natureza – ou seja, a Europa e o Brasil – conjugaram-se para criar a
mais bizarra invenção da mestiçagem cultural 6 .
Já no interior da casa principal o estrangeiro depara-se com um verdadeiro
“palácio encantado”, que mimetiza “o casto esplendor da elegância britânica” (416).
A descrição pretende suscitar admiração mas não podemos deixar de ser sensíveis à
marca hiperbólica dos pormenores: para além dos livros e objectos europeus, nas
mesas há jornais de quase todas as línguas, nas estantes bibelots e raridades da mais
variada arte mundial. Transposta para os trópicos, a Civilização resplandece na sua
máxima grandiosidade mas em forma condensada, miniatural, volvendo-se assim em
paródia de si mesma – como se o palácio sertanejo fosse uma caixa chinesa onde cabe
a Europa e dentro desta o globo inteiro. É por isso com certa ironia que vemos o
gentleman “já enfastiado, já gasto e cansado das maravilhas do Velho Mundo,
rejuvenescer agora para admirar...” – esse mesmo mundo familiar de onde partiu (p.
446).
Por outro lado, todo este requinte miscigenado transporta uma sugestão de
artificialismo que parece colidir com a tese rousseauniana acerca do carácter antinatural da “civilização” (europeia). Se a sociedade corrompe o homem – tese
6
Sobre esta problemática vale a pena cf. a interpretação de Sérgio Nazar David, “Da natureza agreste
no último Garrett” (David, 2007: 28-32).
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subscrita por Garrett – também a cultura e a arte deveriam impregnar-se do mesmo
vírus. Todavia o autor e Bréssac evitam encarar a questão sob esse prisma, preferindo
qualificar a desordem decorativa de “pitoresca” e “poética”. Talvez assim suceda
porque a cultura foi aqui absorvida de forma filtrada, sem os defeitos inerentes à
sociedade que a gerou. Aliás, as personagens conseguem permanecer até certo ponto
imunes à artificialidade cultural desta surreal casa luso-brasileira, onde o at home
britânico se combina com a elegância parisiense. O narrador faz mesmo questão de
sublinhar a simplicidade dos donos da casa, totalmente distinta do novo-riquismo
burguês; e o general reforça a ideia: “os parvenus que vira em toda a parte não eram
assim”. Dir-se-ia que os viscondes reúnem o melhor dos dois continentes – a cultura
da Europa e a natureza da América. O leitor é convidado a aderir, mas não deixará de
sorrir ao ouvir Isabel discutindo, no interior do sertão, os méritos relativos de Racine,
Lamartine, Shakespeare e Walter Scott...
Em relação aos subalternos o aspecto paródico é explicitamente referido. A
receber o ilustre visitante aprumam-se duas alas de lacaios fardados com todo o
requinte dum palácio europeu; são negros, mas têm cabeleiras polvilhadas de branco; 7
mais adiante surgem duas mulatas a acompanhar a doente, “brancas em toda a
aparência – vestidas com a mais apurada coqueteria de uma soubrette francesa” (p.
424). O mimetismo atinge o excesso caricatural com a figura ridícula do mordomo
africano, Spiridião Cassiano di Mello i Matôss (como se apresenta no seu típico
linguajar) trajado em pleno sertão com “a faustosa elegância de um butler do West
End”.
Esta personagem grotesca, destinada a imprimir uma nota humorística ao
romance, não é uma invenção de Garrett: Spiridião encarna o estereótipo do negro
7
O espanto de Bréssac exprime-se em termos ingenuamente raciais: “... pois não eram disformes as
feições: – de negros, só tinham ser negros.” (p. 415).
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feliz e infantilizado, admirador servil do seu amo, já presente no romance de Harriet
Stowe. Com nuances diferentes, o mordomo negro tornar-se-ia figura recorrente na
literatura oitocentista. Reencontramo-lo, por exemplo, em versão europeizada e
discreta, n’A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós: o Grilo, com a sua eterna
complacência, é a sombra de Jacinto, uma espécie de superego cultural, servindo de
contraponto aos seus desvarios excêntricos. N’A Correspondência de Fradique
Mendes já caberá a um branco (escocês!), exercer esta função socializadora – o
impecável Smith, sinédoque de uma distinção britânica ambiguamente admirada e
desdenhada.
Fradique Mendes, a face cosmopolita do gentleman, é apresentado como um
cidadão do mundo – aquele que, ao invés do touriste convencional, se despia do
entranhado europeísmo para se transformar em “cidadão das cidades que visitava”
(Queirós [1900] : 67) . Tal como Bréssac, desloca-se a regiões exóticas por interesse
científico, mas o seu olhar dirige-se à realidade humana. Pertence a uma geração
diferente, supostamente humanista, que aprendeu a apreciar a diversidade cultural.
Por isso lhe desagrada a modernidade, a globalização dos costumes sob o modelo
europeu; de África prefere os cafres e do Brasil os índios, e rir-se-ia com gosto da
requintada Itahé que tanto impressionou Bréssac. Diz-nos o seu biógrafo que o
incansável viajante sente “carinhosa simpatia por todos os povos [...] fundindo-se com
eles no seu modo de pensar e de sentir” (Queirós [1900] : 77). Na verdade não se trata
propriamente de humanismo, mas de “necessidade de certeza”, ou seja, de se
confrontar com a alteridade para compor o seu livro de ideias (ou o armazém,
consoante a perspectiva).
Eça de Queirós tinha convicções muito firmes sobre a superioridade da cultura
europeia – considerava-a a grande produtora de arte e de ideias do Ocidente, a única
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de facto interessante. 8 Fradique não partilha este entusiasmo, mas o amor a outros
povos não lhe retira o etnocentrismo. A curiosidade etnográfica leva-o a civilizações
diferentes para enriquecer o espírito e depois regressar ao seu espaço cultural, em
Paris. De resto não passa de um céptico, conformado com os males do mundo (que
deplora) e com as contradições da natureza humana. Por isso mesmo desenvolveu um
certo fatalismo que o ensinou a conviver com as injustiças sociais: tal como as
personagens de Helena, mostra-se convicto de que as sociedades sempre encontrarão
formas de perpetuar a escravidão.
José Eduardo Agualusa captou muito bem o espírito e as limitações da
personagem queirosiana 9 . Nação Crioula – A Correspondência Secreta de Fradique
Mendes é um pastiche quase perfeito do seu modelo, quer nas ideias quer no estilo. O
romance epistolar relata a experiência colonial de Fradique, primeiro em Angola,
depois no Brasil, já na fase final da vida. O desembarque em Luanda, em 1868, feito
de forma humilhante às costas de um negro, causou-lhe desde logo “o sentimento
inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo” (p. 11). E de facto será
sempre um estrangeiro nos trópicos, apesar de naturalizado pelo amor africano de
Maria Olímpia, a sua grande paixão tardia.
O viajante cosmopolita, que se move à vontade em todas as latitudes, não pode
deixar de sentir-se incomodado na sociedade colonial luandense, paródia camiliana
duma Lisboa afrancesada que em tempos satirizou. Incómodo que se repetirá mais
tarde em Pernambuco, outra réplica provinciana e decadente do Velho Mundo, “onde
à noite se dançam românticos bailes, enquanto os negros dormem exaustos em
8
Cf. Eça de Queirós, “A doutrina de Monroe e do nativismo”, pp. 1295 e ss. Este texto, de 1896, é um
autêntico manifesto em defesa da supremacia intelectual da Europa face à América.
9
Do mesmo tema se ocuparam recentemente Osvaldo Sivestre e Graça Abreu, autores de excelentes
leituras, em chave pós-colonial (Silvestre, 2002); (Abreu, 2004).
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casebres de palha” (p. 79). “O que faço eu aqui?”, interroga-se Fradique, em carta a
Madame de Jouarre, a quem pede novidades frescas de Paris, em troca das suas
saborosas anedotas coloniais. Só a diferença etnográfica seduz o viajante pósromântico, enfastiado da sua vulgarizada “civilização”: ou a palhota do negro, no
meio da selva africana, ou o Brasil brasileiro, no interior do sertão. Fradique descobre
este lugar primitivo durante a visita a uma fazenda baiana, não longe, portanto, da
antiga Itahé, mas agora transformado em idílico paraíso colonial:
Ocorreu-me pela primeira vez a ideia de que poderia instalar-me num
lugar assim, realmente longe do fragor do mundo, vendo pouco a pouco a terra
a desdobrar-se em frutos, acompanhando ao crepúsculo o canto dos negros em
volta das fogueiras, caçando e pescando, bebendo da água fresca dos riachos,
comendo o feijão preto e a carne seca, a tapioca, as mangas e as bananas do
meu pomar. (p. 81).
Uma fazenda brasileira seria o espaço perfeito para o descanso merecido de
Fradique, depois da romântica libertação da sua companheira. Mas Agualusa destinou
outras inquietações à personagem queirosiana. O sofrimento de Maria Olímpia e a
viagem num navio negreiro tornaram-no mais consciente da condição dos escravos,
bem como das responsabilidades que lhe cabem enquanto homem livre. Reconvertido
em fazendeiro, o gentleman vê-se obrigado, malgré lui, a tomar posição no
movimento anti-esclavagista: desaparece o “touriste de fato de linho branco em busca
de exotismo e emoções fortes” (p. 56) para surgir o intelectual empenhado, ou seja,
com “uma nova causa com que entreter o espírito e afastar o ócio” (p. 99).
O debate racial e colonial que encontrámos no romance de Garrett toma agora
novos e polémicos contornos políticos (a crioulização, vg.), que não irei explorar.
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Apenas saliento a coincidência curiosa de ser mais uma vez uma jovem mulher,
letrada, culturalmente dividida, a catalisar a questão. A educação inverosímil de
Maria Olímpia Vaz de Caminha faz dela um clone moderno de Isabel: também pelos
15 anos já lera todos os grandes autores franceses, no original; estudava as línguas
autóctones com o saber de um filólogo; e ainda discutia Darwin, Proudhon, e
Bakunin, com os convidados do seu salão colonial. Em suma: vivendo em África,
conhecia a Europa “como se sempre tivesse vivido no centro do mundo” (p. 39). 10
Do ponto de vista ideológico a personagem segue um percurso paralelo mas
inverso ao da sua congénere garrettiana: Isabel, já o vimos, era a porta-voz do
abolicionismo, no entanto a ingenuidade dá-lhe pouco crédito; tudo indica, aliás, que
o seu radicalismo virá a temperar-se da “sensatez” do pai, que encara a escravatura
como um mal, mas por enquanto necessário à paz social. Maria Olímpia, protegida
pelo casamento com um negreiro excêntrico, desfruta de uma situação de privilégio
que a mantém alienada; apenas compreende o valor da liberdade depois de sentir na
pele a dureza da escravidão. A sua história ilustra assim uma das principais teses do
romance – decerto a menos controversa – segundo a qual a
consciência só se
desenvolve a partir da experiência; ou, recorrendo a um provérbio africano: “uma
pedra debaixo da água não sabe que está a chover” (p. 152).
Faz portanto todo o sentido que seja a mulher liberta e não o libertador a
empunhar a bandeira da emancipação. Maria Olímpia voltará a Angola, algo
melancólica, é certo, mas amadurecida e politizada. Fradique regressa a casa,
cumprido o seu papel, deixando-se impregnar do habitual cepticismo. Segundo
informa o texto epilogal, citando Eça, os seus derradeiros anos decorrem “cheios de
ideias, de delicadas ocupações e de obras amáveis”. Nem outra coisa seria de esperar.
10
A extraordinária biblioteca do marido, Vitorino Vaz de Caminha, constitui também uma curiosa
versão da casa de Itahé, bem como da sua globalização cultural. Cf. Agualusa: 149.
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Alguns leitores de Nação Crioula criticaram a adesão do autor à personagem
queirosiana. Acusado, entre outras razões, de ser condescendente em relação ao
colonialismo português, Agualusa explica-se:
Eu queria um olhar como o dele, de um europeu, carregado dos
preconceitos próprios da época, mas ao mesmo tempo interessado no outro. O
Fradique do Eça já é assim. O meu, evidentemente, é ainda mais aberto, quase
um anacronismo. 11
Com efeito, a literatura não tem de transmitir injunções éticas compatíveis com
a doxa cultural de outra época: cabe ao leitor o necessário exercício de
descentramento. No caso de Garrett, a distância impõe-se por si própria; já o romance
de Agualusa exige um esforço acrescido, na medida em que o romance se dirige aos
leitores de hoje, mas para ser lido à luz de códigos mistos – os nossos e os do tempo de
Eça. Ora Fradique é o que é, um europeu dépaysé, pese embora a consciência política
do seu novo autor. Poder-se-ia aceitar um gentleman momentaneamente convertido a
valores humanitários; mas um Fradique militante, moderno e democrático seria um
filistinismo imperdoável.
11
Agualusa defende-se desta e de outras críticas numa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em
14/2/2007: Cf. Brasil (2007).
“O livro não é apenas uma crítica ao sistema colonial, ou à escravatura - o que seria tão tolo
quanto espancar um cadáver -, o livro pretende ser sobretudo uma crítica irônica à atual sociedade
angolana, que em muitos aspectos é herdeira direta da sociedade escravocrata. Em Angola, muitos
leitores reconheceram certos personagens e situações. O livro abriu uma polêmica sobre a questão da
crioulidade e do seu alcance em Angola. A acusação que me fazem em Angola, isso sim, é a de
defender um modelo crioulo para o país, o que também não corresponde à verdade. O que eu defendo é
a existência de um segmento crioulo, de língua materna portuguesa, uma minoria muito expressiva de
angolanos brancos, mestiços e negros, que têm o direito de exprimir a sua cultura, a par com todas as
outras.” (Brasil, 2007).
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Bibliografia
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BRASIL, Ubiratan (2007), “A volta de Nação Crioula, 10 anos depois”, in O Estado
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São
Paulo,
14/2/2007:
www.estado.com.br/editorias/2007/02/14/cad-
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Paris, Obras de Eça de Queiroz, vol. II, Porto Lello & Irmão [texto de 1896].
SILVESTRE, Osvaldo (2002), “Um turista nos trópicos: o devir-pós-colonial de
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STOWE, Harriet Beecher (s.d.), A Cabana do Pai Tomás, trad. de Ricardo Alberty,
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Maria Helena Santana - Universidade do Minho